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Recepção: 30 Junho 2017
Aprovação: 21 Maio 2018
DOI: https://doi.org/10.4013/csu.2018.54.2.08
Resumo: O objetivo geral do artigo é analisar as implicações das mudanças recentes ocorridas na cultura da música em contextos musicais independentes, situados longe dos principais centros políticos, econômicos e mediáticos, a partir da pesquisa sobre um segmento de rock autoral existente em Teresina, capital do Piauí, que tem vindo a ganhar contornos cada vez mais sólidos nos últimos anos. Em termos mais específicos, busca-se discutir o papel das apropriações tecnológicas no incremento desse tipo de contexto artístico-musical. O argumento principal é que o rock independente de Teresina alcançou um estágio de relativa autonomia e especificidade, em grande medida, graças às oportunidades abertas pela disseminação das tecnologias de comunicação e informação, que têm permitido, entre outros avanços, a formatação de um corpo substancial de obras. Contudo, a permanência de velhos problemas, ligados, sobretudo, à sustentabilidade financeira dessas empreitadas, assim como o surgimento de novos obstáculos, relacionados principalmente com a visibilidade desse tipo de produção em um mercado cultural abundante e ultrassegmentado, configuram, ainda, alguns dos grandes desafios a serem superados.
Palavras-chave: cultura da música, novas tecnologias de comunicação e informação, rock independente, Piauí, Teresina.
Abstract: The general goal of this article is to analyze the implications of recent changes in the music culture for the independent musical contexts based far from the main political, economic, and media centers, from a research about the independent rock in Teresina, capital of the Brazilian state of Piauí. More specifically, our goal is to discuss the role of technological appropriations in the increase of the production in this kind of artistic-musical context. The main argument is that the independent rock of Teresina has reached a relative stage of specificity and autonomy thanks to the opportunities open for the technologies of information and communication, which provides the conditions to the construction of a big catalog of works. However, the permanence of old problems, linked to financial sustainability, as well as the emergence of new obstacles, linked to the visibility of this kind of production in an abundant and super segmented cultural market, still configure some of the big challenges to be surpassed.
Keywords: music culture, new technologies of information and communication, independent rock, Piauí, Teresina.
Introdução
Quais as principais reconfigurações recentes nos modos de produzir, circular e consumir música verificadas a partir da emergência de um conjunto de novas tecnologias de informação e comunicação? Como estas recentes reconfigurações tem aberto novas oportunidades para contextos musicais “independentes”, distantes de grandes centros de referência econômicos, políticos e mediáticos, e historicamente marginalizados no panorama brasileiro? Quais são, por outro lado, os novos dilemas e desafios que surgem dentro deste novo contexto, substancialmente diferente do modelo hegemônico que vigorou no decorrer do século XX, e que tinha como um dos eixos centrais de sustentação a venda de fonogramas em suportes materiais?
Ao tomar como base essa série de questionamentos, o presente artigo busca problematizar os processos e formas de estruturação dos segmentos artístico-musicais num panorama atual marcado pela onipresença das tecnologias de informação e comunicação a partir de pesquisa empreendida sobre um segmento calcado na música rock2, de caráter autoral, situado na cidade de Teresina, capital do estado do Piauí, neste início de século XXI. Não configura necessariamente uma novidade as análises sobre o papel das novas tecnologias nas reconfigurações recentes verificadas nos modos de produzir, circular e consumir música, assim como as pesquisas sobre os efeitos específicos destas modificações nos segmentos musicais independentes calcados na música rock e distantes de grandes centros econômicos, políticos e mediáticos no contexto brasileiro. Contudo, o território tratado neste artigo, a despeito da relevante produção musical, ainda não conta com incursões mais aprofundadas desta natureza. Mais especificamente, apesar de atingir um estágio de relativa autonomia e especificidade nos primeiros anos do século XXI, não existe ainda um corpo substancial de trabalhos científicos que faça jus ao volume de material artístico ali produzido. A constatação deste quadro é a justificativa geral para a empreitada aqui proposta.
Na primeira parte do artigo é feita uma breve problematização da emergência de um conjunto vasto de tecnologias da informação que tem contribuído substancialmente para mudanças estruturais nas sociedades contemporâneas e, de modo mais específico, nos modos de produzir, circular e consumir música. O foco é argumentar a respeito das possibilidades de apropriação destes artefatos na estruturação de contextos musicais que atuam fora, ou nas bordas, das grandes indústrias culturais. Na segunda parte é exposta a discussão propriamente dita sobre o caso do rock independente de Teresina. Em termos específicos, os modos como um segmento artístico-musical, de caráter independente, e localizado longe dos principais centros econômicos, políticos e mediáticos do Brasil atinge um nível razoável de sedimentação a partir das novas oportunidades abertas pelas recentes reconfigurações nos modos de produzir, circular e consumir música. O foco é discutir como as formas de apropriação das novas tecnologias nos dias de hoje podem viabilizar certas empreitadas antes pouco passíveis de êxito, ainda que tragam também novos dilemas e desafios. Esta discussão é feita a partir do acervo fonográfico e videográfico produzido no âmbito do rock independente de Teresina neste início de século XXI. Obviamente, este argumento não gira em torno de um determinismo tecnológico, mas de uma síntese dialógica que marca as relações entre mundo social e tecnologia.
Sociedade em rede, reconfigurações estruturais recentes na indústria da música e as implicações para os universos musicais independentes
Mudanças recentes impulsionadas pelo incremento tecnológico e as possibilidades de apropriação das novas tecnologias
A emergência de um conjunto recente de tecnologias da informação tem sido apontada como um dos principais fatores para o conjunto substancial de mudanças em andamento nas sociedades contemporâneas (Castells, 1999, p. 43-44)3. Em linhas gerais, estas tecnologias consistem num corpo vasto de artefatos contidos nas esferas da microeletrônica, telecomunicações, radiodifusão, engenharia genética, optoeletrônica e computação (Castells, 1999, p. 67).
Um dos marcos mais importantes no âmbito destas reconfigurações foi o surgimento da Internet. Fruto de uma insólita articulação entre inteligência militar, cooperação científica, iniciativa tecnológica e contracultura, a primeira rede de computadores, a ARPANET (Advanced Research Projects Agency Network), surge em 1969 e tem suas origens no âmbito do Ministério da Defesa dos Estados Unidos. Na medida em que o fluxo de informações se intensificava, os conteúdos de cunho militar e científico deixaram de ser exclusividade, passando a rede a ser utilizada para inúmeros outros fins. Assim, ainda que o surgimento se tenha dado no ambiente militar da Guerra Fria, a Internet, desde o início, sempre foi permeada por inúmeras práticas e pressupostos mais libertários, e que podem ser explicados seja pelo papel importante do ambiente universitário no seu processo de desenvolvimento, seja na ligação ideológica com vários pressupostos da contracultura dos anos de 1960 (Castells, 1999, p. 86). Somado a isso, importa sublinhar também o caráter colaborativo e menos centralizado que tem sido a tônica do desenvolvimento das redes informáticas. Neste sentido, a apropriação, levada a cabo, em muitos casos, por grupos outsiders ou desviantes, é uma das características-chave das culturas contemporâneas marcadas pela onipresença das tecnologias de informação e comunicação (Lemos, 2004, p. 237).
É neste sentido a importância de sublinhar o caráter paradoxal do ambiente digital. Este reflete, mais do que o ponto de vista dos seus “criadores”4, a multiplicidade de perspectivas, ações e posturas que permeiam a vida social contemporânea. Assim, “a internet encarna a presença da humanidade a ela própria, já que todas as culturas, todas as disciplinas, todas as paixões aí se entrelaçam” (Lévy, 2004, p. 12). De fato, quando argumenta sobre o “espírito” dessa cibercultura, Lemos (2004, p. 237) elenca três atributos fundamentais que permeariam muitas das dinâmicas verificadas no ambiente digital contemporâneo: a apropriação, estratégias específicas de utilização pelo indivíduo ou grupo social que adota determinada tecnologia; o desvio, a utilização dessas ferramentas por grupos outsiders; a despesa improdutiva, que constitui o excesso informacional intrínseco a estas novas lógicas.
No âmbito específico deste artigo importa detalhar um pouco mais sobre o primeiro destes atributos, na medida em que configura uma característica fundamental dos segmentos artístico-musicais foco desta discussão. Lemos (2004) argumenta que “o uso dos objetos tecnológicos não é apenas tributário das estratégias de empreendimentos de acordo com a objetividade da função do objeto, ou de acordo com uma racionalidade técnica intrínseca aos modos de usar” (p. 238). Ou seja, mais do que uma lógica dos usos, haveria, sobretudo, uma astúcia dos usos, menos influenciada pelos pressupostos dos “criadores” da tecnologia em questão, e caracterizada seja pela apropriação propriamente técnica (a capacidade de utilização), seja pelo arbítrio da função dado essencialmente pelo utilizador (uma ideologia do uso).
Neste tipo de discussão, se pode negligenciar as novas formas de oligopólios de grandes empresas digitais como Google, Facebook, Amazon, entre outras. Tampouco as ambiguidades gerais da emergência do ambiente digital no que diz respeito à produção fonográfica, que, em muitos casos, acaba por promover novas formas de concentração que afetam a diversidade do mercado musical do Brasil (cf. De Marchi, 2011). Contudo, é necessário reconhecer também o fato de que na atual conjuntura são muito maiores as possibilidades de apropriação por parte dos utilizadores de universos musicais independentes - indivíduos ou grupos sociais - das ferramentas tecnológicas para a realização de objetivos específicos, superando, assim, a mera inclusão em padrões já estipulados pelos “criadores” da tecnologia em questão.
É neste sentido a importância de se diferenciar a “apropriação” digital da “inclusão” quando se fala sobre as modalidades de uso destas ferramentas tecnológicas. Assim, se a inclusão aponta para uma adaptação mais vertical a um padrão estabelecido a priori, a apropriação tem como característica-chave justamente a utilização em projetos específicos pelos usuários, em muitas ocasiões em territórios e contextos marginalizados, e que significam, em muitos dos casos, o desenvolvimento da própria tecnologia adotada (Albagli e Maciel, 2011, p. 32). Tendo em vista essa breve contextualização do papel das novas tecnologias na vida social contemporânea, nomeadamente na possibilidade de apropriação destes artefatos para a realização de funções fora do esquema delineado previamente pelos “criadores”, busca-se, na secção seguinte, discutir brevemente o papel deste novo panorama nas modificações recentes que têm vindo a ocorrer na cultura da música.
O papel do desenvolvimento tecnológico nas mudanças recentes na produção, mediação e consumo de música
A questão tecnológica sempre esteve intimamente vinculada aos modos de produzir, armazenar, distribuir e consumir música. São três as principais fases dessa relação entre música e tecnologia (Frith, 1996, p. 226-227): um primeiro estágio folk, quando a fruição era possível apenas através da performance ao vivo e onde não havia suporte de armazenamento da informação musical; um estágio art, quando a fruição ainda se dá por meio da performance mas quando o principal suporte de armazenamento era a partitura musical; e por último o estágio pop, quando quebram-se as barreiras de tempo e espaço no que tange à fruição a partir do surgimento dos fonogramas (registro sonoro) em suportes materiais.
Nos últimos anos têm vindo a ocorrer o fenômeno de desmaterialização dos suportes, quando o registro fonográfico não necessita mais estar incorporado em um artefacto material (CD, LP, K7) para ser consumido (Cf. Abreu, 2010; De Marchi, 2011; Herschmann, 2010). De fato, é o contexto de maior presença das tecnologias da informação e comunicação na vida social contemporânea que tem contribuído, em grande parte, para esse fenômeno. O que caracterizou essencialmente o modelo de comercialização de bens cuja matéria-prima básica era o conhecimento e a informação foi justamente o monopólio, por parte da grande empresa capitalista, das possibilidades de registrar, armazenar e fazer circular tais produtos (Dantas, 2008, p. 1). Na medida em que o conhecimento não precisa mais estar incorporado necessariamente em um suporte material para ser transmitido, são necessárias outras estratégias de comercialização e obtenção de lucro para produtos desta natureza, cuja abundância e facilidade de aquisição tornam-se as características centrais.
Como é bem conhecido, o modelo de negócios hegemônico do business musical no século XX esteve estruturado a partir de dois pilares principais (Herschmann, 2010, p. 62): a comercialização de registros fonográficos em suportes materiais e a extração de renda a partir do gerenciamento dos direitos de propriedade das obras, mais especificamente, os direitos de execução, cujo principal instrumento jurídico de regulação é o copyright. A partir do quadro verificado no contexto de desmaterialização da música, as possibilidades de manter, ou até mesmo justificar, um modelo de negócios desta natureza vêm rareando. Isso se explica, entre outros fatores, pelo fato de que não há mais a obrigatoriedade de aquisição do suporte material para a fruição de música, bem como pelo fato de que o gerenciamento mais rígido dos direitos de propriedade da obra são, em muitas ocasiões, colocados em causa, graças, em grande parte, à existência de uma certa cultura do compartilhamento e da gratuidade intrínsecas ao ambiente digital. Em suma, este conjunto complexo de mudanças acaba por colocar em questão “os princípios, os valores e as regras subjacentes à institucionalização dos campos fonográficos, à sua estruturação interna e à sua articulação com outros campos organizacionais” (Abreu, 2010, p. 213).
Ao mesmo tempo em que ocorrem estas modificações estruturais no âmbito do grande business da música, o período compreendido entre o final do século XX e início do século XXI é também conhecido pelo elevado número de pequenas e médias iniciativas exitosas que se estruturam fora, ou nas bordas, do raio de atuação das indústrias culturais, muitas vezes distantes de grandes centros econômicos, políticos e mediáticos, a partir da apropriação das tecnologias.
As implicações do desenvolvimento tecnológico para os universos musicais independentes: o contexto brasileiro no início do século XXI
Em linhas gerais a categoria “independente” tem sido movimentada no âmbito musical para caracterizar um certo tipo de produção que se propõe enquanto alternativa aos produtos da indústria cultural. Na medida em que estas relações se travaram sobretudo no âmbito da indústria fonográfica, a categoria foi bastante utilizada historicamente para caracterizar os selos de música que buscaram se distinguir das grandes gravadoras majors (Shuker, 2006, p. 144-145).
Assim, a abertura, em oposição à rigidez da grande indústria cultural, na formação dos castings de artistas, na escolha do repertório, das estratégias de comercialização das músicas e do gerenciamento das carreiras por parte destes selos explicaria em grande parte a importância destas instâncias na emergência do rock and roll na década de 1950 (cf. Peterson, 1990) e, em linhas mais gerais, na própria renovação da música popular no decorrer do século XX. Importante ressaltar que mais do que uma completa oposição, o que se tem verificado no decorrer da história da música popular do século XX é muito mais uma complementaridade entre estes dois segmentos (Shuker, 2006, p. 144).
Ainda que hajam intersecções entre o universo anglo-saxônico e o contexto brasileiro quando se argumenta sobre a independência musical, existem algumas diferenças substanciais que devem ser sublinhadas. No caso dos Estados Unidos, estas pequenas empresas, intimamente vinculadas ao surgimento do rock na década de 1950, buscavam principalmente criar as condições necessárias para a existência de um mercado de médio porte para a sua produção, numa coexistência sem oposições de caráter militante às gravadoras majors (De Marchi, 2005, p. 2-3).
No caso britânico, havia uma oposição mais direta ao mainstream musical, seja em termos estéticos, sejam em termos políticos (cf. Hesmondhalgh, 1999). Mesmo com tais diferenças no que diz respeito às posturas ideológicas majoritárias verificadas nos dois contextos, ambos conseguiram estruturar um sólido mercado de médio porte (De Marchi, 2005, p. 4).
No caso brasileiro, além de não se ter estruturado um mercado de médio porte na proporção dos casos supracitados, o direcionamento ideológico majoritário se estruturou, pelo menos até meados dos anos de 1980, numa forte oposição à grande transnacional do disco devido às desfavoráveis condições de concorrência com que estas pequenas empresas se deparavam (cf. De Marchi, 2005; Vaz, 1988; Vicente, 2002, 2008).
Com o advento do contexto de desmaterialização da música neste início de século XXI, a categoria “independente” passa a ser utilizada para designar um conjunto mais amplo de manifestações que excedem o âmbito específico da produção fonográfica (selos indie versus gravadoras majors), na medida em que os próprios modos de produção, circulação e consumo de música são dramaticamente afetados. No caso específico brasileiro deste período, alguns dos exemplos mais emblemáticos são: o tecnobrega do Pará (cf. Castro e Melo, 2011), o funk carioca (cf. Miranda e Sá, 2011), as redes de festivais de música independente (cf. Alves, 2013), entre outros. De diferentes formas, e ainda que nem sempre dotados de um direcionamento ideológico de oposição às práticas predatórias da indústria cultural, todas estas experiências são marcadas pela relevante apropriação das tecnologias de informação na montagem das suas estratégias.
Portanto, ainda que bastante diferenciados entre si, localizados em contextos territoriais diversos, e munidos de estratégias bastante particulares, todos estes exemplos têm em comum o fato de não priorizarem a venda de fonogramas em suportes materiais e nem o gerenciamento rígido dos direitos sobre a execução das obras, mostrando, assim, uma sincronia no que diz respeito ao panorama atual. Portanto, verifica-se uma assimilação das oportunidades abertas pelo contexto de desmaterialização da música, na medida em que estes exemplos, cada um a seu modo, tem na apropriação das tecnologias de comunicação um forte componente explicativo para o êxito. Ao tomar como pano de fundo este contexto de modificações recentes nos modos de produzir, circular e consumir música, a segunda parte do artigo busca discutir a produção de rock independente de Teresina nestes primeiros anos do século XXI.
O rock independente de Teresina no início do século XXI
O rock independente de Teresina: considerações gerais sobre a realidade empírica analisada
Teresina é a capital do Piauí. Localizada no centro-norte do estado, em 2010, ano do último recenseamento nacional, a estimativa era de que possuía uma população em torno de 814 mil habitantes (IBGE, 2010), distribuídos em quatro zonas administrativas compostas por 123 bairros (SEMPLAN, 2017). Maior cidade do estado, Teresina dista cerca de 350 quilômetros da pequena faixa litorânea daquela unidade federativa, a menor do Brasil, com 66 km de extensão. A sua fundação data de 1852, portanto, jovem até mesmo para os padrões brasileiros. Teresina está longe dos principais centros econômicos, mediáticos e políticos nacionais, localizados em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.
O início das atividades em torno do rock em Teresina se dá no ano de 1966 com o surgimento do grupo Os Brasinhas, na esteira do fenômeno da Jovem Guarda. O fato é que este gênero musical chegou relativamente tarde em Teresina - as primeiras movimentações do rock no brasil se dão mais de dez anos antes - e demoraria ainda algum tempo para que atingisse um estágio de relativa sedimentação, que se daria apenas neste início de século XXI5.
Antes de avançar para a análise propriamente dita deste período, foco da discussão aqui empreendida, é necessário sublinhar alguns pontos preliminares importantes. Estes consistem nas condições estruturais que ajudam a compreender a chegada relativamente tardia do rock em Teresina, assim como a “demora” para que aquele segmento atingisse um estágio de relativa autonomia, na esteira do que argumenta Pierre Bourdieu (1996, 2003, 2013) a respeito dos segmentos artísticos especializados. Este estágio seria alcançado somente a partir de meados da primeira década do século XXI, graças, em grande medida, à nova conjuntura verificada nos novos modos de produzir, circular e consumir música, discutida na primeira parte do artigo.
De uma forma geral, a consolidação tardia de uma manifestação cultural como o rock independente em Teresina pode ser entendida a partir das típicas tensões verificadas nos segmentos artísticos especializados. Estas estão ligadas ao aparecimento de dois polos. Ou, no léxico de Bourdieu, de dois subcampos: o da produção restrita, mais afinado com a renovação estética, com audiências mais limitadas, em contraponto ao subcampo da grande produção, baseado no êxito comercial e nas grandes audiências. (Bourdieu, 1996, p. 246-249).
O princípio de hierarquização geral do subcampo da produção restrita está fortemente amparado nos pressupostos do que ficou conhecido por “arte pela arte”. O artista sob esta classificação consiste em um “profissional em tempo integral […], indiferente às exigências da política e às injunções da moral e não reconhecendo nenhuma outra jurisdição que não a norma específica de sua arte” (Bourdieu, 1996, p. 95). Os artistas no topo da hierarquia deste subcampo, via de regra, possuem reconhecimento e legitimação amparada sobretudo nos pares e na crítica especializada, menos propensos a concessões ao chamado campo do poder (concessões de ordem política e econômica).
Já o do subcampo da grande produção está amparado nos pressupostos da arte burguesa. Esta é caracterizada essencialmente pelas obras que refletem a subordinação estrutural na relação travada com os campos econômicos e político (Bourdieu, 1996, p. 89-91). Aqui, o princípio da hierarquização estrutura-se sobretudo no alinhamento mais automático com o campo de poder. Pode ser verificado em obras mais formatadas com os pressupostos de um mecenas ou facilitador, seja ele mais ligado à esfera política (manifestações culturais utilizadas como instrumentos de legitimação de regimes ditatoriais, por exemplo) ou à esfera econômica.
O rock independente produzido em Teresina está claramente localizado no subcampo da produção restrita. Isso, obviamente, não significa uma homogeneidade. Não obstante à oposição explícita a certos pressupostos afinados com uma arte mais comercial, “burguesa”, nas palavras de Bourdieu, há uma série de posicionamentos diversos não apenas sobre questões estéticas, mas também sobre as várias estratégias de viabilização de carreiras em um segmento musical independente, não raramente sendo estas diferenças as causas para diversos conflitos6.
Além disso, e diferentemente do padrão de artista “desligado” das questões mundanas, que se dedica à sua modalidade estética de forma integral, os agentes do rock independente de Teresina, por conta da precariedade do mercado de música autoral da cidade, geralmente precisam desenvolver outras atividades para o complemento das rendas. Não raramente, estas nada tem a ver com a produção de música autoral. Importa ressaltar, ainda, que muitos dos trabalhos ali desenvolvidos também prezam pelo engajamento em questões várias, estando afinados, portanto, com uma arte de tipo social (Bourdieu, 1996, p. 91).
Portanto, uma vez que o segmento musical aqui analisado está historicamente posicionado nesse polo da produção cultural de Teresina, tem, consequentemente, enfrentado uma série de complexidades para a sua consolidação. Complexidades estas que certamente são enfrentadas em dimensões menores por outras manifestações musicais da cidade mais afinadas com o subcampo da grande produção.
Junto a estas questões estruturais previstas por Bourdieu nas suas análises sobre o fenômeno artístico, há uma série de desafios específicos de um contexto territorial com as características da capital do Piauí que também ajudam a compreender a consolidação tardia do rock autoral produzido na cidade. Como é bastante conhecido, o primeiro registro de rock no Brasil se dá ainda em 1955, uma versão de Nora Ney para o sucesso Rock around the clock, de Bill Haley and his comets, portanto, logo depois do advento do gênero nos Estados Unidos (Alexandre, 2002, p. 117). Já as movimentações em torno do rock em Teresina iniciam apenas em 1966 com o surgimento do primeiro grupo, os Brasinhas. Os primeiros registros fonográficos dentro deste gênero musical na capital piauiense datam de meados dos anos de 1980. Alguns pontos estruturais ajudam a entender este “atraso”.
De uma forma geral, o tamanho da cidade na primeira metade da década de 1960, pequenina não apenas em relação aos principais centros do país, mas também em relação às principais cidades do nordeste brasileiro, é o primeiro grande ponto digno de ressalva neste sentido. Teresina contava com cerca de 140 mil habitantes na primeira metade da década de 1960, enquanto São Paulo e Rio de Janeiro contavam com, respectivamente, cerca de 3.800.000 e 3.300.000 habitantes. Salvador e Recife, maiores cidades do Nordeste naquela altura, contavam com, respectivamente, 655.000 e 790.000 habitantes (IBGE, 2010).
Isto explica em grande parte a inexistência de um aparato mediático pronto para difundir a produção cultural como o que verificado nestes grandes centros. Junto a isso, as dificuldades estruturais para a difusão de informação em um período “analógico”, agravadas pelas especificidades de um país de dimensões continentais e precárias infraestruturas como o Brasil da altura, fazia com que os produtos culturais, cuja circulação era feita por meio de suportes materiais (os livros, revista, LPs), demorassem muito tempo para chegar à capital piauiense.
As dificuldades para a aquisição de instrumentos musicais, seja pela falta de lojas especializadas, seja pela existência da famosa “lei do similar nacional” (Presidência da República, 1957), que taxava altamente os produtos importados cuja fabricação existia no Brasil, é outro fator importante. Junto a isso, a dificuldade no que diz respeito ao ensino e aprendizagem de música, devido à falta de escolas especializadas, era outro fator agravante que dificultou bastante as primeiras movimentações em torno do rock na cidade.
Não surpreende, portanto, a demora para a chegada do rock, assim como a sedimentação daquele gênero em Teresina. É apenas após o início das modificações recentes verificadas nos modos de produzir, circular e consumir música, nomeadamente no que diz respeito às facilidades para o registro fonográfico, que Teresina pôde finalmente alcançar um nível de relativa especificidade e autonomia da sua produção roqueira, ainda que, obviamente, surjam também novos desafios com o advento desta conjuntura, a priori, promissora.
Quais seriam, portanto, as condições necessárias para que um determinado segmento artístico atinja um estágio de relativa especificidade e autonomia? Como bastante debatido no âmbito sociológico, existem algumas condições gerais subjacentes aos microcosmos sociais que atingem este estágio. Além de um corpo substancial de obras que possuam relações objetivas entre si, bem como traços específicos da história do campo artístico no qual foram geradas (Bourdieu, 2003, p. 123), a emergência de um conjunto de agentes e instituições específicas configuram outros indícios de autonomia. Estes são: espaços de fruição/exposição, instâncias de ensino e reprodução de novos artistas, assim como um corpo de críticos com capacidade de apreciação e legitimação das obras (Bourdieu, 1996, p. 326). Portanto, no caso específico do segmento analisado, a existência de (a) um corpo substancial de obras numa dimensão fonográfica e videográfica, (b) um conjunto de espaços de fruição de música ao vivo (c) um conjunto de entidades promotoras de eventos e um (d) conjunto de instâncias de legitimação onde atuam críticos, conservadores, pesquisadores e biógrafos são todos indícios que apontam para tal condição.
Antes da análise propriamente dita do conjunto de obras geradas no âmbito do rock independente de Teresina neste início de século XXI é feita uma breve reconstituição do conjunto de agentes e instâncias que fornece as condições necessárias para a sedimentação deste segmento artístico-musical.
A morfologia do rock independente de Teresina no início do século XXI (2014-2016)
Ainda que com objetivos, focos e pressupostos distintos nas análises sociológicas que empreendem sobre o fenômeno artístico, Pierre Bourdieu (1996, 2003, 2013) e Howard S. Becker (1977a, 1977b, 2008) convergem num ponto fundamental: mais do que oriundos do espírito de um “gênio” criador solitário, os valores e significados das obras de arte são fruto de uma conjuntura mais ampla que se apoia numa sólida articulação de agentes e estruturas. É a partir deste pressuposto que justifica-se uma reconstituição preliminar sobre esta “base” que fornece não só as condições para o surgimento das obras no rock independente de Teresina, mas que exerce também um papel fundamental na posterior divulgação e legitimação perante público, crítica e os próprios artistas.
O conjunto de instâncias e agentes eleitos para esta análise tem como referência o modelo de matriz bourdieusiana utilizado por Guerra (2010, p. 505) na reconstituição do rock alternativo português (1980-2010). Assim, após minucioso trabalho de coleta de dados a partir do manuseio de fontes documentais e da realização de 32 entrevistas semiestruturadas chegou-se ao seguinte número de instâncias catalogadas: 136 projetos musicais que exercem ou exerceram atividades no decorrer do século XXI; 51 entidades promotoras de eventos; 72 espaços de fruição; 49 instâncias de divulgação e legitimação.
Ainda que haja uma grande diversidade verificada no rock independente de Teresina - estética, organizacional, ideológica e sociodemográfica -, existem algumas características gerais deste conjunto de agentes e estruturas que permitem uma unidade relativa, e previstas nas problematizações de Becker (1977b, p. 15) a respeito dos segmentos artísticos. Assim, o conjunto verificado tem como característica-chave a identificação com o perfil do “artista inconformista”, que consiste essencialmente no tipo de postura de confronto aos cânones e modos de fazer instituídos nos mundos da arte, cujas obras são, via de regra, de mais difícil assimilação. Por conta disso, existe a necessidade de criar meios próprios de difusão e formação de público. Este perfil faz oposição direta ao profissional integrado, indivíduo que trabalha de acordo com as convenções estabelecidas pelo mundo artístico no qual está inserido.
Feitos estes esclarecimentos preliminares sobre a morfologia do rock independente de Teresina, as duas próximas secções visam discutir o acervo fonográfico e videográfico gerado a partir das atividades deste conjunto de agentes e instâncias tomando como pano de fundo o ambiente digital.
A produção fonográfica do rock independente de Teresina no início do século XXI
No decorrer do período utilizado para a recolha de dados da pesquisa agora apresentada (2014-2016) foram catalogados 213 produtos fonográficos, distribuídos em seis tipologias principais de formatos7: álbuns (68), extended plays (40), demos (19), bootlegs (8)8, singles (33) e compilações (7). Foram considerados os suportes, na esteira do argumento de Vicente (2012, p. 196), sejam aqueles verificados em meios materiais, sejam aqueles verificados em meios digitais. Além destes, foi verificado um número relevante de fonogramas sem formato especificado, totalizando 38 produtos catalogados.
Em linhas gerais, há um conjunto de características a respeito desta produção que está diretamente ligado ao fenômeno de desmaterialização da música. Portanto, às novas oportunidades daí oriundas para contextos musicais cujos agentes traçam as suas estratégias a partir da apropriação das ferramentas tecnológicas. Assim, além do incremento qualitativo e quantitativo desta produção nos últimos anos, é verificada uma diversidade no que diz respeito ao aparato técnico utilizado, variando desde as mais precárias condições de registro até as produções feitas em renomados estúdios brasileiros.
Duas das mais importantes obras produzidas no rock independente de Teresina ilustram estas condições. No primeiro caso, o álbum homônimo (1999) de um dos principais nomes da música da cidade, o grupo Narguilé Hidromecânico, é um entre tantos exemplos de registro fonográfico feito em condições adversas. O material foi gravado graças a um trabalho conduzido por Hermano Vianna, que na altura fazia as pesquisas para o livro Música do Brasil. Em passagem por Teresina, a equipe do antropólogo portava um equipamento de gravação que possibilitou este registro. O fato é que o material fez grande sucesso, tendo sido um dos álbuns mais vendidos na cidade em 1999 (Rodrigues, 2014, p. 25).
No polo oposto, há o caso do álbum Walking Alone (2015), do grupo Maverick 75, gravado no lendário estúdio Toca do Bandido, um dos principais do Brasil. O material obteve reconhecimento internacional a partir de prêmio de melhor álbum rock/ blues (2016) concedido pela Akademia Music Awards, entidade sediada em Los Angeles, com o júri do concurso formado por veteranos e membros bem posicionados no business da música.
A adoção de um conjunto de estratégias que mesclam aspectos clássicos do modelo “analógico” com ações mais concatenadas com o ambiente digital demonstram que, assim como no caso da grande indústria da música (Herschmann, 2010, p. 65), também os universos musicais independentes são marcados não apenas por rupturas, mas por muitas continuidades no que diz respeito às estratégias movimentadas. Neste último sentido, importa sublinhar o fato de que o álbum, formato clássico da indústria da música no século XX, continua a ser o mais adotado. Ou seja, mesmo com as inúmeras possibilidades abertas pelo ambiente digital, boa parte dos artistas continua a formatar as obras a partir de um pressuposto da indústria influenciado por uma questão contingencial muito específica: a capacidade de armazenamento de cerca de 40 minutos do long play, que, como se sabe, não teve mudanças substanciais na transição de formatos para o compact disc e mantém-se firme mesmo com o advento da desmaterialização dos formatos verificadas no ambiente digital.
Assim, ainda que a grande maioria dos artistas lancem os seus trabalhos a partir das inúmeras plataformas digitais hoje disponíveis para esta finalidade, o fonograma em suporte material continua a vigorar com grande força. Em alguns casos, consoante a uma tendência de “retromania” (cf. Reynolds, 2011) verificada na cultura pop atual, há mesmo alguns lançamentos recentes em vinil e em cassete. No primeiro caso, o álbum Mystic Massacre (2016), da banda Bode Preto, um dos mais importantes nomes do heavy metal piauiense em atividade, é um dos exemplos mais importantes. No segundo caso, o lançamento do material intitulado Summer on Mars (2017), do trio instrumental Aloha Haole.
Além da apropriação tecnológica para viabilizar os processos de gravação das obras, esta é mobilizada também no sentido de impulsionar a circulação e visibilidade destes produtos uma vez registrados. Se, por um lado, boa parte do material produzido no âmbito do rock independente de Teresina não reverbera para muito além dos limites restritos da capital piauiense, por outro lado, é cada vez maior o número de empreitadas que acabam tendo repercussão nacional e internacional.
Um caso recente particularmente ilustrativo foi a divulgação do primeiro álbum do músico Valciãn Calixto, intitulado Foda! (2016). A partir de um trabalho meticuloso no vasto manancial de veículos da imprensa alternativa brasileira e internacional, mas também com algumas aparições em veículos importantes da imprensa tradicional, o artista obteve uma repercussão do trabalho poucas vezes visto no caso do rock independente de Teresina neste início de século XXI. Neste caso, mais do que a “entrada” em instâncias de legitimação mais tradicionais, o que contou bastante foi a perspicácia do artista no processo de envio de releases e contato com o vasto universo de blogues e sites especializados, tudo isso, claro, a partir do ambiente digital.
Portanto, diversidade é o termo que melhor descreve a produção fonográfica verificada no âmbito do rock independente de Teresina nestes primeiros anos do século XXI. Uma diversidade no que diz respeito ao aparato técnico utilizado, às opções estéticas adotadas, à multiplicidade de formatos e suportes na qual são lançadas as obras, assim como ao largo conjunto de estratégias movimentadas na difusão e legitimação desta produção musical. Como argumentado anteriormente, esta diversidade verificada na música e no rock autoral de Teresina, até pouco tempo, contrastava com a impossibilidade de registrar essa produção fonograficamente e difundi-la. Com o fenômeno de desmaterialização da música, e a consequente apropriação das novas tecnologias por parte dos agentes sociais inseridos naquele contexto, há, de fato, um equilíbrio no abismo que havia entre potencial artístico e materialização em obras.
A produção videográfica do rock independente de Teresina no início do século XXI
Assim como no caso da produção fonográfica, também a produção videográfica no âmbito do rock independente de Teresina tem tido um incremento nos últimos anos devido às maiores possibilidades verificadas a partir da disseminação das tecnologias de informação. O volume de material que compõe esta produção é vasto9. O foco desta análise recai sobre os videoclipes, na medida em que configuram o formato onde a colaboração entre músicos e artistas do audiovisual se dá por excelência, configurando um espaço de experimentação estética singular (Machado, 2000, p. 173).
O videoclipe caracteriza-se essencialmente pelo caráter enxuto, de curta duração, com menores custos em relação a outros produtos audiovisuais como os filmes ou programas de televisão, assim como o potencial elevado de disseminação (Machado, 2000, p. 173). Tem configurado uma das principais ferramentas de divulgação no universo da música pop desde meados da segunda metade do século XX. No decorrer do período utilizado para a recolha de material foram catalogados 59 videoclipes. Em linhas gerais, este formato tem configurado um importante elemento de fortalecimento de algumas carreiras inseridas dentro do rock independente de Teresina neste início de século XXI. Algumas tendências gerais verificadas no âmbito mais amplo da produção audiovisual também são verificadas na produção de videoclipes no contexto artístico-musical analisado.
Esta produção se distribui em quatro tipologias no que diz respeito ao tipo de imagens utilizadas: (1) aqueles produzidos exclusivamente a partir de imagens de arquivo; (2) aqueles produzidos a partir de imagens captadas especialmente para o produto em questão; (3) a partir da compilação de performances ou outras imagens dos artistas em questão; (4) ou a partir de um híbrido envolvendo duas ou mais das formas anteriores.
O papel de elemento divulgador num universo musical independente cada vez mais profissionalizado é uma das funções mais importantes exercida pelo videoclipe no rock independente de Teresina. Via de regra, a inserção de um produto nestes moldes é uma grande mais-valia nas carreiras dos artistas ali inseridos. Um dos casos mais emblemáticos neste sentido no decorrer do século XXI é o do duo Guardia. Com existência apenas no ambiente digital (a banda não faz concertos, apenas lança produtos fonográficos e videoclipes), a aposta no formato rendeu reconhecimento no universo independente brasileiro, tendo seus álbuns - Guardia (2013) e Imperfei (2015) - figurado em listas dos melhores lançamentos da música brasileira muito graças aos videoclipes, que exerceram importante papel de elemento divulgador do trabalho do grupo.
Outra característica importante a ser sublinhada a respeito dos videoclipes produzidos no âmbito do rock independente de Teresina é o fato de que, em diversas ocasiões, estas empreitadas configurarem verdadeiros laboratórios de experimentação, verificados no trabalho cooperativo articulado entre músicos e profissionais do audiovisual. Isto ocorre, em grande medida, graças ao perfil inconformista (cf. Becker, 1977b) que caracteriza este segmento artístico, cujo um dos atributos principais é justamente a formatação de obras menos concatenadas com lógicas comerciais e mais comprometidas com uma certa renovação/experimentação estética. Não raramente ocorre, além da aliança entre músicos e profissionais do vídeo, o acúmulo de funções por parte dos músicos, e que tem acarretado resultados bastante interessantes.
Portanto, assim como no caso da produção fonográfica, a produção videográfica do rock independente de Teresina neste início de século XXI tem um incremento substancial em grande medida graças à apropriação das tecnologias da informação e comunicação. A despeito destes avanços fundamentais que acabam, em última análise, por conferir um status de relativa autonomia e especialização, novos desafios e dilemas surgem para segmentos artístico-musicais independentes localizados longe de grandes centros econômicos, políticos e mediáticos.
Notas preliminares sobre alguns novos desafios para o rock independente de Teresina no contexto de desmaterialização da música
Como argumentado no decorrer deste texto, as dificuldades em materializar a criatividade artística em obras, o que significa, no caso do segmento analisado, a possibilidade de viabilizar uma produção substancial, seja numa dimensão fonográfica, seja numa videográfica, foi um dos principais empecilhos rumo à (relativa) autonomia e especialização que se daria somente a partir de meados da primeira década do século XXI. A despeito de alcançado este estágio, algumas lacunas ainda são verificadas no rock independente de Teresina, assim como são verificados novos desafios para a sua sobrevivência.
A falta de uma conexão mais sólida com outros contextos musicais independentes do Brasil, sobretudo no arco temporal que abarca a primeira década do século XXI, marcado seja pelo período mais progressista no âmbito das políticas culturais, seja pelo surgimento de importantes instâncias associativas que buscaram unificar o conjunto de experiências no âmbito da música independente que se proliferavam por todo o país, é um primeiro grande ponto a ser sublinhado neste sentido. Isso ocorreu sobretudo por conta da inexistência de experiências duradouras e bem-sucedidas de um selo musical que se ocupasse da produção de rock autoral da cidade naquela altura10, já abundante e multifacetada, assim como de um festival voltado para a formação de público, promoção destes artistas, assim como o intercâmbio com o que de mais relevante acontecia no país em termos musicais.
O festival Cumbuca Cultural, surgido no ano de 2007, foi o que mais se aproximou do modelo de festivais da rede que começava a se organizar na altura com o surgimento da Associação Brasileira de Festivais Independentes (ABRAFIN). A despeito da notável repercussão que este evento adquiriu no panorama cultural de Teresina, a presença de artistas de outros contextos musicais independentes era uma lacuna que diferenciava-o dos festivais da ABRAFIN. Em última análise, estas lacunas contribuíram para que Teresina não cravasse uma marca mais forte no imaginário da música independente brasileira neste início de século XXI, uma vez que foi neste período em que muitos artistas e cidades também “periféricas” conseguiram tal façanha.
Obviamente, algumas outras dificuldades de caráter mais geral também são verificadas. Em primeiro lugar, ainda que a possibilidade de registro das obras seja uma possibilidade incontornável, a visibilidade em um mercado ultra segmentado e cada vez mais exigente é um dos maiores desafios para os contextos musicais independentes. Ainda que não exista uma “receita” exata para o êxito neste sentido, está relativamente claro que a capacidade dos músicos em promover o trabalho executivo de divulgação com eficácia é um imperativo, passando este tópico a ocupar uma dimensão cada vez mais importante no próprio ofício artístico.
Outra questão também não resolvida deste ponto de vista é a sustentabilidade financeira destas empreitadas. Se por um lado são vários os agentes que auferem o montante principal das suas rendas a partir das atividades pertencentes à cadeia produtiva da música, isto não se aplica, salvo algumas exceções, ao trabalho específico em torno da produção de músicas autorais. Ou seja, se a possibilidade de “viver de música”, num sentido lato, é algo alcançável num contexto como o de Teresina, viver da própria música, única e exclusivamente, é ainda um privilégio para poucos.
Considerações finais
O presente artigo buscou promover a discussão sobre os segmentos artístico-musicais que viabilizam-se a partir das oportunidades abertas por um novo contexto macro estrutural contemporâneo marcado pela onipresença das tecnologias de informação a partir do caso do rock independente de Teresina no início do século XXI. Buscou-se argumentar sobre um segmento musical que alcançou relativa especificidade e autonomia, em grande parte, graças às possibilidades de apropriação das tecnologias digitais, que vêm contribuindo decisivamente para o surgimento de um corpo substancial de obras, seja numa dimensão fonográfica, seja numa dimensão videográfica.
Algumas lacunas, assim como novos e velhos desafios, são verificados neste percurso. No que diz respeito ao primeiro ponto, a organização associativa que vislumbrasse uma conexão mais incisiva com outros contextos musicais independentes num período de grandes oportunidades para a produção cultural brasileira foi uma das lacunas que mais contribuíram para que Teresina não cravasse uma marca mais forte no imaginário da música alternativa do Brasil neste início de século XXI. Além das dificuldades para atingir o estágio de sustentabilidade financeira a partir da produção de música autoral, a visibilidade em um mercado musical independente ultra segmentado passa a ser um dos principais desafios na atualidade.
A despeito destas dificuldades, há um panorama aberto mais favorável que proporciona inúmeros ganhos para um contexto como o de Teresina. Neste sentido, é interessante constatar que a capital do Piauí tem historicamente sido caracterizada por uma imagem de marasmo cultural, imagem esta que acaba por não se sustentar quando analisada a produção já gerada naquele contexto (Medeiros, 2013, p. 91). Assim, a possibilidade de incremento e legitimação de um corpo de obras nos moldes analisados nesta pesquisa é importante também na medida em que acaba por fornecer ainda mais provas materiais de uma produção artística autoral cujos ganhos para aquele território (em termos de autoestima, reforço de identidades, intercâmbios culturais, entre outros) são imensuráveis.
Não são negligenciados nesta análise os novos desafios que também eclodem com a emergência do ambiente digital para este tipo de segmento artístico. Assim, as novas formas de concentração proporcionada por megacorporações e os seus efeitos sobre a visibilidade da abundante produção musical oriunda dos universos independentes, assim como o ostracismo pelo qual o rock passa no contexto brasileiro, a despeito da farta produção diluída no multifacetado universo musical independente do país, são ainda entraves seríssimos no que diz respeito à estruturação destes microcosmos sociais. Contudo, a possibilidade de equilibrar substancialmente uma antiga discrepância entre a criatividade artística verificada e a materialização em obras só é possível graças ao maior acesso às tecnologias de registro e circulação, que possibilitou avanços que dificilmente poderiam ser vislumbrados num passado não tão distante para um segmento artístico-musical com as características do rock independente de Teresina.
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Notas
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