Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
Alimentação e recomendações médico-alimentares na Europa moderna: dieta, medicina e sociedade (1450-1800)
Ewerton Reubens Coelho-Costa
Ewerton Reubens Coelho-Costa
Alimentação e recomendações médico-alimentares na Europa moderna: dieta, medicina e sociedade (1450-1800)
Food and medical and nutritional recommendations in modern Europe: Diet, medicine and society (1450-1800)
Ciências Sociais Unisinos, vol. 54, núm. 3, pp. 379-382, 2018
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
resúmenes
secciones
referencias
imágenes
Carátula del artículo

Resenha

Alimentação e recomendações médico-alimentares na Europa moderna: dieta, medicina e sociedade (1450-1800)

Food and medical and nutritional recommendations in modern Europe: Diet, medicine and society (1450-1800)

Ewerton Reubens Coelho-Costa
Universidade Estadual do Ceará, Brasil
Ciências Sociais Unisinos, vol. 54, núm. 3, pp. 379-382, 2018
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
GENTILCORE D.. Food and health in early modern Europe: Diet, medicine, and society, 1450-1800. 2016. London. Bloomsbury. 249 ppp.

Recepção: 26 Julho 2018

Aprovação: 01 Novembro 2018

No Brasil, o censo comum geralmente aponta a comida de hospital como algo ruim. E, quase sempre, trata dietas e recomendações médico-alimentares como algo que traz ‘sofrimento’ para os pacientes. Entretanto, já é possível, na atualidade se encontrar mudanças impressionantes nos menus de hospitais e nos aconselhamentos médico que passam a admitir alimentos que, em tempos anteriores, ninguém ousaria prescrever ou recomendar.

O fato é que essa discussão demonstra claramente a convicção persistente de que dieta e saúde estão intimamente ligadas com a alimentação. E essa ideia não é tão atual como se pensa: basta ter acesso aos registros históricos dos primeiros manuais de saúde modernos que apontam a escolha de cardápios a partir de alimentos que melhor se adequem às diferentes condições das pessoas. Isso permite a compreensão de que a justaposição dos primeiros conselhos dietéticos modernos e contemporâneos revelam continuidades de algumas práticas entre muitas mudanças. Talvez por isso, os médicos de hoje já passem a lamentar que os pacientes “cavem seus túmulos com os dentes” (Gentilcore, 2016, p. 22) e oferecem relatos prolixos de como obter mais saúde.

A obra Food and health in early modern Europe: Diet, medicine, and society, 1450-1800, publicada em Londres no ano de 2016, ainda não apresenta edição traduzida no Brasil. O autor, David Gentilcore é professor de História Moderna na Universidade de Leicester, Reino Unido. Nos últimos dez anos, seu trabalho se concentrou principalmente na história da comida na Itália, com destaque para dois trabalhos: um, sobre o consumo de batatas (Gentilcore, 2012), e outro sobre tomates (Gentilcore, 2010), com bastantes contribuições relevantes. No entanto, esse não é o único foco do autor que, mantendo a Itália como locus, publicou uma obra sobre o charlatanismo na medicina nos tempos modernos. E, mais recentemente, com Alimentação e Saúde na Europa Moderna: Dieta, Medicina e Sociedade (1450-1800), David Gentilcore (2016) propõe cruzar medicina e alimentação, campos intimamente ligados, partindo do Renascimento até a era moderna.

A ambição do autor é propor uma síntese sobre alimentação e saúde, expondo o panorama europeu de um longo tempo até a modernidade. Trata-se, por um lado, de elaborar uma história das práticas alimentares e, por outro lado, estabelecer uma história do discurso médico moderno sobre a alimentação.

Para dar conta do objeto, David Gentilcore conduziu um estudo aprofundado de fontes impressas que fornecem aconselhamento dietético durante todo o período - que vai de 1450 a 1800 -, e destina-se a traçar a história das práticas alimentares europeias pelo prisma dos conselhos médicos, o que demandou um árduo ‘trabalho de síntese’ (Gentilcore, 2016, p. 2). No entanto, observa-se que outras fontes também foram usadas para realizar a pesquisa, como: textos literários, coleções de receitas ou, até mesmo, histórias de viagens que serviram para, efetivamente, alimentar o assunto proposto por David Gentilcore.

A estrutura do livro oferece uma abordagem crono-temática, iniciando as contextualizações nos dois primeiros capítulos, e apontando os meados do século XVII como o pivô para a discussão, antes de passar para as seis outras partes, mais específicas, da obra que está dividida da seguinte maneira: Capítulo 1, “Healthy Food: Renaissance Dietetics, c.145-c.1650”; Capítulo 2, “Healthy Food: The Fall and Rise of Dietetics, c.1650-c.1800”; Capítulo 3, “Rich Food, Poor Food: Diet, Physiology and Social Rank”; Capítulo 4, “Regional Food: Nature and Nation in Europe”; Capítulo 5, “Holy Food: Spiritual and Bodily Health”; Capítulo 6, “Vegetable Food: The Vegetarian Option”; Capítulo 7, “New World Food; The Columbian Exchange and Its European Impact”; Capítulo 8, “Liquid Food: Drinking for Health”; e a Conclusão. Com esta composição de capítulos, David Gentilcore oferece uma visão médica da mudança de hábitos alimentares e dietéticos: de Portugal a Polônia, da Escócia a Sicília, sem esquecer as crescentes populações europeias do Novo Mundo. Além de explorar as dietas europeias ao longo do período são considerados trabalhos de matéria médica, botânica, agronomia e horticultura, advindas de uma série de outras fontes impressas (notas de viagem, livros de culinária, obras literárias). O livro também inclui trinta ilustrações, mapas e extensas bibliografias nos capítulos, com links para ajudar ainda mais na compreensão do estudo.

A obra ainda pode ser considerada como uma história da interação entre práticas alimentares e o discurso médico sobre alimentos, onde fica evidente a relação entre a evolução de caminhos da alimentação e a mudança do aconselhamento médico sobre o que comer para se manter saudável. Ela fornece o primeiro estudo aprofundado de conselhos dietéticos impressos que abrange todo o período moderno, desde o final do século XV até o início do século XIX, sendo pioneira em traçar a história das trilhas europeias da alimentação pelo prisma dos conselhos médicos.

Para tanto, David Gentilcore destaca certas interdependências entre as correntes de pensamento que passaram pela medicina no período de 1450-1800 e a evolução das práticas alimentares ocidentais. Se a predominância da medicina preventiva na Renascença deu lugar central aos regimes (dietas), o século XVII, paralelo ao surgimento da medicina terapêutica, vê sua importância diminuir. Este relaxamento, relativo, entre saúde e práticas alimentares permite observar um destacamento da cozinha fora do campo da saúde.

O século XVIII, por outro lado, gradualmente viu os conselhos alimentares voltarem à cena, em torno de praticantes famosos, como o inglês George Cheyne. Enquanto desenha os contornos gerais desse desenvolvimento, o livro reflete uma variedade de práticas alimentares na era moderna que levam às distinções feitas por David Gentilcore a enfocar, em primeiro lugar, a diferenciação de categorias sociais. Ao longo deste estudo histórico, se destaca a natureza não universal de conselhos fornecidos - e que a aplicação destes dependia, acima de tudo, da pertença a uma categoria social predominantemente alfabetizada e suficientemente avançada para poder segui-los.

De fato, algumas categorias minoritárias da população eram muito mais direcionadas que outras por publicações dietéticas. Outra chave para a leitura do livro está na relação, mais ou menos direta, dependendo do caso, entre desenvolvimentos contextuais e práticas dietéticas ocidentais. No capítulo dedicado aos religiosos (Capítulo 5, “Holy Food: Spiritual and Bodily Health”), o autor dá um lugar não desprezível ao impacto da Reforma - e da Contrarreforma - na evolução de certas práticas, como o jejum. Outra parte, dedicada aos efeitos do encontro entre europeus e americanos, a partir do final do século XV, merece atenção especial. Pois, isso propõe uma abordagem do assunto na nova escala do Ocidente, agora ampliada pela exploração do “Novo Mundo”.

David Gentilcore discute a introdução gradual de novos alimentos na Europa, especialmente do milho, do peru e das batatas. Mas, também a adaptação alimentar dos primeiros europeus ocidentais que se instalam na América. No entanto, o autor não hesita em destacar especificidades nacionais e interações intereuropeias.

Há ainda um capítulo inteiro dedicado à dieta vegetariana (Capítulo 6, “Vegetable Food: The Vegetarian Option”, para a qual as considerações evoluíram substancialmente durante o período estudado, até serem recomendadas por alguns médicos do século XVIII. E, finalmente, as últimas páginas do livro que são dedicadas a um tema central quando se trata de evocar as estratégias de conservação da saúde, a da bebida.

O livro oferece uma lúcida explanação sobre os tipos de aconselhamentos dietéticos específicos proferidos entre os séculos XV e XVIII, e também o panorama intelectual que estruturam tais aconselhamentos. No centro do estudo de Gentilcore estão os regimes dietéticos impressos e outros textos prescritivos relacionados à saúde, produzidos em centenas de vezes ao longo da Europa moderna, que oferecem uma “visão do médico” (p. 2) para uma dieta ideal. As fundamentações para isso advêm de uma variedade notável de manuais em cerca de meia dúzia de idiomas diferentes, que serviram para ajudar a mapear o fluxo e refluxo de diferentes concepções da digestão humana e da saúde corpórea. O autor identifica três grandes tendências:

  • nos séculos XV e XVI, os modelos baseados nos princípios do humoralismo estavam em ascendência. O humoralismo trata-se de uma doutrina médica segundo a qual as doenças consistiriam fundamentalmente em uma desordem dos humores -, os textos dietéticos examinavam em detalhe as qualidades nutritivas dos alimentos individuais e incitavam cada pessoa a selecionar os alimentos mais adequados à sua compleição particular - o que já se poderia entender o médico como ‘um cientista’ (Tamayo, 2006);

  • no século XVII, os entendimentos da digestão mudaram, em parte em resposta à influência de Paracelso, introduzindo novos modelos para determinar o que constituía uma dieta saudável - com razões para ‘comer diferente’ (Calado, 2015). As avaliações aprendidas do potencial nutritivo de alimentos individuais empregavam, assim, uma linguagem diferente, mesmo que tendessem a chegar às mesmas conclusões que nos séculos anteriores;

  • no século XVIII, embora o Galenismo (entenda-se como Galenismo a doutrina de Galeno, médico grego do século II, que concebia os estados de saúde e de doença como resultado da ação dos quatro humores naturais (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra), e que cada um desses humores poderia aumentar e diminuir no corpo, dependendo da dieta e da atividade [Romero y Huesca et al., 2017]), experimentasse um renascimento, o aconselhamento dietético se concentrava menos nos méritos do ruibarbo ou do repolho e, em vez disso, abordava princípios, como a moderação, que deveria orientar toda a alimentação. Neste período os diagnósticos, para os que podiam pagar, eram feitos a partir de exames meticulosos realizados nos doentes, e levava em conta desde a alimentação, o estilo de vida, as condições ambientais do doente, até mesmo a época do ano. Galeno com base nas suas pesquisas na natureza (vis medicatrix naturae) já compreendia o potencial curativo e também venenosos dos fármacos (Barros, 2002).

Na obra, Gentilcore deixa claro que, por toda parte, as recomendações médicas tendem a ficar para trás das práticas reais de consumo de alimentos. E, embora a obra forneça uma história de aconselhamentos sobre o que comer ou não, mas não de dietas. Ainda assim, oferece uma riqueza de informações sobre como as pessoas/pacientes responderam às recomendações dietéticas: aparecem episódios mostrando como pessoas diferentes negociavam as exigências, por vezes conflitantes, entre a prescrição médica com as práticas sociais e os prazeres gastronômicos - como foi o caso de Battista Gislato, um escriba da Inquisição de Veneza, que ficou tão impressionado com as “salsichas de ganso ao estilo hebraico” (p. 109) que lhes foi oferecida por Abraham Enriques Nunes, que pagou dezesseis soldi por outras tantas. Embora os gansos fossem vistos por médicos cristãos como indigestos e suscetíveis a provocar humores melancólicos. Já outros defendiam uma “dieta hereditária” (p. 128), em face do consenso médico de que os vegetais não proporcionavam nutrição adequada.

Deste modo, a recomendação dietética na visão de Gentilcore, estava em constante diálogo com as práticas alimentares do cotidiano; os médicos não conseguiam comandar o cumprimento inquestionável de seus pacientes, mas tampouco o conselho deles era descartado. Esta relação dinâmica indica que os “critérios dietéticos refletem as preocupações sociais, nacionais, acadêmicas, até mesmo estéticas de seus autores tão claramente quanto qualquer obra de arte ou poema” (p. 11). Gentilcore explora essas preocupações sociais e nacionais com algum detalhe, em capítulos interessantes que examinam as maneiras pelas quais as recomendações dietéticas refletem e reforçam as ideias da elite sobre os pobres, os heterodoxos e as pessoas de outros países. O impacto da Reforma sobre as atitudes cristãs em relação ao jejum e à saúde corpórea tão foi explorado, assim como a onda de novos alimentos originários do novo mundo.

No geral, o livro oferece um excelente relato das características dos primeiros conselhos dietéticos modernos. Baseia-se em um conhecimento abrangente da erudição atual, bem como em uma variedade notável de textos sobre dietas e outras fontes dietéticas e alimentares modernas. Embora, como o próprio Gentilcore reconhece, os escritos em francês, italiano e em inglês desfrutem do centro das atenções no livro, ele fez um esforço sério para refletir as recomendações dietéticas de toda a Europa e (até certo ponto) de suas colônias. Práticas alimentares portuguesas e polacas aparecem ao lado das da Alemanha e de relatos de europeus que viviam em Massachusetts.

No livro, David Gentilcore brinca com as escalas, evocando as tendências globais e as particularidades observáveis em níveis regionais. Ele também joga com as épocas, revelando as grandes evoluções de um longo período moderno inicial. O livro oferece uma síntese sem precedentes sobre a ligação entre saúde e hábitos alimentares no período dedicado a pesquisa, ao mesmo tempo em que destaca perspectivas promissoras para trabalhos históricos futuros.

O livro é bastante indicado para pesquisadores, acadêmicos e curiosos com interesse em história da alimentação, medicina, dietética, nutrição e, até, das ciências sociais, pela troca de relações que nele contêm. É um texto claro, coeso, bem estruturado e escrito de forma elegante que se concentra mais em narrativas claras do que na dissecação de disputas por teorias acadêmicas. Além disso, permite que aqueles que estão familiarizados com a historiografia dos primeiros restaurantes modernos reconheçam os sofisticados resumos de Gentilcore sobre a substancial existência desse tipo de restauração a partir de uma triangulação feita entre alimentação, medicina, dietética e nutrição - é claro que existirá leitores que não concordarão com todos os seus pronunciamentos encontrados na obra. Mesmo assim, continua sendo uma contribuição extraordinária para a erudição sobre as ideias modernas sobre comida, aconselhamentos médicos, cultura e na sociedade moderna.

Material suplementar
Referências
BARROS, N. 2002. Da medicina biomédica a complementar: um estudo dos modelos da prática médica. Campinas, SP. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, 399 p. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/311744. Acesso em 26/07/2018.
CALADO, V.H. 2015. Da abundância à frugalidade: razões para comer de forma diferente. In: IV Congreso Internacional del Observatorio de la Alimentación. Otras maneras de comer: Elecciones, convicciones, restricciones. Observatorio de la Alimentación, Universidad de Barcelona, p. 1211-1223. Disponível em: http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/22398/1/ICS_VHCAlado_DaAbundancia_AI.pdf. Acesso em: 26/07/2018.
GENTILCORE, D. 2012. Italy and the Potato: A History, 1550-2000. London/New York, Continuum International Publishing Group, 272 p. https://doi.org/10.5040/9781350047662
GENTILCORE, D. 2006. Medical charlatanism in early modern Italy. New York, Oxford University Press on Demand, 448 p.
GENTILCORE, D. 2010. Pomodoro! A history of the tomato in Italy. New York, Columbia University Press, 272 p. https://doi.org/10.7312/gent15206
ROMERO Y HUESCA, A.; LIMÓN ESPINOZA, I.G.; LÓPEZ SCHIETEKAT, R.; HUANTE PÉREZ, J.A.; MARTÍNEZ ROMERO, M.A.; OLVERA GUTIÉRREZ, G. Y. 2017. Impact of Galenism during the middle ages: the importance of the Arab culture in its introduction to the Christian medical world. Anales Médicos de la Asociación Médica del Centro Médico ABC, 62(3):232-239.
TAMAYO, R.P. 2006. De la transformación de médicos hipocráticos, humoralistas y escolásticos, en médicos científicos, y de otras cosas igualmente maravillosas que por entonces sucedieron. Revista de la Facultad de Medicina UNAM, 49(S1):10-13. Disponível em: http://www.medigraphic.com/cgi-bin/new/resumen.cgi?IDARTICULO=9246. Acesso em 26/07/2018.
Notas
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc