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Recepção: 18 Dezembro 2017
Aprovação: 19 Novembro 2018
DOI: https://doi.org/10.4013/csu.2018.54.3.08
Resumo: Este texto apresenta uma análise sociológica da esfera do consumo como esfera de “liberdade intersubjetiva”. Informado pela “teoria da justiça como análise da sociedade” tal como articulada por Axel Honneth, o autor procura verificar em que medida a esfera de consumo, entendida enquanto “subsistema” do mercado econômico, pode se apresentar (em suas práticas) como realização de valores socialmente institucionalizados. Para isso, no primeiro momento, foi feita uma revisão sistemática da literatura, a qual se ocupou em articular o nexo entre economia e moralidade na esfera do consumo mediado pelo mercado, em particular nos estudos mais atuais de Axel Honneth. Em seguida, é realizado um exame de situações empíricas de formas de reconhecimento intersubjetivo na esfera do consumo mediado pelo mercado. Destaca-se a recente visibilidade e afirmação da diversidade sexual e etnicorracial na indústria de propaganda e na publicidade do mercado brasileiro de bens de consumo. A análise empírica se apoiou exclusivamente no conteúdo textual e audiovisual vinculado em materiais selecionados de campanhas de publicidade. Ao final, deseja-se demonstrar os potenciais avanços normativos e as controvérsias que envolvem o mercado brasileiro de bens de consumo.
Palavras-chave: reconhecimento social, esfera do consumo, propaganda e publicidade no Brasil.
Abstract: This text presents a sociological analysis of the theme of consumption as a sphere of “intersubjective freedom”. Informed by the “theory of justice as an analysis of society” as articulated by Axel Honneth, the author clarifies the extent to which the sphere of consumption, understood as a “subsystem” of the economic market, may present itself (in its practices) as the realization of values socially institutionalized. For this, in the first moment, a systematic review of the literature is made that articulates the nexus between economy and morality, in the sphere of the consumption mediated by the market, in particular in the most current studies of Axel Honneth. Next, an examination of empirical situations of forms of intersubjective recognition in the sphere of market-mediated consumption is made. We highlight the recent visibility and affirmation of sexual and ethnic diversity in the advertising industry of the Brazilian consumer market. The empirical analysis relied exclusively on textual and audiovisual content linked to selected materials from advertising campaigns. In the end, it is desired to demonstrate the potential normative advances and controversies that surround the Brazilian market of consumer goods.
Keywords: social recognition, sphere of consumption, advertising and publicity in Brazil.
Introdução
Nascida a partir de mudanças estruturais na produção industrial de bens do século XIX, a chamada “sociedade de consumo” se caracteriza pela existência de uma esfera de consumo mediada monetariamente pela economia de mercado. Se é verdade que a prática de consumo é, segundo as colocações de Marx (2011), contemporânea da produção (humana) material da “humanidade”, também é verdade que na configuração institucional da economia capitalista o consumo se apresenta “materializado” de modo diversificado nas práticas, além de se constituir em uma esfera de ação de grande importância para a dinâmica de produção e reprodução do sistema econômico moderno. Mais, se nas sociedades pré-capitalistas o consumo se apresentava como em vínculo estreito e direto com uma única forma social de necessidade (“subsistência material”), nas modernas sociedades industriais o consumo responde a uma multiplicidade de motivações (materiais e simbólicas), consequência da crescente “multiplicação”, “diversificação” e “privatização” das formas socialmente produzidas de necessidades (Marx, 2010).
Com efeito, a literatura mais atual das ciências sociais tem destacado o importante papel do desenvolvimento de uma nova cultura do “consumismo” na dinamização da esfera do mercado. E também tem nomeado o consumo mediado pelo mercado como problemática sociológica obrigatória para aqueles que desejam compreender aspectos culturais da modernidade capitalista. Contudo, nas ciências sociais, quando enfrentada diretamente, quase sempre a problemática do consumo resulta em diagnósticos “pessimistas” a respeito da crescente ampliação dos mercados às esferas da vida social, outrora organizadas por lógicas distintas do imperativo de produção e reprodução do capital. Por consequência, além da produção social de desigualdades de acesso ao consumo, cientistas sociais denunciam as tendências corrosivas do consumo mediado pelo mercado na construção da subjetividade humana.
Assim, em continuidade com a crítica marxista do consumo em sociedades capitalistas, as ciências sociais do século XX vivenciaram uma explosão de obras de conteúdo crítico e de denúncia das consequências negativas da crescente mercantilização dos bens de consumo. Da crítica ao caráter “inautêntico” dos bens de consumo da “indústria cultural” (Adorno e Horkheimer, 1985), da denúncia de crescente alienação e fetichização do consumo de imagens (Debord, 2003), passando pela função (ideológica) do consumo “distintivo” na reprodução (cultural) da desigualdade (Baudrilhard, 1996; Bourdieu, 2007), até a denúncia de produção “efêmera” e “líquida” da identidade constituída a partir da mediação do consumo de mercadorias (Lipovetsky, 2007; Bauman, 2008). Certamente, essa postura crítica não foi a única chave de leitura do consumo na literatura das ciências sociais do século XX, conforme atestam os trabalhos antropológicos de Mary Douglas e Marshal Sahlins - a primeira preocupada em destacar aspectos simbólicos do consumo que não atendem diretamente ao regime de necessidades, a exemplo da função de comunicação entre pessoas (Douglas e Isherwoood, 2006); e o segundo, em assinalar o componente ativo de “ressignificação simbólica” das trocas comerciais pelas sociedades “indígenas” em meio a presença de empreendimentos capitalistas externos (Sahlins, 2004).
Porém, mesmo reconhecendo as relevantes contribuições das abordagens mencionadas acima, a motivação teórica que nos move no presente artigo é outra, qual seja, o desafio de problematizar as condições “situacionais” de possibilidade de enxergar no consumo mediado pelo mercado uma esfera intersubjetiva de “realização de valores socialmente institucionalizados”. Para isso, na próxima seção, realizo uma breve revisão de alguns autores da literatura das ciências sociais que se ocuparam teoricamente em pensar as práticas econômicas como assentadas em princípios de fundo normativo. Em comum, os autores analisados compartilham o mesmo “funcionalismo normativo” como pressuposto “metateórico” de suas teorias sociais e sociológicas da “economia moral”. Em seguida, abordo com mais profundidade analítica a tentativa de Axel Honneth de atualizar aquele mesmo funcionalismo normativo dentro da moldura de uma “teoria da justiça como análise da sociedade”. Embora considere outras matrizes teóricas possíveis, para tratar do tema aqui em discussão me dirijo ao exame da obra O Direito da Liberdade (2015), de Honneth. Conforme será demonstrado, o estudo apresenta investigações originais sobre aspectos simbólicos e normativos circunscritos na esfera de consumo que é típica das sociedades capitalistas da modernidade tardia.
Finalmente, na última seção, orientado pela “teoria da justiça como análise da sociedade” articulada por Axel Honneth (2015), procuro examinar situações empiricamente observáveis de realização da liberdade social no interior da esfera do consumo mediado pelo mercado. Para isso, concentro-me principalmente nas campanhas de publicidade e propaganda nas quais é possível identificar experiências de reconhecimento da diversidade dos “modos de ser” consumidor e consumidora no Brasil contemporâneo.
O funcionalismo normativo de Honneth e o mercado como instituição de liberdade
Antes de abordar diretamente o debate atual sobre a relação entre consumo e moralidade, é preciso, de início, situar tal relação dentro de uma relação mais ampla que atraiu a atenção analítica nas ciências sociais, a saber, a relação entre economia e moralidade. Não obstante, também é preciso assinalar que a preocupação científica com a articulação do conteúdo normativo do agir econômico não é propriamente nenhuma novidade nas ciências sociais. Inicialmente abordada por Adam Smith3, a questão do vínculo entre economia e moralidade vai receber atenção posterior de nomes diversos da filosofia e das ciências sociais.4 Contudo, dirigiremos nossa atenção àqueles nomes que compartilham o “funcionalismo normativo” como pressuposto metateórico comum em suas investigações da relação entre economia e moralidade.
Na sociologia, particularmente, a primeira referência vem a ser Émile Durkheim, precisamente, em sua conhecida análise da “dimensão não contratual do contrato”. Embora mais conhecido - principalmente por causa de sua tese de doutoramento Da Divisão do Trabalho Social (2010)5- pelo estudo dos dispositivos institucionais de integração social das sociedades, Durkheim também abordou a problemática sociológica da “inserção moral do mercado”, já anteriormente investigada por Adam Smith e Hegel6. Porém, diferentemente desses dois autores, Durkheim deu um tratamento “científico” para o problema da normatividade do mercado, rivalizando com a nascente ciência econômica do final do século XIX e seus pressupostos filosóficos. Contra a premissa utilitarista da teoria econômica marginalista que enxergava os intercâmbios econômicos como trocas contratuais entre indivíduos egoístas, Durkheim chamava atenção para o pano de fundo moral (laços de solidariedade) que precedia as relações contratuais realizadas no interior dos mercados. No caso das sociedades modernas diferenciadas, os agentes sociais compartilham um consenso normativo em torno da crença na autonomia do indivíduo, e esse consenso normativo constitui a “liga moral” de todas as relações contratuais estabelecidas nessas sociedades, o que inclui as relações de contrato na economia de mercado. Contra o individualismo metodológico dos economistas, Durkheim defendia o “individualismo moral” como elemento normativo que precederia as relações entre os indivíduos na moderna economia de mercado.7
Posteriormente, as ideias de Durkheim sobre a conexão entre economia e moralidade foram retomadas por outros nomes das ciências sociais. Na antropologia social, Marcel Mauss (2003), etnólogo francês e sobrinho de Durkheim - no texto Ensaio sobre a Dádiva, publicado em 1923 na revista Année Sociologique - também colocou em evidência empírica a dimensão pré-contratual como registro etnológico das trocas econômicas nas chamadas sociedades “primitivas”. Informado empiricamente por etnografias dos sistemas de trocas em diferentes sociedades “indígenas” e não capitalistas, Mauss demonstrou que os fenômenos de trocas e contratos encontrados em sociedades “privadas de mercados econômicos” são regidos ao mesmo tempo por lógicas morais e religiosas. A tese durkheimiana da dimensão moral que precede o contrato se converteu pela escrita de Mauss em pressuposto antropológico universal das sociedades humanas, sejam elas pré-capitalistas e/ou não capitalistas.
Da mesma maneira, décadas depois, Karl Polanyi (2000), historiador da economia que teve contato com os escritos etnológicos de Malinowiski e do próprio Mauss, abordou numa perspectiva histórica a importância da moralidade na economia. A partir do exame das formas de construção e inserção institucional dos mercados em diferentes sociedades, Polanyi defendeu que o progresso da economia de mercado nas regiões da Europa Ocidental e Oriental foi “principalmente político, intelectual e espiritual” (Polanyi, 2000, p. 65). Retomando a tese de Mauss sobre o papel da reciprocidade como princípio não econômico que rege os sistemas de trocas das sociedades tribais, Polanyi descreveu a história da emergência da moderna economia de mercado como caracterizada por um duplo movimento de “ampliação da organização do mercado” e criação de dispositivos de proteção e cerceamento da ação do mercado relativa ao trabalho, à terra e ao dinheiro. De modo resumido, assim como já apontado por Durkheim e Mauss, também Polanyi sustentou que havia “limites morais” impostos aos mercados econômicos, de modo a garantir a integração e coesão das sociedades.
Finalmente, a mais conhecida apropriação da ideia durkheimiana sobre a dimensão não contratual do contrato foi realizada por Talcott Parsons (2010), a fim de demonstrar que o sociólogo francês compartilhava com Pareto, Marshall e Weber a preocupação comum com os componentes normativos da estrutura e da ação social.8
Ainda sobre Parsons, o autor de The Sctruture of Social Action (1937), foi quem mais problematizou com sistematicidade as diferentes dimensões de uma teoria da ação (Action Theory). Seu ponto de partida foi a chamada “tese da convergência” (“convergence thesis”), caracterizada pela articulação de uma “crítica do utilitarismo” nas obras de Èmile Durkheim, Max Weber, Alfred Marshall e Vilfredo Pareto. Também segundo a tese da convergência, esses clássicos das ciências sociais convergiam na direção de uma ênfase do papel dos valores na integração das sociedades. Apesar das diferenças teóricas entre esses quatro pensadores, Parsons acreditava que seria possível identificar uma concepção comum de teoria da ação. Inspirado numa leitura considerada “sincrética” das ideias daqueles quatros autores clássicos, Parsons acusava o filósofo inglês Herbert Spencer de não ter considerado a importância dos consensos normativos na integração da sociedade. De modo a superar as aporias do utilitarismo, Parsons formulou uma “teoria voluntarista da ação” e mesmo uma “teoria normativista da ordem social”. Como é sabido, a dimensão moral da vida social em Parsons recebeu um tratamento exclusivamente funcionalista. Para ele, por exemplo, a generalização de valores deveria ser sempre compreendida como “respostas funcionais” a processos de diferenciação social em curso na sociedade.
Evidentemente, nossa ênfase aqui no circuito de influências das ideias de Durkheim sobre o nexo entre moralidade e economia não pretende ser aprofundada, sob o risco de desviar do assunto principal. Nossa intenção foi mais enfatizar uma linha de continuidade do “funcionalismo normativo” que vai receber novos acabamentos teórico-analíticos no presente. Esse mesmo “funcionalismo normativo”9 da tradição “durkheimiana” da sociologia e da antropologia vai ser revisitado em capítulo do livro Das Recht der Freiheit (2011)10, de Axel Honneth. Nessa obra, o sociólogo alemão e representante mais destacado da chamada “terceira geração” da Teoria Crítica ambiciona a construção de uma teoria da justiça a partir de mais uma atualização sistemática de Hegel: “Valendo-me do modelo da ‘filosofia do direito’ de Hegel, minha intenção era desenvolver os princípios de justiça social diretamente sob a forma de uma análise da sociedade” (Honneth, 2015, p. 9). O estudo de Honneth se torna interessante para os interesses deste artigo porque aborda a questão do mercado de consumo numa perspectiva teórica e analítica original, a saber, problematizando as condições de possibilidade do mercado “funcionar” como uma instituição de reconhecimento e liberdade. Logo em seguida, tentaremos mostrar as linhas gerais do raciocínio de Honneth, desenvolvidas, em particular, no tópico 2 (“O ‘nós’ do agir em economia de mercado”) da terceira parte do livro, dedicado à reconstrução normativa da experiência de “liberdade social” em “três sistemas de ação” modernos (relações pessoais, economia e a esfera política de deliberação e da formação da vontade pública). Na esteira do pensamento de Hegel, Honneth vai enxergar nesses três sistemas de ação “instituições de reciprocidade não coercitiva” e contextos da realização da liberdade social.
Inserindo-se no debate atual em torno das condições de desenvolvimento e aplicação de teorias da justiça, Honneth (2015, p. 15-16) acredita que o distanciamento da análise da sociedade constitui uma das grandes limitações da filosofia política contemporânea. Esse distanciamento, segundo a sua interpretação, seria provocado pela hegemonia das teorias da justiça de matriz kantiana11, caracterizadas pelo desenvolvimento de regras normativas independentes das instituições existentes. Em contraposição à hegemonia do kantismo no campo da teoria da justiça, Honneth coloca o desafio teórico de superação do “déficit sociológico” presente naquelas abordagens e retoma o que enxerga ser um projeto inacabado de teoria da justiça adormecido nos escritos de Hegel, um projeto mais sensível ao vínculo estrutural entre instituições e princípios de justiça. Dito de outro modo, ele recupera uma intuição hegeliana que entendia a racionalidade moral como “realizada” nas instituições da modernidade. Apoiando-se em sínteses teóricas entre autores de tradições diversas da sociologia (Talcott Parsons, Èmile Durkheim, Jürgen Habermas e John Dewey) e antropologia filosófica (Arnold Gehlen e Charles Taylor), Honneth tenta mais uma vez atualizar Hegel12 numa empresa sociológica de diagnóstico do presente.13
Porém, diferentemente de obras anteriores onde o conceito de “reconhecimento” ocupa lugar central nas análises, agora seu ponto de partida é a ideia de liberdade, entendida enquanto principal valor perseguido na modernidade, presente tanto no horizonte de autorrealização individual quanto no ordenamento institucional. Afastando-se de uma compreensão “naturalista”, Honneth vai conceber a liberdade numa perspectiva hermenêutica, isto é, enquanto um “valor” cuja significação é constituída nas práticas sociais e aberta a revisões históricas constantes. Contudo, apesar de socialmente construído, o ideal de liberdade se encontraria também generalizado e institucionalizado no ordenamento social e nas práticas cotidianas das sociedades modernas.14
Assim, Honneth identifica três modelos de liberdade15 produzidos na modernidade, todos eles “materializados” diferencialmente em instituições sociais: a “liberdade negativa”, a “liberdade reflexiva” e a “liberdade social”. As duas primeiras ideias de liberdade - “liberdade negativa” e “liberdade reflexiva” - se encontram materializadas respectivamente em dois complexos institucionais: a “instituição da liberdade jurídica” e a “instituição da liberdade moral”. No entanto, para Honneth, as práticas de liberdade individual vivenciadas naquelas duas instituições, dada a sua “constituição modal”, oferecem apenas “possibilidades de liberdade”, não constituindo por si próprias uma “realidade intersubjetivamente compartilhada do seio do mundo social” (Honneth, 2015, p. 224).16 Em consequência, instituições como o “sistema de ação das relações pessoais” ou o “sistema de ação capitalista do mercado” não podem ser compreendidas plenamente recorrendo apenas às categorias da liberdade jurídica ou da moral. Nesse sentido, embora exista uma relação vinculante entre instituições e liberdade, não são todos os complexos institucionais, assim advoga Honneth, que realizam a liberdade individual, mas somente aqueles com “obrigações de papéis complementares” (Honneth, 2015, p. 225).
Para Honneth (2015, p. 81), Karl Apel e Jurgen Habermas teriam avançado em direção ao sentido mais próximo da ideia de liberdade social, pois mesmo articulando um conceito de liberdade individual no terreno da “liberdade reflexiva”, os dois pensadores alemães teriam situado aquele primeiro conceito dentro de uma moldura da “interação intersubjetiva no discurso” como condição de possibilidade do antrocontrole racional. No modelo proposto pela ética discursiva, a interação com outros numa instituição social (linguagem ou discurso) configura a “circunstância institucional” de realização da liberdade (Honneth, 2015, p. 81). Contudo, apesar da vinculação institucional da liberdade presente na teoria do discurso de Apel e Habermas, Honneth a considera insatisfatória, posto que o “social” (discurso) se apresentaria nas análises daqueles dois autores como um “fato transcendental” ou “metainstituição”, e não como “instituição particular na multiplicidade de suas manifestações sociais” (Honneth, 2015, p. 82).17
Em vista disso, Honneth credita a Hegel o desenvolvimento mais consistente da noção de liberdade. Contida na formulação do “estar consigo mesmo no outro”, a “liberdade social”, tal como compreendida por Hegel, se assenta em relações de “reconhecimento recíproco” vinculadas institucionalmente. Na interação entre sujeitos, cujos objetivos se complementam, a liberdade se realiza como uma experiência intersubjetiva (Honneth, 2015, p. 85). Dessa forma, no conceito de liberdade de Hegel, a ideia de intersubjetividade é central. Além disso, Hegel enxergaria nas “instituições de reconhecimento”, entendidas como conjunto de práticas padronizadas que se entrelaçam, a “condição social” da aspiração à liberdade do indivíduo. Nas palavras de Honneth (2015, p. 87):
Em última instância, o sujeito só é “livre” quando, no contexto de práticas institucionais, ele encontra uma contrapartida com a qual se conecta por uma relação de reconhecimento recíproco, porque nos fins dessa contrapartida ele pode vislumbrar uma condição para realizar seus próprios fins.
Aqui, mais uma vez, Honneth segue Hegel, este último, lembrando que embora tenha reconhecido o nexo entre instituições e liberdade, destacou que somente as “estruturas institucionais” nas quais “são fixadas relações de reconhecimento” possibilitariam a realização da liberdade. Igualmente, Honneth vai investigar as condições institucionais de realização da “liberdade social” e destacar que nas atuais sociedades ocidentais esse tipo de liberdade (entendida enquanto valor “síntese” das demandas de reconhecimento) se encontra materializado nas três esferas institucionais nucleares da modernidade: esfera pessoal; esfera do agir econômico; e esfera de formação da vontade democrática. Mais, Honneth acredita que o modelo de sociedade desenvolvido por Talcott Parsons é o que melhor fornece na sociologia contemporânea as bases teóricas para uma atualização do programa hegeliano de uma “teoria da justiça como análise da sociedade”. Assim como no modelo de eticidade esboçado por Hegel, no modelo parsoniano todas as esferas da sociedade encontram-se vinculadas a valores éticos. Isso significa que todo e qualquer ordenamento social necessita de um ponto de apoio normativo que possibilite a sua legitimação. Dito de outro modo, os valores ou ideais de autorrealização fornecem o conteúdo normativo presente no complexo institucional da sociedade. E esse mesmo “pressuposto ‘transcendental’ de coação para a integração normativa” se faz presente também nas sociedades “heterogêneas”, o que resulta numa:
[...] pressão para queos valores éticos possam se tornar mais abrangentes e gerais, podendo, então, abrigar também os ideais de culturas minoritárias, mas a inevitabilidade de a reprodução material e socialização cultural se organizarem segundo as exigências de normas compartilhadas de maneira comum é mantida (Honneth, 2015, p. 21, grifo nosso).18
Ainda que compreendidas conjuntamente como “instituições relacionais”19, as três esferas modernas da ação social se diferenciam estruturalmente em dois aspectos: no modo de institucionalização das obrigações constitutivas dos papeis sociais e no tipo de fins individuais realizados nos sistemas de ação por meio dos respectivos entrecruzamentos de papéis (Honneth, 2015, p. 235-236). Além da diferenciação estrutural entre as esferas institucionais, Honneth concebe uma segunda diferenciação, “interna”, em cada uma das instituições de reconhecimento recíproco. Essa diferenciação interna se caracteriza pela existência de variantes formais do tipo de relação intersubjetiva vivenciada em cada subsistema das instituições relacionais.20
No entanto, em seu trabalho de reconstrução normativa das três esferas de “eticidade” da modernidade, é possível perceber em Honneth a preocupação sociológica em evitar uma compreensão estática ou cristalizada tanto da experiência de liberdade quanto das instituições vinculadas. Honneth evita um olhar essencialista das estruturas sociais ao empregar uma abordagem histórico-processual das mudanças observadas nas instituições e nas formas sociais de liberdade. Portanto, após reconhecer que o projeto de desenvolvimento de uma teoria da justiça de tipo hegeliano pressupõe considerar as mudanças nas “relações sociais” e nas “condições da argumentação filosófica”, Honneth tenta realizar uma atualização contextual das instituições e das formas sociais de liberdade, pois acredita que tanto as estruturas institucionais quanto as experiências da liberdade se modificaram desde o tempo de Hegel e que, portanto, essas mudanças precisam ser consideradas no desenvolvimento de uma teoria da justiça como análise da sociedade (Honneth, 2015, p. 125). Além da preocupação com a análise da mudança social, também, do ponto de vista sociológico, existe uma outra preocupação analítica, a saber, em articular a lógica das mudanças nas estruturas institucionais e nas experiências de liberdade vinculadas. Isto é, além de articular a forma social que pode assumir uma dada instituição (família, amizade, mercado de trabalho, esfera do consumo), também é importante no empreendimento sociológico apreender o tipo de experiência de liberdade intersubjetiva vivida em cada forma institucional historicamente dada.
Evidentemente, Honneth reconhece que a história das mudanças institucionais e das experiências de liberdade não pode ser entendida apenas em termos de uma evolução linear. No mesmo quadro reconstrutivo, ele também identifica e examina os bloqueios e recuos normativos no “direito da liberdade”, o que corresponde ao momento de empreendimento típico de toda tradição identificada com a construção de uma “teoria crítica da sociedade”21. Se é possível reconhecer avanços civilizatórios na ampliação e institucionalização da liberdade social, também é inegável constatar retrocessos em determinados contextos de época.
Assim, em cada uma das três esferas institucionais - relações pessoais, esfera do agir econômico e formação da vontade democrática - encontraríamos “formas sociais” de liberdade intersubjetivamente vivenciada. Para os interesses específicos deste ensaio, pretendemos tratar apenas da segunda instituição relacional de realização da liberdade social: o sistema do agir econômico. Aqui, Honneth aplica seu método de reconstrução normativa procurando identificar o caminho de realização progressiva dos princípios de liberdade social, sob a pressão dos movimentos sociais, protestos morais e reformas políticas. Contra as interpretações unilaterais, Honneth (2015, p. 370) propõe, em continuidade com a tradição da “economia moral”22, reconstruir normativamente a economia de mercado a partir da observação dos “mecanismos discursivos e reformas jurídicas”, de modo a verificar as condições situacionais de conformação institucional da realização da liberdade. Desse modo, após subdividir a esfera do agir econômico em dois subsistemas da ação (“esfera do consumo” e “mercado de trabalho”), cada subsistema de ação é submetido a uma reconstrução normativa, de modo a descrever como em cada um deles se realizaria uma forma social específica de liberdade.23 Para entender melhor como se processa a ampliação da experiência de liberdade social no mercado de consumo, vamos acompanhar o raciocínio reconstrutivo de Honneth.
Honneth inicia sua reconstrução normativa do mercado de consumo destacando que por muito tempo a tese weberiana foi a principal fonte explicativa da rápida difusão da economia capitalista em países da Europa Ocidental do século XX. Segundo essa tese, bastante conhecida nas ciências sociais, as correntes protestantes teriam criado as bases motivacionais da “necessária” disposição à divisão do trabalho e à autodisciplina.
Nas últimas décadas, contudo, após os desenvolvimentos mais recentes da sociologia econômica, o desenvolvimento da nova cultura do consumismo passou a ser considerado como outro importante agente dinamizador da esfera do mercado (Honneth, 2015, p. 375). Desenvolvida ao longo do século XVIII, a cultura do consumismo, naquele mesmo período, atraiu crescente atenção no debate teórico acerca das condições de surgimento e desenvolvimento do capitalismo. Inserido no mesmo debate de época, Hegel teria dedicado esforço de reflexão sobre o “sistema de necessidades” da economia de mercado e, segundo Honneth (2015, p. 371), tomado “consciência” de “outra dimensão da nova forma de liberdade individual”. Ou conforme afirma o sociólogo alemão:
Por meio das possibilidades que lhes são abertas à compra individual pelo mercado de bens, os sujeitos aprendem a se entender como consumidores,livres para formar suas vontades pessoais e, assim, a sua identidade, pela via da busca hedonista e pela aquisição satisfatória de mercadorias (Honneth, 2015, p. 372, grifo nosso).
Desse modo, Hegel interpretava o consumismo como a manifestação de um “marcado avanço no estabelecimento institucional da liberdade individual” (Honneth, 2015, p. 371-372). Ainda na leitura que Honneth faz de Hegel, este problematizou a multiplicação de novos sentidos de necessidades e o surgimento de uma autoimagem de consumidores “livres”. Compreendendo a necessidade como um “orientar a si pelo outro” e o sistema de necessidades como uma relação de reciprocidade, Hegel acabou enxergando no mercado de bens um “meio abstrato de reconhecimento”:
Que possibilita a realização da liberdade individual coletiva por meio de atividades complementares; os consumidores reconhecem as atividades assalariadas como as que lhes possibilitam a satisfação de suas necessidades; e, no sentido inverso, tal satisfação garante àqueles a obtenção de seu meio de vida (Honneth, 2015, p. 373).
Por essa razão, a esfera do consumo mediada pelo mercado, no entendimento de Hegel, poderia ser entendida como uma relação intersubjetiva de reconhecimento no contexto das sociedades modernas (Honneth, 2015, p. 373). Apesar da relação entre produtores e consumidores apresentar situações problemáticas (“manipulação das necessidades por parte das empresas” e “consumo ostentatório”), a mesma relação pode assumir a forma social de reconhecimento recíproco das necessidades.
Posto isso, Honneth desenvolve uma descrição histórica das diferentes reações morais à esfera do consumo e do surgimento de dispositivos de normatização do mercado de consumo. Ele salienta o surgimento de “cooperativas” e “associações de consumidores” como “mecanismos discursivos” de “socialização moral” do mercado, onde emergem dispositivos de justificação do ordenamento jurídico nacional em termos de justiça na esfera do consumo (Honneth, 2015, p. 384). Justificação da regulação jurídica dos direitos do consumidor em termos de “justiça” no mercado de consumo e o posterior surgimento e difusão geral de dispositivos legais de proteção dos interesses dos consumidores, agora no século XIX. Por sua vez, se é certo que no século XX as sociedades industriais vivenciaram o surgimento da indústria de propaganda orientada para influenciar as preferências dos consumidores, também é certo que, em consequência desse fato, houve uma crescente problematização moral coletiva do consumo e da questão da dignidade da alimentação. Essa crescente politização ligada aos interesses dos consumidores, logo, se traduziu na intensificação da política de consumo promovida pelos Estados nacionais no século XX (Honneth, 2015, p. 385-386).
Com a constituição de um mercado de consumo individual de tecnologias de comunicação e informação durante o período Entre Guerras, assim como a ampliação da “indústria cultural”, também se constituiu uma ampla e abrangente corrente de crítica intelectual ao fenômeno do consumismo (Honneth, 2015, p. 290). Assim, no quadro reconstrutivo da história geral de exigência normativa no interior do mercado de consumo, Honneth destaca os movimentos de proteção legal dos consumidores no início do século XX, o declínio do movimento de cooperativas de consumo após a Segunda Guerra e os novos movimentos de moralização do mercado de consumo pós-1960.
Portanto, na esfera do consumo, encontraríamos um percurso histórico de multiplicação das considerações de critérios normativos (“preços justos”, “responsabilidade ambiental”, “coesão social”) que permitiria falar em “tendências à moralização do mercado de bens de consumo”.24 Mais, o conteúdo normativo da esfera de consumo estaria sempre aberto a revisões reflexivas, dinamizadas por lutas moralmente motivadas em seu interior. Todos esses acontecimentos históricos confirmariam, segundo conclui Honneth, a tese de que o mercado pode funcionar como uma instituição de reconhecimento e liberdade social.
De maneira geral, embora nos ofereça bons indicadores empíricos, quando se trata das situações descritas de sensibilidade moral do mercado de consumo, Honneth menciona apenas as exigências normativas de preços justos, responsabilidade ambiental e proteção dos direitos dos consumidores. Por isso, para uma apreensão empírica mais completa, convém incluir no quadro histórico geral de exigências normativas que sensibilizam o mercado aquelas mais diretamente relacionadas ao respeito às diferenças e ao reconhecimento da diversidade dos modos de ser consumidora e consumidor. É o que procuramos fazer ao examinar numa abordagem mais empírica tendências do mercado brasileiro de publicidade e propaganda, em especial, do crescimento de campanhas publicitárias que articulam compromissos com exigências normativas de reconhecimento da diversidade. Nosso recorte empírico se restringe ao intervalo temporal de 2 anos (2015-2016). Respeitando esse intervalo temporal, fizemos um levantamento na internet e em redes sociais das campanhas publicitárias que abordaram a temática da afirmação das diferenças, selecionando aquelas que tiveram mais impacto na esfera pública brasileira.25
O reconhecimento da diversidade do consumidor na publicidade brasileira contemporânea
Em 16 de março de 2015, o comercial de divulgação da nova cerveja da Skol Beats Senses (Skol, 2015) mostra grupos de jovens negros e brancos dentro de um metrô, cantando e dançando ao som de We Will Rock You, da banda britânica de rock Queen. No mesmo vídeo, em imagem rápida, vemos duas jovens mulheres se beijando enquanto, em seguida, aparece uma narradora que diz A música une. Skol dá a liga! A campanha publicitária, feita para a divulgação da marca junto ao público consumidor de bebidas e frequentador do festival de rock Lollapalooza, enfatizou a ideia de união na diversidade e recebeu elogios do público por apresentar uma proposta bem diferente dos comerciais tradicionais de cerveja da época, ainda caracterizados por apelos sexistas e com uma comunicação dirigida quase que exclusivamente ao público heterossexual.
Dois meses depois, a empresa aérea Gol (GOL Linhas Aéreas Inteligentes, 2015) divulgou na internet sua campanha de celebração do Dia das Mães com uma novidade inédita na propaganda brasileira: apresentou três famílias constituídas com crianças adotadas, das quais, uma das famílias era formada por um casal homossexual e o filho negro. O vídeo se inicia com a imagem do desenho rabiscado em quadro negro de uma família composta por dois pais e uma criança para, em seguida, apresentar as falas de um casal homossexual que expõe suas expectativas na adoção de uma criança. Finalmente, o vídeo finaliza com a frase rabiscada no mesmo quadro negro: “Nossa família existe”. Além de investir no apelo para a sensibilidade com a prática de adoção de crianças, a campanha publicitária da Gol transmite a mensagem de que amor da família não tem distinção de gênero e sexualidade.
Também em 2015, na campanha do Dia dos Namorados, a Boticário, marca brasileira de perfumes, inovou numa propaganda inclusiva, que apresentava cenas alternadas de trocas de presentes com casais gays e heterossexuais. A campanha - que chegou a ser denunciada ao Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) por “desrespeito à família brasileira” - acabou com uma aprovação geral positiva da opinião pública brasileira e foi elogiada por ativistas de direitos humanos por promover a visibilidade de públicos gays de consumidores.
Já em maio de 2016, também numa campanha de publicidade para o Dia dos Namorados, a C&A, uma das maiores redes varejistas do mundo, fez circular nos canais de TV aberta e nas redes sociais uma propaganda intitulada “Dia dos Misturados” (C&A, 2016), onde exibia cenas de casais formados por indivíduos de gêneros e sexualidades diversas que trocavam suas roupas com os parceiros em situações românticas cotidianas, transmitindo a mensagem “pós-gênero” nas relações amorosas. Em junho de 2016, foi a vez da AVON Brasil - marca de cosméticos bastante popular no país - que lançou nas redes sociais a campanha #SintaNaPele (AvonBR, 2016), onde exibia um cenário com artistas e ativistas LGBT e do movimento negro, a exemplo de Liniker e da banda As Bahias e a Cozinha Mineira. A mensagem geral da campanha publicitária era a visibilidade e valorização do público etnorracial e LGBT de consumidores/as. A mesma AVON Brasil, dois meses depois, lançou uma nova peça publicitária, #OQueTeDefine (AvonBR, 2016) que trazia as rappers Lay, Karol Conká e Mc Carol juntas numa campanha de empoderamento feminino e afirmação da diversidade estética. Finalmente, em 2015, o caderno de comportamento ViverBem, da Gazeta do Povo (Nucada, 2015), traz uma reportagem sobre o uso de conceitos feministas por empresas em suas campanhas publicitárias, o que evidencia a crescente visibilidade da diversidade como tendência geral na publicidade e propaganda no Brasil.
Se contrastarmos as campanhas publicitárias apresentadas acima com a representação da família brasileira explorada nos famosos comerciais de Margarina da década de 1990, fica evidente a mudança na imagem do perfil de consumidor tal como era percebido e difundido na indústria de publicidade brasileira. De uma representação “heteronormativa” e racialmente homogênea (hegemonia de pessoas brancas nos comerciais), passou-se a se explorar nas campanhas publicitárias atuais a diversidade de formas sociais de família, de relações amorosas, diversidade racial e de gênero e sexualidade. Mais do que isso, é possível identificar na esfera do consumo brasileiro uma tendência atual de preocupação com o reconhecimento da diversidade dos modos de ser consumidor. Para não ficarmos apenas no campo da publicidade e propaganda, merece destaque também o mercado brasileiro de cosméticos26 (Veloso, 2016), com a crescente preocupação em desenvolver produtos dirigidos ao público consumidor específico de mulheres negras, estas últimas, reivindicando a oferta de produtos cosméticos que atendam demandas estéticas da pele negra e de cabelos cacheados. Além do mercado de cosméticos dirigidos ao público negro de consumidores, outro mercado que vem ganhando projeção crescente no país é o chamado mercado plus size, caracterizado pelo desenvolvimento de produtos de moda que atendam a uma demanda específica de pessoas que usam vestuário acima de 44.27
Numa leitura mais crítica da “indústria cultural”, a visibilidade da diversidade no mercado de consumo é interpretada menos como reconhecimento efetivo do que manipulação instrumental de demandas de mercado. Porém, o que é somente lido por alguns observadores como mais uma manifestação da cultura do “politicamente correto”, merece uma reflexão mais sofisticada, que inclua na perspectiva de análise possíveis mudanças de consciência cultural em curso na própria esfera do consumo mediado pelo mercado. Para além dos consumidores, é fato que muitos daqueles que formam o segmento de produtores de bens de consumo também se encontram inseridos em redes pessoais de sociabilidade que envolve experiências de interação intersubjetiva com públicos diversificados. Não se pode descartar a possibilidade empiricamente plausível de muitos dos produtores de bens de consumo serem gays, negras e negros, o que indicaria um potencial de “descentramento moral” e “revisão da orientação de valor” inscrito na comunicação entre produtores e consumidores oriundos das minorias.28 A exemplo disso, assim como é correto falarmos na emergência de um mercado de consumo gay, também é correto considerar o crescimento paralelo de “empreendedores” gays29 (Barbosa, 2016).
Como tem ocorrido em outros lugares, também no Brasil a crescente politização de demandas de reconhecimento da diferença na esfera pública nacional acabou transbordando e transcendendo a esfera política e alcançando outras esferas institucionais, a exemplo do próprio mercado de consumo. O caso empírico mais exemplar dessa politização do mercado de bens de consumo no Brasil é a Feira Preta Cultural que ocorre todos os anos na cidade de São Paulo. Considerada a maior feira de cultura negra da América Latina, o evento se encontra em sua décima edição e mobiliza dezenas de empreendedores e empreendedoras de diferentes lugares do país, a fim de divulgar produtos e realizar negócios, de modo a consolidar nacionalmente um “mercado étnico” formado por empresários, trabalhadores e consumidores negros.30
Além dos fatos apresentados acima, outras pesquisas têm evidenciado a tendência de maior reconhecimento da diversidade no mercado brasileiro de bens de consumo. A respeito disso, Costa (2006) tem destacado o movimento de crescente “ressignificação” das etnicidades negras no mercado de bens culturais, a exemplo da redefinição do lugar estético do cabelo crespo, que resulta na emergência e difusão de salões “étnicos” de beleza, assim como também o crescimento do mercado de gêneros musicais identificados com a “cultura negra” (soul, funk, e Hip-hop). Em outra pesquisa desenvolvida pelo SEBRAE e divulgada pelo governo federal, constatou-se que entre 2002 e 2012 houve um crescimento de 27% de empreendedores negros e aumento da participação das mulheres nos negócios (Brasil, 2015).
Porém, para que não fiquemos numa leitura unilateral do quadro atual do mercado de publicidade e consumo, é preciso ressaltar também algumas tentativas de “resgate” de imagens estereotipadas de homens e mulheres. Por exemplo, a marca de produtos para o corpo Old Spice, da Procter&Gamble, tem ganhado bastante projeção nacional pelo investimento em propagandas que valorizam uma imagem do “homem Homem” e de resgate do “orgulho masculino”. Nitidamente “heteronormativa” e “misógina”, a campanha publicitária Procter&Gamble tem sido vinculada em diferentes canais (fechados e abertos) de TV do Brasil. Finalmente, em sua edição de 25 de maio de 2015, a Revista Fórum apresentou uma reportagem sobre “As 10 propagandas mais machistas e racistas do ano” (Revista Fórum, 2015). Em suma, contraexemplos da ideia do mercado de consumo como “instituição de reconhecimento” também podem ser encontrados no presente.
Considerações finais
Diante do que foi exposto até aqui, parece plausível a afirmação de que o mercado de consumo brasileiro tem despertado na atualidade uma forte sensibilidade para as demandas de reconhecimento da autenticidade de grupos e “minorias” anteriormente excluídos da visibilidade nas campanhas de publicidade. E é nesses termos que o mercado de bens de consumo pode se apresentar como uma “relação institucionalizada de reconhecimento recíproco”, onde a relação entre os interesses dos empresários e os interesses dos consumidores é pensada de modo intersubjetivo, isto é, ações com referência um ao outro (Honneth, 2015). Para que os empresários possam realizar seus interesses de maximização do lucro mediante a compra e consumo de mercadorias, necessitam considerar em igual medida demandas subjetivas dos consumidores, dentre as quais, a heterogeneidade cultural de possibilidades de viver suas identidades enquanto indivíduos ou membros de um grupo social.
Certamente, ainda é prematuro concluir que essa é uma tendência irreversível na indústria de propaganda e publicidade ou que vivenciamos efetivamente uma experiência de “progresso normativo” na esfera do consumo mediada pelo mercado. As reações morais contrárias à visibilidade da diversidade também são bastante expressivas, embora ainda não tenham resultado em prejuízo material para as empresas envolvidas em campanhas de reconhecimento da diversidade. Porém, se como assinalamos, seria apressado qualquer diagnóstico sobre uma possível “evolução moral” do mercado de consumo, os casos ilustrados acima permitem confirmar empiricamente a descrição sociológica de Honneth sobre o sistema de consumo mediado pelo mercado como uma “esfera normativa altamente sensível” às demandas de justiça que brotam na sociedade.
Para finalizar, convém ressaltar que o presente ensaio está longe de ser uma reconstrução normativa da liberdade intersubjetiva na esfera do consumo mediado pelo mercado. Para materializar tal empreendimento teórico, seria necessário, no mínimo, uma reconstrução histórica do curso de desenvolvimento do mercado brasileiro de consumo nos últimos cem anos, de modo a visualizar com mais segurança possíveis avanços na ampliação da experiência de liberdade, algo inviável nos limites dessa comunicação.
Contudo, não se deve descartar o trabalho de reconstrução normativa da esfera do consumo no Brasil como um empreendimento de investigação futura necessária. Na ausência atual de uma empresa de investigação sociológica desse tipo, podemos, pelo menos, constatar, conforme procurei fazer nessa última seção, a existência atual de uma maior sensibilidade pública no mercado de consumo brasileiro para a questão da autenticidade e da diversidade. De um tipo de mercado de bens de consumo cuja oferta de mercadorias se dirigia quase que exclusivamente a um perfil homogêneo de consumidor, excluindo da esfera de relações de consumo expectativas subjetivas de indivíduos e grupos dissidentes dos padrões hegemônicos, entramos numa nova configuração do mercado de consumo em que sua oferta de mercadorias tende a considerar mais a existência de modos diversificados e diferenciados de construção das identidades de gênero, sexualidade e etnorraciais, e, por conseguinte, de construção variada de demandas subjetivas de consumo. Portanto, sem a intenção de refutar os efeitos corrosivos e excludentes do mercado econômico sobre a vida social, nos parece mais verossímil rejeitar uma explicação de tipo estrutural, tal como as oferecidas pela literatura tradicional de crítica do mercado de consumo, e considerar a hipótese já articulada por Hegel, Durkheim e retomada atualmente por Honneth, a qual entende aqueles mesmos problemas sociais existentes na economia de mercado como “déficits funcionais”, e, portanto, passíveis de correção pela via de reformas institucionais impulsionadas nas múltiplas lutas por reconhecimento social.
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Notas