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O Brasil e a circulação de bens culturais na atualidade1
Brazil and the circulation of cultural goods in present time
Ciências Sociais Unisinos, vol. 54, núm. 2, pp. 167-171, 2018
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Artigos


Recepção: 13 Abril 2018

Aprovação: 15 Maio 2018

DOI: https://doi.org/10.4013/csu.2018.54.2.03

Resumo: Passados trinta anos da publicação de A moderna tradição brasileira, de Renato Ortiz, a cultura de massa se consolidou no Brasil, e a produção cultural está plenamente articulada ao mercado. O Brasil tem uma longa tradição de circulação de pessoas, mercadorias e bens simbólicos, a qual se acentuou nas últimas décadas com a mundialização. Entretanto, a modernização no Brasil esbarra nas desigualdades sociais e raciais. O país tem sérios desafios pela frente se quiser estender a cidadania plena a todos os seus habitantes.

Palavras-chave: A moderna tradição brasileira, cultura de massa, circulação de pessoas, mercadorias e bens culturais.

Abstract: Thirty years after the publication of A moderna tradição brasileira, by Renato Ortiz, mass culture has been consolidated in Brazil, and cultural production is fully articulated to the market. Brazil has a long tradition of circulation of people, commodities, and cultural goods, which has increased in the last decades with the process of globalization. However, modernization in Brazil stumbles on social and racial inequalities. The country has serious challenges ahead if it wants to extend full citizenship to all its inhabitants.

Keywords: A moderna tradição brasileira, mass culture, circulation of people, commodities and cultural goods.

O livro A Moderna Tradição Brasileira marca um turning point na literatura das ciências sociais sobre a cultura brasileira. Nele, Renato Ortiz rompeu o que ele chamou de “silêncio sobre a existência de uma ‘cultura de massa’, assim como sobre o relacionamento entre produção cultural e mercado” (Ortiz, 1988, p. 14). Partindo da ideia de uma ausência de discussão da cultura de mercado no Brasil, o autor fez uma detalhada análise de como se gestou esse campo e como cultura e mercado estavam cada vez mais articulados. O livro termina lançando a tese de que estávamos indo do nacional-popular ao internacional-popular. O primeiro termo remete ao intelectual e ativista marxista Antonio Grasmci que argumentava que na Itália da primeira metade do século XX faltava uma cultura que fosse nacional e popular. Já o segundo é uma criação de Ortiz que sugere que com a mundialização está se criando uma cultura que é popular e ao mesmo tempo internacional.

Procurando me associar à comemoração dos 30 anos da publicação de A Moderna Tradição Brasileira, gostaria de argumentar que a história do Brasil sempre esteve marcada por uma intensa circulação de pessoas, mercadorias e bens culturais. Embora o moderno termo globalização não seja apropriado para aquele momento histórico, a construção do império português desde seu início no século XVI significou uma inegável economia mundial de pessoas, mercadorias e culturas. Os portugueses compravam escravos na África, os levavam para o Brasil e traziam minerais e produtos agrícolas de volta para a Europa, num ciclo que ocorria no e através do Oceano Atlântico. Durante os últimos quinhentos anos, a economia do Brasil, sua composição racial e sua cultura interagiram constantemente com o resto do mundo.

Desde sua colonização, o Brasil tem sido moldado pela contribuição de pessoas de diferentes origens que já estavam aqui ou vieram de diferentes lugares do mundo. Os portugueses encontraram uma população indígena que foi quase totalmente exterminada, mas que hoje cresce novamente. Eles trouxeram escravos da África. Imigrantes vieram da Europa e da Ásia.

Não foram somente pessoas e mercadorias que circularam entre diferentes continentes. As ideias e as expressões culturais também o fizeram. As ideologias sobre raça foram fortemente marcadas por pensadores da Europa e dos Estados Unidos. Os modelos políticos tiveram influências vindas da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos. A Revolução Francesa e o liberalismo britânico eram estudados e admirados por parte da elite brasileira. Quando se tornou uma República, o Brasil adotou e adaptou o modelo político norte-americano baseado numa federação de diversos estados com um congresso composto por Câmara de Deputados e Senado.

A circulação de ideias para e do Brasil se tornou especialmente importante a partir da Proclamação da República. Os líderes republicanos foram fortemente influenciados pela filosofia positivista formulada por Augusto Comte. Apesar de ter sido desenvolvido na França, o positivismo teve seu maior sucesso no Brasil, onde se tornou quase uma ideologia oficial durante a República Velha. O lema “Ordem e Progresso” gravado em nossa bandeira demonstra a centralidade do credo positivista na simbologia do país. Cidades como o Rio de Janeiro e Porto Alegre têm até hoje templos positivas e prédios construídos num estilo chamado de Arquitetura Positivista.

O Positivismo era concebido em estágios evolucionistas e lineares que se coadunavam com a ênfase dessa filosofia na fórmula “o amor por princípio, a ordem como base, e o progresso por fim”. Comte acreditava que sua filosofia era a maneira de alcançar os ideais de melhores condições sociais e o progresso da nação. Do ponto de vista das elites brasileiras, o Positivismo era uma ideologia que enfatizava a modernidade e justificava os modos autoritários de alcançá-la.

O militar positivista Marechal Cândido Rondon, por exemplo, dedicou sua vida à causa indígena e pregava que os povos nativos fossem respeitados e não eliminados, embora na sua visão eles devessem ser integrados ao que ele definia como “civilização”. O Positivismo se tornou assim um modo de o Brasil se modernizar em relação à Europa e de os indígenas se “civilizarem” em relação ao Brasil. Rondon teve um profundo impacto sobre ideias globais a respeito da natureza e dos povos indígenas, especialmente depois que, em 1913 e 1914, Theodore Roosevelt, então ex-Presidente dos Estados Unidos, se juntou a ele na expedição do Rio da Dúvida na região amazônica. Roosevelt com frequência circulava as ideias de Rondon em discursos proferidos em importantes organizações internacionais como a National Geographic Society em Washington e a Royal Geographic Society em Londres.

Outro importante credo do século XIX que circulou para e do Brasil foi o Espiritismo, que se propõe simultaneamente como uma ciência, uma filosofia e uma religião. De acordo com Allan Kardec, seu fundador, o Espiritismo é baseado na relação entre o mundo material e o mundo invisível, este sendo habitado por espíritos. Como o Positivismo, o Espiritismo tem um enfoque evolucionista através do qual os espíritos progridem e viajam para esferas mais altas, e ele também foi mais influente no Brasil que na França, onde foi criado. Centros espíritas podem ser encontrados na maioria das grandes cidades brasileiras e várias delas têm hospitais criados por médicos adeptos dessa corrente. Muitos intelectuais de classe média e políticos brasileiros são espíritas. Mas o Espiritismo não teve uma trajetória de mão única. Há brasileiros que migraram para a França para lá abrir centros espíritas, num processo através do qual a doutrina viajou da Europa para a América Latina e depois retornou ao Velho Continente.

Modernidade e progresso têm sido preocupações de intelectuais brasileiros na medida em que estes formulavam uma série de questões: o Brasil pode se tornar um país moderno e desenvolvido? Uma civilização pode ser construída nos trópicos? O povo brasileiro está apto para os desafios do país? O Brasil deve desenvolver sua própria cultura ou deve tentar emular a cultura dos países mais adiantados? Essas dúvidas sempre estiveram presentes na vida intelectual brasileira e tratam do papel das elites e dos políticos, a relação entre a cultura popular e erudita e o lugar da África, Ásia, o Oriente Médio e a Europa no Brasil (Oliven, 2002).

A prática de contemplar o Brasil e discutir a viabilidade de uma civilização nos trópicos teve origem quando o Brasil se tornou uma república em 1889. Naquele momento crucial, intelectuais percebiam dois obstáculos a seu projeto civilizador: raça e clima. Muitos membros das elites instruídas eram profundamente pessimistas e preconceituosos, acreditando que, por causa da interação entre raça e meio ambiente, a população brasileira era apática e indolente. A vida intelectual do país era vista como infectada por lirismo mórbido e filosófica e cientificamente empobrecido.

Foi Gilberto Freyre e a invenção de um Brasil mestiço como modelo bem-sucedido e adaptado aos trópicos quem rompeu com esse beco sem saída. A influência de Franz Boas, criador da Antropologia norte-americana, foi fundamental para Freyre que estudou com ele na Columbia University. O enfoque de Boas de que raça não era uma categoria adequada para explicar as diferenças entre povos e que ela deveria ser substituída pela cultura permitiu ver o Brasil como criador de uma cultura sui generis.

Nos anos 1920 o pessimismo começou a diminuir quando membros da elite se apropriaram de expressões culturais originalmente restritas a certos grupos e as transformaram em símbolos de identidade nacional. Por exemplo, a Umbanda, uma religião que sintetiza influências africanas, católicas e espíritas, foi criada no Rio de Janeiro no começo do século XX, assunto que Renato Ortiz tratou no seu primeiro livro (Ortiz, 1978). Ao passo que muitas religiões de afro-brasileiras foram reprimidas pela polícia e frequentemente tinham que disfarçar seus orixás como santos católicos, a Umbanda teve desde sua origem intelectuais europeizados de classe média. Atualmente, as religiões de matriz africana fazem parte do que é considerado a cultura brasileira.

Os símbolos da cultura brasileira também viajaram em caminhos opostos. O carnaval e o futebol, por exemplo, tiveram origem na Europa e foram primeiro adotados pelas classes altas brasileiras e depois gradualmente se tornaram atividades populares e símbolos de identidade nacional. Já o samba e as religiões de matriz africana, tiveram origem nas classes populares. O samba, em seu começo, teve uma forte presença negra, mas depois foi gradativamente apropriado pelas classes médias brancas, tornando-se símbolo de identidade nacional (Oliven, 1989).

Quando os brasileiros discutem sua identidade nacional, eles frequentemente argumentam que seu país consegue digerir o que vem de fora e adaptá-lo a sua própria realidade. Um dos documentos mais importantes do Modernismo brasileiro, o Manifesto Antropófago, desenvolveu exatamente essa visão de uma exclusividade nacional. Oswald de Andrade, seu autor, datou o manifesto como sendo o “Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”, uma referência ao prelado católico Pero Fernandes de Sardinha que naufragou na costa do Brasil e foi canibalizado pelos indígenas caetés em 1554 (Andrade, 1978).

Muitos brasileiros acreditam que certas ideias e práticas culturais apropriadas do exterior estão “fora do lugar”, em especial no que diz respeito a filosofias políticas. Por exemplo, embora a economia brasileira tenha sido baseada na exploração do trabalho escravo por três séculos, no século XIX, parte da elite política imperial aderiu ao ideário liberal criado na e pensado para a Europa. Roberto Schwarz (1978) argumentou que essa ideologia liberal estava “fora do lugar” no Brasil: o que prevalecia no país não era a ideia de direitos humanos, mas a opressão dos escravos e o favor paternalista para os brancos que não possuíam terras.

O conceito de “ideias fora do lugar” perde o sentido quando lembramos que as ideias brasileiras se moveram ao redor do mundo assim como as ideias estrangeiras se vieram para cá. Em outras palavras, nada está “no lugar”, já que tudo deixa um lugar e entra em outro à medida que é adaptado aos interesses de diferentes grupos e circunstâncias cambiantes. Empréstimos culturais são uma constante e, como historiadores e antropólogos têm mostrado, a dinâmica cultural implica um processo através do qual ideias e práticas que se originam em um espaço acabam migrando para outros. Um dos aspectos criativas da cultura brasileira tem sido precisamente a capacidade de apropriar o que vem de fora, reelaborá-lo e dar-lhe características brasileiras, transformando-o em algo diferente e novo.

“Gigante pela própria natureza”, como nosso hino nacional proclama, ou “país de dimensões continentais”, como uma expressão frequente declara, o Brasil se vê e é visto por outros como inegavelmente grande, vasto, impressionante e importante. Em termos de tamanho, o Brasil é o quinto maior país do mundo sendo ultrapassado apenas por Rússia, Canadá, China e Estados Unidos. Ele é o maior país do hemisfério sul e o segundo maior país contínuo das Américas. Com mais de 200 milhões de habitantes, ele também é o quinto país mais populoso do mundo, superado apenas por China, Índia, Estados Unidos e Indonésia. Em termos de Produto Interno Bruto, em 2017 o Brasil estava em nono lugar, depois dos Estados Unidos, China, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Índia e Itália. Entretanto, se olharmos para a distribuição de renda, o resultado é bem pior: em 2017 o Brasil encontrava-se em 79º lugar.

A globalização diversificou fortemente a interação do Brasil com o resto do mundo, em termos de intercâmbio econômico e de expressões culturais como religião, música, cinema, televisão e esporte. Durante séculos, o Brasil foi um exportador de matérias primas e bens agrícolas, principalmente açúcar e café, e um importador de todo o tipo de produtos manufaturados. As commodities agrícolas continuam sendo uma atividade econômica muito importante, responsáveis por quase um quarto do Produto Interno Bruto. Mas o Brasil não é mais uma sociedade rural e a indústria e os serviços são agora setores-chave de sua economia. O país se tornou um exportador de bens manufaturados. Muitas indústrias brasileiras se tornaram internacionais, competindo no mercado mundial ao vender aviões no exterior, produzir aço em diferentes países, cultivar laranjas nos Estados Unidos para produzir suco, e extrair, refinar e vender petróleo através da Petrobras. É claro que as trocas entre diferentes países são desiguais e dependem de sua posição no sistema político e econômico, mas o Brasil atingiu um novo patamar de influência e interação globais.

A demografia do país também mudou muito. O Brasil se tornou uma sociedade urbana, com aproximadamente 85% de seus habitantes vivendo em cidades. Sua pirâmide etária mudou dramaticamente. Há algumas décadas, a população era predominantemente jovem, com 50% de seus habitantes tendo menos de dezoito anos. Com a urbanização e o controle da natalidade, o crescimento populacional caiu vertiginosamente e a expectativa de vida está aumentando rapidamente.

Os fluxos migratórios mudaram e em alguns casos reverteram. Se historicamente o Brasil recebeu vastos números de migrantes do exterior, os brasileiros estão crescentemente emigrando. Hoje em dia há mais de três milhões vivendo no exterior para onde foram em busca de melhores oportunidades. Os migrantes brasileiros se dirigem principalmente aos Estados Unidos, Europa e Japão, invertendo o direcionamento histórico das migrações internacionais. Mas, na medida em que o Brasil está se transformando numa potência econômica mundial, ele também está recebendo migrantes, frequentemente de países mais pobres, como o Haiti, Bolívia, Senegal e Gana, entre outros.

Emigrantes levam consigo sua cultura. Assim, os brasileiros não somente mantêm vários costumes do seu país de origem, como também tendem a desenvolver e colocar no mercado a “cultura brasileira” para o resto da população dos países para os quais migraram. Isto pode ser visto em restaurantes brasileiros e shows musicais em diferentes lugares do mundo e em grandes desfiles carnavalescos em cidades como Londres e San Francisco (Duarte, 2016). Em várias cidades norte-americanas e europeias a capoeira, originalmente criada por escravos como uma dança, é ensinada por mestres brasileiros. A capoeira e o “Brazilian jiujitsu” são praticados em várias cidades dos Estados Unidos, Europa e Japão e são considerados como hobbies em alta.

No passado, o Brasil era frequentemente visto como constantemente adotando ideias e modos de expressão do hemisfério norte. Atualmente, o país continua a receber influências vindas de fora no que diz respeito ao cinema e à música. Entre elas estão produções televisivas e musicais manufaturadas por corporações multinacionais e pelo cinema de Hollywood com sua posição de hegemonia mundial. Mas, há algum tempo, o Brasil se tornou um exportador de produtos culturais e espirituais. A música brasileira tem tido uma presença mundial desde a década de 1920 quando artistas como Os Batutas (Bastos, 2005) fizeram turnês na França e a década de 1930 quando Carmen Miranda era a artista mais bem paga de Hollywood e Broadway.

A Bossa Nova, que interagiu fortemente com a música norte-americana, era desde o começo na década de sessenta um gênero musical que tinha fãs em todo o mundo. Contudo, quando o Brasil começou a produzir o seu próprio rock nos anos 1970, muitos críticos musicais não consideraram esse gênero como sendo música brasileira. Entretanto, atualmente, existem bandas de rock brasileiras que compõem em inglês e que são bem-sucedidas nos Estados Unidos e na Europa. Quando os integrantes da banda Sepultura foram para uma aldeia xavante no Mato Grosso em busca de suas origens culturais, o CD resultante Roots, lançado em 1996, se tornou um dos álbuns mais vendidos na Europa em apenas quinze dias, ultrapassando Michael Jackson e Madonna no Reino Unido e vendendo mais que 500.000 exemplares em apenas dois meses. Por um lado, as “raízes” eram nativas, mas por outro, o inglês era a língua franca utilizada para competir em um mercado globalizado.

Definir o que é uma expressão cultural brasileira ficou muito mais difícil do que costumava ser. Durante a fase populista de nossa história (1945-1964), o que vinha de fora era frequentemente visto como estrangeiro e, portanto, impuro e perigoso. Assim, os filmes de Hollywood eram muitas vezes citados como exemplos de invasão cultural, enquanto o Cinema Novo era considerado como sendo autenticamente nacional. Entretanto, este último, embora tivesse sua temática focada no Brasil, era conhecido internacionalmente e seus filmes eram exportados para diferentes países e ganharam prêmios internacionais.

Da mesma forma, a Coca-Cola era vista como um ícone do imperialismo norte-americano. Hoje a situação é mais complexa: o logo dessa companhia de refrigerantes pode ser visto nas camisetas de times de futebol brasileiros. O roqueiro inglês Sting, patrocinado pela Coca-Cola, é um defensor dos direitos dos indígenas brasileiros. Na década de oitenta, quando o Estado brasileiro fazia pouco pelos indígenas, ele teve um papel destacado em divulgar internacionalmente a luta do cacique Raoni em favor da demarcação das terras dos caiapós.

O filme A Grande Arte, dirigido por Walter Salles Jr e baseado num livro de Rubem Fonseca, apesar de rodado no Brasil, tem seus diálogos em inglês. Outras películas produzidas no Brasil têm artistas de televisão e concorrem pelo Oscar. Seus produtores contratam lobistas profissionais para ajudá-los a conseguir prêmios. Atualmente, grande parte dos filmes brasileiros são produzidos já pensando no mercado internacional. Filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite alcançaram sucesso internacional. Eles mostram uma imagem do Brasil que é, ao mesmo tempo, violenta e romântica, misturando a pobreza das favelas com a beleza do Rio de Janeiro vista dos morros. Nos Estados Unidos, artistas como Sônia Braga e Rodrigo Santoro são incorporados em produções de Hollywood, sendo vistos como “latinos”.

Apesar de ter começado sua trajetória com um polêmico acordo com Time-Life, a Globo há anos produz a maioria de seus programas. Ela também exporta suas novelas e séries para países como Portugal, França e China, tendo se tornado uma multinacional da mídia. Quando a Rede Globo exporta suas telenovelas ela não está apenas vendendo uma mercadoria, mas um estilo de vida, lidando com comportamentos e imagens do corpo e da sexualidade.

Se no passado viajantes estrangeiros que vieram ao Brasil imaginavam que não havia pecado debaixo do Equador, o Brasil moderno crescentemente promove a sua marca na arena global como um país com uma natureza deslumbrante, carnaval, música, praias, corpos vestidos com trajes sumários, e formas descontraídas de se comportar desde a sexualidade até o esporte. Nesse sentido, o país se apresenta como tendo uma identidade nacional que pode ser exportada para todo o mundo.

Mercadorias e produtos culturais brasileiros são em geral associados a um “Brazilian way of life”. As sandálias Havaianas são um exemplo ilustrativo. Inicialmente apenas um calçado de classes populares no Brasil, ele foi reposicionado (ou “rebranded”, para usar o termo técnico de merchandising) no mercado globalizado como um produto associado a um estilo de vida. A contratação da modelo Gisele Bündchen teve um papel fundamental nesse processo. Usar havaianas não é apenas calçar uma sandália, mas portar um estilo de vida que o Brasil exporta com sucesso (Pinent, 2015).

A transnacionalização de bens brasileiros também ocorreu de forma notável no campo do sagrado. O Brasil sempre foi um país de profunda religiosidade, tradicionalmente católica, com formas muito peculiares e populares de praticar essa religião. Embora o Brasil ainda seja o maior país católico do mundo, o panorama está mudando rapidamente com o crescimento do Pentecostalismo.

A Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1977, tem igrejas em aproximadamente 120 países, incluindo os Estados Unidos e a União Europeia, e mobiliza milhões de fiéis e vastas somas de dinheiro (Oro e Seman, 2001). Não se trata de um empreendimento apenas religioso, mas também político e econômico. Seu fundador é o proprietário da Record, a segunda maior rede televisiva do Brasil O Pentecostalismo cresceu em uma velocidade impressionante e é agora a segunda maior religião no Brasil. Vários pastores foram eleitos para o Congresso, no qual formam uma bancada que vota unida quando um assunto religioso está em discussão (aborto, ensino religioso, etc.).

No que diz respeito às religiões de matriz africana, está havendo uma expansão de religiões afro-brasileiras para o Uruguai e a Argentina, países que em geral se veem como europeus, seculares e com pouco influência africana (Oro, 2013).

Apesar de o Brasil não ter criado o futebol, ele conseguiu se estabelecer com um país renomado pela prática deste esporte, vencendo a Copa do Mundo cinco vezes. O Brasil supostamente tem um estilo especial de jogar futebol, famoso por sua improvisação e suas performances quase coreográficas. Há anos que o Brasil tem sido um exportador de jogadores que atuam principalmente em times europeus. O Brasil sediou a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Sediar estes dois eventos esportivos internacionais significou atrair milhares de visitantes e fornecer evidência de que o país é capaz de organizar megaeventos que envolvem turismo internacional, uma área no qual o país deixa a desejar (Damo e Oliven, 2014).

No que diz respeito a relações internacionais, de 2004 a 2017, o Brasil liderou a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, treinou a Marinha da Namíbia e procurou mediar o conflito sobre armas nucleares do Irã. Desde 2013, um diplomata brasileiro é o diretor da Organização Mundial do Comércio. Há anos, o Brasil vem tentando obter um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, num esforço para se estabelecer como um ator diplomático que é reconhecido de acordo com sua importância econômica e política.

Mas a modernização pelo qual o Brasil passou nas últimas décadas esbarra na questão das desigualdades sociais e raciais. O Plano Real, que freou a inflação desenfreada que atingia principalmente os assalariados, e mais tarde o aumento do valor do salário mínimo e a criação de programas sociais como o Bolsa Família melhoraram um pouco a situação, permitindo que grupos antes excluídos da maior parte das pautas de consumo pudessem adquirir bens até então restritos às classes médias e altas. Entretanto, em 2017 o Brasil continuava sendo um dos dez países mais desiguais no mundo. O gozo de uma cidadania plena por parte das populações mais pobres também é obstaculizado pela baixa qualidade do ensino público e do atendimento de saúde oferecido pelo Estado, pela violência policial e pela falta de acesso ao sistema judicial.

Do mesmo modo, o Brasil ainda tem muito o que fazer em termos de desigualdades raciais. O último censo mostrou que mais da metade de nossa população se declara afrodescendente, indicando que o Brasil é o segundo país com maior população negra do mundo, superado apenas pela Nigéria. Entretanto, quando se examinam os dados demográficos produzidos pelo IBGE, eles mostram que os afrodescendentes estão em pior situação em praticamente todos os índices socioeconômicos, como renda, escolaridade, mortalidade infantil, expectativa de vida. Medidas recentes como a criação de políticas de ação afirmativa em universidades públicas e em concursos para empregos têm tentando reverter um pouco esta situação. A população indígena sofre com a na lentidão com que se dá o processo de demarcação das terras que lhe asseguram a Constituição. Do mesmo modo, falta proteção do Estado contra grileiros que tentam invadir suas terras. Assistência médica, recursos para educação também são carências críticas para a população indígena.

De certo modo, a moderna tradição brasileira de que nos falava Renato Ortiz há trinta anos se acentuou muito, do ponto de vista técnico. O país está integrado no que diz respeito aos meios de comunicação. A televisão está presente na maior parte dos domicílios, existem mais aparelhos celulares que habitantes, e o WhatsApp se tornou uma mídia social através da qual milhões de pessoas se comunicam. Mas para atingir uma modernidade plena ainda precisamos fazer com que haja maior inclusão social da população através de uma redistribuição de renda, da efetivação dos seus direitos civis, e do reconhecimento e respeito às diferenças culturais.

Referências

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Notas

1 Apoio: CNPq.

Autor notes

ruben.oliven@gmail.com



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