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A sociologia jurídica e a quantificação em Alain Supiot
The juridical sociology of quantification in Alain Supiot
Ciências Sociais Unisinos, vol. 55, núm. 2, pp. 260-264, 2019
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Resenha

SUPIOT Alain. La Gouvernance par les nombres. Cours au collège de France (2012-2014). 2015. Paris. Fayard. 520ppp.

Recepção: 08 Fevereiro 2019

Aprovação: 11 Junho 2019

DOI: https://doi.org/10.4013/csu.2019.55.2.11

O livro de Alain Supiot, res ultado das aulas no Collège de France, parte de uma definição do direito como fato cultural que se insere na mesma lógica da técnica e das artes. Assim sendo, o direito se situa entre a técnica e as artes cuja referência epistemológica não é nem a verdade e nem a estética, mas a justiça. Em um livro anterior, o autor analisa a função antropológica do direito que era negado pela concepção totalitária que reduzia o homem a uma unidade de conta manipulável pela racionalidade matemática do capitalismo (Supiot, 2005). Assim, a ordem jurídica se inscreve dentro das instituições imaginárias da sociedade e, por essa razão, uma análise desta natureza não pode ser desarticulada das condições materiais de existência. Esta concepção materialista do sistema jurídico implica que o direito é sempre uma resposta possível às condições materiais impostas à espécie humana e a implicação disso é que a análise do sistema jurídico pressupõe uma abordagem sócio-histórica e, por essa razão, o direito não pode se fundar em bases transcendentais e tampouco pode ser analisado apenas como objeto técnico esvaziado de suas significações sociais (Supiot, 2015).

O direito, além disso, tem também uma dimensão estética que se estende aos enunciados jurídicos como “campo complexo do discurso” (Foucault, 1969, p.34). A autoridade e perenidade de uma regra dependem de sua qualidade literária e a força da regra depende da qualidade do estilo (Supiot, 2015). A dimensão estética e política da governança foram deixadas de lado por aqueles que veem no direito apenas um instrumento de dominação das classes populares. Essa dimensão estética e política não encontra espaço na visão racionalista e mecanicista que domina a filosofia política dos tempos modernos aos dias de hoje. A partir do momento que se representa as instituições sob o modelo de uma máquina, torna-se difícil compreender o espaço central que a estética deve ocupar na arte de governar.

Desse modo, a distinção é entre a qualificação jurídica que passa pela linguagem (crítica à nomenclatura) e interpretação e à qualificação estatística que opera às escondidas e a partir das convenções que são submetidas a regras que não se comparam com a qualificação jurídica (Supiot, 2015). A quantificação estatística foge ao princípio da contradição e permanece como campo privilegiado dos técnicos em estatística e em economia. A crítica do autor é direcionada, em particular, aos estatísticos que produzem os indicadores que são utilizados pelo governo, sobretudo para fundamentar as políticas públicas e econômicas.

Para Alain Supiot a crise institucional na qual a Europa está mergulhada precede a uma forma de pensar a governança da população que apareceu no início dos tempos modernos e continua a dominar o imaginário normativo. Imaginário este que consiste em representar a governança como uma técnica de poder, como uma máquina cujo funcionamento deve ser indexado sob a forma de conhecimento científico do ser humano. As formas de organização do trabalho ocupam um espaço central nestas transformações e é por essa razão que Alain Supiot dedica um grande espaço às novas formas de gestão cuja palavra de ordem é a mobilização total no trabalho (Supiot, 2015).

Nessa mesma linha de raciocínio Alain Supiot critica o positivismo jurídico do filósofo Hans Kelsen e opta por uma abordagem epistemológica do sistema jurídico levando em consideração as ciências sociais como instrumento pertinente de análise do sistema jurídico o qual se insere dentro de sistemas sociais e de formas de governança. O livro é estruturado em duas partes: na primeira o autor analisa a emergência de um poder impessoal onde o modelo dominante é o de uma máquina que governa e conduz a uma nova forma de governança baseada nos números; na segunda parte faz o retorno a allégeance pessoal como resposta ao impasse desta governança (Supiot, 2015).

Supiot analisa a transformação de uma sociedade fundamentada no reino da lei e a emergência de uma sociedade baseada no reino dos números. Segundo ele, esta última se inscreve em uma longa história da ilusão da harmonização através do cálculo em que a última inovação se deu com a revolução numérica, passando pela razão estatística, como diria Alain Desrosières (Desrosières, 1993). Tal transformação tem efeitos que fazem crescer as desigualdades sociais que podem ser semelhantes ao que ocorreu no século XIX em que a solidariedade tradicional foi destruída pelo capitalismo. Solidariedade esta que era fundada nas relações familiares, religiosas, profissionais e foram questionadas, com muita brutalidade, pela primeira industrialização como é bem exemplificado no caso da colonização e a escravidão. Hoje são as formas estatais de solidariedade, estabelecidas no âmbito do Estado social, para minimizar a ausência das solidariedades tradicionais, que estão sendo progressivamente desregulamentadas. O projeto de globalização concebe o mundo como um mercado total composto de partículas contrapostas a partir de relações fundadas no cálculo interessado. A questão é saber, nos diz Supiot, em que medida a análise jurídica pode contribuir para esclarecer essas transformações. Nesse sentido, ele não faz uma economia da reflexão epistemológica e metodológica.

Para o autor o princípio central é que o texto jurídico não deve ser isolado do seu contexto histórico, antropológico e socioeconômico, pois esta é a condição para se entender os fenômenos sociais recentes a partir de uma análise jurídica. A regra do direito não precede exclusivamente em a observação dos fatos, e estas não ajudam a ver a sociedade tal como ela é, mas tal como uma sociedade deve ser pensada e organizada, logo esta representação jurídica é um dos motores da transformação da sociedade (Supiot, 2015).

Nesse sentido, a análise jurídica põe um verdadeiro problema de ordem metodológica, uma vez que as relações complexas entre o texto da lei e o contexto social não podem ser compreendidas sem a contribuição das pesquisas em outras áreas do conhecimento como, por exemplo, as ciências humanas e sociais que alimentam pesquisas comparativas. Ora, esse mesmo problema metodológico se amplia com a temática da quantificação, que se acelera no período contemporâneo e isso conduz a um trabalho cada vez mais especializado dos juristas práticos, mas, também, em outras áreas do conhecimento (Supiot, 2015).

O autor faz uma retrospectiva histórica a partir da filosofia de Platão e Aristóteles e afirma que, desde os tempos modernos, o velho ideal grego de uma cidade fundada nas leis e não nos homens assume uma nova forma que é a governança concebida sob o modelo de uma máquina. É justamente com a sociedade industrial que surgem as indústrias e usinas elétricas bem como o direito do trabalho, cuja história se confunde com a história do capitalismo (Supiot, 2004).

Resulta que a representação dominante desta sociedade é marcada pela física clássica que concebia o mundo como um grande relógio com seus implacáveis pesos e formas. Para compreender melhor a natureza do problema, o ponto de partida epistemológico do autor é a noção de governança e não a de governabilidade, de Michel Foucault (2001). Alain Supiot nos relembra que não podemos esquecer que o paradigma mecanicista e racionalista são técnicas de manipulação e comunicação.

Esse paradigma da objetividade representa os homens como objetos e, nesta perspectiva, a arte de governar se apresenta como imensa máquina que os engenheiros estatísticos dominam com maestria. É na forma de pensar o sistema jurídico europeu que podemos encontrar esta maneira de pensar a governança sob o modelo da máquina e é isso que Alain Supiot observa na antropologia física de Hobbes em que o corpo deve curvar-se ao modelo do relógio (Supiot, 2015).

Desse modo, o trabalho se torna objeto de uma organização científica e se reduz a uma sucessão de gestos simples e mensuráveis. A organização “científica” do trabalho visava extorquir do trabalhador o máximo de rendimento possível, fechando-o “num sistema de obrigações que lhe retirava qualquer margem de iniciativa” (Gorz, 2004, p. 38). Ao modelo físico do relógio, que conduz a ver o homem como uma máquina, acrescenta-se o modelo biológico da seleção natural inspirado no darwinismo social, que é útil ao liberalismo e à competição sem limites de todos contra todos.

O ideal de um poder impessoal toma uma nova dimensão depois da Segunda Guerra Mundial, onde o número se torna progressivamente o fundamento das obrigações entre os homens e este imaginário de governança é o de uma sociedade sem heteronomia onde a lei cede o lugar à programação e, uma vez programado, o indivíduo não age livremente, ou seja, passa a se comportar de acordo com as reações esperadas. Este movimento foi engajado pela planificação Soviética na qual, pela primeira vez, a lei foi reduzida a um instrumento de aplicação da utilidade pragmática do cálculo (Supiot, 2015). Essa nova representação corresponde à passagem do liberalismo econômico, que colocava o cálculo econômico sob o controle da lei, ao neoliberalismo que coloca a lei sob a égide do cálculo e dos interesses econômicos e financeiros (Supiot, 2015).

A análise dos regimes comunistas feita por Alain Supiot é, na concepção do estatístico Jacky Fayole, de suma importância para pensar o sistema estatístico soviético e a passagem para a economia de mercado. Para Ejov, na concepção de Lenin, os estatísticos deveriam ser auxiliares do partido e do governo e Lenin colocou todo o aparelho estatístico a serviço da edificação do comunismo (Ejov, apud Fayolle, 1987). Assim, a ideologia do mercado se fortalece cada vez mais com a instrumentalização da engenharia estatística que não apenas quantifica, mas decide sobre as unidades a serem observadas e a nomenclatura que classifica e analisa certas dimensões dos fenômenos quantificados fazendo, ao mesmo tempo, uma economia das convenções (Desrosières, 2014).

O paradigma da quantificação, presente em todas as partes do mundo, ocupa o lugar central de norma fundamental em escala global. Esse paradigma destrói o Estado social (que por sua vez é representado como uma máquina) cujo objetivo não é a erradicação das novas formas de desumanização do trabalho, mas sim compensar seus efeitos e tornar o trabalho humanamente suportável. Para André Gorz, “as prestações e contraprestações sociais não reconciliam as populações com a sociedade capitalista, nem os procedimentos de negociação e de arbítrio permanentes desmontaram os antagonismos sociais.” (Gorz, 2004,18-19). A sujeição do indivíduo que conduz a governança através dos números não diz respeito apenas ao povo, mas aos indivíduos e às empresas (Supiot, 2015).

A concepção de Estado Social não corresponde mais à realidade da Europa, uma vez que esta foi substituída por uma representação cibernética que domina hoje a sociedade programada cujo ideal é a governança através dos números. A hipótese central do autor é de que a crise do Estado-providência revela uma ruptura institucional bem mais profunda que afeta a forma ocidental de conceber a administração, a gestão da sociedade e a governança, pois é a partir dos números que tornou-se o modelo dominante. A ideia do Estado-providência faz o autor concluir que a Lei ou a burocracia são consideradas, em sua análise, não apenas como um quadro de análise jurídica, mas como categorias que devem ser problematizadas com o interesse de melhor compreender as grandes transformações institucionais em processo sob a égide da globalização (Supiot, 2015).

A crítica fundamental do autor é direcionada à estatística como ciência do Estado. Para isso, Alain Supiot se fundamenta explicitamente na sociologia da quantificação do estatístico e sociólogo Alain Desrosières que elabora uma tipologia de cinco formas de Estado, que corresponde igualmente a modos distintos de utilização da estatística. A hipótese da sociologia da quantificação é que, como conjunto de convenções socialmente admitidas e as operações de medidas, criam-se uma nova forma de pensar, de representar o mundo e de agir sobre ele. Quando os procedimentos da quantificação são codificados e entram na vida cotidiana, as convenções iniciais são esquecidas e o objeto quantificado é naturalizado (Desrosières, 2014). A quantificação estatística tem essa dupla natureza por ser um instrumento de coordenação, administração e gestão que é mais político e é ao mesmo tempo instrumento de prova que se constitui mais como uma dimensão científica melhor prestigiada.

A concepção da administração científica do Estado tornou-se banal com as frequentes referências às noções de racionalização e de burocracia de Max Weber e de governabilidade de Foucault. Mas Max Weber foi pioneiro na análise das formas de exercício do poder “sublinhado a importância de dispositivos encarnando uma racionalidade legal, formal, no desenvolvimento das sociedades capitalistas, autonomizou o lugar das tecnologias matérias de governo em relação às teorias clássicas centradas principalmente na soberania e legitimidade dos governantes” (Lascoumes e Galès, 2012, p.23). O interesse de Desrosières é analisar essa racionalização levando em conta os instrumentos técnicos da estatística em sua dimensão política, sua estrutura e conteúdo que é congruente com formas de pensar a sociedade e de agir sobre a mesma. A sociologia da quantificação se interroga sobre as diferentes formas de pensar o Estado e o papel da estatística nas diversas formas possíveis de Estado.

Nessa mesma perspectiva de dominação nasce o homem programável cuja emergência se deve à cibernética e à revolução numérica. O computador obedece a um programa e não a regras jurídicas. Assim, se instaura uma concepção reificada do trabalho. A ideologia é que é preciso programar para otimizar a performance em função dos interesses econômicos e financeiros. É desta maneira que a democracia política é negada em nome da gestão e da administração numérica (Supiot, 2015).

Nesse sentido, para Alain Supiot o que caracteriza a governança é que ela não se fundamenta na legitimidade de uma lei que deve ser obedecida, mas na capacidade que todos os seres humanos têm para adaptar seus comportamentos a novas condições materiais e sociais, mais especificamente esta noção designa a interiorização de normas e a eliminação da heterogeneidade. A governança através dos números e da autonomia não visa limitar a ação do indivíduo e sim programar o conjunto das suas atividades no campo de trabalho. E, baseando-se em Bourdieu, o autor define este tipo de Estado como um Estado metafísico (Supiot, 2015).

Alain Supiot salienta que as grandes empresas transnacionais ocupam um espaço no mundo neoliberal comparável ao que era ocupado pelo Estado. O jogo de influências entre as grandes empresas e o Estado é forte e tende a limitar os direitos sociais, em geral, e o direito do trabalho em particular quando se considera, sobretudo, os efeitos da terceirização nas relações de trabalho. Os efeitos do paradigma da governança a partir dos números aparecem no momento em que a sujeição dos trabalhadores impõe “o imperativo da competitividade, fazendo-os erigir o interesse da empresa acima inclusive de sua saúde e de sua vida” (Gorz, 2004 p.41). As noções jurídicas são produtos da história ocidental e por essa razão devem igualmente ser problematizadas e sobre isso, o autor faz uma análise reflexiva das categorias jurídicas do pensamento.

A noção acrítica de globalização, para o Alain Supiot, exprime uma palavra de ordem seguida de uma crença ideológica na inevitável expansão da cultura ocidental em todo o planeta (Supiot, 2015). O que não é o caso da noção de mundialização que nos faz pensar na diversidade das culturas que se configuram como formas distintas de habitus. Esta noção crítica se contrapõe à concepção de uniformização do mundo sob o modelo ocidental. Segundo o autor, é preciso evitar a ilusão da concepção essencialista e positivista da cultura jurídica como estruturas invariantes que persistem no ser, bem como aquela do fim da história e do triunfo da cultura ocidental sobre as demais culturas.

A governança através dos números fundamenta-se na representação cifrada do mundo desconectado da experiência (Supiot, 2015). Esta submissão tem um preço que é a eliminação da consideração pelas pessoas e o bom uso da quantificação supõe o respeito da pessoa humana que não deve ser confundida com uma máquina, o que pressupõe um sentido da medida que o direito pode ajudar a manter ou restaurar, impondo o respeito do princípio da contradição na elaboração e interpretação dos números atrelados a uma força normativa. Restaurar o sistema jurídico no sentido de que a medida não pode ser feita sem um questionamento político do poder adquirido hoje, na maioria dos países, pelas classes dirigentes plutocráticas, onde a norma não tem nada de místico e a cupidez sem limites bem como o poder devastador tornou atual à crítica do capitalismo instituída por Marx (Supiot, 2015).

Nesse sentido, a reflexão de Eric Hobsbawm sobre a atualidade do pensamento de Marx, se inscreve na mesma linha de raciocínio epistemológico de Alain Supiot (Hobsbawmn, 2014). Ao analisar o nível de dogmatismo da doutrina econômica neoliberal, até mesmo na esfera jurídica, Alain Supiot considera que a crítica a esse sistema de crença tem a chance de engendrar, no mercado das ideias que é hoje um espaço público, alternativas possíveis ao sistema dominante de governança fundada nos números.

Alain Supiot analisa longamente os efeitos que a governança através dos números tem nas relações de trabalho que constituem, desde a era industrial, a base de todas as formas de governança e o indicador principal das políticas econômicas. Nesta concepção de gestão, a mobilização de uma pessoa a serviço da empresa deve ser total no sentido de que esta visa tanto o espírito quanto o corpo, a obediência mecânica a ordens cedem o espaço para a programação como modo de gestão do trabalho. Nesse sentido, uma esfera de autonomia concedida ao trabalhador deve ser utilizada para atingir os objetivos estabelecidos e, assim, o poder visível é substituído por um poder invisível e descentralizado. Esta autonomia na subordinação significa que o trabalhador se torne transparente em relação ao empregador que, a qualquer momento, pode medir e avaliar sua produtividade. Os objetivos são indissociáveis dos indicadores cifrados que são decididos de maneira arbitrária e que mede a performance do trabalhador. Nesse sentido, o trabalhador é reificado da sua experiência de mundo no qual ele se fecha em quadros especulativos e não pode extrair desta situação senão a fraude ou a doença psíquica.

Esta teoria da harmonia baseada no cálculo é justificada, ideologicamente, pela matemática como elemento central para a inteligibilidade do mundo e isso legitima os modos de gestão baseada na quantificação e na contabilidade, como maneira de prestar conta racionalmente dos resultados da produção. O próprio cálculo de probabilidade é ao mesmo tempo prescritivo e normativo. Ora, mas o autor não deixa de considerar que a matemática é um poderoso instrumento e é também um espaço de experiência mística e estética que deve ser colocada a serviço do homem.

A dimensão estética da matemática mostra bem a fascinação que ela exerce desde Pitágoras, mas sinaliza também para os perigos de submeter o sistema jurídico e a sociedade à ordem do cálculo. Nesse sentido, o problema da quantificação é objeto do direito na medida em que não são apenas os objetos que são quantificáveis, mas as pessoas são também classificadas em função da quantidade produzida, o trabalhador é reclassificado em função da produtividade e isso tem incidência jurídica nas relações de trabalho. A quantificação torna-se uma norma para o julgamento e os números surgem como modos de controle social dos indivíduos (Supiot, 2015).

O capitalismo, para Alain Supiot, se transformou em anarco-capitalismo que apaga as fronteiras, submete os Estados ao capital e desmantela as regras de proteção dos mercados fictícios tal como a natureza, o trabalho e a moeda como identificou Karl Polanyi. A necessidade deste desmantelamento é ideologicamente justificada cotidianamente pelo equivalente moderno da pregação religiosa que são as mídias. Como toda ideologia que perde o sentido do limite, o anarco-capitalismo é condenado a encontrar seu limite catastrófico e isso acontece quando a representação mental ignora o princípio da realidade.

A crise econômica de 2008 nos oferece um gostinho amargo deste limite catastrófico que encontrou argumentos para desmantelar o Estado social. É previsível que este desmantelamento conduza a imposição de altos índices de desigualdades em detrimento do princípio democrático, o que conduzirá a violências inéditas que se combina com desastres ecológicos engendrados pela superexploração dos recursos naturais. Isso acontece quando o Estado não assegura mais o seu papel regulador da economia, de defesa da identidade, da segurança física e econômica da população. A mudança de uma sociedade fundada na subordinação para outra baseada na programação é um ponto central da representação contemporânea da ação humana e dos modos de governança a partir dos números. A máquina a governar não é mais concebida sob o modelo do relógio, mas sob o modelo do computador e desta forma a governança dos números suplanta o governa das leis, sem esquecer que estas são resultado de convenções (Supiot, 2015).

Considerando o que Alain Supiot afirma neste livro, concluímos que apesar das dificuldades metodológicas, a análise jurídica pode ajudar a compreender as múltiplas crises que se estende com a globalização, com o crescimento constante das desigualdades, o fim do crédito, etc. As bases sociais sob as quais se fundamentava a ordem mundial desregulamentou tanto os Estados nacionais quanto os organismos internacionais. A perspectiva adotada pelo autor é indispensável para se compreender juridicamente de que forma a governança impessoal já estava presente no reino da lei e assume novas formas na governança através dos números.

Para Alain Supiot a ideologia da lei pode ser tão nociva quanto a dos números. Nesse contexto a lei torna-se objeto de cálculo, um mero produto legislativo em competição no mercado mundial das normas. As chances para o retorno do reino das leis são inexistentes em razão do estabelecimento durável da governança dos números. O problema, para o autor, é que se deve reinserir os mercados dentro da sociedade e cessar de reduzir a vida humana, e a vida econômica a uma economia de mercado. E também restaurar o princípio da democracia econômica e jurídica, pois assim o estado social constitui uma primeira tentativa de um tal ordenamento da economia dentro da sociedade (Supiot, 2015).

Logo no início do livro, Alain Supiot afirma que para compreender plenamente a dimensão jurídica da governança através dos números é preciso não se limitar à organização da cidade e da empresa, mas considerar o estado das pessoas e sua vida privada. Ora, seguindo esse raciocínio, o livro traria uma maior contribuição se o autor tivesse desenvolvido os modos de avaliação das instituições de ensino superior e dos pesquisadores que são submetidos à lógica da produtividade. A partir do momento em que a sociedade é representada como um sistema de partículas elementares ligadas pelo cálculo de interesse individual, este imaginário se exprime em todos os campos da vida humana e produz seus efeitos.

Essa análise nos permitiria ver melhor as incertezas presentes no mercado de trabalho e a insegurança no campo de trabalho onde a governança numérica é a lógica dominante. Por outro lado, os jovens operários encontram na empresa uma identidade que lhe é negada na sociedade global e isso cria as condições ideais para a sujeição de dominação do trabalhador. A quantificação é algo tão naturalizado que o indivíduo não se dá conta dos efeitos desse modo de governança. Nesse sentido, o livro é de Alain Supiot de suma importância para se compreender a natureza jurídica da quantificação e seus efeitos nocivos para a vida pessoal e a sociedade como um todo. Na conjuntura atual, a concepção de Alain Supiot é central para a compreensão jurídica das reformas trabalhistas tanto na França quanto no Brasil.

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