Apresentação
O claro assombro da nossa moderna tradição
Desde que se dê nome ao caos, ou à nebulosa, tem-se a impressão de que se dá o primeiro passo para o esclarecimento, a compreensão, a explicação, a emancipação ou a redenção (Ianni, 2000, p. 259).
Com uma expressão aparentemente contraditória, Renato Ortiz introduziu no campo da Sociologia da Cultura brasileira o debate sobre a implantação da “indústria cultural” - na então hegemônica expressão da Escola de Frankfurt (Adorno e Horkheimer, 1985 [1944]) - no Brasil e suas consequências culturais, sociais e políticas. Denominou esse novo universo cultural (para os cientistas sociais) de “moderna tradição brasileira”. Uma das interpretações possíveis do título é que ele apontava para o fato de que a “indústria cultural”, alheia à abjeção dos intelectuais, já se tornara uma tradição. O próprio livro revela que, no final dos anos 1980, já se tratava de processo de longa duração, cujos primórdios podiam ser datados do início do século XX. Por outro lado, o universo cultural de massa dialogava ou se chocava com outras “tradições brasileiras”, outras formas intelectuais e artísticas de pensar o que se convencionou chamar de “cultura brasileira” que se definiam por oposição ao “moderno”. Tradições que se consideravam a Tradição (com T maiúsculo), baseada numa suposta essência de brasilidade, notadamente, a que emanava espontaneamente do povo; não de qualquer povo, mas do homem do campo, puro, autêntico, ingênuo, não corrompido pela civilização moderna. Em síntese, o “povo” da cultura popular. Como veremos, um dos principais pontos do livro é a rediscussão e ampliação do conceito de cultura popular, ou seja, o reposicionamento do debate que leva do “nacional-popular” ao “internacional-popular”.
O subtítulo do livro, “cultura brasileira e indústria cultural” não deixa dúvida de que o autor desejava vincular essas duas problemáticas. As afirmativas e interrogações lançadas em A moderna tradição deixam claro o impacto da constituição de um mercado de bens simbólicos - termo cunhado por Pierre Bourdieu (1982) que dá título ao capítulo sobre a consolidação da indústria cultural - sobre as formulações da chamada “cultura brasileira” e, por que não dizer, da “identidade nacional”, dimensões até então totalmente atreladas. Ortiz vinha de publicar, em 1985, seu livro de maior notoriedade até os dias de hoje, Cultura brasileira e identidade nacional. Embora não tenha sido o único, talvez Renato Ortiz tenha sido o mais radical anti-essencialista no debate sobre a constituição do que seria a “cultura brasileira”.
Examinando vários períodos da história cultural do país, Ortiz desconstrói as relações que os pensadores percebiam como necessárias entre determinadas variáveis, como, por exemplo, a raça, a região, as particularidades culturais, etc. e a constituição da cultura e da identidade nacionais. Demonstra a historicidade dessas concepções e como elas são sucessivamente superadas por outras, guardando, no entanto, mesmo no período da ditadura militar, uma semelhança: o enunciado que vincula o nacional ao popular. Ao longo desse processo, o nacional-popular é constantemente redefinido pelos intelectuais que se ocupam desta tarefa, atuando como “mediadores simbólicos” a serviço dos grupos de interesse de determinados grupos sociais.
A publicação de A Moderna Tradição Brasileira ocorre praticamente no mesmo momento - apenas um ano depois - do livro De los medios a las mediaciones, de Jésus Martin-Barbero (1987) que, apesar de percorrer outros caminhos, convergia para o mesmo ponto: a construção de um novo olhar, nos termos atuais, “descolonizado”, sobre o lugar da cultura de massas no cenário latino-americano. Anos antes, em 1984, Martin-Barbero havia proferido uma conferência em Bogotá, cujo título resumira, ainda melhor, a revolução que acontecia, então, no debate sobre os meios de comunicação de massa: “Da comunicação à cultura: perder o objeto para ganhar o processo”1. Este seria, segundo o autor, o primeiro e mais importante passo para romper com a estagnação da produção de conhecimento na área de Comunicação, presa que estava ao modelo “semiótico-informático”. E esclarece:
Deslocamento de um conceito de comunicação que continua agarrado à problemática dos meios, dos canais e das mensagens, para um conceito de cultura no sentido antropológico: modelos de comportamento, gramáticas axiológicas, sistemas narrativos. Isto é, um conceito de cultura que nos permita pensar os novos processos de socialização. E quando digo processos de socialização, refiro-me aos processos pelos quais uma sociedade se reproduz, isto é, seus sistemas de conhecimento, seus códigos de percepção, seus códigos de valoração e de produção simbólica da realidade. O que implica - e isto é fundamental - começar a pensar os processos de comunicação não a partir de disciplinas, mas a partir dos problemas e das operações de intercâmbio social. Isto é, a partir das matrizes de identidade e dos conflitos específicos que a cultura articula (Martin-Barbero, 1984, p. 5, grifo do autor).
Apesar de ter provocado verdadeira revolução na área de Comunicação, malgrado seu amplo conhecimento na área de Ciências Sociais e de seu reconhecimento intelectual no plano internacional, Martin-Barbero não teve repercussão nos estudos de cultura na área de Ciências Sociais no Brasil. Como provinha da área de Comunicação, talvez tenha sido visto como a ela restrito. As várias vezes em que esteve no Brasil foi por iniciativa desses cursos, em particular, a Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Ademais, em um momento em que a institucionalização da Sociologia da Cultura dava os seus primeiros passos no Brasil, os estudos sobre os meios de comunicação de massa eram raros e pouco prestigiados. O livro A Moderna Tradição Brasileira (Ortiz, 1988) é que acabou fazendo essa passagem “da comunicação à cultura”, quando as próprias escolas de comunicação já a haviam adotado como estratégia de investigação. Foi o primeiro estudo abrangente de caráter histórico-sociológico a respeito do tema que contribuiu, sem dúvida, para a legitimação dos estudos sobre fenômenos da cultura de massa nas Ciências Sociais.
Para lograr êxito nesta empreitada, no entanto, Renato Ortiz teve que enfrentar várias questões, cada qual com relativa potência, ainda presentes no campo em formação da Sociologia da Cultura. Articular os debates sobre indústria cultural e cultura brasileira implicava cotejar duas tradições de pensamento e contestar seus argumentos para elaborar uma nova síntese. Significou, de um lado, enfrentar a teoria crítica da Escola de Frankfurt que dominava o pensamento sobre a indústria cultural nas Ciências Sociais, uma vez que certos aspectos da teoria, como a divisão entre arte e técnica e entre arte e mercadoria, já haviam deixado de fazer sentido. Por outro lado, como veremos, significou enfrentar o debate recorrente na história da “cultura brasileira” sobre o “nacional-popular” que entendia a indústria cultural ou os meios de comunicação de massa a partir da teoria da dependência cultural, da invasão do estrangeiro, do imperialismo americano.
A publicação de A Moderna Tradição Brasileira mudou os rumos dos estudos de cultura no Brasil, dentro e fora dos muros das Ciências Sociais. Pela primeira vez produzia-se uma análise sociológica de grande alcance, não-essencialista, sobre a implantação de uma sociedade de consumo e do imaginário da cultura de massa no Brasil que, como o próprio autor revela, já se consolidara desde os anos 1970. Até então, a grande maioria dos estudos tinha caráter de denúncia dos meios de comunicação de massa, de sua manipulação, alienação, etc. Alguns compêndios de textos, em geral, dos autores da Escola de Frankfurt e de colaboradores da revista do Instituto, haviam influenciado fortemente o pensamento brasileiro nas escolas de comunicação e, nas de Ciências Sociais, o tema era solenemente desprezado. Não é por outro motivo que o título do primeiro capítulo de A Moderna Tradição Brasileira é “O silêncio”. Inserindo a cultura da mídia no campo de discussões sobre “cultura brasileira”, Ortiz estabelece uma série de novos marcos neste debate.
Como havia feito em Cultura Brasileira e Identidade Nacional (1985), Renato Ortiz estabelece uma periodização, fundamental e até hoje não superada, para compreender a implantação da indústria cultural no Brasil: a fase incipiente, que vai dos anos 1920 a 1950, e a de consolidação do mercado de bens simbólicos. A primeira etapa se inicia com a implantação do rádio e vai até os primeiros tempos da televisão. Caracteriza-se pelo pioneirismo dos realizadores, mas, também, por seu amadorismo tanto em termos técnicos quanto administrativos. O que inaugura a etapa de consolidação é exatamente a constituição de uma base técnica capaz de assegurar o fluxo contínuo e dotado de qualidade audiovisual de bens simbólicos ao lado da modernização empresarial dos diversos setores da produção e circulação de cultura. Além disto, seja na televisão, na imprensa, na indústria fonográfica etc. a fase implicou a reformulação e modernização do organograma das empresas. A partir de então, a ascensão ao comando das empresas dos departamentos comerciais e seu planejamento baseado em estudos de marketing garantia maior estabilidade orçamentária.
No entanto, nada teria sido possível sem a aliança com os militares. Abraçando os interesses da iniciativa privada, os governos militares investem bilhões em infraestrutura de comunicações e transportes, base da consolidação da indústria cultural e, com ela, a de uma sociedade de consumo de massa. Em algumas décadas, o Brasil havia se transformado em um dos maiores mercados de bens simbólicos do mundo. Ao contrário do que se afirmava até então, Ortiz percebe que o período da ditadura militar foi o de maior produção cultural na história brasileira. Muito se insistia sobre o problema da censura à cultura. Analisando a indústria cultural, o autor observa que a censura incide sobre determinadas obras, não sobre a cultura em geral. Como outros detentores de poder, os governantes militares viam a cultura como um campo de atuação, não apenas de repressão. Por meio do investimento em telecomunicações, da elaboração de Plano Nacional de Cultura e da criação de várias agências de organização e fomento à cultura, os governos militares apostam na criação de um novo perfil do homem brasileiro. É importante notar, entretanto, que Ortiz se dá conta do caráter sombrio de todo esse processo, do autoritarismo por meio do qual é imposto, da ausência de senso crítico dos envolvidos, mesmo daqueles que vinham de movimentos de esquerda.
Embora os números apresentados enfatizem o grande investimento dos governos militares na infraestrutura que alavancou a expansão do mercado de bens culturais de massa, o grande crescimento do sistema de radiodifusão via satélite, da indústria fonográfica, impulsionava também, o crescimento da produção cinematográfica, editorial etc. Desde então, já se percebia a sinergia entre os meios: pouquíssimo lidos pelas classes populares e médias, certos clássicos da literatura brasileira ou mundial viam crescer a demanda de sua leitura quando adaptados e exibidos em uma telenovela.
De certa forma, A Moderna Tradição Brasileira nasceu do estudo da telenovela brasileira. Ortiz havia coordenado a pesquisa coletiva “A produção industrial da telenovela”, mais tarde publicada com o título Telenovela: história e produção (Ortiz et al., 1989). Sediada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde era professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, a investigação contou com mais cinco pesquisadores e pode ter sido um dos primeiros trabalhos empíricos de grande dimensão sobre o tema. Foram coletados dados de todos os setores de alguma forma envolvidos com a produção da telenovela, fossem eles técnicos, econômico-financeiros, estéticos, histórico-culturais etc. Foi feita uma espécie de “pesquisa de campo” em que os estúdios das redes cariocas que então dominavam o gênero, Globo e Manchete, foram visitados por toda a equipe de pesquisa que se distribuiu em diferentes tarefas: pesquisa nos departamentos de documentação das emissoras, entrevistas com diretores de todos os departamentos e etapas de produção, atores e outros profissionais envolvidos com o produto. A pesquisa documental foi complementada com a bibliográfica justamente no momento em que os estudos de história da cultura, em particular, os de cultura popular tradicional não deixavam dúvidas sobre a relação de permanência, de cadeia de mediações entre o melodrama, o folhetim e a radio/telenovela. Na verdade, a ideia de “folhetim eletrônico” já era senso comum. Mas havia uma espécie de resistência de caráter conceitual a vencer na academia. Por isto era importante demonstrar que a telenovela vinha de baixo, como diz Martin-Barbero. Isto colocava por terra a teoria dos intelectuais de que a cultura de massas é sempre uma degradação da cultura erudita.
No livro de Martin-Barbero (1987), o melodrama ocupa lugar central na história das mediações. Para o autor, essa forma popular de teatro de rua teria sido responsável pela transição do folclórico ao popular. Também preocupado com a redefinição do “popular”2, Néstor García Canclini polemizava ainda mais, lançando, no mesmo ano de 1987, o artigo “Ni folklorico, ni masivo, que es lo popular?”. Conclamando, como Martin-Barbero, à união entre comunicólogos e antropólogos, o autor chamava a atenção para a falsa oposição entre o massivo e o popular e/ou tradicional. A partir desta perspectiva, pode defender que o “massivo não é algo alheio nem exterior ao popular [...]. A cultura massiva é uma modalidade inesquivável do desenvolvimento das classes populares em uma sociedade que se massificou” (p. 9)
A publicação concomitante de livros e artigos dá a impressão de que os três autores dialogavam entre si. No artigo sobre o “popular”, Garcia Canclini cita o também clássico texto de Renato Ortiz Cultura popular: românticos e folcloristas (1992), publicado pela primeira vez em 1985 pelo PPG em Ciências Sociais da PUC-SP. Nele, ao criticar a visão dos folcloristas, como algo que se distanciava da cultura vivida pelas classes populares, Ortiz abre caminho para o estudo da cultura massiva. Anos mais tarde, os três autores tornaram-se grandes interlocutores, mas, naquele final dos anos 1980, talvez tenha ocorrido apenas uma convergência entre as ideias destes e de outros estudiosos latino-americanos sobre a consolidação na América Latina de uma “nova cultura” à qual não se podia negar, apesar de todos os pesares, o título de “popular”. O fato é que coube também à Moderna tradição brasileira alargar os horizontes conceituais do “popular”. É neste livro que Renato Ortiz denomina o já gigantesco universo pop em circulação no Brasil de “cultura popular de massa” e, ao final, propõe seu enquadramento no cenário da mundialização da cultura.
Ao ser lançado em 1988, o livro A Moderna Tradição Brasileira - Cultura Brasileira e Indústria Cultural foi objeto de intenso debate em inúmeros trabalhos de grande qualidade3. Hoje, suas ideias e hipóteses ainda são descobertas, redescobertas, reproduzidas, testadas, contestadas, em trabalhos de variável envergadura; elas apresentam o Brasil moderno tanto para os estudantes em início de formação, quanto para pesquisadores experientes, nativos ou não, com intenções semelhantes ou heterogêneas. Estamos diante de uma obra que é parte do seleto espaço dos clássicos da sociologia brasileira. A proposta deste dossiê foi concebida com o objetivo de discutir suas implicações, a partir de uma abordagem centrada em torno de uma reavaliação crítica de suas contribuições teóricas; justificado pela originalidade das teses que apresenta, pelas novas interpretações que seu modelo analítico sugere, assim como pela indefectível força de seus argumentos nos debates contemporâneos em diversos domínios das ciências sociais. Pragmaticamente atestam ainda sua relevância suas cinco edições, somando-se diversas reimpressões de cada uma delas ao longo destes trinta anos.
Cada um a sua maneira, os autores que participam do dossiê analisam diferentes aspectos deste clássico moderno, desde seu conteúdo até o que ele permite pensar sobre a atualidade. Marcelo Ridenti analisa e aprofunda as matrizes teóricas que estruturam o pensamento de Ortiz quando escreve A Moderna Tradição Brasileira, ou seja, de que maneira se apropria do conceito de “indústria cultural” da Escola de Frankfurt de tal forma que logra associá-lo à possibilidade de lutas por hegemonia de Antonio Gramsci, ao mesmo tempo em que, inspirado por Bourdieu consegue perceber os agentes e seus discursos nos campos de produção cultural etc. Ridenti revela ainda como, apoiado nos conceitos de ideologia e utopia de Karl Mannheim, Ortiz compreende a sociedade capitalista brasileira, especialmente, a transformação da utopia crítica do “nacional-popular” em ideologia justificadora da mídia - em particular, a Rede Globo - que se apresenta no mercado global como produtora da autêntica “cultura brasileira”.
O artigo de Néstor García Canclini parte da discussão proposta por Renato Ortiz no último capítulo do livro: a possível formação de uma cultura ou memória internacional-popular. Procura pensar como, no momento atual, estaríamos vivendo outro momento de grande transição como o que descreveu seu interlocutor brasileiro na passagem dos anos 1980 para 1990. Se, no período descrito por Ortiz, restava claro que a produção cultural se internacionalizava, mundializava, transnacionalizava - as categorias de análise eram e ainda são muitas - no momento atual, pensa García Canclini, esse processo se aprofunda: “À transnacionalização dos meios que havia descrito Renato Ortiz se acrescentam sua reorganização pela convergência tecnológica e a irrupção das redes sociais”. Como fizera o autor de A Moderna Tradição Brasileira, García Canclini reflete sobre as implicações deste novo momento do “internacional-popular”.
Ruben Oliven discorre sobre a circulação de formas culturais, pessoas e ideias entre o Brasil e outros locais mundiais, notadamente a Comunidade Europeia e os Estados Unidos. Seu objetivo é demonstrar que esta circulação internacional pode ser remontada ao próprio “descobrimento” do Brasil, mantendo suas principais características. Deste modo, busca estabelecer a conexão entre estas trocas históricas e o que Renato Ortiz denominou “cultura internacional-popular” em A Moderna Tradição Brasileira, além de apontar o caráter perverso dessa modernização que se erige sobre gigantesca desigualdade social.
Philip Schlesinger, estudioso escocês dos problemas da cultura e da comunicação, reflete sobre o pensamento de Renato Ortiz em A Moderna Tradição Brasileira e Mundialização e Cultura, a quem conheceu em encontro realizado em 1996 na Universidade de Stirling, na Escócia, sobre o tema “Identidade e comunicação cultural na América Latina”. Após analisar a repercussão do pensamento do autor na “anglosfera”, discute as questões já colocadas no capítulo final de A Moderna Tradição Brasileira, ideias que remetem diretamente ao tema da globalização ou “mundialização da cultura”. Daquele momento quase inaugural desse debate, Schlesinger prossegue comparando as especificidades dos processos brasileiros e europeus, bem como as mudanças que têm levado à tendência de substituição do conceito de indústria cultural, adequado ao tempo em que escreve Ortiz, pelo de indústrias criativas, mais apropriado aos dias atuais.
Como se vê, a obra, ontem e hoje, permanece na linha de frente do debate sobre os modos e estratégias de nacionalização, internacionalização ou transnacionalização da cultura brasileira. A disputa de ontem, a um só tempo cultural e política em torno do “popular-nacional”, implicando classificações e hierarquizações da produção cultural, de uma história de conformação da cultura brasileira, associando por um longo período a discussão sobre a identidade nacional ao problema da cultura popular e à questão do Estado, foi incansavelmente trabalhada pela abordagem analítica sócio-histórica e comparativa levada a efeito pelo autor. De modo semelhante, o processo de consolidação de um mercado de bens simbólicos no país aparece como evidência dos investimentos realizados, e das relações de força aí consagradas, empreendidos por grupos tradicionais buscando tornar hegemônicas suas definições de autenticidade no amplo espectro da diversidade cultural brasileira. O alcance explicativo de seu recorte temático e conceitual, em ambos os casos, não oculta os fenômenos transnacionais de circulação, trocas e transferências entre espaços culturais assimétricos que marcaram, e ainda marcam, as disputas pelo monopólio destas classificações. A empreitada levada a efeito pelo autor em seus trabalhos subsequentes confirma a importância do problema que é construído em A Moderna Tradição Brasileira.
Seguramente, ela abre vias de investigação da maior importância para repensarmos a ficção bem fundada das formações eminentemente nacionais das identidades nacionais, na medida em que destaca sua heterogeneidade e reconhece o fato de que o “espaço das possibilidades”, para os distintos objetos da sociologia da cultura, está longe de se circunscrever ao território nacional. A Moderna Tradição Brasileira contribui de modo inédito para a compreensão de que, a rigor, a base nacional dos campos é um fato histórico que podemos datar, não é universal. Por estas razões, a linha de força estabelecida pelo livro pode ser seguida pela história transnacional que subentende as formações nacionais, encoberta pelos nacionalismos (Löfgren, 1989;
Boschetti, 2010); no caso brasileiro, a inexorável marcha da racionalização capitalista irá operar um processo de modernização que desconheceu os limites entre fronteiras nacionais. Exatamente aí, ao encerrar a discussão com a questão do advento de uma cultura “internacional-popular”, quando da consolidação do mercado de bens simbólicos no país, emerge um trabalho que não se encerra sobre si mesmo.4 Sua configuração de obra aberta é ratificada ainda por uma “Inconclusão”, que suscita questões fecundas e renovadas sobre as condições para a emergência de espaços transnacionais da produção cultural. Perspectiva de trabalho cuja primazia tem alinhado pesquisadores de diferentes áreas das ciências sociais, quando identificam, a partir de seus objetos e problemáticas de estudo, a existência dos campos em escala mundial, atestada pela circulação dos bens simbólicos no mercado global, pelos diferentes graus de nacionalização, desnacionalização e internacionalização de determinados produtos em seus mercados nacionais, pelas posições dos campos nacionais no espaço internacional, pelas redes de colaborações que se estendem para além das fronteiras nacionais, pela participação de seus agentes em instâncias específicas internacionais, supranacionais ou transnacionais5.
O livro nomeia o processo de modernização da cultura brasileira, questiona convicções e desfaz ilusões sobre o que somos. Enquanto discutíamos a modernização como projeto, ela se realizava como fato. Observamos o advento de uma sociedade de consumo e a consolidação de um mercado de bens simbólicos nas décadas de 1960 e 1970 operados por uma articulação entre Estado autoritário e mercado, ao passo que, por outras vias, a questão nacional ocupava o centro do debate empreendido pelos intelectuais contra o Estado. Na verdade, o campo da produção da cultura fora definido pelo “mercado” numa articulação política que lhe foi favorável na medida em que, não só o Estado, mas uma série de importantes intermediários do trabalho cultural tomoupara si e realizoua tarefa da integração nacional, aproximando os consumidores, intensificando a oferta e o consumo de produtos em todo o território nacional, internacionalizando nossa produção cultural e inscrevendo o transnacional na formação de uma nacionalidade dita “periférica”. Noutros termos, a questão nacional foi tomada como ideologia pelo mercado mundial, pelas indústrias culturais capazes de produzir a mais “autêntica” cultura brasileira para consumo interno e exportação (Dezalay e Garth, 2002).
Ao alcançar este entendimento sobre as morfologia e dinâmica do processo de modernização da sociedade brasileira, algumas regularidades aí identificadas constituem traços importantes no jogo de forças da nossa formação cultural. Descompassos, atrasos, incipiências, improvisações, precariedades, são marcas atribuídas à nossa ordem social, espelhadas nas reflexões, paixões, ilusões e sonhos daqueles que fizeram parte da história intelectual e política brasileiras. Desde os folcloristas e românticos no século XIX e a invenção da cultura popular como “espelho da alma do povo” até os agentes do Estado Novo, passando pelos intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, pelos artistas e autores vinculados ao Centro Popular de Cultura da União Nacional do Estudantes, mas também pelos capitães da indústria seguidos pelos managers responsáveis pelo advento de um mercado de bens simbólicos no país, pela consolidação de uma indústria cultural capaz de efetivar a integração nacional subordinando a questão nacional à sua lei, vivemos cada uma destas fases desacreditando na heteronomia estatal, econômica e política, marca de qualquer formação nacional, inclusive de sua internacionalização6.
Acrescente-se a isso o fato de que insistimos em continuar denegando, escondendo, recalcando estas características; volta e meia nos enredamos no dilema que carrega nossa moderna tradição, isto é, acreditamos num passado passível de ser constantemente elaborado, aprisionado num futuro que nunca chega. Tendemos a viver a ficção de uma modernização cultural homogênea, equivalente, cuja tradição foi amalgamada neste processo superando conflitos, operando rupturas definitivas, inaugurando modernismos perenes, o que nos faz desconsiderar que os fenômenos de circulação, trocas e transferências, base das formações nacionais, são irregulares, assimétricos, porque animados pela atuação dinâmica das culturas e empreendidos por atores em movimento e disputa.
A origem desta falsa sincronia talvez esteja relacionada ao frágil equilíbrio que sempre existiu entre Estado e mercado, as duas forças que procuraram desde sempre monopolizar o campo da produção da cultura no Brasil (e no mundo). Para a intelligentsia brasileira que sempre discutiu a questão da construção de uma identidade nacional, a autonomia do campo da produção cultural não só foi tomada como absoluta, mas também como maculada pela heteronomia intensificada do mercado. Por um lado, este contribuiu para afrouxar as restrições estatais, impôs sua lei, a do lucro, por outro, fez com que o Estado contrabalançasse os efeitos de suas ações pelas políticas de apoio às produções mais restritas (e no caso brasileiro, às ampliadas também). A Moderna Tradição Brasileira coloca a relação nos seguintes termos:
Não resta dúvidas que essas visões apresentadas [sobre a autenticidade da identidade nacional] fazem parte da história intelectual e política brasileiras, nesse sentido elas permanecem presentes ainda hoje nos debates e na implementação de determinadas ações culturais. A perspectiva folclorista sobrevive, sobretudo, nas regiões periféricas do país, onde ocorre uma simbiose entre o popular tradicional e as políticas de cultura realizadas pelas secretarias e conselhos municipais e estaduais. Ela se encontra ainda associada a uma ideologia das agências governamentais, para as quais o argumento da tradição é fundamental na orientação das atividades que se voltam para a preservação da “memória”, dos museus, das festas populares e do artesanato folclórico. Esse tipo de argumentação legitima as ações do Estado nessas área […] (Ortiz, 1988, p. 163).
[…] Nesse sentido [quando a indústria cultural equaciona a identidade nacional] se pode afirmar que o nacional se identifica ao mercado; à correspondência que se fazia anteriormente, cultura nacional-popular, substitui-se uma outra, a cultura mercado-consumo […] (Ortiz, 1988, p. 165).
O método sócio-histórico e comparativo do autor deixa ver os princípios de diferenciação próprios da sociedade brasileira. Ele leva em conta as trocas, as relações de força, de dependência, os encaixes e desencaixes, identifica os agentes, reconhece os intermediários dos campos político, econômico e artístico que ao longo de mais de quarenta anos fizeram e refizeram a história da cultura brasileira no século XX. A comparação entre o Brasil e outras formações nacionais, Europa e Estados Unidos, os efeitos das diferenças espaciais e temporais induzidos pela circulação dos modelos examinados lembram o tempo inteiro que a contemporaneidade não é sinônimo de sincronia.7 A historicidade e a temporalidade que assumiu o campo da produção da cultura no Brasil, ainda que tenha o atraso e a vergonha por ele como obsessões, forjaram o processo de modernização conservador e autoritário que tivemos. A singularidade de nossa modernização cultural, e porque não política e econômica, não reside tanto na ausência de uma autonomia das esferas da cultura, ou de nossa condição periférica, mas nas duas marcas atávicas que insistimos em expungir.
Renato Ortiz discute o que nos falta sem abrir mão da exposição das formas como estas ausências foram preenchidas, das maneiras como a iminência dos fatos se impuseram aos nossos projetos. Daí porque desde 1988 nos surpreendemos com as formas pelas quais o “Brasil mudou”. E quase sempre as incertezas se distinguem porque acompanhadas pelas questões subjacentes: “como se transformou” ou “onde o projeto malogrou”. O nosso dilema atual, por exemplo, gira em torno da segunda questão. A Moderna Tradição, um clássico de apenas 30 anos, oferece pistas que ajudam a explicar, por duas teses que revelam, nossa atual “deriva autoritária”, a “intolerância instalada”, nosso despudor “arrogante e falso”, nossa fragilidade democrática e/ou a exposição de nossas virtudes mais ilusórias. Ambas, apesar de inexoráveis, quase sempre ignoradas: a primeira diz respeito ao fato de que nos tornamos modernos conservando nossa tradição (inclusive a experiência da escravidão) e a segunda é que assistimos esta modernização se consolidar no seio de um Estado autoritário, conservador, e coercitivo. Eis um dos lados do claro assombro de nossa moderna tradição, apresentado no livro, que emerge com força na atualidade. Apesar de ser lido como um trabalho sobre a consolidação de um mercado de bens simbólicos no Brasil, uma de suas contribuições mais fecundas encontra-se na síntese destas duas ideias complementares, cuja atualidade acentua a fecundidade do livro e sua relevância para o debate contemporâneo8.
Até aqui apresentamos duas chaves de leitura da obra que estão longe de prevalecerem como exclusivas. A primeira delas expõe as características do método histórico-comparativo mobilizado pelo autor para a compreensão da formação cultural brasileira. Ressaltamos como as discussões empreendidas sobre as características desta formação nacional não se encerram nela mesma. O apuro analítico do autor e a diversidade das fontes de pesquisa às quais recorre lhe permitem contornar certo conservadorismo persistente nos debates sobre a questão nacional, sobre as temáticas do nacional e do popular. Invariavelmente ignoram-se as inscrições do transnacional nas culturas nacionais. Ao reconhecer os limites destas abordagens, sobretudo quando relativiza alguns paradigmas, como o da influência estática, da cópia fiel (ou mal feita), das produções e recepções tomadas em vias de mão única, isto é, como artefatos que seguem um só sentido, dos centros às periferias, ele aprofunda uma perspectiva de análise que, desenvolvida em obras posteriores sobre a mundialização da cultura, aqui, n’A Moderna Tradição Brasileira, reposiciona o Brasil no centro de um debate incomum. Segundo ele mesmo,
Dentro de nossa argumentação, dificilmente poderíamos trabalhar a partir dessa oposição entre o nacional e o estrangeiro, pois o que nos interessa é justamente o que é negado nessas teorias, o advento da sociedade moderna. No entanto, os diversos estudos sobre a problemática cultural latino-americana têm o mérito de nos situar dentro de um quadro mais amplo. Sem negar a realidade internacional, que sem dúvida é discriminatória em relação aos países periféricos, mas também esquivando-se das armadilhas que nos encerram a literatura sobre o “colonialismo cultural”, penso que é possível considerar a problemática da cultura brasileira dentro de outro ponto de vista (Ortiz, 1988, p. 190).
Ou seja, é uma obra que ao “acertar o relógio” do processo de modernização cultural brasileiro, ao fazer emergir uma série de intermediários importantes na alteração modernizadora das dinâmicas locais, nacionais e internacionais, evidenciando que tais processos não isolam os intercâmbios entre culturas, e que estes são antes marcados pela reciprocidade, correlação e porosidade das relações (sem prescindir da observação da natureza assimétrica das circulações culturais), ao deslocar a centralidade do Estado e das instituições, quer seja nos âmbitos nacional, internacional ou transnacional, e ao acentuar que a história das formações nacionais é uma história das relações culturais entre países colonizados e colonizadores movimentando-se em direções desiguais, mas dinâmicas, novas interpretações são conferidas às culturas políticas nacionais. As tradições reexaminadas por este prisma contribuem para novas inteligibilidades sobre a formação das identidades nacionais, sobre as representações das nacionalidades, sobre as formas pouco unívocas das territorialidades culturais (Wilfert-Portal, 2010, p. 176). A objetivação de nossa moderna ordem social tratada como “coisa”, permitiu ao autor unir uma ideia bifronte num argumento que, acreditamos, ascendeu em A Moderna Tradição Brasileira, isto é, o de que o Brasil mesmo com suas deformidades inseriu-se na confluência das dinâmicas culturais, não como planejou, não como talvez continue planejando, mas como realidade interposta, como uma ordem social que se transfigurou em “fato social”. Caberá a nós entendermos que, no âmbito de uma sociedade mundial, os lugares dos centros e periferias nem sempre se nivelam, ou desnivelam, da mesma forma. Eis o segundo assombro de nossa moderna tradição: não somos nem só exuberantes, nem só repugnantes, somos os dois, separados pelas ilusões, pelas ficções bem contadas, e confundidos pelas realidades inexoráveis e inelutáveis. Somos como o Brasil de Bye bye, Brasil que sempre parece retornar no Brasil d’As Caravanas.9
Este dossiê, assim como nossa Apresentação, é uma obra aberta, não sugere unicamente uma análise sob diferentes ângulos do alcance, significado e importância das contribuições de A Moderna Tradição Brasileira para as ciências sociais. Todas as contribuições publicadas subentendem uma reavaliação da atualidade das questões colocadas por Renato Ortiz, seja para discutir suas hipóteses, pressupostos, seja para encontrar meios de refletir sobre nosso processo de modernização, num momento em que já não vacilamos quanto a sua realização. Embora, como afirmamos há pouco, tendamos a não reter na memória suas bases coercitivas, motivo de nosso intermitente “ricto de estupor” frente às suas heranças, experimentadas de modo tão intenso e imodesto nos tempos atuais.