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Recepção: 30 Abril 2019
Aprovação: 26 Setembro 2019
DOI: https://doi.org/10.4013/csu.2019.55.3.02
Resumo: O Recôncavo da Bahia possui uma pujança cultural fortemente ancorada nas heranças africanas. Ainda que a região tenha sido insidiosamente estruturada num regime escravocrata, tal constituição histórica resultou em um diversificado panorama de expressões culturais que muito contribuiu para a formação da identidade cultural do Estado. Amparado no conceito de desenvolvimento cultural, o artigo apresenta indicadores socioeconômicos sobre a configuração do mercado de trabalho criativo do Recôncavo com o intuito de apontar a sua participação na dinamicidade econômica da região. Realiza tal análise tomando como eixo norteador o conceito de classes criativas de Richard Florida, cuja tipologia de classes orienta a construção dos indicadores que adotamos para analisar o mercado de trabalho da região. Pelos métodos de interpretação empregados no presente estudo, chega-se à conclusão de que o Recôncavo possui dinamicidade criativa considerável, pois atinge cerca de 10% do mercado de trabalho global dos municípios selecionados. No entanto, reconhece-se os limites dos indicadores agregados, pois os mesmos obliteram processos mais complexos das dinâmicas do mercado de trabalho que marcam as transformações das sociedades pós-industriais. Ademais, os indicadores possuem restrições, pois não capturam as atividades amadoras ou não-formais – traço marcante da dinâmica cultural do Recôncavo, fortemente configurada pelas expressões da cultura popular. Nesse sentido, a dinamicidade econômica mobilizada pela produção cultural na região pode ser ainda mais significativa do que os dados revelam, tendo em vista os limites dos métodos quantitativos.
Palavras-chave: trabalho cultural, classes criativas, Recôncavo da Bahia.
Abstract: Recôncavo da Bahia has a cultural strength strongly anchored in African heritage. Although the region was insidiously structured under a slave-like regime, this historical constitution resulted in a diverse panorama of cultural expressions that contributed greatly to the formation of the state’s cultural identity. Supported by the concept of cultural development, the article presents socioeconomic indicators on the configuration of the Recôncavo’s creative labor market in order to indicate its participation in the region’s economic dynamism. This analysis is based on Richard Florida’s concept of creative classes, whose class typology guides the construction of the indicators we adopt to analyze the region’s labor market. By the interpretation methods used in this study, it is concluded that Recôncavo has considerable creative dynamism, because it reaches about 10% of the global labor market of the selected municipalities. However, the limits of aggregate indicators are recognized, because they obliterate the complex processes of labour market dynamics that mark the transformations of post-industrial societies. Moreover, the indicators have restrictions because they do not capture amateur or nonformal activities - a defining feature of the cultural dynamics of the Recôncavo, strongly shaped by expressions of popular culture. In this sense, the economic dynamism mobilized by cultural production in the region may be even more significant than the data reveal, given the limits of quantitative methods.
Keywords: cultural work, creative classes, Recôncavo of Bahia.
Introdução
As transformações ocorridas nas formas de produção de riqueza nas últimas três décadas têm levado a conformação do fenômeno que muitos autores têm chamado de economia do conhecimento, da informação, da criatividade ou simplesmente simbólica ( LIPOVETSKY, 2015; FARIAS, 2011; URRY, 1987). O ponto de mutação é a ênfase na imaterialidade (conhecimento) como um dos principais fatores de produção da produção capitalista. A cultura comparece então ou como input (um fator de produção materializado na forma conhecimento produzido, tecnologia e inovação de processos e produtos) ou como output (produção de serviços e bens simbólicos).
Como chama atenção Alves (2017), o modo de produção econômica nas últimas décadas vem se conformando fortemente mediante a aproximação estrutural entre o domínio estético-expressivo e o domínio econômico-comercial, tendo impacto direto na dinâmica do mercado de trabalho no campo da cultura. Tal configuração, decorrente das transformações que o capitalismo vem sofrendo desde a década de 1970, somada à crescente valorização da produção cultural como fonte de geração de riqueza, fez eclodir diferenciadas competências criativas, artísticas, tecnológicas e culturais. O trabalho cultural, as atividades de criação artísticas e os processos técnicos e tecnológicos a elas associados estão no centro dessas transformações, integram as novas cadeias globais de serviços simbólicos especializados e as indústrias transnacionais do imaginário.
Richard Florida, por exemplo, desponta como um autor que irá tratar do processo da conformação de uma economia ancorada na criatividade tomando como chave analítica o fenômeno que ele cunhou de “ascensão das classes criativas”. Ainda que muito criticada por parte de alguns analistas por considerá-la uma tese que parte de pressupostos generalistas, a categoria de classes criativas é válida aqui na medida em que aponta para as transformações do mundo do trabalho nas sociedades pós-industriais - tese já precipitada por Daniel Bell (1977) e também autores como Touraine (1970) e Boltanski (2009). Partindo da tese de que a criatividade humana é o recurso crucial da transformação econômica que se opera contemporaneamente, para Florida a fonte de onde brota esse recurso vem da força de trabalho de uma classe econômica em ascensão - os trabalhadores criativos – em sua grande parte conformada por cientistas, engenheiros, artistas, designers e demais profissionais que tem no conhecimento o principal substrato da sua atividade.
Nos rastros do referido autor, este artigo se debruça sobre a análise da dinâmica do mercado de trabalho cultural no Recôncavo da Bahia – uma região de forte herança cultural e que conforma significativamente a identidade cultural do Estado. Marcado por um passado escravagista, cuja violência e opressão resultaram em manifestações culturais estruturantes para a cultura baiana (a capoeira, maculelê e samba de roda são alguns exemplos), o Recôncavo foi fonte de grande produção de riqueza (açúcar, fumo no seu passado colonial e gás e petróleo em meados do século XX) para a Bahia e para o Brasil. Hoje sua economia gira em torno do setor de serviços (comércio) e agricultura. A região também abriga centros de produção de conhecimento como a Embrapa e possui uma universidade federal, a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), sediada em seis municípios da região e adjacências.
Tomando aqui a noção de desenvolvimento cultural como “o conjunto de transformações que permitem a ampliação das atividades culturais, da interculturalidade e do reconhecimento da diversidade” ( SILVA, 2012, p.83), o trabalho cultural é aqui considerado como uma importante dimensão para a interpretação dos dinamismos econômicos, sociais e políticos que configuram o desenvolvimento cultural. Este artigo pretende apresentar indicadores sobre o perfil do mercado de trabalho cultural do Recôncavo com o intuito de verificar em que medida esse segmento dinamiza a economia da região e extrair um perfil de suas classes criativas.
Realiza tal análise tomando como eixo norteador o conceito de classes criativas de Richard Florida, cuja tipologia de classes orienta a construção dos indicadores sobre o mercado de trabalho da região. Os referidos indicadores foram construídos a partir da base os dados do IBGE referentes à Pesquisa Nacional de Domicílios (PNAD) de 2010, do Cadastro Brasileiro de Ocupações (CBO) e do Cadastro Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). Chega-se à conclusão de que o Recôncavo possui dinamicidade criativa considerável, pois atinge cerca de 10% do mercado de trabalho global dos municípios selecionados. No entanto, reconhece-se os limites dos indicadores agregados, pois os mesmos obliteram processos mais complexos das dinâmicas do mercado de trabalho cultural que marcam as transformações da sociedades pós-industriais, bem como ilustram com restrições as atividades amadoras ou não-formais que perfilam a dinâmica cultural da região fortemente marcada pelas expressões da cultura popular – não capturadas pela metodologia das estatísticas oficiais.
Classes criativas e mercado de trabalho cultural
A ascensão da chamada economia criativa trouxe como corolário a emergência e a transmutação nas formas de produção e organização do trabalho. Nas pegadas das análises de pensadores como Daniel Bell (1977) que se dedicaram a compreender as transformações do capitalismo ocorridas a partir de meados do século XX – cujo eixo produtivo antes predominantemente ancorado na produção industrial deslocou-se para os setores de serviço e de informação –, desdobrou-se a discussão sobre a emergência de novas subjetividades decorrentes dessas mudanças. O centro da redescrição é que a configuração das classes sociais mudou, assim como os conteúdos das mentalidades, dos comportamentos e da ação política. Se não é possível afirmar que a sociedade de classes desapareceu, ela não tem os mesmos conteúdos das sociedades industriais. Os especialistas, não apenas os intelectuais, e técnicos que desempenham atividades relacionadas à gestão de processos e produção, coleta de informações, organização e processamento, bem como interpretação e avaliação de informações passam a ser o nó górdio da estruturação de classes. A escolarização e especialização passam a ser elementos fundamentais e oferecem, estrutural e ideologicamente, os argumentos e explicações – conexões causais – para justificar permanente inovação, aumento de produtividade e desenvolvimento. Tecnologia, flexibilidade, criatividade e inovação são objetivos centrais para este novo grupo, a quem Richard Florida vai denominar de classe criativa. Entretanto, ao contrário de Bell, que associa a cornucópia da sociedade pós-industrial a padrões hedonistas de consumo, lembrando os seus riscos ambientais e éticos, ambas associadas a padrões de crescimento econômico contínuos em quadro de restrições de recursos, Florida vai acentuar os desafios da classe criativa e sua ligação com sociedades mais tolerantes e potencializadoras da diversidade ( SILVA et al, 2019 ).
Ainda que tenha colhido muitas críticas desde que lançou o seu seminal livro A ascensão das classes criativas, a tese de Richard Florida tem o mérito de realizar a análise sobre a economia criativa a partir das suas classes trabalhadoras, diferentemente de outros teóricos que a interpretam a partir da organização dos seus sistemas produtivos, a exemplo de David Throsby (2008) e Richard Caves (2001). Fortemente inspirado em Daniel Bell, Florida vislumbra a ascensão da classe criativa como o fenômeno no qual se revelam as transformações no modo de trabalhar, nos valores e nas formas de comportamento vivenciados nas últimas décadas através da mudança da matriz econômica que alimenta o capitalismo. Resumindo de forma bem genérica, as classes criativas, segundo Florida, são formadas por pessoas que agregam valor econômico mediante a criatividade. Desse modo, a criatividade seria uma espécie de input, o principal meio de produção desses trabalhadores (porque lhes pertencem na sua imaterialidade) e a força motriz dessa nova economia que engendra mudanças profundas no modo de trabalhar e nos estilos de vida. Florida inclui no rol das classes criativas um grande número e um leque bastante amplo de tipos de “trabalhadores do conhecimento/analistas simbólicos” (sendo este aspecto uma das principais fontes de críticas de sua tese), variando desde cientistas, engenheiros, designers, artistas até profissionais do ramo da saúde e do direito. Para o autor “a característica definitiva da classe criativa está associada ao envolvimento de seus membros em atividades cujo objetivo é ‘inovar de forma significativa’”. ( FLORIDA, 2011, p. 68). Como já apontando por nós em outro artigo ( PITOMBO, BARBOSA, 2017), o conceito de classe criativa é fluido pois se assenta na ideia porosa de criatividade e se a tomarmos como todo engenho da criação humana, pouco restaria a não ser abarcado por essa noção.
De acordo com Florida, a classe criativa é formada por dois componentes. Primeiro, o Centro Hipercriativo, definido como o grupo cuja atividade está completamente imersa no processo criativo. Mais do que encontrar soluções, o profissional inserido nesta classificação busca prever problemas, ou melhor, perceber possíveis avanços em seu ambiente, através da geração de novas formas e conteúdos. Estariam inclusos nessa classificação cientistas, escritores, artistas e “ líderes visionários da sociedade moderna”. O segundo componente da classe criativa seriam os “Profissionais criativos”. Estão incluídos nessa categoria os profissionais que detêm um extenso conhecimento especializado e que, por isso, são capazes de interpretar situações e agir de acordo com aquilo que se põe diante deles.
Ao caracterizar essa nova classe média, Florida sustenta o argumento de que o desenvolvimento econômico de cidades e regiões estaria ancorado na capacidade de atração e fixação desses trabalhadores, distinguindo-se, portanto, da alternativa clássica de desenvolvimento que põe acento na atração de indústrias e empresas como meio para geração empregos e riqueza. O autor desdobra sua tese argumentando que as referidas classes são atraídas por ambientes flexíveis, informais, com alto grau de tolerância, diversidade cultural e inovação – ele chega mesmo a criar um índice para medir tal ambiência, embasado num tríptico: tecnologia, talento e tolerância e tecnologia, os 3 TS do desenvolvimento econômico. Para atrair os criativos, os poderes públicos teriam então que implementar políticas públicas que favorecessem a criação de uma ambiência urbana criativa, propícia aos desejos e estilos de vida dessa classe. Como num ciclo virtuoso, a presença de trabalhadores criativos atrairia empresas inovadoras, gerando assim crescimento econômico. Principal tese do livro que catapultou o autor ao status de consultor para concepção de planos de desenvolvimento de grandes metrópoles, é também o seu calcanhar de Aquiles no que se refere às críticas da sua tese. Para alguns autores não há relação causal entre classes criativas e desenvolvimento urbano-regional ( VIVANT, 2006; MARKUSEN, 2006).
Apesar das críticas e das fragilidades de alguns de seus pressupostos, interessa aqui reter de Florida a sua abordagem ocupacional e a ênfase na dimensão do “capital humano” como fator de desenvolvimento econômico. Sendo assim, as dinâmicas de mercado de trabalho podem comparecer como importante indicador para apreender o desenvolvimento econômico e cultural de cidades e regiões ( SILVA e ARAÚJO, 2010; SILVA et al, 2018 ).
O mercado de trabalho cultural no Brasil vem demonstrando sinais de expansão, seja no que se refere ao número de ocupações, seja no nível de renda e escolaridade, tornando-se um inquestionável vetor para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país. Em 2014 o Brasil registrava 3,7 milhões de pessoas ocupadas nos setores culturais, correspondendo a 3,96% do mercado de trabalho no país. O rendimento médio é maior do que a média nacional e os níveis de escolaridade também. Contudo ainda é um mercado fortemente estruturado pela informalidade – em 2014, cerca de um terço era de trabalhadores informais ( BARBOSA, 2017).
Dentro desse contexto, não é estranho ao trabalhador artístico e cultural o entrelaçamento da formalidade e da informalidade ( MARTINS e SILVA, 2017) pois a maior parte desses indivíduos encontra na cultura e na arte um exercício secundário, favorecido pelo seu caráter flexível, que concede espaços para empregos temporários ou sazonais, e mantido principalmente pela garantia de uma fonte de renda primária, na maioria das vezes originária de uma ocupação que tende a uma maior estabilidade e que, por isso, os possibilita o investimento em suas carreiras artísticas – ainda que esses gastos sejam, por vezes, muito mais altos do que o próprio rendimento final.
No ano de 2014, cerca de um terço do mercado de trabalho cultural brasileiro era composto por trabalhadores informais ( DOMINGUES, 2017). Historicamente o setor cultural apresenta indicativo de crescimento na taxa de formalidade abaixo da média, ocupando, por exemplo, de 2% a 1,92% dos trabalhos formais no Brasil, entre os anos de 1995 e 2000. Há de se destacar ainda que as relações empregatícias estabelecidas pelos trabalhadores artísticos e culturais são bastante heterogêneas, além de desiguais em suas formas de experimentação e inserção.
Some-se a esse cenário, uma forte tendência da organização do trabalho no campo artístico de forma autônoma tendo em vista os incentivos aos microempreendimentos 5 e uma forte integração de jovens, condição que configura esse segmento como mais dinâmico do que o mercado de trabalho brasileiro como um todo. Ilustrativo desse fenômeno são os indicadores da taxa de ocupação. Entre os anos 2002 e 2016, o mercado de trabalho cultural apresentou um crescimento de 34%, enquanto o mercado de trabalho brasileiro como um todo anagariava uma taxas de 24%.
Há de se registar ainda as desigualdades na organização do mercado cultural em sua concentração espacial, configurando-se como predominantemente urbano-metropolitano com a distribuição equivalente a 52,60% e 53,11% em 2002 e 2014, respectivamente, nas regiões metropolitanas do Brasil. Porém, vale ressaltar a importância da participação das atividades culturais nos dinamismos econômicos, sobretudo na geração de ocupação e renda nas quais supera a indústria alimentícia, a de vestuário e a automotiva em massa salarial com R$ 10 bilhões no mesmo ano em que as demais possuíam R$ 3 bilhões, R$ 1,9 bilhões e R$ 1,7 bilhões, respectivamente. Considere-se ainda o número de ocupações. No ano de 2014, enquanto o setor de alimentos dispunha de 2 milhões de empregos, o da cultura registrava há 3,7 milhões ( BARBOSA, 2017).
Recôncavo, Recôncavos
Antes de seguirmos para a análise das dinâmicas do mercado de trabalho cultural na região, faz-se necessário refletir e explicitar sobre qual Recôncavo da Bahia pretendemos nos dirigir, visto que esta não é nem de longe uma definição acabada. Se há um consenso entre os estudiosos que se dedicaram a interpretar a região é de que existem muitos Recôncavos dentro do Recôncavo dada sua diversidade econômica e geográfica que perfilaram a sua formação histórica ( BRANDÃO, 1998; 2007a; AZEVEDO, 2011; COSTA PINTO, 1958; SANTOS,1998). Como nos lembra Milton Santos, “o Recôncavo foi sempre mais um conceito histórico que mesmo uma unidade fisiográfica”. (SANTOS, 1998, p.62). Sob a luz das referências e discussões permanece um esforço de compreender de que forma essas fronteiras se compõem e se mantêm. Tais questões, portanto, perduram para além deste trabalho.
Numa perspectiva geográfica, o Recôncavo é uma região que contorna a Baía de Todos os Santos e que ganha a forma de um côncavo pelas reentrâncias cavadas pelas águas da Baía de Todos os Santos no continente, originando daí sua denominação. Contudo, sua conformação político-administrativa passou por uma série de transformações ao longo do tempo 6, influenciada sobretudo por seus distintos ciclos econômicos que impactaram diretamente sobre a delimitação de suas fronteiras. Hoje a delimitação geopolítica oficial da região varia de 20 a 26 7 munícipios, denotando assim sua complexidade sócio-histórica, econômica e geográfica.
Diversos foram os sistemas produtivos que forjaram economicamente a região e, por extensão, o Brasil. Território que viu nascer e abrigou centenas de engenhos de cana-de-açúcar foi um dos principais produtores de açúcar no Brasil Colônia, sistema de produção ancorado, evidentemente, na exploração do trabalho escravo que marcou e ainda deixa fortes traços na conformação cultural e identitária da região e nas suas relações laborais. Como ressaltam Milton Santos (1998), Pinto (1998) e Brandão (1998) ao analisarem os distintos segmentos econômicos que se configuraram nessas terras, além do Recôncavo açucareiro, conformaram-se ainda os Recôncavos fumageiro, de agricultura de subsistência (mandioca, milho, feijão, hortaliças e frutas), da pesca e do petróleo.
Autores como Pedrão (2007) e Sansone (2011) destacam a internacionalização da produção da região que se constituiu desde os seus primórdios ancorada na produção de mercadorias globais (açúcar, fumo e, posteriormente, o petróleo) e nos “interesses de capital mercantil já internacionalizado em busca de meios materiais para expandir-se” ( PEDRÃO, 2007, p. 9). Uma economia agromercantil apoiada, sobretudo, no uso de mão de obra escrava. Dois traços da história que terão profundos efeitos na futura estrutura social, identitária e territorial desta região. Afinal, a hegemonia da cana de açúcar, “moldou no Nordeste relações de produção e uma sociedade que viria a ser marca do Brasil, influenciando a construção do conjunto de instituições, de mentalidade e de valores” (BAIARDI et al., 2008, p. 78).
A partir de meados do século XX, após passar por um longo processo de estagnação econômica, o Recôncavo conhece um novo ciclo produtivo mediante a descoberta de petróleo e no seu rastro a instalação Petrobras e da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), configuração que provocou uma significativa mudança na organização econômica da região. Inaugura-se no território mais um novo ciclo econômico estruturante para o país: a prospecção e exploração do petróleo. Além de cortar “o Recôncavo com estradas que ignoraram seus velhos caminhos” (BRANDÃO, 2007, p. 54), tornando ainda mais precárias as condições da maior parte da população, ao passo que suas terras eram desmatadas, seu ambiente poluído, a implantação da Petrobras na região não integrou substancialmente a população da região, reiterando assim as formas históricas de exclusão e as faces de uma sociedade forjada no escravismo ( PEDRÃO, 2007).
Ao tomar como objeto de análise a comparação das hierarquias sociais e raciais e os sistemas de memória derivados do sistemas de produção do açúcar e do petróleo, Lívio Sansone (2011) é um outro autor que vai iluminar o modo como as metamorfoses nos sistemas produtivos provocaram impactos diretos na conformação das identidades, pois para o autor “a cada etapa da modernidade que nele se desenvolve, se redefinem os processos identitários, o tipo de economia, os mecanismos facilitatórios que favorecem a criação de novas identidades e a infraestrutura tecnológica dentro da qual opera a memória” (SANSONE, 2011, p. 353).
O Recôncavo que elegemos para análise se restringe a um recorte muito específico, um Recôncavo contemporâneo, dos anos 2000, circunscrito aos municípios nos quais a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) possui centros de ensino, quais sejam: Cachoeira, Santo Amaro, Cruz das Almas, Santo Antônio de Jesus e Amargosa 89. Tal estratégia parte da hipótese de que a instalação de uma universidade federal pode se configurar como um vetor para uma possível transformação socioeconômica e cultural na região, levando ao desenvolvimento cultural nos termos que aqui empregamos, ou seja, entendido como processo social que promove a ampliação do acesso às atividades culturais, a valorização da diversidade e o estímulo à interculturalidade. Sendo um espaço por excelência de formação cultural e profissional, fortemente ancorado no território, a universidade pode contribuir para a constituição de novos mercados profissionais e um novo fluxo populacional (estudantes, professores, servidores técnicos) que ali se instala ou passa a frequentar com regularidade, condição que pode modificar sobremaneira os dinamismos socioeconômicos e culturais da região. Ademais, para o tema mais próximo desse artigo, as universidades são os centros de formação das chamadas “classes criativas” e a UFRB possui uma forte vocação para formar profissionais das áreas artístico-culturais 9 (o centro hipercriativo, segundo Florida).
Evidentemente que todo processo de desenvolvimento social e econômico porta suas ambiguidades e contradições ao promover simultaneamente inclusão e exclusão, conflitos sociais e, por consequência, acirramento das desigualdades. Num território profundamente forjado em exclusões de toda sorte (sociais, econômicas e culturais) tal qual o Recôncavo, e que ainda hoje apresenta altos índices de pobreza, o advento da instalação de uma universidade pública porta, paradoxalmente, seu teor de iniquidades, pois à roldão pode trazer aumento no custo de vida para a população local, especulação imobiliária, conflitos sociais entre forasteiros e residentes e a verticalização das diferenças (espaciais, sociais e culturais) ( BAUMGARTNER, 2015).
Para realizar uma caracterização socioeconômica mais recente da região, com foco nos munícipios de atuação da UFRB, laçamos mão de indicadores sociais produzidos a partir do Censo Demográfico do IBGE, relativo ao ano de 2010. Os indicadores socioeconômicos, quando cruzados, deslindam a perpetuação das desigualdades e exclusões que estruturam historicamente o território. No Recôncavo ainda insistem elevadas taxas de pobreza e desemprego e uma baixa escolaridade. A título de ilustração, descrevemos alguns dados dos municípios selecionados.
Em 2010, a taxa de desemprego de mais da metade dos municípios da região ultrapassava os 10% ( Gráfico 1).
Os números dos municípios aqui selecionados demonstram essa tendência. Santo Antônio de Jesus (10,51%), Cruz das Almas (15,60%), Santo Amaro (13,42%), Amargosa (11,34%) e Cachoeira (11,44%). Por conta desse contexto de baixo dinamismo do mercado de trabalho local, foi se constituindo historicamente um constante e intenso fluxo de indivíduos do Recôncavo em direção a Região Metropolitana de Salvador ( PEDRÃO, 2007).
Como o mercado de trabalho regular tende a inserir aqueles com maior nível de escolaridade, os índices de desigualdade se reforçam quando tomamos como parâmetro as taxas de escolaridade e cruzamos com o PIB, o IDH e os índices de pobreza dos municípios selecionados. Santo Antônio de Jesus é o maior município e o mais rico economicamente, e por consequência, aquele que apresenta o menor índice de pobreza, 8% da sua população. Possui uma população de 91 mil pessoas, um PIB de cerca de R$1,9 bilhão e IDH 0,73, o mais alto entre os cinco munícipios selecionados. Contudo apenas 0,46% da população acima de 18 anos possui mais de 8 anos de estudo. Cruz das Almas é o segundo maior município em termos populacionais. Possui uma população de cerca de 59 mil pessoas, um PIB em torno de R$ 862 milhões, IDH 0,72, sua taxa de pobreza é de 12% e 0,51% da sua população acima de 18 anos tem mais de 8 anos de estudo. Santo Amaro possui uma população de cerca de 58 mil pessoas, um PIB de cerca de R$ 691 milhões, IDH 0,68 e 15% da sua população são de pobres e a escolaridade com mais de 8 anos de estudo atinge apenas 0,44% da população. Cachoeira possui o mesmo nível de escolaridade e IDH que Santo Amaro, porém tem uma população de 32 mil pessoas e PIB de R$ 449 milhões e a maior taxa de pobres, 18%. Já Amargosa, município de cerca de 34 mil pessoas, amarga as menores taxas nos seus indicadores sociais e econômicos: apenas 0,34% da população possui mais de 8 anos de estudo, PIB de R$ 317 milhões, IDH, 0,66 e 16% de sua população é composta por pobres.
Esses indicadores revelam as profundas fraturas sociais da região e um imenso contingente populacional que ainda sequer completou o ensino médio e muito menos o ensino superior. Tal contexto aponta para a o papel fundamental da universidade no sentido de promover o desenvolvimento regional do território.
Como se pode constatar, as marcas de uma economia pautada numa herança escravagista na estruturação das relações sociais se perpetuam, o que implica em grandes desafios para o desenvolvimento econômico, social e cultural na região. Mas ainda assim é possível conjecturar sobre a conformação de classes criativas em contextos como o do Recôncavo, um fenômeno que foi concebido conceitualmente e que se configura no quadro de grandes metrópoles? Terá um perfil distinto as classes criativas em municípios de médio e pequeno porte?

Mercado de trabalho criativo no Recôncavo da Bahia
Se o Recôncavo é marcado por uma pluralidade de sistemas econômicos e paisagens geográficas distintas, quando o assunto é cultura, a diversidade das expressões culturais da região comparece também como um significativo marcador das suas especificidades sócio-históricas. A região possui uma pujança cultural fortemente ancorada nas heranças africanas. Ainda que estruturada insidiosamente num regime escravocrata, tal constituição histórica resultou em um diversificado panorama de expressões culturais, conferindo-lhe especificidades na formação da sua identidade cultural.
As classes criativas correspondem a 11% dos trabalhadores da Bahia, sendo que 4,2% deles está no Recôncavo. O mapa 1 mostra a distribuição, em termo absolutos, dos profissionais criativos na Bahia e o Mapa 2 marca os municípios do Recôncavo com o número das classes criativas.
Assim como foi solo para a inauguração de matrizes econômicas para o país (as plantions e a exploração de petróleo), é no Recôncavo também que brotam as raízes de expressões estéticos-culturais que irão contribuir para forjar alguns traços identitários da Bahia e do país. Afinal, é no solo do massapê, arado pelas mãos de escravos africanos, que germina o samba-de-roda (o DNA do samba brasileiro), que nasce uma expressão corporal singular tipicamente brasileira (mistura de artes marciais, dança e música), a capoeira. Sem falar ainda de uma variedade de folguedos, festas religiosas e cívicas 10. À título de exemplificação, citemos alguns desse festejos: Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, Bembé do Mercado, Festa da Nossa Senhora da Purificação, Festa de Iemanjá, Chegança, Marujada, Nego Fugido, entre muitos outros... Mais recentemente, aliando tradição com espaços de produção cultural mais contemporâneos a exemplos de feiras literárias, festivais de música e de cinema (com importante participação da UFRB), festas religiosas e circuitos de entretenimento e lazer (Carnavais e festas de São João São), a cena artístico-cultural do Recôncavo ganha dinamicidade, impulsionada também pelas políticas culturais (estaduais e federais) implementadas nas últimas décadas.
Escapa aqui desse espaço a intenção de realizar um mapeamento e uma interpretação pormenorizada sobre a variedade dessas expressões. O que interessa sobretudo é realizar uma primeira aproximação sobre o perfil das classes criativas da região e a participação deste setor na organização econômica do território.
Por limites do método empregado, qual seja, o uso de indicadores agregados, não é possível deslindar a dinâmica cultural dos municípios numa perspectiva detalhada. Ao aumentar a escala de análise perde-se o grau de riqueza do cotidiano que anima as produções culturais locais. O que vamos apresentar são tendências mais globais que podem ajudar a revelar a composição do mercado de trabalho criativo dos municípios, e consequentemente, podem servir como termômetro para medir sua pulsação cultural. Desse primeiro retrato bem geral, espera-se desdobrarem-se estudos mais detalhados, de caráter qualitativo, sobre o perfil das classes criativas, e até mesmo servir como fonte para formulação de políticas culturais dos municípios aqui analisados.


No nosso quadro classificatório foram consideradas as seguintes classes sociais: agricultura, burocracia pública, burocracia privada, classe de serviços, classe trabalhadora. Nele também estão as chamadas classes criativas, classificação que elaboramos a partir da adaptação do conceito de Richard Florida. Distinguindo-se de Florida, subdividimos o “Núcleo Hipercriativo”, criando uma nova categoria, o “Hipercriativo”. Enquanto no primeiro componente estão agregadas as atividades ligadas às políticas culturais do Ministério da Cultura (MinC), além das relacionadas ao esporte, no componente “Hipercriativo” são agrupadas atividades culturais mais gerais, ligadas à educação e à tecnologia. Por outro lado, conservamos o componente “Profissionais Criativos” seguindo a natureza das atividades sugerida pelo modelo de Florida.
O gráfico a seguir apresenta uma composição geral das ocupações dos cinco municípios escolhidos para análise.
Em termos gerais pode-se afirmar que a força de trabalho dos munícipios concentra-se nos setores de serviço e em postos com baixo grau de especialização. Evidentemente, a tendência histórica para os segmentos agromercantis permanece. Nota-se que em Santo Amaro, Amargosa e Cachoeira, a agricultura mantém sua relevância no cenário econômico local e a classe de serviços é bastante dinâmica nas cinco cidades – ao contrário das classes Burocracia Privada e Burocracia Pública, pouco representativas na amostra. As classes criativas, por sua vez, somam mais do que 10% em cada município.
A Tabela 1 apresenta o percentual das classes criativas dos municípios selecionados. Considerando-se o perfil socioeconômico da região e suas desigualdades estruturantes, pode-se afirmar que o percentual das classes criativas na região porta um dinamismo significativo, não muito distante da tendência nacional que possui 15,9% de seus trabalhadores nas classes criativas (Barbosa et all, 2019).
Para Florida, a característica distintiva da classe criativa se associa à inovação, à capacidade dos seus membros em não somente solucionar problemas, mas também encontrá-los. O que distingue os diferentes grupos são os níveis de imersão na criatividade como requisito para a ocupação. Enquanto o núcleo hipercriativo e os hipercriatvos dedicam-se em maior medida à criação, à produção de novos conteúdos com alto teor de inovação, os profissionais criativos compõem uma vasta gama de profissionais (de administradores, a médicos e advogados) que se dedicam a resolver problemas que demandam um alto grau de conhecimento.


Os três segmentos da classe criativa podem se organizar e se comportar de maneira diferente, a depender das tendências locais. Por isso, nos gráficos 3a-e, é possível perceber a maior ou menor participação dos componentes das classes criativas nas cidades referidas.
Percebe-se, por meio da análise dos gráficos, que Santo Antônio de Jesus é o único dos municípios cujos profissionais criativos – aqueles que incluem as profissões gerenciais e de vendas ou ligadas ao direito e à área da saúde –, representam uma parcela maior do que os hipercriativos – em que as profissões associadas à computação, à arquitetura e engenharia, tal como às ciências biológicas, naturais e sociais estão em evidência. Há de se destacar que Santo Antônio de Jesus tornou-se um importante centro econômico que abastece a região. Dispõe de um comércio pujante, com ênfase na distribuição de alimentos. Além disso, concentra um número significativo de serviços voltados para cuidados médicos e de saúde que atende a região, além de sediar uma fábrica de medicamentos e suplementos alimentares. Decorre daí o acentuado dinamismo dos profissionais criativos.




Além disso, ainda que Cachoeira possua o mais baixo percentual de classes criativas entre os demais, 10,1%, a cidade apresenta o maior índice do componente Núcleo Criativo, com 12%, referente às profissões ligadas a arte, ao design, ao entretenimento, aos esportes e a mídia, enquanto que Santo Antônio de Jesus e Cruz das Almas apresentam 7% das suas classes criativas compostas pelo Núcleo Criativo. Por sua vez, Santo Amaro e Amargosa possuem apenas 3% do Núcleo Criativo em suas classes. Tal configuração não se dá por acaso. Talvez GRÁFICO 3. Composição percentual de classes criativas em Cruz Cachoeira seja o município mais “cultural” da região. Ademais, das Almas é uma cidade histórica, tombada pelo IPHAN pelo conjunto do seu patrimônio arquitetônico colonial, condição que lhe concede especificidade quando comparada aos demais municípios da região. Abriga um significativo conjunto de manifestações culturais tradicionais, além de ter se tornado palco de eventos de grandes proporções como feiras literárias, festivais de cinema e música e festas populares como o São João e Festa da Boa Morte 11, conjunto de eventos que tem desenvolvido o que alguns autores tem chamado de turismo étnico ( VATIN, 2008). Há de se destacar também o papel da UFRB na cidade, tendo em vista a dinamização cultural engendrada mediante os eventos e projetos culturais desenvolvidos por estudantes e professores.



De modo geral, embora entre em disputa com os profissionais criativos, os trabalhadores atuantes no “Hipercriativo” detêm a maior fração das classes criativas diante do contexto proposto. Em contrapartida, os trabalhadores que desenvolvem atividades ligadas ao “Núcleo Criativo” não comparecem no gráfico de forma tão expressiva, apontando assim para um dos limites dos indicadores agregados. Isto porque, pelos indicadores não é possível capturar o contingente de amadores e profissionais inclusos na informalidade, que se configuram como a grande força que dão vida às manifestações e expressões da cultura popular, especialmente em regiões como o Recôncavo.
Sob uma outra perspectiva, dessa vez mais centralizada em atividades artístico-culturais mais clássicas, apresentamos indicadores do mercado de trabalho da região, construídos por meio da base de dados do Cadastro Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) e do Cadastro Brasileiro de Ocupações (CBO). O primeiro reúne todos os indivíduos que, de alguma forma, trabalham dentro do setor cultural. Neste caso, mesmo aqueles que não desenvolvem uma atividade essencialmente cultural, mas ainda assim trabalham em uma empresa deste setor, será incluído como parte do cálculo. Por outro lado, o CBO busca os números referentes a ocupação, ou seja, a atividade que o sujeito executa.
Portanto, o quadro acima especifica as ocupações que compõem o setor cultural de acordo com o CBO e, ao lado, descreve as áreas consideradas na contagem do setor cultural pelo CNAE, nas quais os indicadores aqui construídos se sustentaram.
Esta forma de organizar as informações resulta em uma nova leitura e, por isso, outras formas de se relacionar com os dados. Ao exemplo de que, diferente do percentual das classes criativas, Cachoeira não apresenta os menores números, pelo contrário, parece a mais dinâmica de acordo com o CNAE (10,7%) e a segunda pelo CBO (6,8%). Entretanto, apesar dos resultados parecerem distintos, ao colocarmos em diálogo, é possível que seja explicado através da relevante parcela representada pelo Núcleo Criativo. Afinal, é neste componente onde ocupações como arte e entretenimento estão.

A partir dessa perspectiva, Santo Antônio de Jesus, o único município em que os “Profissionais Criativos” predominavam, tem participação menor quando o olhar é específico para a cultura e não nas classes criativas em geral (6,7% no CNAE e 5,6% no CBO). Enquanto que Cruz das Almas (9,7% no CNAE e 7,0% no CBO), Cachoeira (10,7% no CNAE e 6,8% no CBO) e Santo Amaro (8,3% no CNAE e 6,6% no CBO) aparecem de forma mais expressiva.
A discrepância entre os dados decorre do usos de conceitos diversos. Setor e ocupação culturais são conceitos que agregam categorias socioeconômicas diversas e, ademais, são conceitos com diferentes sensibilidades à metodologia de coleta de dados do Censo. Entretanto, é necessário destacar tanto a importância das classes criativas, quanto dos dinamismos culturais nas economias locais, medidos pelo CBO e CNAE. O mais importante, entretanto, é que a dinamicidade, medida por qualquer um dos múltiplos conceitos aqui usados, chama a atenção para a necessidade de melhor entendimento das classes criativas e da cultura nos processos de organização econômica e social local, bem como das suas relações com os os objetivos das políticas públicas locais.

Considerações finais
No diálogo com os referenciais teóricos, dentre aqueles que discutiam as experiências sociais e econômicas do Recôncavo da Bahia (BAIARDI et al., 2008; BRANDÃO, 2007; PEDRÃO 2007), foi possível traçar algumas interpretações dos indicadores da região, construídos com base no IBGE do ano de 2010. Buscou-se, então, estabelecer algumas relações entre ambos os instrumentos, o teórico e o numérico, a fim de perceber as condições da população no que concerne renda e nível de escolaridade, assim como a configuração do trabalho na região e suas potências, especialmente o trabalho cultural.
Para tanto, foi importante compreender que “os indicadores são moedas de dois lados, sendo um deles uma expressão numérica e o outro uma expressão conceitual” ( BARBOSA, 2017, p.11) para, então, reconhecer seu uso enquanto forma de sinalizar, de apontar algumas pistas sobre uma realidade. Todavia, é necessário também advertir sobre suas limitações. Fica claro, ainda quando comentamos sobre os apontamentos da significativa vida cultural da região em inúmeros discursos, que uma considerável parcela dessas manifestações escapa dos índices.
Por outro lado, os indicadores permitem conhecer a dinâmica do mercado de trabalho cultural da região, as relações que estabelece com outras esferas econômicas, o tipo de participação que tem este setor e, ainda, quais as suas potencialidades e fragilidades. Neste sentido, este artigo pretende contribuir para a soma de materiais analíticos sobre a região, principalmente sobre o referido tema, que ainda são escassos. Além de colaborar para a reflexão sobre modelos de atuação neste setor, como a formulação de políticas públicas.
Daí a necessidade de aperfeiçoamento dos recursos metodológicos donde venha a se coadunar métodos quantitativos, que qualificam mais globalmente os fenômenos, com métodos qualitativos mais sofisticados que possam revelar com maior grau de sutilezas a complexidade da produção cultural das diversas, plurais e multifacetadas realidades brasileiras.
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Notas
Autor notes
mariella.pitombo@gmail.comfrederico.barbosa@ipea.gov.broop.amanda@gmail.com