Resenha
Domenico Losurdo e as revoluções marxistas
Domenico Losurdo and the marxist revolutions
| LOSURDO Domenico. Fuga da história? A revolução russa e a revolução chinesa vistas de hoje. 2004. Rio de Janeiro. Revan. 206 páginaspp. |
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Recepção: 12 Janeiro 2019
Aprovação: 29 Março 2019
Comunismo; Socialismo; Revoluções; União Soviética; China
Communism; Socialism; Revolutions; Soviet Union; China
O filósofo italiano Domenico Losurdo possui vasta obra científica dedicada à análise e à desconstrução de inúmeros mitos políticos modernos tornados, aos olhos da crítica internacional, verdades praticamente inquestionáveis, apesar de pouco fundamentadas. Em “Fuga da história?”, Losurdo mantém sua tradicional postura de questionar os ditos mitos, porém direciona o debate mais incisivamente ao campo do marxismo, mirando as posturas políticas e teóricas de vastos setores marxistas contemporâneos diante do balanço histórico das revoluções socialistas do século XX, em especial as grandes revoluções soviética e chinesa.
Logo no prefácio, Losurdo explicita o direcionamento de suas críticas aos marxistas com posturas “autofóbicas” frente às ditas revoluções, considerando a não reivindicação política dos legados históricos dos árduos processos de desenvolvimento socialista do século XX como uma veemente postura de capitulação, bem como de renúncia a uma identidade autônoma do movimento comunista. Ao fenômeno da “autofobia”, considerado pelo autor como recorrente nas análises que privilegiam a perspectiva da “traição dos ideais” das revoluções socialistas, Losurdo contrapõe a necessidade da autocrítica, tendo como pressuposto a reconstrução da identidade comunista a partir da compreensão dos contraditórios e complexos rumos tomados pelas distintas experiências socialistas até hoje realizadas. E é exatamente visando à construção desta perspectiva autocrítica que o autor desenvolve a obra em questão, questionando ponto-a-ponto as estruturas teóricas que dão sentido às teses críticas destas revoluções, mas sem deixar de abordar debates primordiais ao conjunto da teoria marxista, como o conceito de Estado, a atualidade do marxismo, a centralidade da questão nacional e o balanço dos desafios impostos ao movimento comunista na atual quadra histórica.
Contrastando à tônica marxista contemporânea de negação da experiência soviética, Losurdo ressalta a necessidade de consideração do “Estado de exceção permanente” ao qual foi submetido seu processo de construção socialista, destacando que a negação da imposição deste Estado de exceção constitui a pedra angular das análises marxistas distantes da busca da materialidade dos processos. Supondo uma dita universalidade cronológica e ideológica dos processos de desencadeamento e evolução das revoluções socialistas, estas análises se aproximariam dos cânones do pensamento liberal, pressupondo uma universalidade dos fenômenos socais contrastante aos paradigmas que estruturam o materialismo histórico-dialético, mais bem adequado por uma compreensão das revoluções socialistas enquanto revoluções nacionais, condicionadas pelas especificidades de formações sociais distintas.
Parafraseando Carl Schmitt, “soberano é quem decide o Estado de exceção”, Losurdo retira as condicionantes da evolução política dos processos revolucionários de um plano abstrato, no qual as tomadas de decisão são contrastadas aos chamados “ideais revolucionários”, privilegiando em seu lugar os constrangimentos políticos conjunturais e estruturais que moldaram o desenvolvimento das contradições das formações sociais em questão. Assim, resgata o contexto no qual emergiu o chamado “terror leninista-stalinista”, marcado pela hegemonia de modelos políticos totalitários inclusive no ocidente liberal, afim com a conjuntura de “guerra total” da chamada Segunda Guerra dos Trinta Anos (1914-1945). Ainda que num contexto de dura repressão às dissidências políticas, o período stalinista consolidou outra face, ilustrada pela promoção social em larga escala - o número de estudantes universitários na URSS subindo de 160.000, em 1927-1928, para 470.000, em 1932-1933 - e pela enorme contribuição às lutas contra o nazismo, o racismo, o antissemitismo e pela libertação anticolonial.
O prolongamento do dito Estado de exceção estaria consubstanciado na emergência da Guerra Fria, iniciada, conforme Losurdo, a partir do ataque atômico à Hiroshima e Nagasaki, considerado xercício de constrangimento às pretensões de expansão soviética. Ainda que sem gerar um confronto direto entre as superpotências, a constituição do braço armado do conflito indireto teve severas consequências à dinâmica da política soviética, afetada em termos econômicos e tendo delimitado seu possível arco de alianças. Antagonizando o mito da “implosão” da URSS, Losurdo credita o colapso soviético à conjunção dos efeitos do cerco a que foi submetida e principalmente à derrota na dimensão ideológica do conflito, considerando ainda que as realizações do socialismo real - escolarização em massa, difusão da cultura e a estabilidade social - minaram, dialeticamente, os fundamentos de sua própria existência, expondo as débeis faces de um universo concentrador, acentuado diante da crise de seu desenvolvimento econômico.
Olhando mais atentamente às soluções encontradas pelos movimentos marxistas frente à não concretização de revoluções socialistas no capitalismo central, ocidental, o filósofo italiano apresenta três modelos alternativos apresentados ao longo do século XX: um primeiro, de Trotsky, priorizando a exportação da revolução a partir do primeiro foco revolucionário; um segundo, de Stalin, reconhecendo o contexto desfavorável das relações internacionais e dando destaque à construção do socialismo em seu próprio país; e um terceiro, consubstanciado no pensamento de Liu Shaoqi e Deng Xiaoping, que credita ao desenvolvimento das forças produtivas atrasadas o caminho a ser seguido para compensar a não concretização do socialismo nas economias centrais. Evocando o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, Losurdo demonstra neste a existência de dois processos revolucionários, que interagem de forma dialética, ao se complementarem e se contradizerem: o da revolução por baixo, marcada pela famosa e sempre evocada tomada dos meios de produção, e o da revolução pelo alto, raramente citado e caracterizado pelo esforço de desenvolvimento das forças produtivas. E é a partir da tentativa simbiose das duas revoluções exortadas pelo Manifesto Comunista que o autor considera o atual panorama da experiência socialista chinesa, contrastando as inúmeras críticas marxistas à suposta capitulação desta aos ditames do capitalismo global.
Adentrando a fundo em algumas das maiores polêmicas da teoria marxista e da historiografia contemporânea, a vasta obra de Losurdo é indispensável para a compreensão dos dissonantes rumos das complexas formações sociais geradas a partir das revoluções do século XX. Sua visão abrangente do significado destas revoluções - analisadas sob a luz de um ciclo de lutas mais amplo iniciado pela Revolução Francesa - permite ao leitor superar o persistente mito da “falência” do comunismo, demonstrando a centralidade das experiências socialistas do século XX para garantir, ao induzir reformas nas potências capitalistas, a incorporação de direitos sociais e econômicos às democracias ocidentais, assegurando a emergência de um Estado social até então ignorado pela tradição liberal. Acima dos estereótipos midiatizados e das análises mecanicistas e abstraídas de materialidade, o olhar totalizante e dialético de Losurdo eleva o debate dos dilemas das experiências socialistas a um novo patamar, sobre o qual as reflexões contemporâneas acerca do tema em questão devem estar atreladas.
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