Resenha

Por uma antropologia no cinema1

For an anthropology in the cinema

Bianca Salles Pires
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Por uma antropologia no cinema1

Ciências Sociais Unisinos, vol. 54, núm. 3, pp. 383-385, 2018

Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

ROSAS MANTECÓN A.. Ir al Cine: Antropología de los públicos, la ciudad y las pantallas. 2017. México. Gedisa Editorial/UAM Iztapalapa. 355 ppp.

Recepção: 16 Abril 2018

Aprovação: 16 Novembro 2018

Financiamento

Fonte: CAPES

Número do contrato: 88881.135796/2016-01

Descrição completa: Apoio: CAPES Processo PDSE 88881.135796/2016-01. Agradeço a revisora Natalia Velloso dos Santos por sua leitura crítica e seus comentários sobre esta resenha.

Ir al Cine: Antropología de los públicos, la ciudad y las pantallas, é um livro que compila resultados de investigações acerca das transformações nos modos de ir ao cinema, realizadas pela antropóloga Ana Rosas Mantecón, desde os anos 80 na Cidade do México. Enquanto tal, é fruto de um largo acúmulo de diferentes abordagens sobre o tema, que resultam em um olhar no qual o ato de “ir al cine” é o foco pelo qual a autora observa “los públicos, las salas y la ciudad, desde una perspectiva antropológica que analiza los usos sociales de la comunicación” (p. 23). Ana Rosas complementa a análise ressaltando as articulações existentes entre a produção, a distribuição e o acesso aos filmes, considerando de que forma as transformações nos circuitos de exibição sofreram influências das políticas internas e externas do mercado audiovisual. Neste sentido, nos apresenta uma abordagem que busca reconhecer as práticas de acesso cultural como produtoras de sentidos, questionando os conceitos de consumo e recepção, assim como todas suas sub denominações - consumidor, receptor, espectador, audiência. Segundo a autora, o “estar junto” nos antigos palácios de cinema, nas atuais salas nos shopping centers ou mesmo o acesso de conteúdos via plataformas na internet, nos contam das sociabilidades que se estabelecem nos espaços físicos e/ou virtuais, as muitas ritualidades que envolvem o ato de assistir filmes e as transformações nos modos de vida urbanos.

A originalidade do livro está em observar os públicos de cinema e os sentidos que esses encontram em suas frequências às salas de exibição, a partir de uma análise que mescla abordagens antropológica, sociológica, histórica e da comunicação. A autora propõe assim, a realização de uma “história comunicacional y social del cine” (p. 20), que abarque a exibição na Cidade do México desde

o seu princípio até os dias atuais. Para constituir tal abordagem utiliza diversas fontes de pesquisa, entre elas: revisão bibliográfica; hemerográfica; documental; estatística (fontes nacionais e internacionais); etnografias e entrevistas (53 no total) realizadas com frequentadores de cinemas, de diversas faixas etárias e diferentes setores sociais; e trabalhadores dos distintos setores da indústria do cinema. Constituí, desta forma, uma sistematização da história das salas de cinema em relação à cidade, ao mesmo tempo em que traz à luz experiências dos antigos e novos públicos.

Para desenvolver tal análise, a autora utiliza como referências pesquisadores latino-americanos, entre eles: Néstor Canclini, Martín-Barberos, Hugo Achugar, Carlos Catalán, Guillermo Sunkel y Mabel Piccini, que segundo ela: “renovaron desde los 80 las indagaciones sobre acceso cultural” (p. 71). Tais abordagens não negam os autores considerados clássicos dos estudos culturais e urbanos, mas propõe pesquisar os públicos das ofertas e as transformações das urbes na América Latina a partir de suas características próprias. Ana Rosas, em sua busca por uma antropologia dos públicos, apresenta as especificidades dos aparatos de exibição da Cidade do México, que sofreram com pressões morais/religiosas, demográficas e mesmo catástrofes naturais; ao mesmo tempo em que oferece dados da indústria cinematográfica, demonstrando como a distribuição de filmes a nível global influenciou nas políticas públicas do setor no país.

Seguindo esse intuído, o livro se organiza a partir de uma perspectiva cronológica, trazendo dados desde a chegada dos primeiros cineteatros na Cidade do México até os atuais cinemas digitais. A autora começa o livro situando seu trabalho em relação a antropologia e aos estudos culturais. Nomeia a sessão introdutória e o capítulo 1 por: Detrás de cámaras. La antropologia llega al cine; Desigualdades modernas: ofertas culturales y públicos, respectivamente. Neles, argumenta a importância de pensarmos os públicos no plural: como constituidores de sentidos, que interagem com as obras, os espaços e demais indivíduos. Tece sua arguição por meio dos relatos afetivos dos frequentadores de cinemas, que estão presentes em todo o livro. Oferece ainda, dados estatísticos que ajudam a situar o leitor nas mudanças ocorridas nas salas da cidade, como o número de poltronas, fechamento e abertura de salas, filmes ofertados, etc.

Nos capítulos 2 - Comieza la era Lumière - e 3 - La edad de oro de la ciudad, las salas y los públicos - a autora demonstra por meio de dados da cadeia de exibição, crônicas de jornais e pesquisa em arquivos, como se deram as primeiras exibições na cidade. As salas de cinema, pouco a pouco, passam a atrair aos diferentes setores sociais, se caracterizando como um local de convivência para todos. Contudo, as documentações demonstram tentativas de manter uma segregação espacial, étnica e social na Cidade do México, exercidas pelos governos e pela igreja católica. Tais intervenções buscavam produzir uma ordenação nas práticas dentro dos espaços destinados à exibição de películas, utilizando como pretexto a defesa da moralidade e da decência.

Outro ponto abordado é o pacto de silêncio, que vai, aos poucos, sendo imposto pelas autoridades e encontrando resistência por parte dos públicos. Segundo os relatos reunidos pela autora, os frequentadores estavam acostumados a interagir com as obras. Por vezes, pediam para que fossem repetidos trechos da película; reagiam e se exaltavam ao que era exibido. O silêncio durante as projeções vai paulatinamente sendo adotado, primeiramente pelos intelectuais, que o exerciam como critério de distinção social. Essa normatização do silêncio, segundo a autora, é um processo entendido como próprio à formação dos públicos, na medida em que os frequentadores passam a incorporar o tempo próprio do cinema, cuja duração já é pré-determinada pela obra, e se habituam ao processo imersivo proposto pela sala escura.

Ao analisar a chamada época de ouro do cinema mexicano (dos anos 30 aos 60), Ana Rosas demostra como as políticas públicas de incentivo à produção, em parte com ajuda estadunidense em troca de apoio durante a Segunda Guerra Mundial; o crescimento demográfico da capital do país e tentativas de formação/massificação da oferta audiovisual em cineclubes, com apoio público no período pós-revolucionário; fizeram do México, no início dos anos 50, o décimo a nível mundial em número de salas. A política protecionista, que não permitia a dublagem dos filmes estrangeiros, garantia uma maior adesão às películas nacionais. Movimento que, posteriormente, foi percebido pelas majors estadunidenses, que cortaram os apoios dados ao México, abarrotando o mercado com produções hollywoodianas nas décadas seguintes.

As consequências destas mudanças são melhor apresentadas nos capítulos 4 - ¿Fin de la ciudad moderna y las salas de cine? - e 5 - Escenarios emergentes -, nos quais a autora aborda: a crise sofrida pelos espaços de exibição e as sequelas deixadas pelos terremotos de 1985 na cidade; a migração das salas para o shopping centers e a consequente elitização do acesso; a pouca diversidade de obras exibidas no circuito comercial; e a importância da criação de institutos públicos, Cineteca Nacional e Universidades Autônomas, na propagação de mostras itinerantes, cineclubes e no incentivo aos modos alternativos de exibição. As transformações nas maneiras de se apreciar filmes são então analisadas em consequência às próprias mudanças ocorridas na cidade, se afastando de abordagens que decretam o “fim dos cinemas de rua” sem perceber qualquer continuidade entre as experiências passadas e as atuais.

Ao optar por trazer dados sobre as novas maneiras de acessar os conteúdos audiovisuais, a autora chama atenção para a necessidade de esgarçarmos as formas analíticas canonizadas pelos estudos culturais, demostrando como as experiências atuais passam por maneiras de exibições e programações alternativas, plataformas na internet, salas de cinema, não sendo a acesso a um meio necessariamente excludente aos outros. As telas dos cinemas, das TVs, DVDs, streams, a pirataria, etc, são então abordadas como maneiras diversas de se ter acesso aos conteúdos audiovisuais; e produzem novas/outras sociabilidades e ritualidades que podem ser entendidas como próprias à virada do século XXI. Os públicos fazem reelaborações das narrativas originais através de diferentes suportes: textos, imagens, jogos, adereços, fantasias, e compartilham suas experiências nas comunidades virtuais. Os amantes do cinema de arte têm a possibilidade de acessar uma ilimitada quantidade de informações e obras via internet, baixam e assistem individualmente os conteúdos, ao mesmo tempo em que partilham suas impressões virtualmente. Ou/e compram cópias piratas em postos que se especializam nestas filmografias, criando novas redes de circulação para os filmes. Ainda assim, estes públicos continuam fluindo aos festivais, mostras, cineclubes e salas de cinemas, momentos onde disfrutam da experiência estética de assistir aos filmes, coletivamente, em tela grande.

O livro de Ana Rosas nos apresenta mais que uma genealogia dos públicos de cinema da Cidade do México, analisando como o mercado audiovisual do país, o acesso cultural e as transformações na cidade, estiveram intimamente implicados. Como se utilizasse um zoom, a autora nos aproxima dos relatos afetivos dos indivíduos, suas memórias e vivências nos cinemas. Para em seguida fazer uma panorâmica, que exibe o mercado e as políticas públicas para a oferta de conteúdo, com seus reflexos e consequências. Argumenta que não se nasce público de cinema e sim se forma, a partir da possibilidade de acesso às diferentes telas. Sugere ainda, a criação de alianças regionais para fortalecer a produção e circulação das obras ibero-americanas, que leve a uma ampliação da oferta de filmes, em um mercado monopolizado pelas produções estadunidenses.

Como contribuição metodológica, nos faz refletir sobre as formas de análise dos atuais públicos multimídias, que fisicamente/virtualmente acessam e produzem conteúdo. Apresentando questões relevantes para os estudos antropológicos e sociológicos nos cinemas, cujos públicos se tornam atores principais das narrativas históricas acerca das salas de exibição e das experiências nas cidades.

Notas

1 Apoio: CAPES Processo PDSE 88881.135796/2016-01. Agradeço a revisora Natalia Velloso dos Santos por sua leitura crítica e seus comentários sobre esta resenha.
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