Resenha
| VALENTINI L.. Justice in a Globalized World: A Normative Framework. 2012. Oxford. Oxford University Press. 232 ppp. |
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Recepção: 18 Agosto 2017
Aprovação: 21 Novembro 2017
A intensificação do processo de globalização, isto é, da integração econômica, social, cultural e política entre os países trouxe novas possibilidades de enxergar o mundo, mas também trouxe novos desafios e novas demandas. E, obviamente, a globalização, enquanto um fenômeno recente, é também alvo da avaliação de diferentes perspectivas, uma delas é a moral. Não seria incomum esperar que a globalização também fosse objeto do julgamento moral que os indivíduos fazem corriqueiramente em suas vidas. Entretanto, falta à globalização um conjunto de ferramentas morais capaz de ser empregado na avaliação desse fenômeno.
O vocabulário político-moral muitas vezes mobilizado, destaca Laura Valentini, tem como origem a avaliação de comunidades políticas com fronteiras bem delimitadas. Logo, um novo conjunto de ferramentas político-morais, isto é, de noções de justiça, é demandado, e o ponto de partida são os princípios e conceitos aplicados ao âmbito doméstico. As noções de justiça que a autora mobiliza derivam da teoria política liberal contemporânea, tendo como base os trabalhos do filósofo estadunidense John Rawls, refletindo princípios igualitários de justiça caros ao mundo ocidental. De modo geral, podem ser resumidos em: “[...] requiring equal civil and political liberties, equality of opportunity, and placing strict limits on permissible economic inequalities [...]” (2012, p. 16).
Contudo, essas noções de justiça são realmente aplicáveis no cenário internacional? É diante dessa pergunta que Laura Valentini inicia sua obra, apresentando, primeiramente, duas visões de teóricos liberais frente a tal questão: os que são conhecidos como cosmopolitas, e respondem afirmativamente; e os estatistas (ou nacionalistas, ou sociais liberais), que respondem negativamente. Valentini acredita que ambas tocam em questões essenciais, mas que contêm insuficiências tanto teóricas quanto práticas, que impedem que sua aplicação. Porém, haveria um caminho do meio entre os cosmopolitas e estatistas, uma terceira via pouco desenvolvida, que congregaria as duas visões. O que implica em dizer que princípios de justiça deve governar as práticas sociais globais ou quase globais, sem que isso implique que a justiça igualitária deva se estender completamente.
Desta forma, seu livro apresenta uma terceira via, elaborando um conjunto novo de ferramentas teórico-morais, que a autora chama por “terceira onda” no debate sobre justiça global. O seu objetivo, portanto, é preencher essa lacuna no campo, contribuindo com o desenvolvimento desse caminho do meio. Para tanto, Valentini organiza o livro de forma que o leitor seja apresentado primeiro as duas visões consolidadas, na parte I o cosmopolitismo, e na parte II o estatismo. Nestas duas partes do livro, a autora opera o mesmo exercício de analisar do ponto de vista teórico e prático de cada uma e vis-à-vis a outra. Na parte III, e última, a autora apresenta de forma detalhada o seu quadro metodológico, no que consiste sua proposta, e como ela responde as insuficiências das outras duas visões.
Para muitos liberais contemporâneos, salienta a autora, só é possível considerarmos uma sociedade quando essa garante a todos os seus cidadãos igualdade de direitos civis e políticos, igualdade de oportunidades, e estipula restrições rígidas sobre as desigualdades econômicas admissíveis. Somente tendo essas características preenchidas que seus arranjos sociais poderiam ser justificados na visão dos demais. Assim, se é possível falar em sociedade global com o advento da globalização, é compreensível à visão cosmopolita a extensão da justiça igualitária ao nível global. Ora, se a sociedade doméstica precisa preencher esses critérios para ser justificada aos olhos dos demais, e, assim, ser justa, a sociedade global também precisaria. Neste caso, ela deve ser estendida globalmente, mas para sociedades que compartilham um conjunto de instituições legais, políticas e econômicas, o que em Rawls chama-se de “estrutura básica da sociedade”, salienta a autora.
Por outro lado, os estatistas negam a possibilidade da extensão da justiça igualitária aplicada no ambiente doméstico para fora das fronteiras nacionais. O que não significa também a adoção de uma postura anárquica frente ao sistema internacional sem espaço para a cooperação mínima, mas de princípios de justiça muito mais restritos. Tratam-se de critérios político-morais mínimos, se comparados com o ambiente doméstico. Que são preenchidos quando se respeita: o dever de assistência aos países em situações de crises, normalmente crises humanitárias ou ambientais de grandes proporções; os direitos humanos básicos; e o direito de autodeterminação dos povos.
Os estatistas são acusados de, ao não levarem em conta o peso da interdependência entre os estados no sistema internacional, e a própria forma como operam os regimes internacionais, de serem permissivos com a desigualdade entre os países. A pobreza global não seria produzida pela injustiça internacional, mas pelo infortúnio ou falta de instituições sociais apropriadas nos países pobres. Não é que se seja subserviente ao status quo, mas que ao não enxergar a interdependência internacional como parte significativa das injustiças, acaba-se, invariavelmente, assumindo um viés favorável ao status quo.
Cosmopolitas também são acusados de serem idealistas, utópicos, implausíveis etc., pois as reformas necessárias para sua extensão ao internacional são tão profundas que podem tornar o sistema internacional mais perigoso, uma vez que poderia gerar muitas instabilidades. E secretamente promoverem o imperialismo ocidental, ao ignorarem valores liberais como autodeterminação e autonomia nacional. Em última instancia, para sua completude seria necessário o estabelecimento de um Estado global que pudesse organizar todo o sistema e garantir a efetividade da justiça, entretanto, esse poderia ser o caminho para uma espécie de despotismo global.
Os cosmopolitas também podem ser separados em dois grandes grupos: os relacionais, que superestimam o caráter sistêmico e integrado da política mundial, por exemplo, estendendo o “fardo” da responsabilidade com as nações pobres à todas os países ricos; não-relacionais, que generalizam problematicamente os princípios gerais de igualdade moral das pessoas para um príncipio igualitário de justiça global. A autora opta por rejeitar o cosmopolitismo não-relacional, pois seu aparato teórico produz demandas morais implausíveis para uma noção de justiça que se pretende aplicável no âmbito global. Quanto ao cosmopolitismo relacional, para ela, embora seu quadro teórico sirva para capturar o que é especial sobre a justiça, sua defesa da regulação da estrutura básica global por princípios de justiça liberal o torna, ao menos, parcialmente inaplicável.
Logo, nem estatistas nem cosmopolitas seriam capazes de eficazmente orientar a ação no plano internacional, para Valentini:
Given that a capacity to guide action is a necessary attribute of any plausible normative theory (or at least so most normative theorists, including myself, think), these practical difficulties further undermine the tenability of cosmopolitans’ and statists’ respective accounts of global justice (2012, p. 34).
Para Valentini, a diferença entre a promoção da igualdade socioeconômica global defendida na visão cosmopolita e a defesa da garantia de recursos mínimos para que cada comunidade possa ter autonomia na sua própria gestão, fica ainda mais evidente se entendida a partir de princípios de justiça e de humanidade. Como destaca a Valentini (2012), a distinção entre os dois princípios faz parte do vocabulário moral ocidental e é central no debate sobre justiça global. Em síntese, princípios de justiça determinam os direitos dos indivíduos, enquanto princípios de humanidade determinam o dever de ajudar aqueles em necessidade com recursos que se dispõe.
Assim, ao estenderem a justiça igualitária do doméstico para o externo, os cosmopolitas assumem como dever de justiça das nações ricas ajudar às nações pobres a atingirem a justiça igualitária. Esse tipo de compromisso demanda maior esforço por parte dos países mais ricos, uma vez que para se atingir a justiça igualitária global seria necessária implementar reformas institucionais radicais ao nível internacional. A posição estatista, para a autora, é mais ambígua, pois, embora considere a assistência como um dever, ela está restrita à função de ajuda em casos de “real necessidade”, não se comprometendo com reformas institucionais.
Central para o seu entendimento de justiça é a ideia de coerção é através do desenvolvimento do conceito de coerção dentro de seu arcabouço teórico que a autora constrói seu caminho intermediário. Para Valentini, relações de coerção são necessárias para ativar preocupações de justiça. A impossibilidade de haver liberdade ilimitada decorrer da própria moderada escassez de recursos do mundo, assim, os indivíduos precisam de que sejam estabelecidos limites em torno de suas liberdades, frente uns aos outros. Essa é uma demanda à justiça, ela deve traçar esses limites, demarcando quais são os direitos que as pessoas têm e a sua extensão, desta forma, a justiça restringe a liberdade dos indivíduos, ao mesmo tempo que as delimita. A restrição justa da liberdade de cada indivíduo, isto é, de um ao outro, requer uma justificativa é demandada. Princípios de justiça delimitam a liberdade de cada indivíduo, o que para a autora, também pode ser entendido como a imposição de restrições à forma como cada pessoa exerce coerção sobre as demais. Uma vez que a coerção existe domesticamente e também internacionalmente, princípios de justiça devem ser aplicados nos dois cenários, destaca a autora. E da mesma forma que a coerção doméstica difere da externa, os princípios de justiça também devem ser diferentes.
A coerção pode se manifestar de duas formas, destaca Valentini. A primeira, a Coerção interacional, refere-se a de um agente sobre outro, de pessoa a pessoa ou grupos de pessoas. No caso das relações entre os Estados ela pode se dar na forma de sanções, intervenções militares etc. A segunda, é a coerção sistêmica, onde não se trata mais de um agente ou um grupo, mas de um sistema de coerção que se desenvolve por meio de regras, padrões de interação e normas. Por exemplo, ao participar da economia global, de que todos os estados fazem parte, restrições são postas a liberdade, mas que não são, geralmente, enxergadas na forma de coerção, uma vez que não é identificável um agente por traz dela. Esse tipo particular de restrições, afirma a autora, é estabelecido quando os sujeitos fazem parte de um sistema normativo, que por não estar organizado na forma de um Estado, por exemplo, torna difícil a sua identificação. Para ela, quando pensarmos nos dispositivos que ativam a justiça, a coerção tem que ser levada em conta nas duas formas supracitadas, interacional e sistêmica. Fazendo isso, diferentes tipos de justiça global emergem em relação aos diferentes tipos de coerção identificadas no nível internacional.
Laura Valentini argumenta que seu quadro teórico normativo baseado na coerção é consistente com os compromissos fundamentais do liberalismo. Esse está baseado nos princípios de igualdade de respeito pelas pessoas qua agentes racionais e autônomos, que por sua vez dão origem aos direitos de justiça e de humanidade. Neste sentido, sua abordadagem, como a cosmopolita está firmemente comprometida com a primazia moral de igualdade entre as pessoas. Para a autora, seu quadro teórico normativo produz as respostas necessárias à questão da extensão da justiça, que tanto o estatismo quanto o cosmopolitismo falham em responder.
Para Valentini, o objetivo de uma teoria da justiça não é motivar os agentes, ou oferecer orientação nas decisões diárias, mas prover uma estrutura compreensiva para se pensar sobre os deveres e obrigações que se aplicam aos indivíduos. Ela deve ser capaz de possibilitar que se possa estabelecer quais condutas são moralmente problemáticas e em qual medida. Assim, não é papel da filosofia política responder às questões de como sanar as injustiças existentes, mas permitir que se possa formular tais questões, identificando o que se considera como justo e injusto (Valentini, 2012). Desta forma, seu quadro teórico normativo permite que se avalie as instituições existentes e os padrões de interação a partir do ponto de vista da justiça, que se consiga identificar sob quais condições elas podem ser justificadas pelo todo. A autora argumenta que sua proposta não é implausível, nem idealista, pois sua atenção está voltada para a reforma das instituições existentes, e da criação de novas instituições supranacionais com capacidade coercitiva.
Se para resolver o problema da justiça no estado de natureza foi necessário a existência de um árbitro soberano, solução similar será necessária no nível internacional. Em seu quadro teórico normativo baseado na coerção, as relações na arena internacional não são nem reduzidas a relação entre Estados-nação, nem idêntica entre cidadãos que fazem parte da mesma comunidade regulada. Desta forma, sua visão não poderia preconizar a existência de um Estado global, nem do sistema Westfaliano de Estados soberanos. Seria necessário a criação de autoridades com limitadas competências, de modo que que elas possam exercer coerção sobre a ação dos Estados em relação aos demais. Tais instituições terão que ser responsáveis e transparentes com aqueles sobre os quais elas exercem coerção, tal como os Estados devem ser com seus cidadãos, assevera Valentini: “[...] justice requires the establishment of additional institutional forms with the capacity to effectively regulate international transactions so as to avoid the continued erosion of state sovereignty” (2012, p. 413).
A introdução de formas positivas de discriminação e medidas redistributivas entre os países em favor dos países em desenvolvimento. Assim, assimetrias no comercio internacional deveriam mudar de negativamente discriminatórias aos países em desenvolvimento, para positivamente em favor desses países, permitindo que eles possam proteger suas indústrias emergentes, de modo a atingir um desenvolvimento sustentável. Criando medidas compensatórias às perdas que os países em desenvolvimento possam ter ao abrirem suas economias. Para Valentini, seria necessário o estabelecimento de uma autoridade internacional capaz e moralmente aceita para extrair recursos dos países desenvolvidos com função redistributiva.
Aumentar a regulação do sistema financeiro internacional, de modo que crises financeiras possam ser evitadas. Esses são exemplo, para a autora, de reformas necessárias para que se atinja o ideal de uma justiça global. Esse processo de reforma institucional deve ser gradual, evitando instabilidades, e decisões incertas, melhorando as instituições existentes, e criando novas, sempre no sentido de melhorar a performance do sistema.
In the long run, piecemeal reform should lead to the establishment of institutions with relatively independent and accountable decision-making power.5 Without independent authorities, the robustness of persons’ freedom could not be guaranteed: the most powerful would still be in a position to ‘dominate’ or unduly constrain the freedom of the powerless, as is often the case in our existing political reality. So long as institutions at the international or global level are governed by bargaining among actors with different power positions, their structure and policies will continue to promote the interests of a small subset of the world’s population (2012, p. 410).
Tentativas de criação de instituições que promovessem formas positivas de discriminação, como a harmonização das políticas aduaneiras dos países, proposta na criação O Acordo Geral sobre Aduanas e Comércio ou Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), em 1947, falharam, entre outras coisas, justamente pela incapacidade de punir, julgar e fiscalizar países que não cumprissem as regras estabelecidas. A criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995, veio a substituir o GATT, com o objetivo de supervisionar e liberalizar o comércio internacional. A OMC, por sua vez, conta com o poder de julgar e fiscalizar, por meio, sobretudo, do sistema de resolução de controvérsias, mecanismo que foi criado para solucionar os conflitos gerados pela aplicação dos acordos sobre o comércio internacional entre os seus membros. Embora tenha uma capacidade de coerção sob seus Estados membros, a OMC não consegue impedir que acordos que ameacem diretamente a economia internacional ocorram foram de sua alçada, tais como o Tratado Transpacífico (TTP) e o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (APT), mais conhecido como TTIP.
O caminho apresentado pela abordagem de Valentin passa, inexoravelmente, pelo fortalecimento das instituições multilaterais de grande escopo, sobretudo as do sistema onusiano, no sentido de dar a elas maior poder de ação, como entidades supranacionais. Contudo, qualquer que seja a reforma a ser feita nos organismos multilaterais, precisamos levar em conta que estas são instituições que, genuinamente, estão dominadas pelos interesses dos países centrais. Como, por exemplo, o Conselho de Segurança da ONU, devido à peculiaridade do direito de veto, situa-se acima da lei que deveria ser a garantidora da ordem internacional, produzindo a anomalia da justiça seletiva, que permite a sua aplicação quando e para quem lhes convém, assim como proteger os crimes de aliados e, obviamente, os seus próprios.
Os países em desenvolvimento, historicamente, reivindicam maior representação nas instituições internacionais, confiando no multilateralismo como espaço de atuação e pressão por reformas no sistema internacional. Entretanto, o que se verifica na política internacional contemporânea, diante da fragilidade das instituições internacionais, são surtos de “minilateralismo” e grupos de decisão ad hoc. Mesmo instituições, que até o passado recente eram tidas como exemplos de processo de integração internacional, como a União Europeia, mostram-se desgastadas com as consequências da crise do Euro. A abordagem de Valentini, obviamente, não é utópica como a proposição de um Estado global. Entretanto, se mesmo reformas com um escopo muito menor, como no campo da cooperação para o desenvolvimento, como de crescimento dos recursos canalizados via instituições internacionais não encontra consenso, reformas tão profundas que mexam nas estruturas do sistema internacional, assimétrico por excelência, se mostram inexequíveis.