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Memórias longas e curtas: Uchuraccay, reforma agrária e campesinato
Long and short memories: Uchuruccay, land reform and peasants
Ciências Sociais Unisinos, vol. 54, núm. 3, pp. 376-378, 2018
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Resenha

DEL PINO P.. En nombre del gobierno: El Perú e Uchuraccay: un siglo de política campesina. 2017. Lima. La Siniestra Ensayos. 277 ppp.

Recepção: 31 Julho 2018

Aprovação: 21 Setembro 2018

DOI: https://doi.org/10.4013/csu.2018.54.3.11

O livro do historiador peruano Ponciano del Pino intitulado En nombre del Gobierno. El Peru y Uchuraccay: Un siglo de política Campesina (Em nome do Governo: o Peru e Uchuraccay) foi agraciado com o Prêmio Ibero-americano 2018 pela Latin American Studies Association (LASA). A obra se debruça na compreensão da violência das comunidades alto-andinas da região de Ayacucho, no Peru, a partir da história oral daqueles que a vivenciaram, desafiando a visão dominante que interpreta as ações dos comuneros (membros da comunidade) como equívocos motivados pela ignorância. As memórias abordadas pelo autor estão intimamente entrelaçadas com a história do movimento contra o fazendeiro, a tomada de terras de 1960, o processo da Reforma Agrária, os conflitos entre as comunidades, intensificados em 1970, os processos de construção de instâncias do Estado para lidar com as demandas do interior do Peru no século XX, e a infiltração do Sendero Luminoso nas comunidades analisadas. Essas memórias e vivências moldam o posicionamento dos protagonistas e consequentemente ações no contexto da guerra interna da década de 1980. O ponto de partida do livro é justamente a morte dos oito jornalistas e dois comuneros de Uchuraccay, em 1983, que suscitou um escândalo nacional e foi citado em várias mídias internacionais. Os cinco capítulos compreendidos no livro estão distribuídos em três partes. A primeira parte é intitulada “Los Silencios de la Guerra”, a segunda, “Las Memorias Insurgentes”, e finalmente, a terceira parte tem como título “La Naturaleza en la Historia”.

A memória e o silêncio são o objeto de estudo da primeira parte do livro, que tem início justamente com a investigação sobre o caso de Uchuraccay, lugar emblemático na guerra interna vivenciada pelo Peru na década de 1980, alvo das ações do Sendero Luminoso. Os registros do acontecimento estão expostos em Lima no museu denominado Lugar da Memória, a Tolerância e a Inclusão Social - LUM, organização que recentemente foi alvo de ataques pelos congressistas da República do Peru, entre eles um ex-comandante do Exército no governo de Alan García, que acusou o LUM de ter guias que compactuam com o terrorismo. São vários ataques procedentes do Congresso contra um lugar que torna visível a época de violência que reinou no Peru entre 1980 e 2000. O fundador do LUM é Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura que em 1983 presidiou a comissão de investigação sobre os acontecimentos de Uchuraccay. Dessa forma, o livro inicia narrando sobre como os comuneros admitiram à comissão terem matado os oito jornalistas por engano, por justamente estarem agindo em “nome do governo” defendendo-o de pessoas alheias que objetivavam matá-lo. O autor chama a atenção para o fato de que a comissão não chegou a compreender as respostas dos comuneros nem o contexto de guerra que vivenciaram; para Ponciano del Pino, elas correspondem a uma negociação política entre as comunidades sobre lutar contra o Sendero Luminoso três semanas antes do acontecimento para reforçar a articulação com o Estado, com o risco de haver, entre eles mesmos, pessoas simpatizantes com o Sendero Luminoso.

Quando a Comissão perguntou sobre o paradeiro do guia local dos jornalistas, Juan Argumendo, os comuneros calaram-se. A pergunta que o autor elabora é sobre como um fato era admitido e não se faziam esforços para escondê-lo e outro era totalmente silenciado. A relação do guia (inclusive havia outro comunero, Severino Morales, que estava junto com o guia e que a própria Comissão desconhecia) com o Sendero Luminoso é a principal explicação para o silenciamento, uma vez que comprometia a articulação com o Estado pela qual tanto almejavam. Contudo, existem outras razões para o silêncio dos comuneros, de modo que o autor abre o marco temporal, oferecendo mais detalhes sobre o contexto do acontecimento. O comunero que ordenou a morte dos dois guias, Soto Chávez, tinha histórias entrelaçadas com os assassinados antes mesmo da chegada do Sendero Luminoso. Assim, o calar-se é entendido também pelo autor como uma forma de encobrir como as diferenças internas ainda eram encaradas. O papel do silêncio é simbólico no caso de Saturnina Figueroa, esposa de Severino Morales, pois, ameaçada pela própria comunidade para não delatar os assassinos do seu marido, conseguiu sobreviver por meio de seu silêncio até a chegada Comissão da Verdade, em 2002, para que o nome do seu cônjuge fosse reconhecido como vítima da guerra interna e não como “senderista” (membro de Sendero Luminoso). Assim, a análise do autor nesta primeira parte está focada em como o silêncio não é opcional, mas determinado pela própria comunidade, e que a presença do Sendero Luminoso não é o único fator que elucida as ações das comunidades. É importante frisar que, na perspectiva do autor, o Sendero Luminoso não chega a um espaço vazio, facilmente manipulável, que “alimentará com ideais da Revolução” (p. 105). Ao contrário, existiam já conflitos entre comunidades na década de 1970 justamente pela desestruturação da organização interna com a Reforma Agrária de Velasco Alvarado (1969 e 1972), que propôs uma política modernizante e homogeneizante que fomentava que a resolução de conflitos fosse entregue a instâncias fora da comunidade. A reforma deteriorou as relações em ditas comunidades ao questionar a estrutura tradicional de poder, autoridade e gênero que nela existia. No entanto, não é a Reforma Agrária a única que desestrutura os costumes das comunidades. O autor explica que a insurgência comunal contra o Sendero Luminoso ocorreu justamente porque mobilizou jovens e mulheres, “interferindo na ordem e no sentido patriarcal de autoridade” (p. 117) das comunidades. As ações das comunidades também buscavam reinstitucionalizar a hegemonia comunal mas existem outros detalhes históricos interessantes. As duas pessoas que estão no centro das matanças de Uchuraccay, Severino Morales e Silvio Chávez eram vizinhos do que foi a antiga Fazenda Uchuraccay I e mantinham pleitos familiares. Esses litígios eram resolvidos entre famílias e posteriormente foram passando para outras instâncias de poder. Outros conflitos surgiram porque a Reforma Agrária não tinha uma regulamentação clara sobre o uso e propriedade da terra. Nesse cenário social e político chega o Sendero Luminoso.

A segunda parte do livro aborda as mobilizações indígenas contra o poder do fazendeiro. Algumas famílias venderam suas terras aos fazendeiros por valores ínfimos porque desconheciam o valor nominal do dinheiro, e outros, por inveja daqueles que tinham melhores terras, já que havia um acesso desigual a elas. As famílias que foram destituídas de suas terras por ambos os motivos passaram a ser arrendatárias e a “viver como refugiados dos seus próprios terrenos” (p. 168). Assim, este segmento do livro inicia dissertando sobre como a subordinação ao poder da fazenda começou a mudar com o surgimento de uma geração de líderes dispostos a levar seus casos de abusos a outros espaços de poder. Del Pino enfatiza que esta mobilização começou pouco depois de 1920, e posteriormente, na década de 1930, surgiram também exigências de apoio por parte do Estado para o desenvolvimento comunal e para resolver conflitos entre os comuneros, entre comuneros e comunidade, entre comuneros e fazendeiro, chegando, no ano de 1935, até o palácio de Governo na capital Lima. Essas idas e vindas foram frustradas já que o Governo pouco respondia a tais pedidos.

Contudo, um episódio importante é o I Congresso Camponês da Província de Huanta, em 1963, que apresenta como uma de suas conclusões justamente a expressão de apoio ao recém-escolhido presidente Belaunde Terry. O reconhecimento como comunidades indígenas era um objetivo almejado desde 1920, no entanto, uma oportunidade para sua concretização ocorreu na campanha do Presidente Belaunde Terry, em 1962, que propagava a ideia de uma autêntica Reforma Agrária. Isso provocaria um ambiente propício e legítimo para as ações dos camponeses. De acordo com o autor, os comuneros se sentiram legitimados com Belaunde Terry. Aqui, Del Pino detalha, ilustrando por meio de canções, toda a peregrinação desde as comunidades alto-andinas de Ayacucho até a capital para falar diretamente com o Presidente Belaunde Terry. A jornada envolvia atravessar as montanhas, chegar a Lima e ser recebido por Terry, cujo primeiro período de governo foi de 1963-1967, antes do golpe de Velasco Alvarado. Ao mesmo tempo, os comuneros perceberam uma mobilidade inversa que vinha do Governo até as comunidades, com a Operação Antiexploração Indígena, que o Presidente acionou, e a Lei da Reforma Agrária, que promulgou. No entanto, os fazendeiros contestaram a insurgência dos indígenas pela tomada de terras na década de 1960 acusando-os de ser parte de uma ameaça comunista. Nesse ponto, o autor argumenta que toda a peregrinação política para conversar diretamente com o Governo, com o presidente já eleito, está intimamente relacionada com o posicionamento dos comuneros de lutar contra o Sendero Luminoso e agir em “nome do governo” em 1983, quando ocorria o segundo mandato de Belaunde Terry (1980-1985).

Na terceira parte do livro, o autor torna visível o Apu Rasuwillka, deidade da montanha, como entidade com agir político. Esta parte, ainda em estudo exploratório segundo o autor, destaca que existem paralelos e conexões impressionantes entre as pessoas, o lugar, e o estado do Apu Rasuwillka. Rasuwillka não é um material inerte, ela é uma entidade que sente, tem identidade própria, nome, sexo e profissão (médico) e tem autoridade sobre as outras montanhas. Del Pino enfatiza que as relações com o Apu e com outras entidades não humanas são políticas ou diplomáticas. Os interlocutores do autor relataram que as lagoas que descansam no Apu eram bravas, batiam nas pessoas e até as “comiam”. Hoje em dia, estão “mansas”. Por isso, o autor alega que o entorno da montanha não pode ser descrito como um lugar inóspito, ao contrário, existe uma amálgama de relações políticas entre humanos e não humanos. Nesta parte do livro, chama a atenção o fato de que Rasuwillka tinha uma posição política com o Sendero Luminoso, simpatizava com o grupo e por isso era apelidada de “senderista” pelas outras montanhas. Essas reflexões dos protagonistas do livro surgem ao narrar que quando os terroristas estavam a ponto de ser capturados pelo exército, algo inesperado ocorria: a montanha se cobria de névoa e desviava o Exército na sua perseguição. Os interlocutores de Del Pino refletem sobre o estado do Apu hoje. Parece estar com “susto”, isto é, perdeu a alma por ter vivenciado a violência interna com os comuneros do entorno. O encolhimento de Rasuwillka também está relacionado, nas reflexões dos residentes locais, com as últimas guerras internas de 1992: “quem não vai se assustar com tantas mortes” (p. 254). Essas diferentes interpretações justificam que os aspectos da paisagem podem agir como “pontos de referência” para ancorar memórias, reflexões e conhecimentos.

Mas adiante, o autor relaciona alguns relatos de campo com o tema das mudanças climáticas. Aparentemente, as mudanças que o Apu vivencia (menos gelo no pico, menos precipitações) têm paralelos com o estado do mundo das pessoas que convivem com Rasuwillka. A expressão “o tempo está ao contrário” (p. 251) implica que os protocolos para a produção de vida (semear e colher alimento) estão descontrolados porque não chove como antes. As perspectivas das pessoas com relação a Rasuwillka não deixam de articular a memória e o contexto contemporâneo. Essas memórias e reflexões a que brilhantemente nos faz chegar Ponciano del Pino é compreender que a natureza é parte ativa da vida social.

Pouco antes do anúncio público do Prêmio pela LASA, ao finalizar o ano de 2017, obras de artistas do povo de Sarhua, Ayacucho, que estavam sendo transladadas ao Museu de Arte de Lima (Mali) para exposição foram retidas pela Polícia Peruana sob alegação de que representavam uma apologia ao terrorismo. Os quadros confiscados retratam cenas vivenciadas por pessoas de Ayacucho, os artistas, e por isso se observam imagens da luta armada. Após uma série de explicações, as obras foram liberadas em janeiro do ano seguinte sem nenhuma desculpa pública aos artistas. Assim como as acusações provenientes do Congresso, o calar a voz daqueles que sofreram a violência permanece. Por isso, é sumamente necessário ler a obra de Ponciano del Pino porque reforça que as memórias e vivências dos que padeceram a guerra devem ser visibilizadas, escutadas e sentidas e que a sociedade que não a vivenciou precisa fazer um esforço por entender sua natureza, que a guerra força a tomar decisões e que a violência é forçada por ela.



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