Resenha
| BIANCHETTI L., SGUISSARDI V.. Da universidade à commoditycidade: ou de como e quando a educação/formação é sacrificada no altar do mercado, o futuro da universidade se situaria em algum lugar do passado. 2017. Campinas. Mercado de Letras. 124 ppp. |
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Recepção: 21 Janeiro 2018
Aprovação: 25 Junho 2018
É sabido que desde meados da década de 1970, as configurações do tecido social têm tomado rumos, até então, inéditos na história contemporânea, especialmente se atentarmos para a crise do Estado de Bem-Estar Social, a crise do Petróleo, para o movimento de Maio de 1968, dentre outros eventos não menos relevantes. Mudanças que têm refletido significativos impactos sociais a partir da emergência dos ideais neoliberais que começaram a ganhar terreno com as eleições de Margaret Tatcher, ao final da década de 1970, na Inglaterra e Ronald Reagan nos EUA, no início da década de 1980.
Mediante a isto, pode-se observar uma alteração na atuação do Estado que tem impactado inclusive o campo educacional, mais especificamente, a educação superior. A radicalização do individualismo, a defesa de um Estado mínimo, a partir de reformas fiscais, redução de gastos sociais e aumento de privatizações caracterizam esse turbulento cenário socioeconômico (Anderson, 1995).
Esse é o grande contexto no qual Lucídio Bianchetti e Valdermar Sguissardi se baseiam para elaboração da obra Da universidade à commoditycidade: ou de como e quando a educação/formação é sacrificada no altar do mercado, o futuro da universidade se situaria em algum lugar do passado, publicada pela editora Mercado de Letras, em 2017. Indubitavelmente um livro que vem muito a contribuir para as pesquisas sobre a relação entre mercado e educação superior, principalmente por lançar um olhar crítico, debruçados na ideia de mercantilização, ou como os autores utilizam “commoditycidade” do ensino superior/universidade.
Logo na introdução os autores abordam questionamentos que permitem vislumbrar o caráter crítico do presente livro. Nas palavras de Bianchetti e Sguissardi (2017, p. 16, grifos dos autores):
[...] A permanecer este quadro de escalada commodityzante, o que restará de superior na educação superior brasileira? O que restará de educação na educação? Qual será o poder de barganha, com seus patrões, dos trabalhadores, munidos de uma formação, no mínimo, duvidosa, em mercado de trabalho mutante e cada vez mais exigente?
Tal perspectiva ascende outro alerta para esse processo de mercantilização e, consequentemente, para perda do caráter crítico da educação superior brasileira: os recentes desmontes das Universidades Públicas, como a UERJ, no Rio de Janeiro, atreladas à “modernização” da CLT e demais reformas fiscais impostas pelo atual executivo federal. Ora, uma universidade que forma apenas para o mercado de trabalho, tomando a educação como produto, com uma visão clientelista, sem preocupação com a formação cidadã, seria peça fundamental para a consolidação dos ideais neoliberais no campo da educação, priorizando, assim, as dinâmicas do mercado e não mais o saber crítico em si.
Nesse sentido, o livro está dividido em três capítulos, além da introdução e da conclusão. Capítulos que se caracterizam por fácil leitura e compreensão, face aos argumentos apresentados pelos autores. No primeiro capítulo, intitulado “Universidade, tutelas e políticas educacionais: da instituição medieval à moderna. Alguns antecedentes da situação atual”, eles procuram situar o leitor no espaço-tempo a fim de relacionar o tema do livro ao seu contexto histórico, destacando o surgimento das universidades medievais e suas nuances até a formação moderna da universidade. Segundos os autores, “dir-se-ia que esse lócus espacio-temporal chamado universidade caracteriza-se como um espaço-tempo colonizado” (Bianchetti e Sguissardi, 2017, p. 13). Ressalta-se, portanto, que dentro dos limites da obra, a apresentação do macro panorama do surgimento e consolidação das universidades, do período medievo à modernidade, é de suma importância para que se possa compreender esse processo de colonização e “commoditycidade” do conhecimento no ensino superior.
Já no segundo capítulo, “Brasil: de instituições de ensino superior tuteladas -passando por experiências fundantes - à regulação”, os autores discutem a historicidade do processo de surgimento das universidades brasileiras. O capítulo se destaca, assim, por trazer toda a riqueza de um debate acerca do processo histórico das universidades para dentro do contexto brasileiro. Ademais, Bianchetti e Sguissardi (2017) enfatizam o que denominam de “três experiências fundantes (e fugazes!) de universidade ou ‘desvios’ de trajetória”, quais sejam: a Universidade de São Paulo (1934); a Universidade do Distrito Federal (1935); e a Universidade de Brasília (1962). São modelos exemplares, segundo eles, de educação superior/universidade, posto que eram o que o Brasil tinha de melhor em termos de instituições universitárias, justamente por possuírem um caráter mais crítico.
Ainda em tempo, no segundo capítulo, os autores discutem a aposta brasileira na pós-graduação stricto sensu para a renovação e para reconstrução da universidade brasileira e para melhoria da/na formação de professores. Para tanto, eles lançam olhares para o parecer 977/65 do Conselho Federal de Educação, o qual regulou a pós-graduação stricto sensu no Brasil.
No terceiro e último capítulo do livro, chamado de “...À commoditycidade”, Bianchetti e Sguissardi (2017, p. 76) definem e exploram a ideia do principal conceito da referida obra: “commoditycidade”. Com efeito,
a ‘commoditycidade’ resumiria essa nova característica das Instituições de Educação Superior que grassam País a afora, especialmente nos centros urbanos mais populosos, onde a presença de clientela, seja pelo número, seja pela pressão para ‘diplomar-se’, está assegurada.
Frente a isto, pode-se inferir que “commoditycidade” está intimamente relacionada à ideia de mercantilização da educação superior no Brasil, onde houve uma rápida e expressiva expansão, sobretudo, das universidades de cunho privado, público-quase-privado ou ainda o privado-mercantil nas últimas décadas. Para ilustrar tal perspectiva, os autores utilizam o exemplo do Estado de Santa Catarina, pelo fato de sua representatividade peculiar em relação à expansão do ensino superior brasileiro. Vale ressaltar que a partir do modelo catarinense, eles conseguem, em grande medida, dar conta daquilo que seria a realidade brasileira da “commoditycidade” da educação em nível superior.
Em tempo, destaca-se o importante adendo que os autores elaboram sobre a atuação do Estado nesse processo de mercantilização da educação superior. Nesse sentindo, há, segundo eles, uma mudança de um Estado educador, que passa gradativamente a ceder espaço para um Estado avaliador, caracterizado por terceirizar “a responsabilidade por aspectos essenciais da educação, sem contar a metamorfose pelo qual passa o processo de avaliação, perdendo esta a característica de ser formativa, para transformar-se em reguladora, controladora, rankeadora, etc.” (Bianchetti e Sguissardi, 2017, p. 87).
Ainda sobre o terceiro capítulo, Bianchetti e Sguissardi (2017) problematizam “a ida de ‘empresas de educação’ à Bolsa de Valores, oligopolização na educação superior e criação do INSAES”. É nesse contexto que vem à tona, de forma mais clara, a materialização da educação como mercadoria a partir da ampliação do ensino privado mercantil. Tal pressuposto é resultado, conforme os autores de dois grandes fatos, a saber: a abertura de capital das empresas educacionais na BM&F Bovespa, o qual é complementado pelo segundo: a produção de monopólios e oligopólios a partir da aquisição, fusão e, até mesmo, incorporação entre algumas das maiores corporações do setor educacional. Para Bianchetti e Sguissardi (2017, p. 89-90), “essa decisão, comum nas estratégias das empresas comerciais, ao ser aplicada à compra e venda de um produto chamado ‘educação/ensino’, transforma esse ‘produto’ em mercadoria/commodity, levando ao paroxismo a expressão ‘mercantilização da educação’”.
A guisa de conclusão, salienta-se o argumento dos próprios autores no que tange às consequências que a mercantilização da educação pode causar à formação crítica e cidadã:
Quando a educação se torna uma mercadoria, a baixa qualidade formativa não somente é prioridade, como passa a ser uma necessidade. Afinal, quanto maior o exército de analfabetos, ou analfabetos funcionais, maiores serão as chances de oferecer serviços em forma de cursos fast food. E desta maneira, serviços ‘educacionais’ compensatórios e voltados aos interesses imediatos de empresa passam a ser o cânone, descaracterizando a quase milenar proposta/missão da hoje (ex) universitas (Bianchetti e Sguissardi, 2017, p. 105).
Diante do exposto até aqui sobre o livro de Bianchetti e Sguissardi, ressalta-se, novamente, sua fácil leitura e compreensão, sobretudo para aqueles leitores que já estão familiarizados com a temática proposta pelos autores. É uma obra que, em pouco mais de cem páginas, consegue oferecer subsídios a fim de se pensar a educação superior para além da lógica mercantil, a qual opera no mundo contemporâneo, especialmente, no ensino superior brasileiro, conforme é ilustrado pelos autores. Além de colocarem em evidência a perspectiva pela qual a educação brasileira vem sendo acometida, eles conseguem, dessa forma, desnaturalizar e problematizar a concepção de educação como uma mercadoria, mostrando o quanto esse cenário mercantil, que tem se desenhado, é extremamente preocupante para uma nação que deseja formar cidadãos críticos e pensantes de suas realidades. É por isso que se concorda com a afirmação dos autores de que o futuro da universidade estaria em algum lugar do passado, justamente por ter praticamente perdido seu caráter inicial de formar criticamente e não somente para o mercado.
Referências
ANDERSON, P. 1995. Balanço do neoliberalismo. In: E. SADER; P. GENTILI (org.), Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 9-23.
Autor notes
gabrielbandeiracoelho@yahoo.com.br