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Racionalidade(s) dos sojicultores familiares do Sudoeste Paranaense1
Angelita Bazotti
Angelita Bazotti
Racionalidade(s) dos sojicultores familiares do Sudoeste Paranaense1
Rationality of family soybean farmers of Paraná southwest
Ciências Sociais Unisinos, vol. 54, núm. 2, pp. 269-278, 2018
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
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Resumo: Os cálculos de custo de produção indicam que a viabilidade econômica da soja é maior em áreas mais extensas, onde os ganhos de escala são maiores. Entretanto, agricultores familiares persistem nessa atividade produtiva há gerações, desafiando a lógica puramente econômica da eficiência produtiva e da lucratividade. Diante disso, o objetivo geral deste artigo é compreender as racionalidades, motivações e estratégias dos agricultores familiares envolvidas na produção de soja, tendo como referência empírica a pesquisa de campo realizada no município de Capanema, situado na mesorregião do sudoeste paranaense. As evidências assim coletadas revelam um conjunto de fatores endógenos relacionados com a cultura da população rural daquela região, a detenção de um saber fazer sobre a sojicultura, a tradição e as possibilidades proporcionadas pelas características edafoclimáticas favoráveis à exploração daquela cultura. As diferentes combinações desses fatores explicam as razões e o modo como os sojicultores familiares constroem suas racionalidades para se viabilizarem na produção e permanecerem como agricultores, mesmo em meio às dificuldades inerentes à produção de soja.

Palavras-chave: agricultura familiaragricultura familiar,racionalidaderacionalidade,sojasoja.

Abstract: Calculation of production costs suggests that economic viability of soybean crop is higher in more extensive areas, where gains of scale are higher. However, family farmers have kept this activity for many generations, defying the purely economic logic of efficiency and profitability. Having this in mind, the main goal of this paper is to understand the rationality, strategies, and motivations of family farming involved in soybean production, based on a field research with farmers in Capanema, located in the southwest of Paraná. The empirical evidence gathered in the region reveal some endogenous factors related to culture of the rural population, know-how on soybean production, tradition, and possibilities given by favorable soil and climate. The different combinations of these factors explain the resilience of family farmers in growing soybean, despite the existing economic difficulties.

Keywords: family farm, rationality, soybean.

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Artigos

Racionalidade(s) dos sojicultores familiares do Sudoeste Paranaense1

Rationality of family soybean farmers of Paraná southwest

Angelita Bazotti
Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social, Brasil
Ciências Sociais Unisinos, vol. 54, núm. 2, pp. 269-278, 2018
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Recepção: 05 Março 2017

Aprovação: 21 Junho 2018

Introdução

As questões referentes à soja despertam os mais diversos interesses no Brasil por ser o carro-chefe da agropecuária nacional com papel importante para a indústria e agricultura, além de estar no centro de preocupações políticas e macroeconômicas, devido ao seu peso nas exportações. A produção de soja em alta escala tem sido interpretada como um indicador incontestável de que é uma cultura típica de grandes propriedades devido à tendência de redução do custo unitário. Deduz-se dessa forma, que a sojicultura em pequenas propriedades é inviável, por estas estarem sempre situadas num ponto abaixo do ponto de eficiência máxima no uso dos recursos produtivos e na rentabilidade. Nesses termos, a limitada extensão de área produtiva da agricultura familiar acaba elevando os custos dos insumos adquiridos em quantidades menores, privando os produtores de ganhos oriundos da compra de grandes quantidades. Ou seja, a sintonia entre grande escala na esfera industrial e comercial e aquela na agricultura acaba por excluir as operações em pequenas quantidades e limitar o poder de barganha de pequenos produtores. Essa lógica da escala associada à eficiência se estende também aos financiamentos agrícolas, uma vez que altos valores implicam em taxas de juros proporcionalmente inferiores, amparadas por garantias mais valiosas das grandes propriedades. Portanto, essa lógica perpassa todo o sistema produtivo e suas relações com os demais segmentos que compõem o agronegócio, a qual estabelece limites e desafios à agricultura familiar engajada na produção de soja.

Diante dessas dificuldades, e à luz da lógica da eficiência e do tamanho ótimo das áreas produtoras, caberia à agricultura familiar o papel de produtora de alimentos da cesta básica ou, então, de culturas em que a escala não é determinante. Entretanto, como demonstram os dados do Censo Agropecuário, parte significativa dos agricultores familiares tem se dedicado ao cultivo da soja em pequenas áreas.

Segundo Abramovay (1992, p. 214), “o besouro só voa porque ignora as leis da aerodinâmica: da mesma forma, se conhecesse teoria econômica, o agricultor abandonaria irremediavelmente sua atividade”. O autor se utiliza dessa metáfora para demonstrar que os agricultores desafiam a lógica da escala e da rentabilidade. Direcionando a análise da produção agrícola para uma perspectiva distinta daquela orientada pelos cálculos econômicos. Tal afirmação é uma referência para a presente análise sobre o plantio da soja por pequenos agricultores no Sudoeste do Paraná. Se o retorno econômico não é o ponto de sustentação da sojicultura na agricultura familiar, qual seria? Para responder a esta questão, este artigo enfatiza dimensões da vida social e cultural dos agricultores para explicar o cultivo da soja por agricultores familiares, suas estratégias mercantis e as implicações sociais de sua persistência na atividade.

A sobrevivência da agricultura familiar no meio rural tem sido objeto de ampla discussão entre os cientistas sociais, envolvendo, desde aqueles que apregoam a inviabilidade e consequente extinção das unidades familiares até os que a veem como manifestações estruturais do complexo sistema capitalista no campo. Nessa perspectiva, a persistência desse segmento é vista como parte da ampla diversidade socioeconômica e territorial da agricultura capitalista, como tal contrariando a expectativa de uniformização das relações de produção no campo. A prevalecer essa dinâmica, os cientistas sociais têm procurado compreender a racionalidade dos agricultores familiares e suas estratégias de sobrevivência e de reprodução cuja complexidade vai além dos aspectos econômicos embutidos em seu sistema de produção. Motivado por esta questão, o presente artigo tem como objetivo desvendar a racionalidade dos agricultores familiares do Sudoeste Paranaense, cujas estratégias de sobrevivência incluem não apenas a produção de alimentos básicos como feijão, milho, arroz, mas também de soja, como tal desafiando a lógica da inviabilidade econômica dessa cultura em pequenas áreas. Essa aparente discrepância se torna mais visível se levarmos em conta primeiramente a soja não tem como destino o consumo na propriedade, animal ou humano, destinando-se exclusivamente à comercialização sem nenhum processo de transformação que agregue valor. Em segundo lugar, trata-se de uma commodity com forte demanda e preço definidos pelo mercado internacional, inclusive em bolsas de valores e mercado futuro. Por fim, os agricultores dependem do mercado de insumos sendo que o agricultor familiar não produz nenhum deles. Dessa forma, os agricultores familiares, ao produzirem soja, estão expostos a condições de mercado semelhantes às da produção em escala, sem que sua baixa eficiência comprometa sua sobrevivência.

O presente artigo está estruturado por esta introdução, seguido de uma discussão sobre a racionalidade da agricultura familiar que a faz persistir na produção de soja. Na sequência, apresenta-se brevemente a metodologia da pesquisa realizada na mesorregião Sudoeste do Paraná, na qual foram identificadas as racionalidades e estratégias que mantem os agricultores familiares na produção de soja. Por fim, são apresentadas as considerações finais que buscam explicar algumas das motivações para a continuidade da produção de soja.

A racionalidade da agricultura familiar

A literatura referente à temática abordada neste artigo expressa uma preocupação em compreender o trabalho das famílias na terra, a maneira como elas produzem alimentos para o consumo e/ou a troca, a gestão de suas unidades produtivas e suas transformações. A agricultura familiar em seus diferentes espaços políticos, econômicos e sociais, tem historicamente suscitado amplo debate sobre sua viabilidade e sua reprodução social como parte das contradições que marcam o desenvolvimento capitalista da agricultura (Shanin, 1980; Marx, 1982; Wolf, 1976; Chayanov, 1981; Candido, 1982; Silva, 1997). A noção de agricultura familiar adotada neste artigo permite analisar a complexidade da unidade produtiva familiar, observando-se as ações adotadas pela família para permanecer no meio rural como produtora de soja. Uma referência importante para caracterizar esses agricultores é dada por Gasson e Errington (1993) através de seis elementos básicos: (a) a gestão é feita pelos proprietários; (b) os responsáveis pelo estabelecimento estão ligados por laços de parentesco; (c) o trabalho é fundamentalmente desenvolvido por membros da família; (d) o capital envolvido pertence à família; (e) o patrimônio e os ativos são objetos de transferência intergeracional no interior da família; e (f) os membros da família vivem na unidade familiar. Abramovay (1997) ressalta que não é necessária a presença de todos estes critérios para a unidade produtiva ser vista como de agricultura familiar.

Segundo Wanderley (1996), a agricultura familiar pode ser compreendida como aquela em que a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento produtivo. A sua principal característica está em reunir, na família, o tripé propriedade, trabalho e gestão (Chayanov, 1981; Gasson e Errington, 1993; Wanderley, 1996). Esta combinação permite a identificação de um estabelecimento familiar como, ao mesmo tempo, uma unidade de produção, de consumo e de reprodução social. Assim, a análise desse tipo de estabelecimento implica tratar a família como uma unidade sem divisão de produção, em que a família é quem detém o controle da exploração agrícola. Entende-se que neste tripé estariam as grandes coordenadas que delineiam o que se entende por agricultura familiar, não sendo uma classificação engessada. Ele dá conta de acompanhar as transformações latentes e não raras da agricultura familiar. Portanto, é importante considerar a perspectiva da heterogeneidade e do papel social desse segmento da agricultura, especialmente para compreender as variáveis relativas à organização do trabalho e da produção, à composição da renda e a outras variáveis socioeconômicas. Economicamente, a soja é viável somente em grande escala. Logo, a produção dessa commodity pela agricultura familiar incorreria no risco de torná-la vulnerável, acumulando prejuízos financeiros ou, então, dedicando-se a um produto sobre o qual ela não tem pleno controle, tanto do mercado de insumos, quanto do produto final, dado que são definidos internacionalmente.

Assim, é crucial expandir a compreensão dos aspectos econômicos e sociais avançando no entendimento da racionalidade da agricultura familiar produtora de soja que se reproduzem há décadas. Para Chayanov (1981), neste sistema econômico, que possui lógica própria, as categorias analíticas, como salário, renda e juros, não fazem parte da análise e dos cálculos dos camponeses. A família emprega sua mão de obra na terra e recebe no final o resultado desse trabalho, materializado numa certa quantidade de produtos, o que constitui sua única renda. Geralmente, não há a participação de mão de obra de outras pessoas sendo a própria família que trabalha no processo produtivo. E a quantidade de trabalho é determinada, principalmente, pelo tamanho da família e pelo grau de esforço que os membros são capazes e estão dispostos a dispender durante o ano.

Essa espécie de autoexploração pode ser identificada na relação entre a demanda familiar e a própria penosidade do trabalho. Quando surge a necessidade de maior demanda, pode-se aumentar o trabalho, permitindo que a produção da unidade econômica satisfaça a demanda familiar (Chayanov, 1981). Para Chayanov a agricultura familiar é regida por certos princípios gerais de funcionamento interno que a tornam diferentes da unidade de produção capitalista. Isso porque, diferentemente da empresa capitalista, a unidade familiar não se organiza sobre a base da extração e apropriação do trabalho alheio, ou seja, a mais-valia (Wanderley, 1998).

Nesta perspectiva teórica, a agricultura familiar é um sistema de relações sociais, culturais e econômicas no interior do capitalismo, não se baseando no trabalho assalariado e nem tendo por finalidade a maximização dos lucros. Ela tem motivações muito específicas para a atividade econômica, bem como uma concepção bastante específica de lucratividade, portando-se de forma diferente e alternativa à agricultura latifundiária e patronal. Entende-se que a agricultura familiar está em contínua transformação, por diversos motivos, especialmente para continuar se reproduzindo e sobrevivendo; porém, as questões levantadas por Chayanov (1981) permanecem e contribuem para a discussão sobre o tema.

Abramovay (1992) discute a racionalidade dos agricultores recorrendo às ideias de Johnson (1969), Tweenten (1969), Owen (1975) e Cochrane (1979), para quem os farmers americanos não agem segundo a lógica econômica convencional. Eles investem muito além do que lhes é retornado com a renda da produção e, ainda, parte significativa do trabalho dispendido na agricultura é remunerado inadequadamente. Cochrane (1979inAbramovay, 1992) observou que, em momentos de grande avanço técnico na agricultura, os agricultores passaram por graves crises decorrentes de preços muito baixos. Tempos de rápido desenvolvimento agrícola são invariavelmente períodos de angústia econômica e tempos difíceis para os agricultores. Os avanços técnicos na agricultura, que promoveram menor penosidade do trabalho e aumento da produtividade, não se refletiram em ganhos monetários para os agricultores que, mesmo assim, continuaram produzindo.

Os estudos que relatam as “irracionalidades” dos agricultores norte-americanos não devem ofuscar o fato de que eles possuem um cálculo econômico adequado ao ambiente econômico e social do capitalismo avançado em que estão inseridos. Para Abramovay (1992), o comportamento do agricultor contemporâneo exprime menos uma racionalidade específica e diferente da socialmente dominante do que uma lógica na qual uma renúncia ao ganho presente deve ser necessariamente compensada pela obtenção de retornos futuros e não aceita resignadamente como tradução econômica da natureza familiar da unidade produtiva.

Os agricultores familiares não são simplesmente uma forma ocasional, transitória, fadada ao desaparecimento, mas, ao contrário, mais que um setor social, trata-se de um sistema econômico, no qual é possível encontrar as leis da reprodução e do desenvolvimento. Essas leis se manifestam dentro da família, onde há os elementos geradores de sua conduta específica, como o balanço entre trabalho, consumo e a composição demográfica. São esses elementos que explicam as decisões econômicas das famílias e que, necessariamente, não correspondem à racionalidade capitalista. As leis de funcionamento da agricultura familiar não são explicadas em função da lógica da economia mercantil. A família tem preocupações com sua reprodução, alimentação, diminuição da penosidade do trabalho e a escolha da pauta produtiva que são ligadas à necessidade de subsistência da propriedade e ao seu costume e realidade local. Segundo Abramovay (1992) não se pode compreender a agricultura familiar através dos elementos do comportamento econômico. Por isso, enfatiza-se, neste trabalho, a importância de uma análise que abrange outros aspectos da realidade social e cultural, além da estritamente econômica, para compreender as motivações para o agricultor familiar produzir soja.

Duas lógicas na mesma dimensão

Os sojicultores familiares estão em um emaranhado multifacetado. De certos ângulos, podem ser vistos como produtores de commodities envolvidos em uma cadeia produtiva global; de outro, são produtores familiares dependentes da sua própria dinâmica para reprodução. O objetivo deste trabalho não é classificá-los e sim compreendê-los. Nesse sentido, o conceito de campesinidade, desenvolvido por Woortmann (1990) e a discussão de racionalidade formal e substantiva de Mooney (1988) contribuem para a compreensão do objeto aqui estudado.

O conceito de campesinidade deixa de lado a discussão acerca da caracterização objetiva do sujeito social e se preocupa com uma análise qualitativa através das práticas cotidianas. Woortmann (1990) esclarece que seu interesse não é afirmar que o sitiante é camponês, mas extrair da sua fala e de seus valores uma ética, uma expressão moral que é a campesinidade, e mostrar que as pessoas de carne e osso são ambíguas e se movem rapidamente. Desse trânsito entre dois mundos, resulta a campesinidade que contempla a mutabilidade, sem estar contida numa espécie de prisão cultural. Enquanto pessoa concreta, o sitiante não é radicalmente distinto de pessoas “modernas”. Ele se dedica à agricultura como prática e sabe investir o seu dinheiro. Nesse sentido, o termo campesinidade é maleável, pois nele próprio há a compreensão de que o ser humano é volátil e se transforma rapidamente. O termo trata de relações morais que permeiam vários aspectos da vida do trabalhador rural, em que campesinidade é entendida como uma qualidade presente em maior ou menor grau em distintos grupos específicos. Embora seja uma configuração modelar é preciso não esquecer que “pequenos produtores concretos não são tipos, mas sujeitos históricos e que as situações empíricas observadas, por serem históricas, são ambíguas” (Woortmann, 1990, p. 13).

Entender que cada sojicultor é um sujeito histórico que passou por diferentes situações empíricas permite compreender que há regras gerais que explicam a sua situação, mas também há aquelas individuais que se referem ao próprio sujeito específico. Algumas categorias culturais, na construção da campesinidade, seriam comuns e inter-relacionadas, como terra, família, trabalho e liberdade. E definiriam uma ordem moral encontrada nas sociedades camponesas, associada a valores e princípios, como a reciprocidade, a honra e a hierarquia. A campesinidade não diminui com a integração do agricultor ao mercado. Sua ordem social seria de caráter mais holista que individualista, pois, para os agricultores a terra não é mercadoria, mas sim patrimônio da família e garantir a sua integridade é ponto de honra para estas pessoas. Pode parecer ambíguo, mas o que se tem é o indivíduo que faz o seu uso da história, sua apropriação individual de duas temporalidades internalizadas, onde os tempos modernos são usados para restabelecer o tempo tradicional. Transita-se pela ordem econômica para realizar, como fim, a ordem moral, e com ela, a campesinidade (Woortmann, 1990, p. 19).

A campesinidade compreende que a história do agricultor é permeada pelo movimento. Portanto, nem sua história nem ele são estáticos. Diferentes estratégias como a produção para o mercado e para seu consumo contribuem para compreender que, desde os primeiros estudos sistematizados sobre unidade de produção familiar, muitas características mudaram, porém, esta ordem moral que a permeia se mantém.

Ao incorporar a mescla e o movimento, Mooney (1988), ao estudar os agricultores de Wisconsin, EUA, afirma que a racionalidade do agricultor não se encaixa perfeitamente nos moldes desenhados pelos cálculos econômicos. O autor examina como a produção e os produtores se cruzam com a estrutura social através das relações sociais. Ele utiliza a teoria weberiana para compreender a racionalização da atividade econômica em busca do lucro calculável como a mola mestra do desenvolvimento capitalista. O autor explora dois tipos de racionalidades weberianas, a formal e a substantiva, as quais contribuem diretamente para o entendimento do objeto aqui estudado. A racionalidade formal seria típica da ação econômica que procura calcular os fatores em termos monetários, através de um processo no qual, procedimentos e regras economicamente calculáveis, expandem em todas as esferas da atividade social e substituem aqueles orientados por sentimentos, tradições e regras sociais. Sentimentos, ao contrário, seriam o alicerce da racionalidade substantiva que considera estes elementos para além dos elementos econômicos. O autor demonstra a coexistência das racionalidades formal e substantiva para confirmar a inadequação do modelo econômico utilizado.

É necessário ampliar a análise da racionalidade dos agricultores, pois ela permite compreender que as estratégias dos sojicultores são permeadas por elementos tanto da racionalidade substantiva quanto da formal. Para além da racionalidade formal, variáveis da racionalidade substantiva, como sentimentos, valores, cultura e tradição, são cruciais para compreender as ações dos sojicultores familiares. Para o autor, compreender e explicar as ações e os cálculos dos agricultores apenas pela racionalidade formal é uma atitude forçada e inadequada. Tanto Mooney (1988) como Woortmann (1990) incorporam, em sua discussão, a possibilidade da mudança, de convivência e de mescla. O mesmo agricultor transita entre universos diferentes, incorporando diferentes racionalidades e estratégias do seu cotidiano.

Compreende-se, assim, que há diferenças entre as unidades, mas há interligação entre trabalho, propriedade e família que particularizam a agricultura familiar, a qual não tem o lucro na produção como o motivo principal produção. Os agricultores familiares valorizam a terra, o trabalho, as relações de amizade e reciprocidade com os vizinhos e com a comunidade, mas eles também precisam e buscam recursos financeiros para a reprodução da propriedade.

Evidências empíricas do Sudoeste: racionalidades e estratégias dos agricultores familiares

O Sudoeste se destaca entre as mesorregiões paranaenses pela predominância da agricultura familiar (90%), além de ser organizada socialmente, inserida no mercado e com amplo acesso a políticas de financiamento e comercialização. Os dados aqui analisados foram obtidos num estudo de caso realizado no município de Capanema no Sudoeste do Paraná, no período de julho de 2014 a janeiro de 2015. Primeiramente, realizou-se um Painel de Especialistas, o qual não necessita, geralmente, de grandes dispêndios financeiros e pode ser combinada com outros métodos de pesquisa, inclusive as entrevistas diretas com os agricultores. No Painel se discutiu a produção de soja e suas consequências para a dinâmica da agricultura familiar da região. Este painel tinha como objetivos listar os agricultores a serem entrevistados e fornecer um panorama geral da região sobre a agricultura familiar e a produção de soja.

O Painel contou com a participação de técnicos da EMA-TER e de cooperativas ligados à agricultura familiar, orientados sobre a metodologia e a tipologia FAO/INCRA3 para a categorização dos agricultores, com base nas quais foram selecionados os agricultores serem entrevistados. Em seguida, foram entrevistadas 28 famílias com o auxílio de um questionário semiestruturado abordando aspectos ligados aos insumos e sementes usados, o processo de comercialização da soja e o acesso às políticas públicas. Ainda, buscou-se captar a percepção das famílias sobre a cultura da soja, sobre as facilidades e dificuldades da produção, e significado do resultado monetário do processo de produção.

A análise dos cálculos de custo de produção aponta para a necessidade de grandes extensões territoriais para que a sojicultura se viabilize economicamente. Isso não é possível para a esmagadora maioria dos agricultores familiares. Então, neste cenário, se questiona como os agricultores familiares se sustentam por décadas produzindo soja? O que os mantém nesta produção? Ao não considerar a lucratividade como um fator que explique esta permanência, deduz-se a produção de soja pela agricultura familiar não pode ser analisada com base na lógica da produção em escala e dos custos de produção que são referência para grande parte dos estudos sobre a sojicultura na agricultura familiar. Entre as diferentes estratégias que explicam a permanência dos sojicultores, destacam-se a tradição e os costumes locais e familiares, o mutirão entre vizinhos, a diminuição da mão de obra e a renda gerada pela soja.

Nas primeiras décadas do século XX, a suinocultura era a atividade econômica mais importante em parte de Santa Catarina e do Paraná. Naquele período, os porcos eram criados soltos e conduzidos a pé até os frigoríficos, em viagens que duravam dias, por homens que se especializaram nessa atividade. O Sudoeste Paranaense tornou-se uma das principais regiões criadoras, onde os “caboclos” criavam os suínos na entressafra do mate (Bach, 2009). Mas, com o passar dos anos, a criação de suínos passou a se dar em regime de confinamento, no qual a alimentação era feita com a soja, cujo cultivo na região passou a ser feito por influência dos migrantes gaúchos. Nas propriedades, a produção suína era destinada à comercialização, e a soja, para o consumo dos animais, o que possibilitou a instalação de frigoríficos e fábricas de ração na região (Bach, 2009). Porém, no final da década de 1970, quando a suinocultura entrou em crise, a soja se tornou a principal atividade voltada para comercialização, como relatado por um dos agricultores entrevistados, para o qual essa mudança foi vivida por sua família. Seus pais produziam soja nas décadas de 1970 e 1980 para alimentação animal, mas com o passar do tempo essa produção voltou-se para a comercialização.

A tradição e os costumes foram apresentados pelos agricultores como elementos determinantes para a atividade agrícola. Muitos deles afirmaram que aprenderam com a família a plantar soja, ou, então, que “sempre” plantaram soja, são acostumados e dominam as técnicas relativas à produção, e que migrar para outra cultura totalmente diferente lhes exigiria um esforço e um investimento muito grandes. Evidência disto é o longo período em que essa cultura tem sido desenvolvida na região, permanecendo mesmo com as oscilações de preços recebidos.

O conhecimento e o costume de produzir soja podem ser considerados como uma herança cultural/produtiva passada intergeracionalmente e que faz parte da racionalidade dos atuais sojicultores, habilitando-os na produção. Esta herança é um diferenciador entre os agricultores familiares e os patronais, pois os primeiros, apesar de estarem plantando uma commodity, não possuem a prática de consultar a bolsa de Chicago ou a de Mercadorias e Futuros (BM&F) para optar pela produção de soja na safra deste ano. Ou seja, não são investidores produzindo o que o mercado internacional se dispõe a comprar. Para eles, plantar soja não é uma atitude maximizadora de lucros ou um resultado de um cálculo econômico maximizador. Eles optam por um produto com liquidez, que tenha mercado comprador, e estão parcialmente informados sobre o mercado global. As decisões são fundamentalmente pautadas na sabedoria familiar, na confiança de saber o que estão fazendo, no que aprenderam ainda na infância, no fato de possuírem o domínio do ciclo produtivo, preservando os ensinamentos repassados e incorporando as novas tecnologias que o mercado oferta.

Pode-se entender que a soja é produzida de forma moderna dentro de uma estrutura tradicional, ou seja, os sojicultores familiares têm à sua disposição e utilizam um conjunto de fatores de produção extremamente moderno, como as sementes, máquinas e herbicidas. Porém, essa produção se dá em uma estrutura extremamente tradicional, como a família, a mão de obra familiar, a comunidade e a herança cultural adquirida de seus pais. A família acompanhou e incorporou muitas das mudanças na produção. Os mais velhos, especialmente, fazem questão de relatar as disparidades do presente em relação ao passado (décadas de 1960 e 1970). No passado, a colheita de soja promovia uma grande preparação familiar: carneava-se porco para garantir a carne e guardava-se lenha, pois se sabia que os próximos dois ou três meses seriam totalmente dedicados à colheita de soja. Segundo uma entrevistada, “agora vem a máquina e, em dois, três dias, faz tudo”, ou seja, o trabalho que demorava meses agora é feito em poucos dias, ou em um dia, pela colheitadeira.

Os novos processos introduzidos na agricultura familiar - trabalho mecanizado, tecnologias produtivas e transgenia - e o funcionamento da propriedade precisam ser entendidos dentro de uma dinâmica na qual cada tomada de decisão importante “é o resultado de duas forças, uma representando o peso do passado e da tradição e a outra, a atração por um futuro materializado pelos projetos que ocorrerão no porvir” (Lamarche, 1993, p. 19). Este pé no passado e olho no futuro são elementos importantes que trazem ao debate a tradição, mas sem perder de vista os novos rumos que o futuro pode apresentar para os agricultores familiares. Há, portanto uma conjugação de costumes locais, reciprocidade entre vizinhos, de saber fazer que se soma à mercantilização, externalização e comoditização. Por isso, compreender este fenômeno é um desafio que vai além da aparência dos fluxos econômicos, envolvendo uma dinâmica que envolve os processos produtivos e fundamentalmente o comportamento e as estratégias familiares de sobrevivência.

O trabalho de campo explicitou a persistência do mutirão que é a ajuda mútua entre os vizinhos, por meio da troca de dias de trabalho, o que resulta na diminuição dos custos de produção e reforça os laços de amizade entre os participantes. O mutirão, apesar de ser um sistema antigo, contribui para vencer um desafio relativamente novo: a falta de mão de obra familiar. O êxodo rural e a queda da taxa de fecundidade fizeram com que o tamanho das famílias rurais diminuísse, e, consequentemente, a agricultura familiar, caracterizada pelo uso da sua própria mão de obra na propriedade, depara-se com a necessidade de desenvolver estratégias para se viabilizar com esse novo arranjo. Nesse sentido, sem que tradições sejam abandonadas, a tecnologia, a topografia da região e as máquinas que reduzem a necessidade de mão de obra, propiciaram a permanência da soja como atividade típica de pequenos produtores famílias na região.

Na teia da vida social e produtiva dos agricultores, os fios “modernos” e “antigos” se entrelaçam, e o mutirão, fenômeno antigo estudado por Antonio Candido (1982) e Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973), torna-se uma expressão desse entrelaçamento. Tradicionalmente, o mutirão incide essencialmente na reunião de vizinhos, convocados por aquele que necessita de ajuda para efetuar determinado trabalho e que, em retribuição, oferece-lhes alimento, e cujo encerramento é marcado por uma festa. Não há remuneração direta, a não ser a obrigação moral do beneficiário de corresponder aos chamados eventuais dos que o auxiliaram. O mutirão, além do atendimento rápido e imediato de uma tarefa, também reforça os laços de vizinhança, amizade, pertencimento e de comunidade. No Sudoeste, encontrou-se, nesta pesquisa, um movimento semelhante e que recebe uma nova configuração, pois, em vez de trocar dias de serviço braçal, como identificado por Candido (1982) e Queiroz (1973), os sojicultores trocam horas/dias de máquinas agrícolas.

No Sudoeste, em momentos de grande demanda de serviço, como plantio e colheita, a família que possui apenas um trator pode contar com dois, três ou mais. Os vizinhos se reúnem e trabalham em uma propriedade, e depois seguem o trabalho em outras, o que provoca, muitas vezes, a realização de toda a plantação ou colheita em um dia. Como o agricultor evita pagar para terceiros a realização do trabalho, este fenômeno é uma das suas estratégias para viabilizar a produção de soja.

A época de fazer silagem para a alimentação animal é outro momento de grande demanda do maquinário. A atividade requer o uso de tratores; assim, com mais de um trator, o trabalho se torna muito mais rápido. A dependência que a agricultura tem do clima torna o mutirão ainda mais importante, principalmente em épocas de plantio, colheita ou de silagem, quando um dia pode fazer toda a diferença para o sucesso da produção.

As famílias que recebem o mutirão geralmente possuem apenas um trator que serve à propriedade e vão trocando dias de serviço e migrando entre as propriedades envolvidas e demandantes do serviço. Isto possibilita que as famílias consigam cumprir a demanda produtiva mantendo apenas um trator e não contratando empregados, dois fatores que encareceriam a produção, considerando ainda que estes agricultores normalmente não possuem demanda de trabalho que exija dois tratores.

De acordo com os agricultores pesquisados, atualmente, eles apresentam uma melhor condição financeira do que há alguns anos, e isso se reflete no mutirão. Um dos entrevistados ressaltou que naquela semana ocorreria um mutirão na sua propriedade e ele serviria churrasco para o almoço, e cerveja, no final do trabalho. Na região, o churrasco tem uma simbologia de festa e de fartura, e oferecê-lo acompanhado de cerveja é sinal de abundância e, também, de gratidão, algo inimaginável em tempos remotos, em vista das dificuldades financeiras. Da mesma forma, esta prática não é comum nas grandes propriedades onde as relações de trabalho, assalariadas ou não, se dão num ambiente social capitalista desprovido de laços de cooperação e solidariedade. O mutirão realiza com rapidez as atividades e também intensifica os laços de amizade e reciprocidade entre as famílias participantes. Pode-se considerar que o mutirão observado no Sudoeste se atualizou seguindo as transformações do mundo contemporâneo. Tanto os agricultores como os especialistas reunidos no painel relataram a existência deste fenômeno em que uma família ajuda a outra, agilizando o processo produtivo e diminuindo custos, num processo de reciprocidade.

O mutirão reforça a ordem moral formada pela honra, reciprocidade e hierarquia que são entrelaçadas no que Woortmann (1990) chamou de campesinidade. É importante analisar essas relações a partir desse conceito, dado que não categoriza os agricultores, mas sim os analisa como detentores de uma ordem moral diferenciada. Segundo um dos entrevistados “Tem três, quatro vizinhos que é só dar um grito que estão tudo lá ajudando. Não precisa vida melhor, não quero vida melhor”.

Os sojicultores do Sudoeste cultivam elementos de reciprocidade e ajuda mútua, como o mutirão ou a troca de alimentos entre vizinhos, o que demonstra uma preocupação para além daquelas mercantis. São estes elementos, tão presentes na região, que os diferenciam dos agricultores patronais. Diversos motivos, como a história de lutas, a concomitância entre o local de moradia e de trabalho, a transferência de terras entre gerações, o cultivo de valores, como amizade e reciprocidade entre os vizinhos - “vizinho é o primeiro parente da gente” -, formam um tecido social forte e diferenciado. O mutirão é um dos elementos desse tecido social e pode ser entendido como uma das estratégias dos sojicultores familiares que viabilizam a produção de soja na agricultura familiar, diminuindo os custos com mão de obra e maquinário.

Estratégias produtivas diante dos recursos escassos: mão de obra familiar e soja

A agricultura familiar se caracteriza por reunir na família o tripé gestão, propriedade da terra e trabalho, em que cada um é fundamental para sua reprodução. Entretanto, o último é o que, atualmente, mostra-se mais frágil e preocupante. A disponibilidade de mão de obra está diretamente ligada a um dos cálculos mais importantes identificados por Chayanov (1981). Isto é, o balanço entre trabalho e consumo, em que o tamanho da família incide diretamente na quantidade de trabalho e de consumo na unidade familiar. Friedmann (1978) também reconheceu, no cruzamento de aspectos demográficos e econômicos, a centralidade para a reprodução das unidades familiares. A oferta de trabalhadores familiares cria uma inflexibilidade na quantidade de mão de obra disponível para a produção, influenciando diretamente no trabalho a ser realizado na unidade produtiva.

As mudanças demográficas do Sudoeste apontam que a queda da taxa de fecundidade e os intensos fluxos migratórios conduziram à diminuição do número de jovens, ao envelhecimento populacional e, consequentemente, a famílias menores. Tradicionalmente, as famílias rurais possuíam muitos braços para o trabalho na lavoura, razão pela qual, inclusive, elas não tinham dificuldades em se dedicar às produções que demandavam mais força de trabalho. Contudo, estas transformações, que ocorreram a partir da década de 1970, tiveram implicações produtivas e são centrais na compreensão das estratégias dos sojicultores estudados. Eles reconhecem na soja pouca demanda na quantidade de mão de obra, o que a torna uma produção atrativa para a agricultura familiar. Segundo um deles a falta de mão de obra o faz produzir o que é “mais fácil” e a soja pode ser cultivada com o uso do maquinário e sem contratar terceiros, outra dificuldade da região.

A falta de mão de obra reduz o leque de opções produtivas, fazendo com que a família se readéque para continuar na produção agrícola. Há atividades que requerem muito serviço manual e acabam sendo descartadas pelas famílias. Um entrevistado relatou a tentativa de produzir hortifrúti, porém a demanda de mão de obra o fez desistir e focar na produção de soja. O agricultor demonstra interesse em outras culturas, mas a mão de obra é um limitante “Nem todos (os agricultores) plantam soja, tem aqueles que produzem leite. Quem tem mão de obra produz leite. Se eu tivesse mão de obra poderia estar produzindo leite, mas não tenho”. As opções produtivas acabam sendo limitadas pela disponibilidade de mão de obra. Não é prerrogativa do Sudoeste a diminuição do tamanho das famílias, seja pela saída dos jovens seja pela queda de fecundidade, o que é um problema generalizado que atinge a agricultura familiar como um todo e tem um grande impacto sobre a produção agrícola.

A menor oferta de mão de obra, tanto interna quanto externa à família, é uma variável de peso sobre a decisão nos rumos da propriedade. Além das famílias estarem menores, também estão mais envelhecidas, resultando num quadro de menor disponibilidade de força de trabalho. Nesse cenário, os entrevistados enfatizam que o trabalho mecanizado permite que uma pessoa realize o que antes requisitava toda a família.

A agricultura familiar do Sudoeste, em um curto espaço de tempo, teve uma queda significativa na oferta de mão de obra e aumento de máquinas agrícolas para a produção de grãos. Assim, como a soja tem todo o processo produtivo mecanizado e os agricultores têm acesso às máquinas, o seu plantio acabou sendo favorecido, e ela é preferida a outras culturas, como hortaliças e leite, que demandam mais mão de obra.

Retoma-se aqui o questionamento inicial deste trabalho que surgiu dos estudos sobre os custos de produção que afirmam que a soja só é viável economicamente em grandes extensões territoriais. As metodologias de cálculo de custos de produção utilizadas pelas diversas instituições e autores (IMEA, 2014; Deral, 2014; Hirakuri e Lazzarotto, 2011) são muito semelhantes, e, geralmente, os itens considerados são os seguintes: sementes, fertilizantes, defensivos, operação com máquinas, mão de obra, assistência técnica, transporte da produção, beneficiamento, classificação, armazenagem, despesas administrativas, impostos, juros do financiamento, depreciação, manutenção periódica, seguro do capital fixo e custo da terra. Além de Consumo Intermediário (CI), como adubos, óleo diesel, sementes, agrotóxicos, pneus, etc., somam-se ainda os custos de aluguel de equipamentos ou de contratação de serviços. Considera-se também a depreciação do Capital Fixo (CF), que são as máquinas, implementos, meios de transporte, equipamentos para processamento de produtos, instalações (galpão, estábulo, etc.), equipamentos de irrigação, ordenhadeira, animais de tração, etc. “Embora esses bens não sejam inteiramente consumidos no processo, eles são parcialmente transformados, pois sofrem desgaste e perdem valor anualmente. Então, a depreciação do capital fixo (D) deve ser considerada” no cálculo final além dos impostos, dos juros, dos salários e do arrendamento da terra (Garcia Filho, 1999, p. 43).

Esse conjunto de despesas compõe os cálculos do custo de produção que concluem sobre a inviabilidade da produção de soja na agricultura familiar ou onde as áreas de terra não sejam significativas. Porém, os agricultores contabilizam e avaliam se estão obtendo lucro com a soja. Na realidade os cálculos usando as variáveis da teoria microeconômica não são suficientes para explicitar as motivações para que dos sojicultores familiares continuem na atividade por décadas, mesmo com baixo retorno financeiro.

Durante a pesquisa de campo, a maioria dos agricultores afirma ser o rendimento da soja um dos principais motivos para produzi-la. O lucro, segundo eles, varia de 35% a 50%, e a renda aparece como indutora para a produção de soja, havendo grande satisfação quanto a sua produção e o seu rendimento, o que vai de encontro ao que afirmam os estudos econômicos. Essa aparente contradição é explicada pelo fato de que a lógica do agricultor difere daquela dos cálculos econômicos, pois o agricultor considera lucro a renda líquida do que “sobra” entre a produção vendida e os insumos utilizados, e não um resultado da eficiência como indicado pelos cálculos de custo de produção. Por que há um descompasso entre o cálculo de produção e os cálculos dos agricultores familiares? A explicação básica foi dada por Chayanov (1974) ao afirmar que a racionalidade camponesa se diferenciava da racionalidade econômica. Em vista disso, os agricultores, em seu sistema econômico, possuem lógica própria, na qual categorias analíticas, como salário, renda e juros, não fazem parte da análise e dos cálculos. Os sojicultores familiares fazem um cálculo do custo da produção em que as diferentes variáveis supracitadas não são contabilizadas.

O agricultor, como já analisado por Mooney (1988) não se encaixa perfeitamente nos moldes desenhados pelos cálculos econômicos, baseados no funcionamento da agricultura empresarial, mas sim na convivência de duas racionalidades, a substantiva e a formal. Neste estudo, entende-se que o sojicultor transita entre elas considerando elementos econômicos, mas também sentimentos, tradições e regras. Nos cálculos dos agricultores, não há a complexidade do custo de produção dos economistas. A declaração de um agricultor exemplifica bem essa diferença e ilustra a sua racionalidade: “despesa é tudo que sai do bolso”, assim ele considera como cálculo de despesa o que ele precisa desembolsar dinheiro para adquirir: semente, diesel, fungicida, inseticida, adubos, ou seja, insumos em geral. A maioria dos agricultores desconta do valor recebido pela venda, os custos dos insumos usados na produção, o restante é considerado lucro.

As despesas com máquinas são contabilizadas quando é necessário pagar para um terceiro. Os fatores como a depreciação e custo da hora de máquina, quando própria, não são calculados. As diferentes estratégias dos sojicultores para permanecerem na produção podem parecer ambíguas, como afirma Woortmann (1990), mas o que acontece é que eles transitam entre dois universos: o moral e o econômico convivendo com um misto de moderno e tradicional. A mesma pessoa perpassa por dois diferentes mundos. Perceber essa movimentação entre a ordem econômica e a moral contribui para compreender as racionalidades dos sojicultores do Sudoeste, dado que estes são orientados pela própria reprodução familiar. A mão de obra familiar não dispõe de salário - “não se paga por ela” -, e os agricultores não a consideram no cálculo dos custos de produção. Um entrevistado ressalta que “eu desde pequeno acostumei que despesa é aquilo que a gente gasta, serviço nosso não é contado como despesa. Então é aquilo que a gente gasta com plantio, pra cuidar, veneno, pra cuidar do bicharedo, colheita, frete. Pra nós isso é o gasto. O nosso serviço não conta”.

A remuneração recebida pelo trabalho é o que resta entre a receita da produção e as despesas desembolsadas, que é certa quantidade de produtos ou de dinheiro. A quantidade de trabalho é determinada principalmente pelo tamanho e força disponível na família. Há uma autoexploração que se dá equilibrando a demanda familiar e a própria penosidade do trabalho. A soja tem características importantes nesse balanço, visto que é considerada uma atividade de baixa penosidade e com retorno financeiro. A agricultura familiar é conduzida por certos princípios gerais de funcionamento interno (Chayanov, 1981; Wanderley, 1998) que a tornam diferente da unidade de produção capitalista. A unidade de produção não se organiza sobre a base da exploração do trabalho alheio, da mais-valia, sendo que o proprietário dos meios de produção utiliza sua força de trabalho para o processo produtivo com um cálculo entre a mão de obra disponível e o que será produzido.

Para entender porque estes agricultores persistem na produção de soja é importante considerar outros fatores para além daqueles econômicos, assim como Mooney (1978) apontou para a racionalidade substantiva. É preciso ponderar sentimentos, valores e maneiras de pensar, que conformam a racionalidade dos agricultores familiares. Buscar compreender e explicar as suas ações e seus cálculos apenas pela racionalidade formal é uma atitude forçada, inadequada e simplista. Considerar a coexistência de duas racionalidades - formal e substantiva - possibilita compreender que o mesmo agricultor acessa financiamentos governamentais por conta dos juros subsidiados e do seguro agrícola, atitudes compreensíveis à luz da economia, mas que são determinadas por razões não contempladas no cálculo de custos a exemplo da mão de obra familiar dispendida na produção.

Simplificar os custos, não contabilizar a mão de obra e nem o uso da terra, entre outras atitudes podem ser entendidas como estratégias que explicam a continuidade dos agricultores familiares na produção de soja em suas áreas de terra reduzidas e sem produção em escala. Enfim, a unidade familiar de produção está em constante movimento, em adaptação às mudanças impostas pela sociedade e pelo mercado, em função das quais nem sua história e nem suas estratégias são estáticas. Faz-se necessário compreender os costumes, o mutirão, a rotação de culturas, a baixa demanda por mão de obra, as facilidades para comprar máquina e a composição da renda como fatores que sustentam a produção de soja entre os agricultores familiares.

Considerações finais

Os custos de produção estimados pelos estudos econômicos consideram itens diferentes daqueles observados pelos sojicultores que contabilizam como despesa somente os recursos em que necessitam realizar algum dispêndio financeiro. Fatores como depreciação do maquinário, custo de oportunidade, juros e remuneração pela força de trabalho não são contabilizadas. Essas diferenças expressam nuances da racionalidade da agricultura familiar e é uma das explicações para o descompasso entre os estudos de viabilidade econômica e da afirmação dos entrevistados quanto à lucratividade da soja nas pequenas propriedades. Para os agricultores pesquisados o “lucro” da produção é resultado do valor bruto da venda, após o desconto dos gastos desembolsados durante o processo produtivo. As explicações pela permanência dos sojicultores familiares não ficaram circunstanciadas apenas aos fatores econômicos; abarcam também aspectos demográficos, culturais e sociais, sem os quais seria impossível compreender a dinâmica encontrada no Sudoeste. Os agricultores pesquisados gerenciam um conjunto de estratégias e motivações para persistirem e se reproduzirem na sojicultura.

Constatou-se que a quantidade de trabalho e conformação familiar determinam o tipo de produção e que para as famílias menores a soja se apresenta como uma alternativa atrativa, pois exige pouca mão de obra num processo de trabalho de baixa penosidade e mecanizado. A permanência na produção é reforçada por dimensões histórico-culturais que se manifestam na tradição de plantar soja e no saber fazer desenvolvido entre os produtores. Uma das expressões da tradição da região é o mutirão que agiliza o trabalho e diminui os custos da produção além de reforçar elementos de reciprocidade entre as famílias e de celebração do trabalho, reforçando os laços de amizade e de comunidade, elementos estruturadores do cotidiano dessas famílias.

Os fatos expostos evidenciam a importância de analisar estes sojicultores sob a noção da agricultura familiar, em que as decisões são tomadas considerando o conjunto da família e os interesses e necessidades dos seus membros. A racionalidade de um agricultor familiar não é a de um investidor. As decisões familiares são pautadas em outros valores e preocupações que não são os estritamente econômicos, não são baseadas apenas nos sinais do mercado internacional ou na bolsa de valores. Mas, muito mais, nas demandas e opções familiares, como a mão de obra disponível, as rendas não agrícolas e a penosidade do trabalho.

Esses diferentes elementos realçam o fato de que as unidades de produção familiares são também unidades de resistência. Há séculos, elas resistem e se transformam para persistir no sistema capitalista. Os sojicultores familiares estudados não são diferentes, eles foram se metamorfoseando nas últimas décadas para se reproduzirem, conseguindo permanecer na atividade e melhorar a qualidade de vida da família, sendo a soja um elemento fundamental.

Material suplementar
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Notas
Notas
1 Esse artigo é oriundo da minha tese de doutorado, Estratégias e racionalidades dos sojicultores familiares do Sudoeste Paranaense (Bazotti, 2016). Agradeço ao Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (Ipardes) pelo apoio à pesquisa e a leitura e comentários dos professores Nilson Maciel de Paula e Carlos Guilherme Adalberto Mielitz Neto.
3 A tipologia usada considera o grau de especialização do estabelecimento. Ela é feita a partir do cálculo considerando se o valor total da produção foi maior que zero. Assim, o grau de especialização do estabelecimento agropecuário foi obtido por meio do quociente entre o Valor da Produção do Produto Principal e o Valor Total da Produção. Assim, os estabelecimentos foram classificados em: muito especializado (caso o grau de especialização do estabelecimento agropecuário tenha sido = 1), especializado (<1 e > ou =0,65), diversificado (<0,65 e > ou = 0,35), muito diversificado (<0,35 e > ou = a zero) (IBGE/MDA, 2014).
Autor notes

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