Artigos
A grande diferenciação dos mercados globais nos últimos dez anos, a expansão da racionalidade econômica e empresarial pelas mais recônditas áreas do planeta, assim como a consolidação do valor simbólico-cultural em ativo econômico central, sem mencionar a contundência das tecnologias digitais e a definitiva consolidação da cibersociedade, imprimou uma nova agenda à sociologia econômica. Não dúvida que essa nova agenda é mais diversificada e bem menos ortodoxa do que a agenda de pesquisa construída na década de 1980 e 1990. Os artigos reunidos neste dossiê capturam parte dessa nova agenda.
É importante assinalar que, assim como outras especialidades temáticas das ciências sociais, a sociologia econômica tem encontrado no Brasil a possibilidade de construir uma nova agenda de pesquisa, bem como de aprimorar e construir um novo repertório teórico-metodológico que lhe permita contribuir para a renovação permanente do seu conhecimento científico. Constata-se, desde meados dos anos 2000, a consecução de uma nova geração de pesquisadores que têm dado uma contribuição decisiva para essa renovação. Um dos maiores destaques está na interlocução em curso entre a sociologia econômica e a sociologia da cultura. Talvez seja essa a maior contribuição deste dossiê, qual seja, aproximar os pesquisadores da sociologia da cultura e os pesquisadores da sociologia econômica. Essa interlocução, dialogo e parcerias institucionais estão em curso, e vem sendo alinhavadas nos encontros bianuais da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e junto aos encontros anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS).
Parte deste diálogo se encontra nos artigos que compõem este dossiê. Resultado direto dessas aproximações, da tessitura de redes de pesquisa e da cooperação entre diferentes núcleos de pesquisa, o dossiê traz um fecundo indício de que avançamos muito na construção de novos objetos no âmbito da sociologia econômica e da sociologia da cultura, revelando um diálogo ainda pouco praticado nos Estados Unidos, por exemplo, solo onde se deu a maior e mais relevante renovação das pesquisas e inovações conceituais no âmbito da sociologia econômica, ocorrida nos anos de 1980, com o advento da Nova Sociologia Econômica (NLS).
Como corolário, o primeiro artigo deste dossiê, intitulado “A vida como projeto: a pedagogia do homo economicus e as iniciativas de fomento ao “espírito do capitalismo” via educação pública”, demostra a paulatina incorporação pedagógica de novas racionalidades econômicas. Essas racionalidades são elaboradas por novas redes empresarias e corporativas, que instilam uma pedagogia na qual a sociedade, a vida e o mundo se assemelha a uma empresa e os aspectos mais subjetivos da vida social são tratados como projetos e investimentos a curto, médio e longo prazo. De maneira muito clara e cuidadosa, o artigo explora o processo de expansão dessa pedagogia empreendedora, cuja gramática moral e simbólica gravita em torno de noções como “projeto”, “consciência empreendedora” e “disciplina”. Essa pedagogia do cotidiano tem como objeto a escola pública em tempo integral, cujo impacto entre os mais pobres é direto e decisivo, fazendo circular significados novos, crenças e projeções.
O segundo artigo, intitulado “Trabalho cultural no Recôncavo da Bahia: uma abordagem a partir da organização das classes criativas”, aborda um dos temas mais relevantes da contemporaneidade: o trabalho cultural criativo. Ancorado em uma consistente reflexão teórica, revelando um raro domínio da literatura a respeito do fenômeno, o artigo traz valiosos dados primários acerca da organização do trabalho das classes artísticas e criativas do interior da Bahia. Não há dúvida de que trata-se de um artigo que poderia liderar a feitura de uma agenda urgente, qual seja: a estrutura e organização das classes criativas e dos trabalhadores da cultura no Brasil. Mesmo já dispondo de alguns esforços nesse sentido, inclusive capitaneado pela própria autora, trata-se ainda de um fenômeno pouco estudado e pesquisado.
Já o terceiro artigo, intitulado Competição e digitalização: a expansão dos serviços culturais-digitais – os casos da Netflix, Dinsey e Apple, é o resultado de cinco anos de pesquisa acerca do processo de digitalização dos mercados culturais. O autor se concentra na construção dos modelos de negócio e nas estratégias das principais companhias de tecnologia do planeta, que, notadamente nos últimos cinco anos, também se tornaram produtoras, licenciadoras e distribuidoras de serviços culturais-digitais. Manejando duas categorias urdidas pelo próprio autor – digitalização do simbólico e capitalismo cultural-digital – o autor demostra como a migração dos conteúdos artístico, culturais e de entretenimento para os serviços de streaming têm reorganizado a estrutura organizacional das empresas e dos mercados culturais, assim como tem alterado o próprio padrão de consumo e os gastos das famílias com os serviços culturais-digitais, no Brasil e no mundo.
O dialogo estabelecido neste dossiê demonstra o quão alvissareiro e promissor é a construção de redes regionais de pesquisa, tanto entre diferentes áreas temáticas e linhagens teóricas das ciências sociais, quanto entre disciplinas vizinhas, como a economia e a comunicação. Fica um convite e um apelo, por parte dos organizadores deste dossiê, para que outros periódicos brasileiros segam os caminhos e os exemplos da Revista de Ciências Sociais Unisinos, que tem promovido, estimulado e acolhido esses debates e tais interlocuções. Fica também o chamado para que o leitor desfrute deste dossiê e se engaje nessas novas possibilidades de construção e reflexão.