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Particularidades do pertencimento na pesca artesanal embarcada1

Particularities of the belonging in artisanal fishing

Cristiano Wellington Noberto Ramalho
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Andreia Patrícia dos Santos
Prefeitura da Cidade do Recife, Brasil

Particularidades do pertencimento na pesca artesanal embarcada1

Ciências Sociais Unisinos, vol. 54, núm. 2, pp. 256-268, 2018

Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Recepção: 22 Maio 2017

Aprovação: 13 Abril 2018

Resumo: O presente texto almeja, em primeiro lugar e com base em escritos da sociologia rural e da socioantropologia da pesca no Brasil, situar o debate sobre pertencimento entre camponeses e, principalmente, entre pescadores artesanais, e, depois, produzir reflexões, com base nos dados de campo levantados em duas comunidades de pescadores (Itapissuma e Suape - ambas em Pernambuco), sobre o caráter do sentimento de pertença na pesca artesanal embarcada, analisando suas singularidades e universalidades. Para tanto, realizamos 36 entrevistas (18 em cada localidade mencionada), bem como acompanhamos o cotidiano - em terra e nas águas - dos profissionais da pesca artesanal. No geral, o pertencimento assume, nas comunidades estudadas, elemento comum, que as identifica na condição de sujeitos sociais marcados de singularidades frente a outros grupos e/ou classes sociais, seja na terra (relações de vizinhança, laços de parentes, bairros pesqueiros), seja nas águas (eixo decisivo para o modo de vida simbólico e material desses homens).

Palavras-chave: pertencimento, pesca artesanal, socioantropologia da pesca.

Abstract: The present text aims firstly and based on writings of the rural sociology and the socioanthropology of fishing in Brazil at situating the debate about belonging among farmers, and especially artisanal fishermen, and then produce reflections based on field data collected from two fishing communities (Itapissuma and Suape - both in Pernambuco), about the character of the feeling of belonging in embarked artisanal fishing analyzing its singularities and universalities. Therefore, we conducted 36 interviews (18 in each locality mentioned), as well as accompanied the daily life - inland and in the waters - of artisanal fishing professionals. In general, the feeling of belonging assumes, in the studied communities, a common element which identifies them in the condition of social subjects marked with singularities compared to other groups and/or social classes, whether inland (neighborhood relations, relatives’ ties, fishing districts) or in the waters (decisive axis for the symbolic and material way of life of those men).

Keywords: belonging, artisanal fishing, socio-anthropology of fishing.

Apresentação

Sou nativa deste mundo, sigo suas bandeiras (Virginia Woolf, As ondas).

[...] o amor pela pescaria estava incutido nas artérias de nossos corações (Chigozie Obioma, Os pescadores).

Este texto objetiva responder as seguintes questões: (1) como as ciências sociais no Brasil abordaram a temática do sentimento de pertencimento entre camponeses e pescadores artesanais, no intuito de discutir singularidades, semelhanças e diferenças? (2) Quais as particularidades que envolvem o sentimento de pertença nas comunidades de pescadores artesanais em relação ao campesinato? e (3) como essas particularidades assumem caráter comum no próprio ser e fazer-se pescador em duas comunidades pesqueiras pernambucanas?

A metodologia de campo encontrou amparo na etnografia e na história de vida de pescadores artesanais que trabalham embarcados4 e que vivem em duas comunidades situadas na Região Metropolitana do Grande Recife, Pernambuco (Suape5 e Itapissuma6).

Realizou-se 36 entrevistas (18 em cada localidade), bem como se acompanhou o cotidiano - em terra e nas águas - dos profissionais da pesca artesanal. O campo foi feito em momentos históricos diferentes, ou seja, dos 36 depoimentos 20 ocorreram de julho de 2001 a fevereiro de 2002 (10 em cada localidade) e os demais (16) foram colhidos de janeiro a maio de 2015 (8 em cada localidade). Pretendia-se, com esse recorte histórico, identificar mudanças significativas entre passado e presente em relação ao sentimento de pertencimento, porém essas transformações foram poucas (irei abordar duas delas no final do escrito), de acordo com os resultados encontrados, o que mostra a força da sua reprodução em âmbito geral, ora na pesca exercida no mar-de-dentro (Itapissuma) através das baiteras (espécie de canoa movida à vela latina e/ou a motor de rabeta - de baixa potência), ora no mar-de-fora (Suape)7 por meio do uso do bote (barco artesanal feito de madeira, com 7 a 12 metros, movidos a motor, com quilha, convés e cabine).

Dividimos este escrito em dois momentos: o primeiro tem uma finalidade mais teórica - com base em escritos da sociologia rural e, principalmente, da socioantropologia da pesca brasileira -, onde se almeja discutir o sentimento de pertença; e o segundo produz reflexões com base nos dados de campo levantados em Itapissuma e Suape. Com isso, buscamos responder as indagações elaboradas inicialmente no presente artigo.

Ciências sociais: o pertencimento entre camponeses e pescadores artesanais

O tema do sentimento de localidade no campo foi interpretado como um entrave a ser vencido para que o projeto da nação brasileira pudesse vingar. Assim, desde as últimas duas décadas do século XIX até a primeira metade do século XX, pensadores diversos (Holanda, 1995; Nabuco, 2010; Prado Júnior, 2007; Vianna, 1987) identificaram - cada um ao seu modo8 - na sociabilidade, na organização do trabalho e na cultura política existente no meio rural limites ao projeto de um Brasil moderno, o que derivava do sistema de plantation e das suas negativas implicações.

Esse debate passou ao largo das formas de organização social típicas do campesinato e, mais ainda, da pesca artesanal, fato que só veio a acontecer décadas depois (de 1950 em diante). A partir daí, no debate das ciências sociais no Brasil sobre o meio rural, o tema do pertencimento ocupou papel relevante na definição do modo de vida camponês e das singularidades que compõem suas formas de sociabilidade e seu modo de vida, cujo bairro rural tornou-se fator decisivo. Por exemplo, Antonio Candido e Maria Isaura Pereira de Queiroz entenderam pertencimento enquanto aspecto crucial da existência dos bairros rurais em São Paulo, que, por excelência, eram o locus da existência camponesa (entendido como caipira, para aquele, ou sitiante, para esta).

Acerca disso, Candido escreveu que “[...] mas além de determinado território, o bairro se caracteriza por um segundo elemento, o sentimento de localidade existente nos seus moradores, e cuja formação depende não apenas da posição geográfica, mas também do intercâmbio entre as famílias [...]”. Ademais, o bairro rural é uma “[...] porção de terra a que moradores têm consciência de pertencer, formando uma certa unidade diferente das outras (Candido, 2001, p. 84, grifo do autor). Sentimento de localidade presente nas sociabilidades vicinais e nos modos de solidariedades (os mutirões, ajuda mútua) típicos dos caipiras. Esse sentimento integra o bairro rural com seus mínimos vitais (alimentação e abrigo) e sociais (organização social para obtê-los), e decorre das suas dinâmicas econômicas, que, se alteradas, podem levar ao seu fim e do modo de vida caipira, ora por conta da chegada de relações sociais oriundas da cidade, ora devido às mudanças impostas por processos socioeconômicos capazes de condenar a existência caipira (Candido, 2001).

Para Queiroz eram os laços de parentesco e religião que davam vida aos bairros rurais, em maior medida que os aspectos econômicos. Assim, “dentro deste esquema de relações sociais, reponta com muita vivacidade o sentimento de pertencer a algo [...]” (Queiroz, 1973, p. 199, grifo meu), a um determinado lugar, a certo grupo social, apesar de existirem transformações socioeconômicas impulsionadas pelas dinâmicas mercantis campo-cidade. Tais mudanças, necessariamente, não significavam a dissolução dos elos caracterizadores do sentimento de pertencer aos bairros rurais, desde que elas não passassem “a afetar por sua vez as relações de parentesco e as atividades lúdico-religiosas, que constituem o núcleo das relações sociais do grupo que lhe dão sua identidade” (Queiroz, 1973, p. 201).

Duas pesquisas feitas nos anos de 1990, uma na região do Alto Paraíba, em São Paulo, e a outra no sertão do Piauí, retomam algumas dessas questões. No primeiro caso, Brandão identificou a continuidade da força dos laços de pertencimento contidos nos bairros rurais, quando mencionou que “[...] o bairro é o lugar que torna estável a cultural rural e, sobretudo, faculta que se torne comunitária a vida familiar dos sítios” (Brandão, 1995, p. 67) ou “o bairro é o local nominado onde se reconhece que se vive coletivamente a vida típica das pessoas e famílias do lugar” (Brandão, 1995, p. 67). Aqui os bairros rurais são lugares da realização da sociabilidade camponesa. No outro caso, Godoi (1998, 1999) encontrou na memória coletiva dos camponeses piauienses fator decisivo dos elos de pertença, já que “essa memória passa a atuar como criadora de solidariedade, produtora de identidade e portadora de imaginário, erigindo regras de pertencimento e exclusão que delimitam as fronteiras sociais do grupo” (Godoi, 1999, p. 15). Memória essa que se ampara numa ética do sistema de posse da terra, com base nos costumes, sendo atualizada para referendar a ocupação do território diante de situações de pressão, a partir da reprodução do pertencimento.

Sabourin (2009, p. 48), ao refletir sobre camponeses do Nordeste brasileiro, concluiu que “a comunidade camponesa existe em função de um sentimento de pertencimento a um grupo, de uma identidade coletiva e compartilhamento de saberes, práticas e, sobretudo, valores que a constituem”. A reprodução desse sentimento - em relação ao seu lugar de vida e trabalho - liga-se à continuidade da identidade campesina, pois, segundo Wanderley (2009, p. 298-299), “[...] estas coletividades rurais são, aqui também, depositárias de uma cultura, cuja reprodução é necessária para a dinamização técnico-econômica, ambiental e social do meio rural, ao mesmo tempo em que são portadores de um sentimento de pertencimento a este espaço de vida”. Tudo isso reforçava a interconexão entre família e território “como uma comunidade afetiva, da qual decorre sua importância como elemento formador da personalidade e veiculador de valores morais e sociais ao conjunto de seus membros” (Wanderley, 2013, p. 81, grifos meus). Essa comunidade afetiva é um dos elementos caracterizadores do que vem a ser campesinato, porque é a partir dela que se tecem vínculos de pertença, onde se “constroem um modo de vida e uma forma de trabalhar, cujos eixos são constituídos pelos laços familiares e de vizinhança” (Wanderley, 2014, p. 31).

Ao focalizar um dos bairros rurais de Ouro Fino, Minas Gerais, para estabelecer interfaces entre agricultura familiar, multifuncionalidade e a importância da ruralidade hoje, Camargo e Oliveira (2012, p. 1712, grifo meu) vislumbraram que, apesar de inserido em mercados modernos, há - no bairro rural - uma “[...] herança camponesa quanto à centralidade da família - abarcando o patrimônio familiar, as relações de trabalho, a divisão da renda agrícola, o papel do autoconsumo e as relações sociais e de reciprocidade presentes numa sociedade de interconhecimento”. Então, pode-se argumentar, com base nos autores acima discutidos, que postular a permanência da condição camponesa e, com isso, as suas formas de sociabilidade e seu sentimento de localidade representa reconhecer que o desenvolvimento dos marcos da racionalidade mais mercantil no meio rural “[...] não se expressa por linearidades, mas pelas singularidades, descontinuidades e recomposições dos seus agentes sociais” (Duval et al., 2015, p. 25), inclusive dos aspectos constitutivos da sua existência, a exemplo do pertencimento.

Entendemos que a compreensão e a defesa analítica dessas continuidades - do modo de vida camponês e da ruralidade - passaram a ser produzidas através da releitura de conceitos clássicos a ambos; e mesmo quando a hegemonia da forma de vida camponesa não se fez mais central, em muitas localidades, alguns aspectos de seu ethos ainda são recriados ou desejados por outros sujeitos sociais, como o sentimento de pertencimento, as sociabilidades vicinais e a relação direta com a natureza, que se disseminam e certificam a reprodução de uma ruralidade contemporânea sem deixar de lado aquilo que era típico e caro às tradições campesinas, ao menos em seus aspectos simbólicos. Assim, de agricultores familiares (assentados ou não) a pessoas que escolheram viver no campo, recria-se e se alimenta os laços de pertencimento, avivando, consequentemente, o meio rural, a saber, o rural passa a não se resumir mais à presença do camponês.

Mas e no caso da pesca artesanal como a interpretação sobre o pertencimento foi construída?

Antes de abordar a singularidade dos pescadores artesanais diante dos camponeses, é necessário frisar o seguinte: há várias comunidades de pescadores, especialmente algumas que trabalham em rios e estuários, que estão mais próximas das formas de ser e fazer-se camponês do que necessariamente possuem uma cultura pesqueira enquanto aspecto central em seu modo de vida e saber-fazer. Ou seja, o trabalho agrícola e/ou o extrativismo florestal são mais importantes do que a pesca, que entra de maneira subsidiária e/ou sazonal (Diegues, 1983; Maldonado, 1986; Miller, 2012). E mesmo quando esta passou a ser central em comparação àquelas, isso não produziu necessariamente, em algumas localidades, uma cultura singular frente à lógica camponesa (Furtado, 1987), visto que, por um lado, as atividades florestais e/ou agropecuárias tinham peso relevante em seu modo de vida ou, por outro, a cultura campesina ainda impôs sua herança na geração seguinte que se “desligou” do trabalho em terra. É que a vida, o trabalho no continente minimiza o mundo das águas e as particularidades que daí poderiam emergir. Sendo assim, não há um sentimento de pertença singular dos que pescam frente ao dos camponeses, onde o território aquático seja marca existencial9. Contudo, essa marca existencial passa a avivar-se e ganhar colorações próprias quando a vida exclusivamente nas águas reproduz-se no decorrer do tempo geracionalmente, ao criar e recriar costumes, práticas, simbologias e dinâmicas únicas típicas de um modo de vida pesqueiro com seus pertencimentos; e é esse último aspecto que nos chama a atenção do ponto de vista da produção acadêmica e da realidade que será aqui estudada, ou seja, as particularidades do pertencimento na pesca artesanal embarcada.

Inicialmente - sobre a distinção dos pescadores - vale dizer que, além de outros expressivos elementos, o mais decisivo deles é o ambiente sobre qual se faz pescador (as águas - o mar e rios). Já há, aqui, uma diferença entre a noção de posse de um território por parte dos camponeses em relação aos pescadores artesanais, posto que os últimos lidam com um recurso que é de acesso livre, sendo apropriado via uso comum e pelo segredo (isso será melhor discutido adiante). A isso se adiciona a questão do oceano, rios e estuários serem móveis e viverem em constantes transformações, tornando-os mais imprevisíveis (são sujeitos a mudanças climáticas, ventos, chuvas, marés, fases lunares, etc.) quando comparados a terra, fato que obriga os pescadores a terem uma forte integração, cooperação e confiança mútua para se manterem vivos.

Diante disso, o que possibilita as formas de apropriação do território aquático é o conhecimento sofisticado dos pescadores, o que lhes permite navegar horas ou dias ao encontro dos melhores locais de pesca para que possam, também, enfrentar os desafios colocados pelas vicissitudes imanentes das águas. Aqui o saber-fazer projeta-se nos laços de pertencimento entre os próprios embarcadiços e destes com o mundo aquático, na objetivação do trabalho, no respeito aos mestres, nas representações sobre as águas, seus seres e a vida neste espaço, nas diversas maneiras de cooperação e interconhecimento existentes, cujo centro é a pescaria.

Por exemplo, no início dos anos de 1950, ao estudar a captura da tainha em São Paulo, Mussolini frisou que “[...] é na pesca, ao redor da rede, que se estabelece toda uma série de interações entre moradores de um bairro, unindo-os em cooperação, e fazendo com que constituam, realmente, um grupo local” (Mussolini, 1980, p. 238). Sendo assim, os elementos que compõem o processo de feitura da pescaria - parceria ou mutirão que recebe em algumas localidades a denominação de campanhas ou companhas - é decisivo para reprodução da família, da comunidade e do próprio sentimento de pertença ao grupo e ao território. Em 1957 Cascudo revelou o surgimento e o desenvolvimento de uma cultura marítima típica do trabalho na jangada de alto-mar no Nordeste brasileiro, cujo modo de vida “[...] condicionou a existência ao ambiente” (Cascudo, 1957, 39), à sua interação material e imaterial com a natureza e os companheiros que pescam.

Esse vínculo com as águas, que se soma à produção de uma cultura marítima, fez-se presente também nas comunidades caiçaras de São Paulo, especialmente quando elas passaram a ter uma dependência exclusiva do trabalho da pesca artesanal e, devido a isso, compreenderem, em maior medida, a funcionalidade do mar. Mourão (2003, p. 127) - em pesquisa feita em 1971 - observou que “a pesca tende a especializar a população ribeirinha no sistema lagunar de Cananéia e, à medida que se desenvolve a comercialização e a tecnologia, o caiçara torna-se cada vez mais um pescador, distanciando-se da agricultura de subsistência”. Especialização essa que significa a produção de um modo de vida particular, com sua ideologia, racionalidade, sociabilidade e organização típica de um trabalho, o que propiciou o florescimento de uma cultura marítima com seus laços de pertencimento e seus princípios éticos fundantes e fundados por reciprocidades.

Reciprocidade que marca a história de várias comunidades de pescadores artesanais no Brasil, por meio de suas trocas simbólicas e materiais, cujo fundamento atua, acima de tudo, como mecanismo de integração social dessas sociedades locais, fato similar, a nosso ver, ao sentimento de pertença. Tal questão foi identificada e problematizada por Furtado sobre a pesca no Pará:

Nessa circulação de bens doados e retribuídos esboça-se o princípio da reciprocidade que alicerça o dar e o receber entre os indivíduos e que funciona como mecanismo integrador no grupo local. As pessoas se engajam num ciclo de mutualidades que só será rompido se a retribuição do presente for cessada. Nacomunidade local, dizem os habitantes - “ninguém, em situações de incapacidade física, permanente ou temporária, para trabalhar, é privado de obter os recursos necessários à sua sobrevivência”. A ajuda e, muitas vezes, a manutenção dos inválidos, por parte de algumas famílias de pescadores, traz como recompensa não o pagamento em dinheiro, mas sobretudo o reconhecimento por parte dos membros da comunidade, da generosidade e solidariedade daquelas pessoas que ajudam, qualidade essas altamente valorizadas e que funcionam como elementos integradores no grupo (Furtado, 1987, p. 88-89, grifos da autora).

Esse sentimento de pertença frequenta - nas comunidades de pescadores - as águas e as terras, forjando uma noção de territorialidade ampla e, assim, não restrita apenas a um desses ambientes. Territorialidade e identidade confundem-se e se definem dialeticamente na interconexão terra e água. Mais uma vez, Lourdes Furtado, em escrito recente, apontou:

Os territórios terra e água são indivisos. A comunidade onde habitam é um lugar e não um ponto geográfico no mapa. É um locus de construção de identidades, organização social e função das comunidades pesqueiras, pelo modo de vida que as tornam comunidades ou lugares de pescadores, pela identidade como famílias de pescadores e pela afinidade com a terra e o mar. Por isso, valem aqui os aforismos “nem tanto ao mar nem tanto à terra”, e “quem vai ao mar se avia em terra”: dependem dos dois ecossistemas (Furtado, 2014, p. 100).

Embora essa territorialidade apresente-se no continente e nas águas, é o trabalho da pesca embarcada que produz, de fato, o sentimento de pertencimento à profissão de pescador, enquanto valor existencial. Quem pertence a essa profissão pertence também ao lugar, ao mar, ao estuário e/ou ao rio na condição de sujeito definidor da identidade pesqueira em grau maior que a terra e, fundamentalmente, a uma tripulação embarcada. Pescador faz-se nas águas, nos seus caminhos e nos processos de captura de pescados que seu conhecimento permitiu desbravar, produzindo territorialidades, lugares e significados práticos e simbólicos. Por isso,

No mar, os territórios são mais do que espaços delimitados. São lugares conhecidos, nomeados, usados e definidos. A família de cada grupo de pescadores com uma dessas áreas marítimas cria territórios que são incorporados à sua tradição. Na mesma medida em que é recurso ou espaço de subsistência, o território encompassa também a noção de lugar, mediante a qual os povos marítimos definem e delimitam o mar. Sob este aspecto, podemos dizer que território é conhecimento [...] (Maldonado, 1993, p. 105).

O centro desse mundo é a vida embarcada, pois é nela que tudo acontece e se forma, cria-se e se recria constantemente. Os embarcadiços percebem-se e se sentem sujeitos peculiares, que passam dias ou horas de trabalho afastados do continente dentro de uma sociedade embarcadiça. Sociedade essa que expressa formas singulares de pertencimento, de sociabilidade, de uso do tempo. Estar no mundo embarcado é ver, sentir, vivenciar e entender a vida de maneira própria. O barco, além de um instrumento tecnológico (de características artesanais), é o meio de vida e o lugar existencial da cultura marítima de diversas comunidades costeiras.

Ademais, ingressar na vida embarcada significa socializar-se no conhecimento dos segredos das águas10, seus locais mais propícios para navegar, pescar e manter-se a salvo. Tal fato pode ser compreendido, também, por meio do processo de marcação realizado pelos pescadores11, que serve de “porto seguro” em sua navegação. Apesar de ser diferente em seus espaços (mar e estuário), há sistemas de marcação desenvolvidos também pelos pescadores estuarinos e de lagoas, permitindo que eles encontrem os melhores locais para pescar, os chamados pesqueiros. Para Cordell (1989, 2001), “os pesqueiros são as unidades básicas de apropriação social do espaço marítimo” (Cordell, 2001, p. 147), lugares específicos “[...] onde se tenha constituído, ao longo do tempo, um ambiente favorável à aglomeração e à presença constante de certas espécies ou populações naturais, em decorrência das condições ecológicas aí encontradas” (Dias Neto, 2015, p. 80). Esse saber-fazer ancestral e comunitário gera territórios de pesca e é elemento tradicional, o que já era detectado por Câmara Cascudo (1957) há seis decênios, isto é, “saindo de madrugada o jangadeiro não pesca a esmo, mas se dirige a lugares determinados, zonas mais ou menos extensas, com distâncias e funduras conhecidas, onde vivem certos peixes em presença normal” (Cascudo, 1957, p. 25).

Sem o sistema de marcação - traduzido nos pesqueiros - inexistiria a pescaria, as águas como lugares de existência sócio-cultural, os elos de sociabilidade vicinal e o ser e fazer-se pescador artesanal. Portanto, pertencer a um grupo significa, dentre outras coisas, partilhar elementos que lhes são comuns, cuja embarcação é a base em que tudo isso conflui. Tal questão expressa a força e a certeza de que a pesca artesanal “não somente reforça a solidariedade entre os pescadores, mas também cria o território onde ela se realiza” (Diegues, 2004, p. 285). E nesse cenário o conhecimento é um desses fatores, que se (re)cria ao longo do tempo e confere referências amparadas na tradição, valores e hábitos, sendo (re)elaborado/transformado de acordo com as novas necessidades dos pescadores e as possibilidades históricas e ambientais encontradas.

Conhecimento que se manifesta na produção de uma territorialidade que não se restringe ao ato de ver apenas com os olhos o que está na superfície, mas que guarda também a capacidade de desvelar o que está abaixo das águas e que é descoberto, entendido e incorporado pelo saber-fazer pesqueiro por meio da educação sensitiva contida e desenvolvida pelos demais sentidos (tato, olfato, paladar, ouvir), os quais permitem aos olhos “enxergar” pedras, áreas de lamas e cascalhos e tipos distintos de pescados que estão submersos (Ramalho, 2011, 2017a, 2017b). Nesse sentido, existem lugares, no fundo das águas, que devem ser buscados e/ou evitados para que boas pescarias efetivem-se, e é nesse território submerso que os pesqueiros localizam-se. Para marcar tais pesqueiros, pontos no continente são utilizados como referências.

As marcas (os pesqueiros12) são espaços produtivos no mar, os seus locais mais piscosos. Desta feita, as marcas são formas de apropriação do território aquático e de uso das potencialidades das suas águas, sendo feita de maneira triangular, utilizando pontos da terra como referências para desvelar o que está submerso. O continente é uma referência importante, já que os pescadores não ultrapassam a plataforma costeira (ou parede, em Suape ela está a aproximadamente a 21 milhas náuticas13, por exemplo) pelo fato de que fazer isso não os permitiria ver a terra, além do que a efetivação de tal deslocamento prejudicaria a pescaria e envolveria grandes riscos de morte à tripulação, por conta da tecnologia artesanal dos barcos e dos tipos das armadilhas utilizadas14. Sobre isso, escreveu Maldonado:

Um ponto fundamental à analise da marcação tanto dos bancos de peixe como dos roteiros das embarcações é a utilização dos “marcos da terra” que é outro traço praticamente universal à pesca, muito significativo da forma como nela se realiza a unidade entre terra e mar. São sistemas de orientação dos pescadores, feitos dos sinais inscritos na natureza com a paisagem da terra, com os seus “marcos” (Maldonado, 1993, p. 108).

Os pesqueiros são trunfos importantes para que a pesca exista e não seja atividade sinônimo de acaso. O conhecimento e a edificação desses mapas cognitivos, que dependem da capacidade de descobri-los e memorizá-los, são bases essenciais do ápice da arte de ser pescador, o tornar-se mestre. Então, a marcação possui o atributo de levar a pessoa a mestrança.

Memória de mapas cognitivos marinhos incrustados no sistema de marcação, que marca a passagem para a mestrança. “Ele marca”, esse é o sinal da chegada a mestre. Assim, a mestrança congrega o refinamento de conhecimentos náuticos, meteorológicos, hábitos de diversas espécies de pescados, marés, ventos, ciclos lunares, coordenação da tripulação e memorização das rotas e dos pesqueiros. Tudo isso se comunica e se articula, formando um campo cognitivo complexo e rico, já que a ausência de combinação de um desses componentes limitaria a ação no mar não permitindo o desenvolvimento do trabalho (Ramalho, 2017b, p. 198-199).

Ademais, no que se refere ao problema da parentela, não há na pesca artesanal, como no campesinato, uma unidade doméstica de produção que seja ao mesmo tempo produtora e consumidora (Mendras, 1978; Wanderley, 2018; Wolf, 1970). Se o trabalho do grupo doméstico não assume, na pesca artesanal, papel central, já que as mulheres não participam das pescarias embarcadas, isso não significa dizer que o sistema de parentela, compadrio e amizade deixe de ser utilizado de norte a sul do País (Diegues, 1995; Furtado, 1993; Maldonado, 1986; Ramalho, 2012). É claro que o talento para pescar é fator valioso, mas este, normalmente, associa-se a elos familiares. Pessanha, em estudo sobre pescadores do Rio de Janeiro, apontou que:

A arregimentação dos companheiros costuma ser feita considerando, em grande parte, critérios baseados na confiança advinda de relações de parentesco, compadrio e amizade, embora a habilidade do profissional seja principalmente levada em conta (Pessanha, 2003, p. 100).

Por ser uma atividade caracterizada pela condição de risco e pela necessidade de se ter segredo em relação às rotas aquáticas para se atingir os melhores locais de pescaria, estar com a família (pai, irmãos, primos), amigos e compadres é fundamental para que a atividade alcance os fins almejados. Ademais, o trabalho da pesca requer confiança, sincronia e companheirismo entre os que estão embarcados e, por isso, nada melhor do que utilizar os laços familiares e de amizades de longa data como mecanismos valiosos de trabalho. Isso demonstra que há certa recorrência em se definir e fazer uso de um grau de solidariedade capaz de estruturar e organizar os grupos de trabalho que vão sair em pescaria, reproduzindo, no espaço aquático, laços existentes no espaço terrestre. Contudo, não é só isso, pois se vê “aqui uma clara alusão a dois fatores: o primeiro, a socialização no conhecimento técnico e naturalístico, realizada ‘de pai para filho’; o segundo, a necessidade de manutenção ‘em segredo’ desse conhecimento” (Lima, 1997, p. 91).

Os elos de pertencimento têm como base uma ética pesqueira que fundamenta e informa as lógicas de sua organização - a divisão de papéis, relações de autoridade do mestre, sistema de igualdade e companheirismo - que são resultados da ideia do segredo e de segurança das pessoas, no momento de trabalho. O que acaba reforçando esses dois últimos itens é o que Maldonado (1993) chamou de ideal igualitário no trabalho da pesca que “se alia ao espírito cooperativo e à coordenação necessários às operações pesqueiras, em proteção ao espaço tecnológico e social do bote e à estabilidade da tripulação” (Maldonado, 1993, p. 47, grifo da autora), sendo o valor do mestre fundamental para pôr em funcionamento os acordos morais, as relações de afetividade, circulação de informações sobre rotas e pesqueiros; tudo isso sempre sob o imperativo da solidariedade. E essa ética se faz presente no trabalho das pessoas que têm na pesca seu meio de existência, porque “um código de honra que os pescadores chamam de respeito, intimamente ligado à reciprocidade, forma e controla as relações pessoais na pesca local. A ética associada ao respeito vai além de um cerimonial da pesca: ela se liga às consciências” (Cordell, 2001, p. 144).

A ética pesqueira não só ordena a funcionalidade dentro da embarcação em suas relações pessoais, intrinsecamente ancoradas no sistema de parentesco e compadrio, mas delimita também os espaços a serem “apropriados” pelo grupo de trabalho no ambiente aquático, de acordo com o acervo de segredos e as regras de uso comum15 existentes entre os pescadores.

Compreendemos que isso se vincule ao que classificamos de uma cultura de ofício pesqueira - com linguagens, costumes e hábitos singulares -, que se soma a uma habilidade específica e complexa empregada em suas técnicas de trabalho, em seu saber-fazer enquanto embarcadiço. Por isso, o barco é, sem dúvida, uma espécie oficina (marítima) por ser o lugar da perícia técnica náutica e, principalmente, de execução da obra da pescaria, do ato, do fazer da pescar e do fazer-se pescador. É nele e através dele, barco (bote ou baitera), que esse tipo de sociedade embarcadiça realiza-se, acontece em termos objetivos e subjetivos, sendo o epicentro da vida do que pode ser desvelado como pertencimento da pesca artesanal, seu mundo e a razão de sua singularidade quando a comparamos ao universo camponês.

Pescadores artesanais e o sentimento de pertença

De agora em diante e fundamentados nos dados colhidos em campo, apontaremos o caráter comum do sentimento de pertencimento entre pescadores artesanais embarcados, mesmo quando exercem seu ofício em ambientes distintos (o oceano - Suape - e o estuário - Itapissuma).

Antes de tudo, cabe frisar que as localidades de Itapissuma e Suape detêm distinções entre si. A praia de Suape é uma vila a 12 km do centro do município Cabo de Santo Agostinho, tendo uma população de 1.200 habitantes formada por comerciantes, trabalhadores autônomos (pedreiros, encanadores, etc.), alguns funcionários públicos aposentados e, principalmente, pescadores (Ramalho, 2017b). Já Itapissuma é um município de características urbanas, com 23.769 habitantes, onde sua força de trabalho vincula-se ao setor industrial, à agricultura, ao de serviços e à pesca artesanal (IBGE, 2011; Quinamo, 2006). Porém, independentemente dessas distinções, a trilha profissional daqueles que entram na pescaria, em Suape ou Itapissuma, teve início no convívio com a atividade desenvolvida pelos pais, sendo iluminada por uma tradição familiar.

Meu pai era pescador. Eu comecei a pescar muito novo, com uns 10 anos, e foi o meu pai quem me ensinou (Severino dos Santos, 36 anos, pescador de Itapissuma, PE).

Pesquei com a família mesmo, desde miúdo, mais pai e um pouco com o meu tio (Joaquim, 51 anos, pescador de Suape, PE).

Padrinho e meu tio... foram eles que me ensinaram os caminhos de pescar E eles mesmos seguiram os ensinamentos do meu avó (José Inácio, pescador de Itapissuma, PE).

Na realidade, quem me ensinou a pescar foi a convivência, porque eu vendo meu pai... eu sempre tava mais meu pai (José Edson Alves, 36 anos, pescador de Suape, PE).

Meu pai foi quem me ensinou, desde criança (Moisés Gomes, 43 anos, pescador de Itapissuma, PE).

Eu aprendi com meu pai, que pescava mais meu tio. A família toda era de pescador (Seu Neneu, 62 anos, pescador de Suape, PE).

A pesca artesanal é o espaço que se constrói pela sociabilidade gestada na parentela, ligando ao futuro de uns o passado de outros homens, dos pais, tios, padrinhos e avôs. Por esse quadro, a atividade da pesca foi sendo assimilada num convívio cotidiano. É expressivo o número de pessoas que aprenderam a pescar com o pai em Itapissuma e Suape: 80% dos entrevistados adquiriu os conhecimentos e habilidades num convívio cotidiano, com o pai, “desde criança” (Moisés), pois “a família toda era de pescador” (seu Neneu), embarcadiços de uma mesma viagem, cujo ato de aprender a pescar inscreve-se na convivência e no trato diário de ver e praticar a pescaria. De fato, quem ensina a pescaria artesanal é “a convivência, vendo pai” (José Edson), aquele homem mais velho que revela em cada ação de trabalho a cumplicidade com a pesca, a forma de como lidar com ela e de viver no barco. Saberes e fazeres pesqueiros que “seguiram os ensinamentos do meu avó” (José Inácio). Nas falas dos pescadores, ressalta-se, normalmente, o valor da figura paterna na socialização dos filhos na profissão de trabalhador do mar. Os pescadores que utilizam embarcações em seu trabalho nas águas, em Suape ou em Itapissuma, destacam a presença exclusiva dos homens na pescaria embarcada. Todavia, hoje, mais do que no passado, o trabalho feminino tem ocupado relevante destaque na formação da renda das famílias de pescadores, visto que a coleta e a mariscagem eram recursos disponibilizados para complementar a alimentação familiar.

Com o aumento do desemprego e a queda do poder aquisitivo das famílias entre as décadas de 1980 e 1990 no Brasil, as mulheres tiveram que buscar alternativas de geração de renda, o que levou, especialmente em Itapissuma, à entrada de inúmeras delas - boa parte esposas dos trabalhadores pesqueiros - no ramo da mariscagem. Em Suape, a pesca não se transformou em alternativa de trabalho para elas, pois houve queda na produção de pescados, decorrente do intenso desmatamento das áreas de trabalho feminino, os manguezais, por conta da instalação (fim da década de 1970) e ampliação do Porto de Suape (em 1992) e da Refinaria Abreu e Lima (meados da década de 2000). O meio de obtenção de renda usado pelas mulheres passou a ser a venda de produtos (bebidas e comidas) na beira da praia. Guardadas essas diferenças, muitas mulheres de pescadores sempre cumpriram o papel de vender os produtos capturados por seus maridos, sejam em suas casas, sejam indo às feiras.

Hoje a minha mulher vende os peixes em casa. Eu boto lá e ela vende. Sempre foi assim. Antigamente, ela fazia rede. Atualmente, não faz mais, não, pois ela tá com a vista cansada (Seu Neneu, 62 anos, pescador de Suape, PE).

Muitas mulheres ajudam no conserto da rede, vendem o pescado, consertam o peixe pra congelar e botar no sal (Abiezer de Moura, 40 anos, pescador de Itapissuma, PE).

As mulheres, hoje, vendem os peixes e uns tem barraquina na beira da praia (Marcos de França, 43 anos, pescador de Suape, PE).

Dos [anos] 80 mais pra cá... várias mulheres cairam nas águas para mariscar, para pescar (Seu Carlos, 57 anos, pescador de Itapissuma, PE).

Os homens passam menos tempo em terra, e quando estão de folga não permanecem em casa; assim, são as suas mulheres que assumem a comercialização dos pescados. Isso nos revela que, mesmo quando esposas e mães dos pescadores não se encontram diretamente ligadas ao trabalho embarcado, elas sempre participam da atividade, tanto na venda de produtos do mar como nos reparos das armadilhas a serem empregadas no processo produtivo da pesca.

Muitas mulheres ajudam a remendar a rede. Quando o marido chega da maré, os dois ficam conversando e remendando. Já é uma ajuda (Luís de Amorin Filho, 44 anos, pescador de Itapissuma, PE).

As mulheres exercem uma função fundamental na formação de novos trabalhadores da pesca artesanal: o da socialização de seus filhos na atividade de pescaria. Isto se dá de dois modos: na pesca marítima de Suape, os filhos ajudam as mães na venda de pescados e no conserto das redes; já na pesca estuarina itapissumense, vários meninos pescam com as mães antes de ir para o barco trabalhar com o pai, fazendo com que, além de ajudá-las, as crianças estivessem ao alcance dos seus olhares e sob os cuidados maternos no decorrer da jornada de trabalho da mariscagem. Os filhos passam a trabalhar no mar depois que seu pai julga que eles alcançaram a condição necessária para sua inclusão nas tarefas do trabalho embarcado, fato que possui como critérios principais a idade (entre 15 a 18 anos), a altura e, fundamentalmente, a força física para suportar as horas na água, os esforços realizados para manusear os equipamentos e conseguir agüentar chuva, vento e sol a pino.

Mas, antes de irem para o alto-mar, os jovens de Suape pescam na parte que vai até os arrecifes com seu pai, padrinhos, irmãos e amigos mais velhos, aprendendo a manusear redes, remos, além de aprender, embora de modo primário, a direção e força dos ventos. Concernente à incorporação dos mais novos à pesca embarcada na aera estuarina do Canal de Santa Cruz, em Itapissuma, PE, a mãe é quem cumpre as primeiras cerimônias de apresentação e integração dos filhos ao trabalho de pescaria, porém alguns desses jovens só se tornam pescadores quando passam, segundo eles, a exercer sua função na baiteira dentro do mar, normalmente junto ao pai ou a um amigo próximo. Nesse aspecto, a fala de João da Luz é bastante esclarecedora:

Eu comecei a pescar mesmo foi com 16 anos, de mangote. Comecei pescando siri e ostra com mãe. Muita gente começa a pescaria assim com a mãe, quando é pequeno (João da Luz, 40 anos, pescador de Itapissuma, PE).

A argumentação de João traz representações sobre o trabalho pesqueiro. Uma dessas representações sociais tem a ver com a passagem de uma atividade que, para o pescador, não tinha correspondência com a produção de uma mercadoria possível de se transformar em dinheiro, pois se destinava ao consumo doméstico, particularmente a pescaria feita em companhia da mãe, para uma que possibilitava uma renda monetária. O exercício de seu esforço só é compensado monetariamente quando João vai para a pescaria de mangote com 16 anos, sendo aí, na sua própria concepção, que ele começa “a pescar mesmo”, ser um profissional da pesca artesanal, o que se conecta ao seu ingresso em definitivo no barco, no mundo embarcado. Ser um embarcadiço tem repercussões objetivas e subjetivas, ao ser o território dos elos de pertença. Para vários pescadores, de Suape e Itapissuma, “a pesca e o barco são irmãos”, “ser da pesca é ser de uma embarcação, de uma tripulação”, “a baitera é o mundo do pescador” ou “o verdadeiro pescador vive do bote”.

Como se nota, atingir essa condição, de pescador, é incompatível com a continuidade de se trabalhar com a mãe; é a antítese de ficar nas margens do estuário, pescando siri, ostra e marisco, pois essas tarefas simbolizam, nas suas representações, as margens negadoras de uma real condição de profissional de pescaria e de ser homem pescador, que o barco confere simbólica e objetivamente. Questão que se agrava quando as mulheres ainda são definidas, por diversos pescadores, não como pescadoras, mas como coletoras ou marisqueiras, tendo em vista a noção, segundo a qual a verdadeira pesca deve ser feita no mar (local masculino) e não nas beiras do estuário (os mangues, local feminino). O mesmo ocorre em Suape, com as mulheres que trabalham na praia comercializando bebidas e petiscos, vendendo pescados ou sendo empregadas nas poucas casas de veranistas que há na localidade16.

Por ser um lugar do trabalho familiar, a pesca artesanal masculina estabelece e reforça um sentimento de pertença entre aqueles que embarcam e que, portanto, dependem da pescaria. Assim, ao ser parte da pesca também se torna parte de uma família, de um grupo com fortes raízes identitárias. As equipes de pescaria são, de fato, grupos de amigos, compadres e parentes que fazem das embarcações seus espaços de trabalho, de convivência e partilha, tornando-se unidades produtivas e uma comunidade afetiva.

Um fato valioso a se dizer é que o tom de familiaridade não se limita à composição dos membros que embarcam nem a relação com o lugar; os instrumentos de trabalho, especificamente, as embarcações, são, em grande parte, batizados com qualificativos sentimentais e, por isso, incorporadas na qualidade de um ente querido. Nesse sentido, as embarcações ganham nomes de parentes (Rosana, Ilma, Kelly, Silvana, Angélica, Matheus, José), religiosos (a padroeira, rainha da paz), sentimentais (amor, amizade, bela, coração, valente) e análogos aos trabalhadores que a usam (marujo, pescador), ora por lembrança e promessa, ora por uma questão de homenagem. Ao nomear suas embarcações, os homens do mar, de Itapissuma e Suape, transformam suas baiteiras e botes também em cúmplices na batalha da vida, tornando-os mais do que simples objetos de trabalho17.

Ao colocar os barcos como parte integrante das suas vidas, os pescadores estabelecem muito mais do que relações de proximidade; eles incluem os seus equipamentos de produção no domínio dos laços de pertencimento de uma fração de classe, transformando-os em companheiros inseparáveis da identidade daqueles que vivem dos recursos aquáticos. Portanto, o pertencimento assume, para as comunidades estudadas, elemento comum, que as identifica na condição de sujeitos sociais marcados de singularidades frente a outros grupos e/ou classes sociais, seja na terra (relações de vizinhança, laços de parentes, bairros pesqueiros), seja nas águas (eixo decisivo para o modo de vida simbólico e material desses homens).

Os grupos que trabalham nos barcos são (re)criados com base nos elos de pertencimento, que estão muito além de ser apenas uma ideia. Pertencimento é um sentimento em relação a algo, cuja construção não se opera a priori, porque é vivida a partir de processos cotidianos, que estão ali, no dia-a-dia desses homens, seus amigos e familiares, demarcando espaços socioculturais de integração. O ato de pertença circunscreve-se no reconhecer uns aos outros como portadores de uma história comum, cúmplices e artífices de um projeto similar de vida, que navegam pelas águas das possibilidades e das desventuras, cercadas pelas contingências colocadas na urdidura dos enredos societários gerais e que são enfrentados, dentre outras coisas, na manutenção dos traços típicos de solidariedade, ao se recorrer à família, ao compadrio e aos amigos como parceiros de trabalho.

As regras instituídas pela ética pesqueira são compartilhadas por aqueles que estão inseridos no mesmo rol de relações materiais e simbólicas de uma sociedade embarcadiça, que formam e são formadas pela lógica do pertencimento e pelo sentimento traduzido objetivamente na construção dos grupos de pescaria. A conduta produtiva é mediada por laços de parentesco, compadrio e amizade expressa nas frases dos próprios pescadores, a saber, “pra pescar, tem que ser amigo” (José Severino), “eu pesco com compadres”, “é tudo colega” (Abiezer) e “no barco, é na amizade” (Luís). Na realidade, não só as dificuldades socioeconômicas, como também as de ordem ecológica (perigo, insalubridade, imprevisibilidade) exigem que os barcos tornem-se ambientes de coleguismo e amizade, onde a convivência seja de “irmão com irmão” (Luís), de uma família, para que se possa enfrentar as agruras da profissão, as disputas por pesqueiros e os contextos de risco de acidente e de morte ao se trabalhar no mar. Desse modo, os relatos sobre a história da pescaria mostram que as equipes explicitam que “a relação de amizade sempre continua a mesma” (Alberis).

A pesca artesanal é o lugar privilegiado que busca, por razões práticas no barco, a união, até porque, devido aos riscos aludidos, “desunião na maré não presta” (Milton), pois coloca o trabalho e, o que é mais grave, toda a tripulação em perigo. Então, a família minimiza os perigos e acentua o caráter de solidariedade, permitindo que haja uma composição hierárquica (pai e filho; tio e sobrinho; padrinho e afilhado) e também horizontal por meio das relações de intensa proximidade e voluntariarismo. Não é por acaso que “a relação de amizade é a mesma, tanto na água, como na terra” (Moisés), visto que essa transposição é fundamental18. Com isso, produz-se uma regra que obstaculiza ao estranho o ensejo de que ele possa entrar num grupo embarcado, já que “dificilmente se chama” (Abiezer) por não querer contratempos.

Num espaço vulnerável às mudanças de ventos e dos cardumes, chuva, maré forte, imprevistos no barco, sorte e azar; o melhor é estar ao lado de quem se conhece e, se for necessário, se possa contar nos instantes de gravidade e insucesso. Os laços de pertencimento ganham maior ênfase devido às relações de vizinhança entre os pescadores, que fortalecem a existência de uma comunidade de interconhecimento, no sentido conferido por Mendras (1978). A sociedade de interconhecimento tem um vínculo territorial e, acima de tudo, familiar. Tanto o lugar como as pessoas são parte de uma mesma família e dos laços de amizade. Todos se conhecem, mutuamente.

“Conhecer” assume portanto um sentido ao mesmo tempo preciso e pleno: cada um conhece ‘todo mundo’, isto é, todos os demais, e todos os aspectos da personalidade do próximo. E não se trata de uma percepção ocasional e parcial, limitado a um quadro social ou a uma atividade particular, como é regra na sociedade urbana, mas, ao contrário, de um conhecimento total e prolongado da pessoa do outro, no conjunto de suas posições sociais, atuais e passadas, e nas particulares de uma personalidade (Mendras, 1978, p. 88).

Na pesca, o micromundo barco é o epicentro disso, dessa sociedade de interconhecimento que flutua, porque “mesmo quando a mulher da gente não esteja lá, tia, mãe, mas tá os amigos, irmãos, o pai. É tudo conhecido no barco” (Genildo, 48 anos, pescador de Suape) ao ser “o nosso mundo conhecido, da confiança e camaradagem maior que na terra. Acho que o barco é isso” (Severino Santos, 36 anos, pescador de Itapissuma), o laço que aviva e é avivado pelo pertencimento, pelo interconhecimento e a reciprocidade reforçada pelo perigo de estar no ambiente aquático. Aqui está a sua especificidade, o que é singular à pesca.

Entretanto, é evidente que há algumas semelhanças com os camponeses. Por exemplo, na compreensão do pescador, “quando aparece um aí [no bairro], que não é conhecido, aqui, em Itapissuma, todo mundo sabe já” (Abiezer de Moura, 40 anos, pescador de Itapissuma), pois todos que lá moram conhecem-se uns aos outros e sabem, ao menos um pouco, da vida de cada um. Mesmo com as transferências das suas moradias para um lugar mais afastado da beira-mar e do estuário, como aconteceu em Itapissuma e Suape, devido ao hotel e à urbanização, os homens que vivem da pesca continuam morando próximos uns aos outros, na mesma rua, povoado ou bairro. Então, o deslocamento para “o fundo” da cidade ou do antigo lugar onde habitavam não aniquilou as relações de vizinhança entre os pescadores, embora eles saibam dos prejuízos que isto significou.

Moramos perto. Sempre morou. Hoje mudou de lugar, pois saiu da praia pra vir pra vila aqui... atrás. Mas continua perto (Manuel, 34 anos, pescador de Suape, PE).

Toda vida eu morei perto dos amigos pescadores. Toda vida, na minha área, a maioria é de pescador (Mestre Dedé, 47 anos, pescador de Itapissuma, PE).

Mesmo com essa história da Refinaria... a gente continua junto na vizinhança, as famílias e compadres (Paulo, 48 anos, pescador de Suape, PE).

Antigamente, eu morava lá na frente e hoje eu moro aqui. Era também perto dos meus amigos de pescaria. Eu moro perto dos companheiros, numa distância que é, no máximo, de 100 metros. É pertinho (Almir de Oliveira, 35 anos, pescador de Itapissuma, PE).

Os pescadores artesanais, mesmo diante das diversas mudanças em suas regiões de morada e de trabalho, guardaram laços com suas tradições e costumes, que resultam em práticas sócio-culturais particulares em relação à família, à natureza, ao lugar e ao trabalho. Por exemplo, apesar de haver um maior grau de interconhecimento entre a população de Suape do que se observa em Itapissuma, por conta do tamanho da população, isso não significa que as ações sociais dos pescadores de Itapissuma sejam diferentes das de Suape a ponto de gerar um antagonismo entre suas tradições, laços de pertencimento. Na verdade, os pescadores itapissumenses moram em bairros periféricos localizados na sede do município, como Espinheiro e Canto, que são conhecidos também pelas práticas sociais singulares em relação aos demais habitantes do município19, inclusive os camponeses, porque “o pescador não tem hora pra ir pra maré e não tem hora pra chegar” (Almir de Oliveira, 45 anos, pescador de Itapissuma), devido à sua dependência no que diz respeito ao ciclo e ritmos das águas. Tal fato permite-nos aproximar essa realidade da dos quarteirões marítimos na Europa:

Osquarteirões marítimos, em geral, eram urbanos, mas localizados na periferia das cidades. Os próprios marítimos, sobretudo os pescadores, preferiam esse isolamento, pois tinham um tipo de vida distinto dos demais, saindo para pescar em horas em que os demais ainda estavam dormindo. Nos bairros dos pescadores existia certa homogeneidade, como no de Saint Jean, em Marselha, de Perrot em La Rochelle, etc. Esses bairros transformavam-se menos rapidamente que os demais, guardando seus costumes ancestrais [...] (Diegues, 1998, p. 75, grifos do autor).

Em pesquisa sobre pescadores do estado do Pará, os bairros foram ressaltados por Furtado:

Os pescadores se auto-definem como pescadores, simplesmente. Suas principais unidades sociais estão nos bairros periféricos dos centros urbanos municipais da região tais como Óbidos, Faro, Juruti, Oriximiná, Santarém, Monte Alegre e Alenquer (no caso do Baixo Amazonas); estes bairros, pela presença marcante de pescadores, são conhecidos localmente pela designação de bairros de pescadores (Furtado, 1993, p. 241).

Sobre isso, Diegues (1983, p. 227) frisou que “o particularismo da gente do mar se reflete, por exemplo, na forma de moradia nas cidades. Os pescadores costumam se concentrar em certos bairros, geralmente próximos aos portos de desembarque”. Sem dúvida, em Itapissuma e em Suape, o ritmo de vida e de trabalho, com seus horários dependentes da natureza, revelam especificidades diante de outros sociais. Os horários são os horários para melhor embarcar ou ficar em terra firme “quando o mar não tá para peixe ou tá invocado” (Seu Gidinha, 70 anos, pescador de Suape).

No caso de Suape, na área do Complexo Industrial de Suape próxima a praia, iniciou-se em 2007 as obras da Refinaria Abreu e Lima, sendo responsável pela atração - no período de sua construção principalmente - de trabalhadores de fora do município e do estado de Pernambuco, o que teve o impacto mais expressivo nos laços de pertencimento discutidos neste artigo. Segundo Olivera (2013, p. 230), “oficialmente, estima-se em 25 mil o número de empregos diretos projetados para as empresas instaladas e em instalação”. A chegada dos “de fora”, que passaram a frequentar com assiduidade a praia de Suape nos finais de semana (eles moravam em outras localidades do Cabo de Santo Agostinho e de Ipojuca), e suas mobilizações reivindicatórias (greves, fechamento de estradas, etc.) fizeram com que os pescadores locais reforçassem a representação e o sentimento sobre seu próprio modo de vida, seu trabalho, quando passaram ao associá-los a algo “pacato, tranquilo e sem gostar de confusão, diferentemente desse povo da Refinaria que tá solto no mundo. A gente pertence à calmaria, à vila de pescador daqui” (Marco, 44 anos, pescador de Suape, PE), isto é, “os de fora” não possuem laços com o lugar, modo de vida “tranquilo”, enfim, não pertencem a Suape como acontece como os pescadores locais20, fato que reforçou, como observamos, o sentimento de localidade.

Em Itapissuma, o aumento da violência, na maior parte associada ao trafico de drogas segundo os nossos entrevistados, tem retirado das representações e sensações dos pescadores “a ideia de que tudo era calmo por aqui”, “município de paz”, “sem medo de sair na rua”, “uma vida de calmaria”. O aumento da urbanização (não planejada), estar próximo a presídios (situados na Ilha de Itamaracá - município vizinho21), o aumento do desemprego e ausência de política de segurança mais consistente fizeram com que Itapissuma vivenciasse esse drama urbano típico das grandes cidades. Apesar disso, tal questão não aboliu, para os entrevistados, o sentimento de que na pesca, “diretamente, nada mudou”, “trabalhamos com o mesmo e na mesma”, “a pescaria continua na semelhança, como ontem”, “a pescaria é coisa de gente próxima” ou “no barco tudo é igual, é irmão de algum modo”.

No geral, podemos destacar que os pescadores desenvolveram uma sociabilidade distinta que não se coaduna, completamente, às típicas dos agricultores familiares e/ ou tampouco a dos trabalhadores industriais e do comércio. Muito dessa distinção deve-se ao seu ambiente de trabalho, à sua sociedade embarcadiça, ao seu mundo embarcado. Por isso, o que há é uma sociabilidade pesqueira que precisa ser entendida em sua especificidade, seja nas práticas materiais e simbólicas, seja na sua relação com a cidade, à qual muito desses homens já se integram, de forma singular com seu sistema de pertencimento.

Conclusões

São muitas as semelhanças entre o sentimento de pertencimento existente entre camponeses e pescadores artesanais. Todavia, isso não elimina um conjunto expressivo de diferenças contidas no modo de vida destes em relação àqueles, especialmente ocasionado pelo trabalho embarcado, pela sociedade embarcadiça. Se algumas formas de sociabilidade aproximam esses sujeitos sociais, as águas - e fundamentalmente viver no e do barco - influenciam o desenvolvimento e resguardam singularidades sócio-culturais.

Pescador artesanal é aquele sujeito sociohistórico portador de um modo de vida cheio de especificidades simbólicas (costumes, mitos, linguagens) e de uma forma de organização social do trabalho fundada no sistema de parceria/companha, onde ser um embarcadiço assume referência decisiva, ora nos usos de técnicas e tecnologias patrimoniais com base num conhecimento sofisticado sobre os ciclos, tipos e hábitos dos pescados, das marés, ventos e fases da lua que atuam de maneira combinada, ora devido às habilidades náuticas para navegar e encontrar pesqueiros, ora em decorrência das sociabilidades e culturas gestadas na pescaria no mar-de-dentro e de-fora. Para isso, o pescador conhece e reconhece - como poucos - os caminhos e segredos do oceano, rios e estuários, o que produz um sentimento de pertença a um grupo e, conseqüentemente, a um território bastante particular, cuja família e os elos de compadrio apresentam-se cotidianamente.

Construir estratégias de sobrevivência na pescaria artesanal é apoiar-se, fundamentalmente, nos laços de parentesco e amizade. Portanto, os elos de pertencimento tornam-se a base essencial da organização produtiva na pesca, e isso acontece por diversos motivos. Para suportar os caminhos das águas, dos ventos e as condições de sorte e azar, é necessário pescar com compadres e familiares. Os laços pessoais, portanto, minimizam o enfrentamento das desventuras e alimentam, por outro lado, as possibilidades de sucesso no mar. Os acordos de cooperação e convivência firmados sob a luz da ética entre os pescadores no processo de trabalho assentam-se também nas relações familiares, fazendo com que as estratégias de sobrevivência adotadas pelas famílias sejam aspectos indissolúveis na atividade pesqueira artesanal em Itapissuma e Suape. Tudo isso respalda, e é respaldado, no conhecimento que os pescadores devem possuir acerca dos recursos aquáticos.

A pesca exige, acima de tudo, entrosamento entre o profissional e a cadeia de relações que compõem o recurso estuarino e marítimo; o pescador constrói um sentimento de pertença também com o mar, como um ser que dele faz parte e que percebe suas vontades e caprichos. Mais do que ninguém, o pescador artesanal tem que ir a favor da maré, das situações naturais postas, buscando sintonizar seu processo de captura às condições ecológicas que se apresentam, ao forjar um sistema de parceria com as águas, ventos, as estrelas e fases lunares.

Enfim, esse sentimento de pertença a uma territorialidade aquática medeia o ato do trabalho pesqueiro e faz com que a pesca seja também a manifestação de um processo sócio-cultural particular, enquanto grupo que pesca embarcada (no estuário e no mar), cujo modo de vida está imbricado nas formas de apropriação das águas marítimas e estuarinas e que encontra no barco a base de sua edificação.

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Notas

1 Apoio: Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
4 Nas localidades estudadas o termo embarcado significa pescar artesanalmente em barco e não trabalhar em barcos industriais, como acontece com o uso dessa noção no sul e no sudeste do Brasil. Ademais, nesse tipo de pesca não há a presença do trabalho feminino.
5 A praia de Suape localiza-se no município do Cabo de Santo Agostinho, a 56 km de Recife, capital de Pernambuco, litoral Sul.
6 Itapissuma fica no município de mesmo nome. Encontra-se, aproximadamente, a 40 km da capital, estando na costa norte. Há algumas décadas essas comunidades passaram por mudanças socioambientais intensas (instalação de porto, refinaria, resort, viveiros de camarão, crescimento urbano desordenado, poluição dos recursos hídricos, etc.). Entretanto, cabe aqui um alerta: este artigo não tem como meta discutir os impactos ambientais sobre a vida dos pescadores e pescadoras artesanais nas localidades frisadas, porque isso já foi feito em outro escrito (Ramalho, 2006).
7 Os termos mar-de-dentro e mar-de-fora são definidos pelos próprios pescadores, que os empregam para diferenciar a pesca feita antes e depois da arrebentação do mar (os arrecifes). Quem passa da arrebentação é um pescador de mar-de-fora e quem pesca em rios, estuários e praia, e não chega a ultrapassar a barreira natural, trabalha no mar-de-dentro.
8 Exceto Freyre (2005) que via no senhor de engenho, no colonizador português, promotor da maior civilização tropical (o Brasil).
9 Alguns autores brasileiros classificam esse sujeito como pescador-agricultor (Diegues, 1983; Maldonado, 1986; Miller, 2012) ou de camponês (Furtado, 1987).
10 O segredo é um recurso amplamente aceito por outros pescadores, pois mostra o valor que certos homens marítimos têm para descortinar territórios produtivos, efetivar “marcas” nas águas, elaborar caminhos, deter capacidades técnicas e ser um artista do mar, que se agrega a uma habilidade para ocultar pontos de pesca do restante da comunidade.
11 A marcação é uma forma de mapeamento do mar, seus caminhos e rotas mais seguras para se atingir os pesqueiros. Sem a marcação, o mar assumiria ares de impessoalidade, jornada sem direção. É elemento universal da pesca artesanal, existindo em inúmeras regiões do globo, seja no Canadá (Acheson, 1981), seja em Países escandinavos (Andersen, 1980), seja no Brasil nos mais diversos estados (Cascudo, 1957, 2002; Forman, 1970; Furtado, 1993; Ramalho, 2006, 2012, 2016).
12 Os pesqueiros também são batizados (além de marcas) de lanços, pedras ou pontos de pesca.
13 1 milha marítima equivale a 1.852 metros. Então, para ir ao fim da plataforma costeira, navega-se cerca de 40 km mar-adentro.
14 A parede é a última grande pedra (ou arrecife), onde se situa o fim da plataforma costeira.
15 O uso comunal das águas ocorre, por exemplo no caso da pesca da tainha no sul e sudeste, sazonalmente, no inverno, reorganizando toda estrutura de gestão marítima e de sociabilidade dos pescadores artesanais, desde a sequência dos grupos que pescam - também respeitando o direito à vez - até acordos de ordenamento firmados com pescadores que desenvolvem outros tipos de pescaria na mesma praia, fato que transforma toda vida comunitária e coloca um rico dinamismo social ao reforçar laços tradicionais.
16 Esse sentimento tem diminuído entre os pescadores, ora devido às lutas das pescadoras por reconhecimento profissional, ora pelo papel que elas ocupam na renda familiar, na produção da segurança alimentar de vários lares com a captura de pescados.
17 Tive a oportunidade de encontrar barcos batizados com nomes jocosos (tua mãe, a estupradora, calcinha e hexa é luxo).
18 Isso não significa afirmar que, no mundo embarcado, inexistam conflitos, problemas e disputas. Contudo, isso não pode suplantar os laços de reciprocidade, o sentimento de irmandade, de cooperação, porque, nas águas, tudo é uma questão de vida ou morte.
19 Em Pernambuco, esta questão não é exclusiva de Itapissuma, uma vez que o município de Rio Formoso, que integra a região da Zona da Mata Sul, tem bairros de pescadores com as mesmas características referidas (por exemplo, os da Levada, Porto e Pedra).
20 Não é o objetivo aqui, mas seria interessante observar alguns aspectos que podem ser explorados a partir dessas noções dos pescadores, dentre as quais a moral do trabalho pesqueiro e o conflito com “os de fora” em termos práticos e simbólicos.
21 Presídio Agrícola de Itamaracá (PAI) e Penitenciária Professor Barreto Campelo (PPBC).

Autor notes

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