Resumo: Considerando as violações dos direitos humanos dos povos indígenas durante o período da ditadura militar no Brasil, o presente estudo tem por objetivo analisar tais violações sob a ótica da biopolítica, considerando seu desenvolvimento nas perspectivas de Foucault, Agamben e Mbembe, a fim de demonstrar que as práticas genocidas e etnocidas daquele período não decorrem apenas de uma exposição à morte relacionada ao racismo de Estado ou à tipificação da vida matável, mas também consistem numa prática deliberada de fazer morrer, o que aproxima a política indígena brasileira do período a uma necropolítica.
Palavras-chave: Estado de exceçãoEstado de exceção,IndígenaIndígena,NecropolíticaNecropolítica.
Abstract: Considering the violations of the human rights of indigenous peoples during the military dictatorship period in Brazil, the present study aims to analyze such violations from the point of view of biopolitics, considering their development in the perspectives of Foucault, Agamben, and Mbembe, in order to demonstrate that the genocidal and ethnocidal practices of that period do not only derive from an exposition to death related to state racism or the typification of slaughterable life, but also consist in a deliberate practice of making die, which brings Brazilian indigenous politics of the period closer to a necropolitics.
Keywords: State of exception, Indigenous, Necropolitics.
Artigos
Da biopolítica à necropolítica contra os povos indígenas durante a ditadura militar brasileira (1964-1985)
From biopolitics to necropolitics against indigenous peoples during the brazilian military dictatorship (1964-1985)
Recepção: 23 Maio 2019
Aprovação: 02 Julho 2019
A política indigenista brasileira durante o período histórico compreendido entre 1964 e 1985 foi marcada pelo contexto da ruptura da ordem democrática e por ações desenvolvimentistas que geraram uma série de consequências negativas aos povos indígenas, incluindo práticas de escravização, tortura e extermínio. Conforme se intensificou a ditadura militar por meio dos Atos Institucionais, acentuaram-se as violações dos direitos humanos, como é possível evidenciar no relatório da Comissão da Nacional da Verdade de 20143. Diante dos fatos ocorridos e demonstrados pela investigação da Comissão, levanta-se a questão sobre a característica política da atuação do regime militar. Como caracterizar uma forma de governo que, em nome da ‘ordem’ e do ‘progresso’, opera por meio de dispositivos que implicam diretamente a eliminação de outrem? De que modo o conceito de biopolítica, conforme estabelecido por Foucault (1999) e desenvolvido pelos autores contemporâneos Giorgio Agamben (2002) e Mbembe (2016), pode ser utilizado para compreender as violações de direitos humanos dos povos indígenas, evidenciadas pelo relatório da Comissão da Verdade?
O exercício do poder soberano numa perspectiva biopolítica, conforme se demonstrará, opera para estabelecer uma cisão radical entre quem merece viver e quem deve ser deixado para morrer. Mais do que simplesmente estabelecer por meio de padrões eugênicos normativos a diferenciação entre as formas de vida humana que serão investidas de valor e as que serão descaracterizadas de humanidade, por meio do racismo de Estado, como propôs Foucault (1999), o poder soberano pode estar associado ao próprio ato violento que, ao negar a dignidade humana da vida indígena, culmina em seu extermínio. Daí o sentido de buscar em Agambem (2002) e Mbembe (1999), levando em consideração os dados do relatório da Comissão Nacional da Verdade, o modo de compreender o protagonismo do Estado brasileiro na violação dos direitos humanos dos povos indígenas, analisando a biopolítica enquanto tanatopolítica ou necropolítica.
Assim, considerando especialmente as obras História da sexualidade e Em defesa da sociedade, pretende-se analisar o modo como Foucault (1988, 1999) estabelece o conceito de racismo de Estado a partir de sua perspectiva sobre o soberano e o exercício da soberania, para em seguida delinear seus desdobramentos nas obras Homo sacer: o poder soberano e a vida nua e Estado de exceção, de Agamben (2002, 2004), observando sua concepção de soberania e noção de tanatopolítica, ou ainda necropolítica, como desenvolvido por Mbembe (2016). Ao final, pretende-se explicar que as violações dos direitos humanos dos povos indígenas podem ser interpretadas a partir de uma forma de exercício do poder soberano que não apenas relegou milhares de seres humanos à condição de subalternidade, como também fomentou o seu desaparecimento por meio de práticas de extermínio que se caracterizaram pelo racismo de Estado e por uma política em que a morte é elemento fundamental.
O regime político brasileiro de 1964 a 1985 tem seu nascimento com o golpe militar contra o governo do presidente João Goulart e foi homologado pelo Ministério da Defesa, ou seja, foi pensado, forjado e organizado pelo Exército Nacional, sendo caracterizado como uma ditadura militar (Skidmore, 1991). Diante desse quadro político e social, é perceptível o aumento da repressão da população em decorrência da relativização das liberdades individuais e dos direitos civis, bem como o aumento da violação dos direitos humanos, contudo, a violência contra os povos indígenas e as várias formas de resistência contra o genocídio remontam ao processo histórico de colonização do Brasil e de conquista da América. Na expressão de Todorov (2003, p. 7-8), “o século XVI veria perpetrar-se o maior genocídio da história da humanidade”. Isso porque os europeus promoveram uma série de massacres e extermínios com base na visão eurocêntrica de superioridade frente à alteridade, conforme se evidencia pela Controvérsia de Valladolid, em que se discute a natureza dos povos indígenas, a fim tentar justificar a dominação pela violência e escravização4.
Considerando seu passado colonial, a passagem para o Brasil republicano se caracterizou por uma série de desafios para a burguesia nascente, entre os quais se destaca a consolidação do Estado Nacional e a necessidade de criação de uma identidade nacional que congregasse os diferentes tipos populacionais que havia no território. A sociedade era composta por “imigrantes vindos da Europa do Norte, negros de origem africana, negros crioulos, as populações indígenas dessa porção das Américas e uma massa de mestiços que consistiria nos quadros da burocracia de um Estado nacional em expansão” (Lima, 2015, p. 428). Desse modo, tornava-se necessário criar estratégias institucionais para a relação com os indígenas e, em 1910, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que a partir de 2018 ficou conhecido apenas como SPI.
A proposta do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) consistia em buscar pacificar os territórios em conflito e negociar formas de possibilitar a transformação do indígena em um trabalhador, aproximá-lo da dimensão da cidadania na perspectiva do branco europeu, porém Lima (2015) considera outros aspectos relacionados ao papel do SPI no período, não apenas com o intuito de supostamente ajudar os povos indígenas, mas, principalmente, “liberar terras aos interesses econômicos de grupos privados” (Lima, 2015, p. 428). Paulatinamente foi se revelando um processo sistemático de violência contra os povos indígenas, o que veio à tona pelas evidências publicadas pelo Relatório Figueiredo, em 1967, mesmo ano em que se extingue o SPI. Não por acaso, visto que o relatório do procurador Jader de Figueiredo Correia a pedido do ministro do interior brasileiro Afonso Augusto de Albuquerque Lima trazia em seu conteúdo uma série de relatos sobre a gravidade da situação à qual o SPI estava implicado.
Depois de 45 anos desaparecido, supostamente perdido num incêndio, o relatório foi encontrado no Museu do Índio com mais de 7000 páginas preservadas, nas quais se evidencia a relação do SPI com as violações dos direitos humanos dos povos indígenas. As denúncias se referem a “roubo de recursos do patrimônio indígena, venda irregular de gado, madeira, extração ilegal de minérios, arrendamento criminoso de terras a todo tipo de violências contra a pessoa do índio, tais como assassinatos, prostituição, sevícias, trabalho escravo, torturas, massacres e genocídio” (Guimarães, 2015, p. 13). Com o golpe de 64, que destituiu o presidente eleito João Goulart, o problema se agravou, pois o projeto desenvolvimentista intensificou o avanço para as áreas não urbanas do território brasileiro.
Muitas obras consistiam na derrubada de áreas imensas de florestas já habitadas, a exemplo da Rodovia Federal Transamazônica, que pretendia integrar o norte brasileiro. Considerada uma obra de proporções imensas, que ainda não se encontra terminada, a construção da rodovia deixou um rastro enorme de terror contra os povos indígenas. Avançando com uma política próxima à de Getúlio Vargas, denominada “marcha para o Oeste”, que considerava as regiões localizadas ao extremo oeste do litoral atlântico - regiões hoje situadas nos territórios do Paraná, Mato Grosso, Rondônia, Amazonas, Acre, Roraima, Goiás e demais proximidades - como inabitadas, o Estado pretendia agir rumo ao suposto progresso e garantir o crescimento demográfico nesses ambientes (Skidmore, 1991). Tanto o governo getulista como as políticas da ditadura militar não reconheciam a identidade dos grupos indígenas que viviam nessas regiões como sendo autônomas e livres, portanto, seria necessária a aculturação, ou seja, encaminhar grupos de pessoas para eliminar a cultura dessas tribos e transformar os indígenas em cidadãos brasileiros5, seguindo as normas e os deveres propostos pelo Estado.
A Comissão Nacional da Verdade, ao relatar o caso da Rodovia Transamazônica, ilustra o modo como o processo de aculturação e decorrentes violações foram acionadas pelos órgãos governamentais:
O ano de 1968, na esteira do endurecimento da ditadura militar com o AI-5, marca o início de uma política mais agressiva [...]. O Plano de Integração Nacional (PIN), editado em 1970, preconiza o estímulo à ocupação da Amazônia [...]. A ideia de integração se apoia em abertura de estradas, particularmente a transamazônica e a BR 163, de Cuiabá a Santarém, além das BR 174, 210 e 374 [...]. Na época, o ministro do interior era o militar e político José Costa Cavalcanti [...], ele próprio declara que a transamazônica cortaria terras de 29 etnias indígenas, sendo 11 grupos isolados e nove de contato intermitente - acarretando as remoções forçadas. Para consecução de tal programa, a Funai, então dirigida pelo general Bandeira de Mello, firmou um convênio com a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) para a ‘pacificação de 30 grupos indígenas arredios’ e se tornou a executora de uma política de contato, atração e remoção de índios de seus territórios em benefício das estradas e da colonização pretendida. (Brasil, 2014b, p. 209).
As ações do governo no período militar não se limitavam apenas à Amazônia. O relatório da Comissão da Verdade salienta por diversas vezes o caso da construção da hidrelétrica de Itaipu. Da mesma maneira como ocorreu no caso citado anteriormente, a proposta do governo para avançar com o projeto ante a resistência dos indígenas e de órgãos protetores foi criando ‘laudos’ com relação à necessidade de aumentar a demografia da região, o que acarretaria a eliminação das culturas locais.
Uma prática corriqueira foi a doação de terras para pessoas residirem em tais localidades, clara situação de enfrentamento aos territórios que eram de habitação tradicional indígena. Com isso, o Estado predizia que aqueles locais pertenciam ao governo e que estavam doando para famílias por meio de editais públicos, supostamente sem violar a constituição. Qualquer um que estivesse em tais locais sem a permissão do governo seria retirado, uma vez que não possuía os documentos para fixar moradia. Foi assim que os índios tradicionalmente habitantes foram tratados como invasores e consequentemente expulsos dos locais, como salientou um indígena Guarani-Kaiowá de Dourados (MS) em depoimento à Comissão:
A FUNAI deu certidão negativa de presença indígena nas terras. Incendiaram casas. 60 indígenas foram desalojados. 26 deles foram levados de caminhão e despejados em terras paraguaias. Quem ia fazer o despejo era a PM. Agora não entende por que é a Polícia Federal que faz os despejos. Nunca vi na constituição uma frase que diz que tem que tirar índio das terras dele. Ao contrário: se ele é expulso, pode voltar. Fico admirado de um juiz dar liminar para expulsar os índios. Um sabedor das coisas! (Brasil, 2014a, p. 4).
Posteriormente à fixação das famílias em tais terras iniciaram-se os confrontos e conflitos entre indígenas e novos moradores. As etnias que não se submeteram foram tratadas por meio de políticas de enfrentamento físico e punições com base em infrações consideradas penais, enfraquecendo a permanência indígena nesses locais, conforme depoimento de outro indígena sobre um caso ocorrido em 1977.
Uma das barbaridades cometidas por agentes públicos da Funai a favor dos fazendeiros: queimar nossas casas e colheitas. Isso foi feito por funcionários públicos! Na primeira ação, oito casas queimadas, e nosso estoque de colheitas para alimentação de todos. Os empregados das fazendas com funcionários da Funai queimavam nossas casas e acusavam os índios de ter feito isso para incriminar o Estado. Deram registro que foram os índios que fizeram os incêndios. Depois tiraram madeiras da terra, na nossa frente. Uma devastação. Caminhões, tratores. Se reagíamos, vinha violência com aparato policial. (Brasil, 2014a, p. 5).
Segundo foi apurado pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade, essas doações de terras que geravam conflitos entre homens brancos e indígenas tendiam não apenas ao propósito de eliminar as culturas locais, mas também eliminar fisicamente os indígenas sem a necessidade de utilizar meios bélicos. Isto se deu com as doenças levadas pelos brancos às aldeias indígenas, pois, sem imunidade propícia a ter contato com os agentes, faleciam mediante altas febres. A responsabilização do Estado, segundo o relatório, se dá devido ao não comprometimento com essa situação, por meio da omissão proposital de vacinações e tratamentos adequados à saúde dos índios.
Um dos exemplos mais bem documentados da omissão de vacinação preventiva ocorre com os Yanomami, entre os quais estava sendo construída a rodovia Perimetral Norte. Em 1975, uma campanha de vacinação de três semanas é reduzida a dois dias e meio. A Divisão de Saúde da Funai é acusada de se negar a vacinar os índios da região de Surucucus. Ao todo, apenas 230 índios da área da Perimetral e da missão Mucajaí foram vacinados. (Brasil, 2014b, p. 212).
Nesse caso, o extermínio dos indígenas ocorreu em grande medida sem a necessidade de utilização de armamentos ou quaisquer outros meios diretos de violência física; eram contaminados e simplesmente deixados para morrer. Apenas com o encaminhamento de profissionais para terem contato com os indígenas, e com eles os agentes virais, foi possível a eliminação em massa de diversos grupos indígenas, forçando muitos a fugirem de seus locais de origem. Nesse sentido, cabe analisar tal prática política, que claramente envolve o uso do poder de matar por parte do Estado, a fim de compreender as características desse tipo de regime, de acordo com o desenvolvimento da concepção de biopolítica.
A modernidade no mundo ocidental trouxe consigo formulações de Estado e organizações sociais inéditas, sobretudo a racionalização do Estado, por meio da divisão dos poderes e de uma estrutura jurídica e legal que evitasse absolutismos e despotismos. Portanto, após as revoluções burguesas e a consolidação de constituições que evocavam o poder popular para legitimar os governos, a noção de poder no Ocidente ganhou novas peculiaridades e interlocuções com os atores sociais (Hobsbawm, 2014).
Essa transição que implica o nascimento do Estado moderno é analisada por Foucault (1999) sob o ponto de vista das modificações das relações de poder, marcadas pelo mecanicismo racionalista e pelas revoluções burguesas, dando origem à era biopolítica, visto que a política enquanto capacidade humana de mediar interesses em nome do bem comum teria se tornado obsoleta. A biopolítica é considerada uma tecnologia de governo segundo a qual a própria vida humana passa a ser inserida na ótica da gestão do poder, transformando as relações de poder de natureza hierárquica verticalizada, entre o soberano e a sociedade civil, numa perspectiva mais horizontal, na qual o poder não se encontra localizado num local ou pessoa específica. A política passa a não incidir apenas sobre o espaço público, mas invade a esfera privada da existência e avança para a construção de subjetividades submissas às estruturas hierárquicas de poder, tudo isso com base em padrões de normatividade inspirados em ideais utópicos de desenvolvimento econômico e progresso material.
Modifica-se a política da relação entre o soberano e a sociedade, pela alteração do poder de punir e de impor a morte como forma de governar. “A velha potência da morte que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida” (Foucault, 1988, p. 131). Surge a era do biopoder, não apenas operando por meio das instituições disciplinares, tais como escolas, presídios, asilos e hospitais psiquiátricos, mas utilizando-se também do conhecimento produzido sobre o conjunto da população, por meio da estatística, da demografia, da criminologia e da natalidade, por exemplo.
Nessa perspectiva, o critério de civilização, e consequentemente de civilizado, fez com que as violências, sobretudo físicas em um primeiro momento, fossem consideradas abomináveis, tratadas como costumes de bárbaros e selvagens. Nesse sentido, o ideal de evolução social, culturas e nacionalidades ‘melhores’ que outras é calculado por meio dos fenômenos de violência, uma vez que a ‘sociedade evoluída’ remonta a sociabilidades pacíficas. Um mito cultural que, em sua centralidade, baseia-se no racismo, evidenciando por meio de dispositivos de poder linguístico sociedades superiores a outras, permeando o critério da razão desenvolvimentista e a elucidação de violências institucionais e simbólicas (Foucault, 1996).
Logo no início do século XX, este desenvolvimentismo desenfreado e o exacerbado racismo eurocêntrico culmina na explosão de barbáries, no próprio critério civilizacional do Ocidente, com conflitos devastadores e práticas terríveis de homicídios, como as chacinas aos povos considerados inferiores que ocorreram de maneira brutal nos regimes totalitários do século XX. Neste contexto, Estados totalitários difundiram suas técnicas almejando uma sociedade perfeita, findada nos moldes biológicos de sujeitos alocados em patamares elevados na escala evolutiva das sociedades. Conforme identificado por Foucault (1988), a biopolítica foi a estratégia empregada por estes Estados, identificando, classificando e dominando os corpos individuais para transformá-los em corpos sociais administrados de acordo com os objetivos do governo. Segundo o filósofo francês:
As disciplinas do corpo e as regulamentações da população constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolvem a organização do poder sobre a vida. A instalação econômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida - caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo [...] Abre-se, assim, a era de um ‘bio-poder’. (Foucault, 1988, p. 152).
Essa formulação foucaultiana explica as intenções, ou as causas iniciais, do processo de transformação do Estado em disciplinador dos sujeitos sociais, objetivando a incidência de uma sociedade supostamente mais evoluída. Por meio de movimentos biológicos, controlando a natalidade, os números de morte, enfim, administrando quem (e como) nasce no interior da população, este biopoder demonstrou a possibilidade de domesticar a sociedade com políticas de controle e seus diversos dispositivos, entre os quais se destaca o racismo de Estado. Se por um lado a sociedade investe na vida de valor e a produz conforme o padrão normativo vigente pela produção da subjetividade, por outro, como condição de possibilidade, é preciso existir o seu oposto, a raça ruim, aquela que deverá desaparecer conforme se aperfeiçoa a humanidade.
Oriunda do processo histórico de guerra das raças que marcou a história da civilização e da espécie humana, a vitória de uns sobre outros fomentou a ideia de superioridade de alguns povos, como se certas raças fossem mais dignas como seres humanos. Com a modernidade e o desenvolvimento da visão objetiva de mundo, a guerra das raças e o racismo ganham novos contornos e se tornam o modus operandi da política de Estado, na medida em que se esquadrinha a vida e se separam os espaços hierárquicos em que cada forma de existência humana deverá existir.
Aparece nesse momento - o que é um paradoxo em comparação aos próprios fins e à forma primeira desse discurso de que eu Ihes falava - um racismo de Estado: um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos; um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social. (Foucault, 1999, p. 73)
Trata-se de uma prática na qual o exercício da soberania não consiste simplesmente em fazer morrer e deixar viver, como se compreendia no antigo paradigma da soberania, em que o rei garante a obediência de seus súditos pela ameaça direta à vida, mas de um biopoder que faz viver e deixa morrer, ou seja, que expõe à morte (Foucault, 1999). Para estabelecer o critério de distinguir entre esses parâmetros relacionados à decisão soberana sobre quais vidas merecem ser vividas e quais serão expostas à morte, torna-se necessária uma teoria subentendida da raça, um racismo institucionalizado nas práticas e instituições do próprio Estado, ainda que este possua uma narrativa em favor de todos e todas em igualdade. Esse paradoxo pelo qual um poder ao mesmo tempo investe e destitui a vida de valor, ao qualificá-la ou expô-la à morte, pode ser explicado pelo racismo. “Como esse poder que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o poder de morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no biopoder? É aí, creio eu, que intervém o racismo” (Foucault, 1999, p. 304).
No entanto, o que foi observado nos campos de extermínio e práticas genocidas do século XX precisa ser explicado a partir de novos elementos deste biopoder, que possam dar maior alcance a essa característica decisiva do soberano de fazer morrer pelo extermínio, aspecto no qual o filósofo contemporâneo Giorgio Agamben (2002; 2004) procurou se aprofundar por meio dos conceitos de Estado de exceção e Homo sacer6.
De acordo com Agamben (2004, p. 13), “a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”. Dessa maneira, uma medida de caráter provisório e excepcional, em que inimigos políticos ou quaisquer cidadãos em discordância com determinado projeto de nação são simplesmente eliminados, tornou-se uma tecnologia comum de governo. Nos regimes totalitários do século XX, fica evidente tal procedimento, por meio do qual o paradigma da soberania é exercido pela exceção jurídica, justificada pela ideia de necessidade. Ou seja, destituir as garantias constitucionais dos cidadãos e violar direitos humanos torna-se uma necessidade em vista de um objetivo maior. Nesse caso, a questão do sacrifício é inserida na equação por meio da tipificação da vida matável, daí a relevância do conceito de Homo sacer.
O conceito de Homo sacer de Agamben (2002) remete a uma figura do antigo direito romano que caracterizava o indivíduo que era banido do ordenamento jurídico, mas que permanecia incluído de alguma forma na medida em que seu sacrifício era proibido, porém, ao mesmo tempo, qualquer um que o matasse não cometia delito. Tratava-se de
uma figura enigmática do direito romano arcaico, que parece reunir em si traços contraditórios e por isso precisava ela mesma ser explicada, entra assim em ressonância com a categoria religiosa do sagrado no momento em que esta atravessa por conta própria um processo de irrevogável dessemantização que a leva a assumir significados opostos; esta ambivalência, posta em relação com a noção etnográfica de tabu, é usada por sua vez para explicar, com perfeita circularidade, a figura do Homo sacer. (Agamben, 2002, p. 88).
A partir dessa noção, o filósofo italiano explica como o campo de concentração se torna justamente a delimitação de um espaço no qual paira a exceção pelo estabelecimento do Homo sacer, ou seja, das vidas matáveis, nuas, destituídas de proteção jurídica. Entretanto, trata-se de um procedimento massificado que revela a verdadeira face do soberano, a de decidir entre a vida e a morte, conforme se evidenciou no Estado nazista.
Nele, uma absolutização sem precedentes do biopoder de fazer viver se cruza com uma não menos absoluta generalização do poder soberano de fazer morrer, de tal forma que a biopolítica coincide imediatamente com a tanatopolítica. Essa coincidência representa, na perspectiva foucaultiana, um verdadeiro paradoxo que, conforme acontece com qualquer paradoxo, exige uma explicação. Como é possível que um poder cujo objetivo é essencialmente o de fazer viver exerça por sua vez um incondicionado poder de morte? (Agamben, 2008, p. 89).
Adquirindo estratégias para não serem acusados de crimes de Estado perante as normas legais (nesses momentos, normas de exceção), os governos totalitários intitularam sujeitos que eram inimigos do progresso, portanto do Estado, e, retirando sua dignidade, retiraram seus direitos de vida, justamente por não possuírem critério de humanidade. Retirar a dignidade dos indivíduos significava incluí-los juridicamente em sujeitos que não pertenciam ao Estado, de fato não cidadãos. Sem seus direitos, o soberano passa a ter total domínio de suas vidas, tanto para deixá-los morrer como para fazê-los morrer. Agamben (2004) reflete que tais princípios e fundamentos estão baseados em uma lógica de exceção, na qual as regras legítimas são ignoradas pelo poder soberano, e suas atitudes estão fora do plano legal. Ainda que existissem decretos, leis e demais normas jurídicas às quais estes Estados estivessem vinculados, Agamben (2004) argumenta que elas não possuíam fundamentos legítimos para terem força de lei e garantirem tais atitudes diante do apelo popular. Assim, instauraram-se Estados de exceção, com atitudes e situações também de exceção, em que a regra é substituída pela vontade do soberano, e os direitos da população são revogados e transformados em deveres perante a ordem vigente. Esse recurso à exceção é utilizado cada vez mais pelo soberano nos Estados contemporâneos e virou um modo de governar.
No mundo colonizado historicamente pela Europa, ocidentalizado à força e disciplinado conforme os costumes europeus, é possível salientar e observar Estados de exceção seculares, bem como biopoderes soberanos também seculares. Mbembe (2016) chama a atenção para a questão da escravidão africana, visto pelo filósofo camaronês como uma das primeiras práticas de biopolítica no planeta. Considerando algumas distinções com relação a contextos históricos diferentes, o autor vê em toda política de colonização um Estado de exceção, firmado por critérios biopolíticos.
Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras instâncias da experimentação biopolítica. Em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema de colonização e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção. Aqui, essa figura é paradoxal por duas razões. Em primeiro lugar, no contexto da colonização, figura-se a natureza humana do escravo como uma sombra personificada. De fato, a condição do escravo resulta de uma tripla perda: perda de um ‘lar’, perda de seus direitos sobre seu corpo e perda de status político. Essa perda tripla equivale a dominação absoluta, alienação ao nascer e morte social (expulsão da humanidade de modo geral). Para nos certificarmos, como estrutura político-jurídica, a fazenda é o espaço em que o escravo pertence a um mestre. Não é uma comunidade porque, por definição, implicaria o exercício do poder de expressão e pensamento. (Mbembe, 2016, p. 130-131).
É possível relacionar esses argumentos com a questão da dignidade humana, ou melhor, a retirada da dignidade de alguns indivíduos. Quando Mbembe (2016) menciona a perda do lar, da participação política e de seu próprio corpo, em uma clara situação de biopolítica disciplinar, ele está falando, ao mesmo tempo, da exclusão do critério de humanidade desse sujeito. Ainda que aspectos de biopolítica sejam evidentes no mundo colonizado, Mbembe (2016) evidencia que, nesses territórios, tais práticas foram essencialmente de proporcionar a morte, ou seja, de fazer morrer como forma de dominação da vida, portanto, uma necropolítica. Matar nas colônias estava fora de qualquer ilegalidade, uma vez que os povos escravizados não possuíam critérios de humanidade definidos na racionalidade do mundo europeu. “Aos olhos do conquistador, ‘vida selvagem’ é apenas outra forma de ‘vida animal’, uma experiência assustadora, algo alienígena além da imaginação ou compreensão” (Mbembe, 2016, p. 133).
Considerando o contexto latino-americano, mesmo com a independência política e o advento de nacionalidades, as elites locais e o poder resultante de suas práticas foram muito baseados em um racismo institucional, com políticas de embranquecimento nas famosas higienizações da sociedade, bem como práticas de neocolonização, sobretudo para as populações tradicionais, com a emergência de aumentar a população nos territórios para eliminar as culturas indígenas (Quijano, 2002). Tais populações foram historicamente tratadas sem o critério de dignidade, observadas como seres sem humanidade, legitimados como não cidadãos, sem seus direitos garantidos pelo Estado (Cunha, 2012). Ao contrário, o próprio Estado tornou-se o inimigo, o precursor das necropolíticas praticadas cotidianamente, que, para os indígenas, se figuram tanto no fazer morrer como no deixar morrer, isto é, políticas de morte aplicadas direta e indiretamente, fundamentadas no não reconhecimento de sua alteridade.
Ao analisar a situação dos indígenas durante o processo de inclusão na esfera do poder estatal, Lima (2015) chama de poder tutelar a forma como o Estado brasileiro elaborou e aplicou a sua política desenvolvimentista de levar o progresso para as áreas indígenas, que escondia sua face corrupta e até mesmo cruel das práticas que estiveram associadas ao Serviço de Proteção ao Índio. De acordo com Lima (2015), o poder tutelar
É a modalidade de poder de uma comunidade política centralizada sob o poderio de um Estado dotado de um Exército profissional, tíbio e insuficiente, entendido aqui, num certo plano, como resultante e vetor dependente da articulação de amplas redes sociais dispostas ao longo de territórios, que se vinculam e se fazem Estado por mecanismos e em tempos diferenciados. (Lima, 2015, p. 431).
Se por um lado o Brasil, com a instauração da república, passa a reconhecer os direitos dos povos indígenas, por outro exerce o controle sobre a vida por meio do poder tutelar, o qual implica o controle dos corpos e a produção da subjetividade num sentido biopolítico. Várias são as características evidenciadas pelas políticas indigenistas durante o regime militar que deixam claro o exercício de um poder autoritário que exerce o controle pela repressão e violência explícita, assim como sob a forma disciplinar. Isso porque se está diante de um poder que não apenas reprime e violenta, mas que visa produzir a vida aceitável e a subjetividade dócil e submissa à obediência, por meio de uma tecnologia biopolítica de poder. Trata-se de um tipo de poder que não apenas disciplina os corpos como também produz a vida por meio do controle da população em geral, o que caracteriza a passagem do que Foucault (1999) considera ser um poder que fazia morrer e deixava viver, para um poder que faz viver e deixa morrer.
Segundo Lima (1995), o poder tutelar sobre os indígenas ilustra justamente essa característica do biopoder, pois ao mesmo tempo que violenta e reprime pela dominação, esforça-se em produzir e controlar pela produção da subjetividade conforme a norma, o que legitima a violência contra o comportamento fora da norma. Tratava-se de “morte física por guerra aberta ou por pacificação, necessária redução dos efetivos humanos a quebrar solidariedades e a facilitar outro tipo de morte, a da alteridade” (Lima, 1995, p. 308). Por meio das práticas operadas durante o regime militar evidencia-se a forma como um poder tutelar pode agir na dominação do estranho, tanto para eliminá-lo quanto para subjugá-lo e transformá-lo.
Repleta de tragédias, derrotas e também vitórias, é uma das jornadas mais surpreendentes e dramáticas do século passado no país. É a história de como pequenos grupos humanos enfrentaram, às vezes com violência, às vezes com estoicismo, uma força dominante mais poderosa, que pretendeu, com esforço calculado, subjugá-los e empobrecê-los sob a promessa de uma vida melhor. (Valente, 2017, p. 5).
Considerando as informações da Comissão Nacional da Verdade, assassinar ou violentar um indígena parecia não estar previsto como infração penal durante o regime militar. Retirada sua condição de humanidade, o assassinato de um indígena poderia ser considerado algo próximo a eliminar um animal selvagem que causa transtornos às situações de desenvolvimento dos invasores brancos. Fazendeiros, seringueiros e demais trabalhadores nas regiões colonizadas tinham carta branca e, às vezes, a missão de eliminar por completo tribos indígenas que incomodassem suas práticas de extração de bens naturais ou de construção de rodovias. Em depoimento à Comissão da Verdade, um indígena representando os Xavantes comenta a situação:
Ele chegava nas aldeias, aí, quando tinha índio pequeno assim, menino índio, chegava e atacava a porta da aldeia [...] ele pegava e jogava dentro do rio e matava afogado. Os outros, ele metia tiro e acabava de matar. Os outros grandes ele topava no mato e campeava de cavalo prá matar. As horas que torava os índios de cavalo, metia fogo e matava. O cara [não-índio] acendeu o fogo, talvez com óleo diesel, para queimar a lenha para jogar os que estavam mortos, por cima do fogo os três que estavam mortos. Um, acho que não estava muito morto [...] porque ele estava falando, gemendo de dor [...] Mas mesmo assim os caras jogaram no fogo e queimaram eles. (Brasil, 2014a, p. 3).
Além do fato da eliminação, chama a atenção a maneira brutal como ocorreu o ato. Percebe-se que os atores da cena “jogam” os corpos, mesmo aqueles que não estavam mortos, na fogueira, em uma atitude de provocar a morte com dores extremas, sem nenhum tipo de sentimento ou repulsa por parte dos agressores, o que pode ser analisado por meio da noção de vida nua ao qual é reduzido o Homo sacer. Retomando a figura jurídica do direito antigo romano, já explicada anteriormente, Agamben (2002) se refere àquela pessoa que havia sido banida de uma comunidade e que não poderia ser sacrificada pelo soberano, mas que se fosse morta por qualquer cidadão, o ato não seria considerado crime. Trata-se, portanto, de uma exposição à morte cujo responsável é o próprio Estado, uma vez que cria essa vida nua, esvaziada de cidadania e de direitos.
Na realidade, o Estado não interfere diretamente, num primeiro momento, para eliminar o Homo sacer, ou seja, “fazer morrer”. Ele se torna omisso e realiza o “deixar morrer”, não interferindo nem tornando uma infração social o assassinato. Este é o cerne da vida nua, e por isso “matável”, pois qualquer sujeito possui o direito de matar esse indivíduo, sem receber qualquer dano pelo ato. Nesse sentido, na colonização do Brasil, os povos tradicionais podem ser intitulados Homo sacer, pois suas vidas são nuas no que tange aos direitos, e, por outro lado, são matáveis. Assim, o biopoder para esses sujeitos, em constante prática de colonização, se transforma em necropoder.
Quando Agamben (2008) pensa sobre o Homo sacer, sobretudo no caso judeu durante o Holocausto, ele argumenta que não se trata apenas do extermínio, mas de como ele é feito, a brutalidade e a indiferença daqueles que “apenas cumprem ordens”. O filósofo aborda neste momento a questão da dignidade, ou da perda desse elemento aos exterminados. Percebe-se que o grau de humanidade é perdido, está apenas na questão física da aparência humana, mas os agressores não os observam como sujeitos humanos, digno de uma vida com as características de humanidade. Assim, do mesmo modo, o corpo indígena foi reduzido à condição de uma vida esvaziada de direitos e dignidade, o que se evidencia desde a omissão aos aparatos legais em garantir sua defesa, até a percepção social da população, como se estivesse em contato com um ser inferior, nem animal nem humano, sem a dignidade humana consolidada. Outras violações ocorreram, em especial estupros de mulheres indígenas por trabalhadores e fazendeiros.
Os trabalhadores da Transamazônica começaram a invadir a reserva e, durante esses contatos iniciais, tem-se notícia de que trabalhadores da estrada presenteavam os homens Parakanã e violentavam várias mulheres. Os relatos também dão conta de que os próprios agentes da Funai praticaram violências sexuais contra as mulheres. (Brasil, 2014b, p. 229-230).
Os indígenas eram tratados apenas como objetos, ora eliminados brutalmente, ora abusados em trabalhos forçados e/ou sexualmente. Diversos presídios ou campos de trabalho foram criados nessas regiões, e os relatos de violações demonstram a situação de sujeição ao domínio do homem branco. Havia dois tipos de prisões: aquelas que eram o próprio campo de trabalho e outras que ficavam próximas às fazendas, e, caso algum indígena desobedecesse às ordens dos capatazes ou se negasse a trabalhar, era levado à prisão para ser disciplinado. Um indígena da etnia Guarani relata a situação de uma prisão da seguinte maneira:
A cadeia era tudo fechado assim, ficava lá fechado assim. Outro dia tirava, dava uma xicrinha de café, e voltava de novo lá pro quarto. Dois dias que estar lá. E quando cumpria dois dias você saia dali, você tinha que trabalhar pra roça dele [...] Quem não foi trabalhar, quem não fazia o serviço ia tudo pra cadeia. (Brasil, 2014b, p. 241).
Quando alguns indígenas sumiam, não sabiam se tinham morrido, sido assassinados ou conseguido a fuga, totalmente alheios ao mundo extracampo. Assim relata um ancião Guarani-Kaiowá sobre um campo de trabalho forçado:
Bater era normal para eles. Se o índio tentava se justificar por alguma acusação, batiam com cassetete grande, depois jogavam na prisão. Não podiam nem perguntavam por que estavam sendo punidos. Também batiam de chicote. Algemavam o preso dentro da cadeia e ele não podia falar, argumentar. Ameaçavam com arma. Os mais antigos contam que quando matavam um índio, jogavam no Rio Doce e diziam pros parentes que tinha ido viajar. Quando estavam muito debilitados, jogavam no hospital. A gente não sabia se estavam mesmo no hospital ou se foram massacrados ou morreram de fome, sede. A gente não via morrer aqui, era quando estavam no hospital. (Brasil, 2014b, p. 245).
Essas situações demonstram instituições análogas aos campos de concentração nazistas, adentrando completamente em uma compressão de vida nua dos indígenas, conforme trabalhado por Agamben (2002). O arcabouço de políticas de morticínio propostas pelo regime militar extrapola as condições de omissão, colonização e impunidade às violações ocorridas aos grupos indígenas. Passa-se de uma biopolítica e se transforma em necropolítica, uma vez que a disciplinarização do índio não era uma opção real. O objetivo dessas políticas indigenistas era a eliminação e expulsão dos povos tradicionais para a construção de projetos desenvolvimentistas e o progresso da nação. Assim, a fim de aumentar a taxa de sucesso dessa necropolítica, o Estado também utilizou suas forças, sobretudo bélicas, para diminuir a demografia indígena no interior das regiões pouco “desenvolvidas” perante o critério ocidental.
Novamente citando o caso da construção da usina hidrelétrica de Itaipu, os depoimentos de indígenas à Comissão da Verdade demonstram que o Estado agiu diretamente, e não apenas indiretamente, nos casos mencionados anteriormente, para eliminar os índios que relutavam permanecer em suas terras.
Os colonos iam junto com a polícia, com arma e tudo. Muitos que não saíram foi matado. Outros caíram no rio Paraná, nadaram pro Paraguai e não morreu. Depois voltou. A Funai, em vez de nos defender, ficou contra nós. O antropólogo [era da Funai, mas não lembro o nome] veio ver e se mandou. Fez uma carta que a gente não era índio. Foi o João Menezes, de Guarapuava. Então, superiores mandaram expulsar a gente, ou matar. Mataram muitos. Os soldados deram 2, 3 dias para sair. Os que não queriam sair das terras, eles queimaram junto com as casas. Foi mais da metade: queimado ou fuzilado. (Brasil, 2014a, p. 6).
A ação direta de soldados e policiais demonstra a ação do Estado em estabelecer um estado de sítio, de guerra, perante os grupos indígenas, a fim de eliminar os considerados inimigos e conquistar o território para o programa de desenvolvimento. Com armamentos de destruição em massa e diversas estratégias, como exemplificado a seguir no caso da aldeia Kinã, os militares invadiam os territórios e eliminavam os índios que ali estavam. “Eu sou do Mato Grosso do Sul. Fugi de lá, porque também tinha militares. Tinha que fugir para viver, senão, morria. Tinha que sair escondido a noite. De dia, matavam. Os soldados iam atrás e não prendiam, matavam logo” (Brasil, 2014a p. 8).
A noção de campo, conforme trabalhada anteriormente nos locais de trabalho forçado, pode ser ampliada neste momento, e podemos arriscar dizer que a situação indígena nesse período perpassava uma situação de campo de extermínio permanente. Seja por meio de doenças, abusos sexuais, domínio de seus corpos ou práticas deliberadas de eliminação por soldados, as políticas do regime militar criaram um território análogo aos campos de guerra e também de concentração, com táticas e instrumentos para eliminar maciçamente a população indígena - inclusive por meio de materiais químicos ou biológicos, conforme relata um indígena sobre um acampamento que foi atacado por agente desconhecido:
Kramna Mudi era uma aldeia Kiña que se localizava na margem oeste da BR-174 no baixo rio Alalú. [...] No segundo semestre de 1974, Kramna Mudi acolhia o povo Kiña para sua festa tradicional. Já tinham chegado os visitantes do Camanaú e do Baixo Alalú. O pessoal das aldeias do norte ainda estava a caminho. A festa já estava começando com muita gente reunida. Pelo meio-dia, um ronco de avião ou helicóptero se aproximou. O pessoal saiu da maloca pra ver. A criançada estava toda no pátio pra ver. O avião derramou um pó. Todos, menos um, foram atingidos e morreram. (Brasil, 2014b, p. 235).
Considerando os argumentos de Mbembe (2016) acerca da situação cotidiana de necropolíticas - um verdadeiro mundo da morte -, podemos compreender por meio desses relatos a situação de campos da morte, uma morte recorrente nas vidas das nações indígenas. Por instrumentos gradativamente mais modernos e inovadores, o extermínio e os ataques poderiam vir pela floresta, com soldados e metralhadoras, pelo rio e até mesmo pelo ar, com aviões distribuindo agentes para envenenar as tribos ali existentes.
Nesse sentido, considerando o que foi verificado pelas informações e relatos do relatório da Comissão Nacional da Verdade, a partir do desenvolvimento do conceito de biopolítica para uma necropolítica, fica evidente que o Estado brasileiro daquele período operava administrativamente com a morte como forma de proporcionar desenvolvimento e progresso para a sociedade, por meio da tipificação daquela vida nua que seria sacrificada.
Este artigo teve como proposta demonstrar que as políticas indigenistas que ocorreram no período da ditadura militar brasileira (1964-1985) tiveram um caráter biopolítico que expôs suas facetas necropolíticas, conforme trabalhado pelo pensador Mbembe (2016). Ao analisar os relatos, depoimentos e documentos apresentados à Comissão Nacional da Verdade, foi possível verificar que essas ações governamentais ocorreram de três maneiras: a) a colonização de terras indígenas; b) a omissão das violações de direitos humanos dos grupos indígenas; e c) o extermínio deliberado de índios por órgãos do Estado, desde soldados até agentes da Funai. O objetivo do regime, baseado em uma teoria racista e evolucionista da sociedade ocidental, era realizar políticas desenvolvimentistas, em especial de infraestrutura, nas regiões em que se encontravam os povos indígenas.
Desse modo, foi possível perceber como a biopolítica se constituiu enquanto relação de poder caracterizada pelo racismo de Estado, como desenvolveu Foucault (1999), a partir do qual o poder soberano produz a subjetividade dócil e submissa ao sistema, por meio de padrões cada vez mais severos de normatividade, criando por antagonismo o seu outro. É possível afirmar que a forma como o Estado brasileiro agiu naquele período contra as populações indígenas se fundamenta em um tipo de racismo de Estado, que torna possível a distinção entre a parcela da população que se deve fazer viver daquela que será deixada para morrer ou que se matará. A ampliação do poder de morte relacionado a esse racismo agravou-se durante o regime de exceção, e a vida do indígena foi novamente rebaixada à condição de Homo sacer, no sentido do conceito trabalhado por Agamben (2002), fazendo com que a biopolítica possa ser também chamada de tanatopolítica, principalmente em regimes de natureza totalitária em que se suspende a ordem constituinte.
Conforme se evidencia no relatório da Comissão Nacional de Verdade, pela intensificação da violação dos direitos humanos dos povos indígenas e o grau de violência contra as vítimas do regime ditatorial de 1964 a 1985, é possível verificar o modo como a biopolítica ganha contornos de tanatopolítica ou necropolítica, na medida em que reúne em si a mesma exposição à morte pelo racismo e o próprio fazer morrer enquanto ato. Conforme elabora Mbembe (2016), a necropolítica é uma forma de assassinato em massa no mundo contemporâneo, sobretudo com o viés de colonização aos mundos subdesenvolvidos.
[...] as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror. Demonstrei que a noção de biopoder é insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da morte. Além disso, propus a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de ‘mundos da morte’, formas novas e únicas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’. (Mbembe, 2016, p. 146).
Essas diversas formas, técnicas e instrumentos modernos de eliminação de seres humanos foram empregadas pelos militares em muitas oportunidades, com campos de trabalho forçado, cadeias específicas para índios, omissão de vacinação de maneira proposital, omissão de atos preventivos em conflitos de fazendeiros versus índios e omissão da prevenção das violações sexuais atentadas às mulheres indígenas. Este quadro torna o indígena um tipo de Homo sacer, verdadeira vida nua, sem dignidade ou critério de humanidade, com sua morte podendo ser realizada por qualquer indivíduo sem que ocorra algum tipo de punição ou infração social.
Por fim, a necropolítica durante o regime de exceção no Brasil se deu pela criação de um campo de batalha nos territórios indígenas, proporcionado pelas forças militares, que encaminhavam tropas para eliminar diretamente as aldeias, por meio de armamentos, metralhadoras, incêndios, envenenamento de rios e até mesmo despejando de aviões agentes que matavam rapidamente grande número de indígenas. Tal cenário completa o viés necropolítico dessas ações indigenistas, cometendo o total genocídio de alguns grupos populacionais, como também um etnocídio, à medida que elimina física e culturalmente as tradições e os povos que pertenciam àquelas regiões.
Esse processo vem ocorrendo desde a colonização, mas, com a fundação da república e os sucessivos golpes militares, a política indigenista brasileira sofreu alternâncias ao longo do tempo. Nesse sentido, o Estado brasileiro caminha entre esforços governamentais que tentaram reconhecer e garantir os direitos humanos dos povos indígenas, ainda que de forma precária, e esforços também governamentais que contribuíram diretamente com as necropolíticas, fomentando políticas de extermínio, conforme se evidenciou durante o regime militar de 1964 a 1985.
Com a queda da ditadura e a instauração da Nova República, uma outra composição de forças certamente foi colocada, e a demarcação de terras indígenas e outras políticas foram levadas adiante, num esforço de proteção e garantia dos direitos dos povos indígenas. Contudo, como se observa em massacres ocorridos recentemente, que contaram com a mesma negligência ou até com a participação do Estado, com a construção de grandes obras de implicação etnocida e com o mais recente retorno do discurso da ‘assimilação indígena’ como pedra de toque da política de Estado, a necropolítica nunca saiu de cena, algo que, há fortes indícios, tende a se agravar nos próximos tempos. Atualmente, observa-se o recrudescimento do tipo de autoritarismo que caracterizou aquele período, implicando novamente o aumento da violência contra povos indígenas, trazendo à tona facetas biopolíticas e necropolíticas de controle sobre a vida, diante das quais ainda cabe avaliar melhor seu impacto e o protagonismo do Estado brasileiro em não apenas expor a vida dos indígenas à morte, mas também em agir diretamente em prol de sua matança, como se evidenciou durante a ditadura militar.