Resenha
| ABREU A.R.P., HIRATA H., LOMBARDI M.R.. Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. 2016. São Paulo. Boitempo. 284 ppp. |
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Recepção: 10 Março 2017
Aprovação: 06 Setembro 2017
A participação das mulheres no mercado de trabalho em atividades econômicas é um fenômeno recente do século XX, mais especificamente das últimas três décadas (Araújo, 2012). Em um primeiro momento, tal fenômeno, que, em números, tem evoluído nos últimos anos, pode parecer uma conquista das mulheres, cuja inserção no mercado de trabalho garantiu-lhes direitos e emancipação; todavia, conforme Lombardi (2012, p. 109), quando analisado, vem “[...] à tona uma realidade complexa e diversificada, com avanços e recuos, e não isenta de contradições”. Assim, concomitantemente ao aumento da participação feminina no trabalho remunerado, reproduziram-se também segregações, “[...], como a maior precariedade ou fragilidade da ocupação feminina comparativamente à masculina, as segregações setorial, ocupacional e hierárquica sofridas pelas trabalhadoras, as remunerações sistematicamente inferiores às dos homens” (Lombardi, 2012, p. 109).
É partindo desta realidade complexa e contraditória, permeada de avanços e retrocessos, que os temas “gênero” e “trabalho” são abordados na obra Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas cruzadas, organizado por Alice R.P. Abreu, Helena S. Hirata e Maria Rosa Lombardi2 (2016) - produto final do Colóquio Internacional cujo tema foi Trabalho, Cuidado e políticas sociais: Brasil-França em debate, realizado nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, entre os dias 26 e 29 de agosto de 2014 - apresentando o atual cenário da participação feminina, revelando aspectos da divisão sexual do trabalho.
É preciso salientar que a divisão sexual do trabalho, segundo Hirata e Kergoat (2007), se refere à divisão social do trabalho com base nas diferenças entre os sexos, sendo a sua principal característica a atribuição da esfera pública e produtiva aos homens, e da esfera privada e reprodutiva às mulheres. Em consonância ao referido postulado, de acordo com Sorj (2014), a identidade masculina se define pela distância mantida das atividades da esfera doméstica, enquanto as mulheres, mesmo desenvolvendo trabalho remunerado, acabam sendo as principais provedoras de trabalhos domésticos e de cuidado.
A obra de Abreu et al. (2016) traz à baila uma discussão ampla em torno da presença das mulheres no trabalho remunerado e não remunerado no Brasil e na França, atualizando o debate e propondo ao leitor uma intensa reflexão acerca do lugar atribuído às mulheres na sociedade contemporânea diante dos processos de globalização e mercantilização. Além disso, traz um debate interseccional, que perpassa e opulenta todos os argumentos acerca da temática.
A obra é dividida em seis partes, contendo 23 artigos, reunindo autores das mais diversas áreas, a saber: Antropologia, Sociologia, Economia, Estatística e Demografia, conferindo-lhes um discurso multidisciplinar sobre o tema em questão. Dada a riqueza da obra e suas contribuições nos estudos sobre gênero e trabalho, a seguir, tem-se um resumo de suas partes, além das respectivas discussões sobre as mesmas.
Na introdução da temática, na primeira parte do livro, intitulada Entrecruzar as desigualdades, têm-se as discussões sobre a articulação entre as relações sociais de classe, raça e gênero, a partir de uma explanação teórica-conceitual, com base nos conceitos de interseccionalidade e consubstancialidade. Esta discorre sobre o debate delicado e complexo que envolve as discussões sobre gênero e trabalho, convidando, até mesmo o leitor mais leigo, a uma profunda reflexão sobre as imbricações envoltas no tema.
Tal sessão traz o trabalho de Danièle Kergoat, que propõe o conceito de consubstancialidade como instrumento para abordar o trabalho feminino e suas relações sociais, analisando-o com base na opressão e na exploração, e colocando-o em relação às questões de gênero, classes e raças. A discussão é endossada por Antonio Guimarães, cujo artigo também destaca a questão das classes, etnias e raças e a relação destas com o sexo, com base no conceito de consubstancialidade e interseccionalidade.
Não obstante, cabe a questão de Jules Falquet: o contexto da globalização neoliberal permitiu um progresso para as mulheres ou simplesmente organizou novas formas de obtenção do seu trabalho? Para tanto, aquela autora observou a teoria feminista materialista para uma reflexão interseccional sobre o tema. Por fim, ainda na primeira parte da obra, tem-se o trabalho de Adriana Piscitelli, que traz elementos para pensarmos sobre a interseccionalidade entre gênero, nacionalidade/etnicidade, cor e posição social, no mercado do sexo e do casamento de migrantes brasileiras.
A primeira parte da obra em análise empreende um papel importante na discussão sobre gênero e trabalho, uma vez que ressalta a necessidade de uma análise abrangente no contexto em questão, não limitando apenas à compreensão do lugar que as mulheres ocupam nos espaços supramencionados, mas ponderando as interseccionalidades e a consubstancialidade imbricadas ao tema em evidência. No decorrer da obra, é possível verificar o quanto tal análise enriquece as discussões sobre gênero e trabalho, ampliando o repertório de compreensão sobre o tema em questão.
Integra a segunda parte do livro, Medir as desigualdades - quatro artigos que trazem em seus esboços a delicada questão de medir e quantificar o gênero e o trabalho no Brasil e na França. Aqui se tem o estudo de Margaret Maruani e Monique Meron, que versa sobre os resultados de uma pesquisa de um século na França, cujo objetivo foi contabilizar, com base nos censos populacionais, o número de mulheres trabalhando. Para aquelas autoras, foi possível descobrir o quanto o trabalho feminino é um fio condutor para compreender o lugar da mulher na sociedade.
Na sequência, tem-se o estudo de Nadya Guimarães e Murillo Brito, que trata do trabalho feminino em uma perspectiva de mercantilização. Partindo também de inquéritos censitários, aqueles autores discorreram sobre a fração de busca no mercado de trabalho no Brasil, entre 1960 e 2010, atentando para a questão de gênero.
Já o texto de Rachel Silveira discutiu sobre a desigualdade salarial entre homens e mulheres na França no século XXI. Aquela autora destacou que, embora a diferença salarial diminuísse nos últimos anos, a questão da desigualdade precisa ser vista com cautela, uma vez que as mulheres ainda ganham quase um quarto a menos que os homens. Ela ainda questiona o método utilizado para calcular as diferenças no mercado de trabalho que, muitas vezes, mascara os dados da disparidade de salários e progressão de carreira entre homens e mulheres.
Em relação à realidade atual do Brasil, Lena Lavinas, Ana Cordilha e Gabriela Cruz questionam se no país houve redução da assimetria de gênero e qual foi a direção de tal redução. Aquelas autoras buscaram revelar os aspectos das desigualdades de gênero no Brasil, com destaque para o hiato salarial, o tempo trabalho ocupado pelas mulheres no Brasil e as taxas de desemprego - frutos da disparidade entre o trabalho exercido por homens e o trabalho exercido por mulheres.
Nesta parte da obra organizada por Abreu et al. (2016), é possível observar que, ao esmiuçar os dados estatísticos, têm-se as assimetrias de gênero e suas invisibilidades. Assim, os autores atentam para a necessidade de examinar com cautela a expansão das mulheres no trabalho assalariado, tendo em vista que mesmo estando inseridas, o trabalho dessas mulheres carrega característica históricas de desigualdade de gênero.
A terceira parte da obra, intitulada Trabalho e uso do tempo, é composta de três artigos que tratam das temáticas “tempo”, “trabalho” e “gênero” em uma perspectiva de tempo social. Os artigos desta sessão buscaram contemplar uma visão ampla sobre a diferença de gênero em relação ao uso do tempo. Neste sentido, tem-se o trabalho de Laís Abramo e Maria Valenzuela, que atentou para a questão da desigualdade de gênero e a relação entre o tempo e o trabalho remunerado e não remunerado na América Latina e no Caribe, com base no conceito de pobreza de tempo e suas interseccionalidades. Aquelas autoras destacaram o quanto a escassez de tempo, principalmente no caso das mulheres, está relacionada à condição laboral, evidenciando a sobrecarga de trabalho feminino.
O uso do tempo também é tema do estudo de Monique Meron, que promoveu uma discussão sobre as temáticas “gênero”, “trabalho remunerado” e “trabalho doméstico” na França. Para aquela autora, as atividades domésticas “clássicas”, além do cuidado parental, continuam sexuadas, e as mulheres são as que mais dedicam tempo para ambas as atividades. Tem-se aí um dado evidente no estudo de Maria Bethania Avila, que tratou do conceito de tempo social para discorrer sobre duas dimensões do trabalho doméstico remunerado, a saber: (i) o cotidiano das mulheres; e, (ii) o tempo histórico e as contradições entre a questão da cidadania e da servidão. O tema “tempo de trabalho” aparece como questão central no que tange à servidão e ao direito, tendo em vista que as jornadas de trabalho são intensivas, extensivas e intermináveis.
Medir o tempo, pensar o tempo para além do tempo cronológico e incluí-lo nas discussões sobre gênero e trabalho foi a pretensão da terceira parte da obra organizada por Abreu et al. (2016), cuja leitura leva o leitor a compreender a questão da multidimensionalidade que envolve tal querela.
A quarta parte da obra em análise, intitulada O gênero das carreiras artísticas e científicas, versa sobre o lugar das mulheres nas profissões denominadas “superiores”. A coletânea de textos remete ao lugar marginalizado que as mulheres ocupam em um determinado cenário, apontando para uma presença maciça e hierarquizada dos homens.
Neste sentido, Alice Abreu, Maria de Oliveira, Joice Vieira e Glaucia Marcondes discutem sobre a questão da igualdade de gênero em ciência e tecnologia no Brasil. Com base naquelas autoras, quando da ocorrência de avanços no que se refere à igualdade de gênero, diante das conquistas das mulheres em diversos setores, é preciso observar tais dados com cautela, tendo em vista que ainda hoje, as mulheres são a maioria em atividades de reprodução social, em detrimento das atividades de criação e inovação.
Nathalie Lapeyre, por sua vez, tratou da questão da presença das mulheres em uma empresa francesa fabricante de aeronaves que adotou uma política de diversidade de gênero. Segundo aquela autora, embora o país lidere a porcentagem de mulheres executivas, o setor de emprego continua marcado pela desigualdade de gênero. Além disso, tem-se uma grande disparidade da distribuição da presença feminina em todos os setores, com maiores índices em setores periféricos, contra índices bem abaixo quanto mais alto o topo da pirâmide.
Logo, cabe a questão: o que mudou na equação mulheres e Engenharia na última década no Brasil? Tal indagação guiou a pesquisa realizada por Maria Lombarde e Debora Gonzáles sobre a questão da igualdade de gênero e a Engenharia. Para aquelas autoras, a presença das mulheres na engenharia segue em ritmo bem lento. Se, por um lado, têm-se iniciativas coletivas que visam mobilizar engenheiros e estudantes de Engenharia para questões de gênero, por outro lado, tais iniciativas acabam sendo invisíveis nesse cenário predominantemente masculino.
As orquestras são um dos raros espaços que possibilitam vínculo formal dos musicistas, sendo o foco do estudo de Liliana Segnini para discutir sobre a desigualdade de gênero e a participação feminina. Nas orquestras analisadas por aquela autora, 25% dos musicistas era mulheres, e apenas 4% ocupavam postos de prestígios. A relação classe-gênero por Segnini, trazendo uma discussão sobre a consubstancialidade e a desigualdade de gênero.
Se hoje se tem um discurso que afirma cada vez mais a presença das mulheres nas profissões denominadas masculinas, esta parte da obra organizada por Abreu et al. (2016) remete à reflexão sobre como se dá a presença das mulheres e qual é o lugar designado a elas nos cenários em questão. Neste sentido, não basta apenas apontar a existência de mulheres inseridas em tais espaços, mas sim, compreender qual o lugar que lhes é designado.
A quinta e sexta partes da obra, intituladas Cuidado, dinâmicas familiares e profissionais e Cuidado, políticas sociais e cidadania, respectivamente, buscaram atualizar o debate entorno da questão do gênero e do trabalho de cuidar. Composto por oito artigos, os autores abordaram o cuidado a partir de três perspectivas diferentes, a saber: (i) o trabalho emocional do cuidado; (ii) as interações e as relações sociais entre os atores envolvidos no cuidado; e, (iii) as Políticas Públicas que envolvem a questão do gênero e o trabalho de cuidar.
No primeiro artigo da referida sessão, Helena Hirata analisou e comparou as trajetórias e atividades desenvolvidas por trabalhadoras do cuidado domiciliar no Brasil e na França. Na França, a trajetória das trabalhadoras é marcada pela migração. Já no Brasil, embora haja migração interna, a pobreza, o desemprego, a informalidade e a ausência de proteção social marcam as trajetórias das mulheres. Segundo aquela autora, tem-se, em ambos os países, um trabalho predominantemente feminino, precário e ocupado por indivíduos mais vulneráveis.
Na sequência, tem-se o estudo de Aurélie Damanne, que tratou do cuidado para aqueles com comprometimento cognitivo amplo, destacando o papel das associações e dos familiares, além de apontar as dificuldades de articulação entre os diversos atores e de evidenciar as relações de poder na atividade do cuidado. A partir das discussões feministas sobre a ética do cuidado, aquela autora discutiu sobre as relações de poder na organização do cuidado.
A relação entre o trabalho de cuidar e a confiança/desconfiança é apresentada por Ângelo Soares. Aquele autor destacou as interseccionalidades entre a confiança/desconfiança e o gênero, as relações sociais, a idade e a raça, observando como estas se manifestam no trabalho de cuidar.
Luz Arango tratou do tema “estética e cuidado” em seu estudo em salões de beleza voltados para a clientela negra. Ali, a questão do cuidado apareceu como reparador, tanto na dimensão do corpo material, como na dimensão da autoestima. Questões étnicas são abordadas para contextualizar o tipo de cuidado em questão e sua expansão, sejam eles referenciados por questões raciais ou não.
Já o estudo de Marc Bessin buscou discutir sobre Políticas Sociais, questões de gênero e cuidado. Com base no conceito de presenças sociais, aquela autora ressaltou a importância de uma articulação entre o cuidado e o Estado social (welfare state). Ela também explorou a relação entre o cuidado e a temporalidade, destacando que esta última está na base das discussões de gênero, embora não seja abordada nas discussões sobre interseccionalidade.
Sobre a questão do provimento do cuidado ao idoso durante sua velhice, Guita Debert, partindo da problematização de duas soluções antagônicas para o provimento de cuidados, a saber: (i) as famílias; e, (ii) o Estado, destacou que os dramas vivenciados na velhice tornam-se invisíveis às Políticas Públicas, tornando a velhice um problema das famílias, e não do Estado.
Bila Sorj, por sua vez, discorreu sobre as Políticas Sociais a partir do projeto Mulheres da Paz, do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Aquela autora apontou tal movimento como uma participação comunitária conjugada no feminino, contestando os seus limites, tendo em vista o amparo ali identificado com base no maternialismo. In concluso, Sorj buscou discutir sobre as tensões desse modelo de Política Social.
Por fim, no último trabalho desta sessão, Florence Jany-Catrice questionou a atribuição de valores econômicos aos trabalhos de cuidado, pontuando o quanto esse valor se sustenta em detrimento de uma confiscação de seu sentido e sua finalidade. O Produto Interno Bruto (PIB) é abordado como uma medida que desvaloriza as atividades não quantificadas na macroeconomia. Neste sentido, aquela autora propõe, como alternativa a esse modelo, medidas que se apoiem na utilidade social e benefícios coletivos de tal ação.
As discussões sobre cuidado, trabalho e gênero apresentada nesta parte da obra organizada por Abreu et al. (2016), a partir de seu debate interseccional, trazem ao leitor uma compreensão deste cenário, revelando o seu declínio para o feminino e as consequências inerentes à vida das mulheres.
Para além de uma simples comparação, entre dois países apresentados pela obra em análise, tem-se, de fato, um rico material, com atualidades sobre as questões de trabalho e gênero. O lugar das mulheres e a assimetria de relações é evidenciada a partir das interseccionalidades e consubstancialidade, o que lhes garante o seu caráter histórico e atualizado. Sem dúvida, a obra buscou preencher uma lacuna, pois, reúne grandes pesquisadores sobre gênero e trabalho e oferta amplo acesso às pesquisas e bibliografias em torno das questões supramencionadas.
De modo geral, esta é mais uma obra crucial nos estudos de gênero e de divisão sexual do trabalho, tendo em vista sua potencialidade para refletir sobre as assimetrias, as disparidades e a hierarquia entre o trabalho exercido por homens e o trabalho exercido por mulheres, a partir dos diversos estudos apresentados pelos autores.
Referências
ARAUJO, A.C. 2012. Informalidade e relações de Gênero. In: I. GEORGES; M.P. LEITE (org.), Novas configurações do trabalho e Economia solidária. São Paulo, Ed. Annablume, p. 135-172.
HIRATA, H. ; KERGOAT, D. 2007. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, 37(132):595-609. https://doi.org/10.1590/S0100-15742007000300005
LOMBARDI, M.R. 2012. Anotações sobre desigualdades de gênero no Mercado de trabalho. In: I. GEORGES ; M.P. LEITE (org.), Novas configurações do trabalho e Economia solidária. São Paulo, Ed. Annablume, p. 109-134.
SORJ, B. 2014. Socialização do Cuidado e Desigualdades Sociais. Tempo Social, 26(1):123-128.
Notas