Resumo: Este trabalho investiga o processo de competição entre algumas das mais importantes empresas de tecnologia do mundo, que criaram modelos de negócios voltados para atuação junto ao mercado de serviços culturais-digitais - séries, filmes, games, músicas, livros e animação. Trata-se de um processo de envergadura global e grande impacto econômico, tecnológico e criativo, que têm remodelado os mercados culturais por meio do intenso processo de digitalização e de atuação de corporações. Para analisar esses aspectos, duas estratégias metodológicas e analíticas foram adotadas de maneira simultânea ao longo do texto. A primeira, buscou lançar mão dos conceitos de digitalização do simbólico e de capitalismo cultural-digital, ambos urdidos em outros trabalhos e investigações que conjugam uma agenda de pesquisa mais ampla, cujos esforços estão empenhados na realização de uma sociologia econômica dos mercados culturais. A segunda, consistiu em explorar as últimas decisões econômicas e estratégias comerciais e criativas adotadas pelas companhias Netflix, Disney e Apple, assim como atualizar os dados acerca da expansão do consumo dos conteúdos artístico-culturais digitais, especialmente no Brasil.
Palavras chave: competiçãocompetição,mercados culturaismercados culturais,serviços culturais-digitaisserviços culturais-digitais.
Abstract: This work investigates the process of competition between some of the most important technology companies in the world, which created business models aimed at the culturaldigital services market - series, movies, games, music, books and animation. It is a process of global scope and great economic, technological and creative impact, which has been refashioning the cultural markets through the intense process of digitalization and corporate action. To analyze these aspects, two methodological and analytical strategies were adopted simultaneously along the text. The first one sought to use the concepts of digitalization of the symbolic and cultural-digital capitalism, both of which are woven into other works and research that combine a broader research agenda, whose efforts are engaged in the realization of an economic sociology of cultural markets. The second was to explore the latest economic decisions and commercial and creative strategies adopted by the Netflix, Disney and Apple companies, as well as to update data on the expansion of consumption of digital artistic-cultural content, especially in Brazil.
Key words: competition, cultural markets, cultural-digital services.
Artigos
Competição e digitalização: a expansão dos serviços culturais-digitais – os casos da Netflix, Disney e Apple
Competition and digitization: the expansion of cultural-digital services - the cases of Netflix, Disney and Apple
Recepção: 30 Abril 2019
Aprovação: 08 Outubro 2019
Este trabalho se inscreve em um movimento mais amplo de construção e depuração de uma agenda de pesquisa, que tenciona investigar o processo de consecução, expansão e transformação dos mercados culturais nas sociedades contemporâneas. No decurso dos últimos dez anos, essa agenda tem ganhado consistência, imprimindo algumas marcas duradouras. A contundência das transformações envolvendo os mercados culturais exige, cada vez mais, o refinamento das técnicas de pesquisa, a construção e renovação permanente de bancos de dados e a elaboração de conceitos que capture, de modo preciso, essa dinâmica. No decorrer desse processo, tornou-se imperativo construir uma sociologia econômica dos mercados culturais, tendo como principal objeto empírico de pesquisa o processo de digitalização dos mercados culturais. Esse é um fenômeno candente, extremamente dinâmico e desafiador, pois, em menos de cinco anos, transformou o modelo de negócios de grandes companhias globais de tecnologia; desencadeou uma busca pela criação e difusão de novos conteúdos artístico-culturais; alterou a prática de consumo cultural; fez emergir novos agentes econômicos; passou a desafiar a legislação dos estados nacionais; e, principalmente, potencializou a competição econômica, tecnológica e criativa entre grades corporações globais.
Nos contornos gerais dessa agenda, este trabalho tem como objeto o processo de competição econômica, inovação tecnológica e criatividade artístico-cultural envolvendo as maiores companhias de tecnologia digital no planeta, nomeadas por Frederic Martel (2014) de GAFAM – Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft. São essas as cinco mais valiosas corporações do mundo, em valores de mercado correspondente ao primeiro trimestre de 2019 (Economática, 2019). Nesse período, por exemplo, a Apple, após o lançamento global do seu serviço especializado de streaming, o Apple +, ultrapassou a fronteira de um trilhão de dólares em valor de mercado.
O processo de digitalização dos mercados culturais se inscreve em uma moldura sociológica ainda mais larga, a digitalização da vida. No decurso dos últimos dez anos o processo de digitalização da vida alcançou e penetrou todos os domínios da existência humana, remodelando significativamente as relações econômicas, afetivas, políticas, artísticas, empresariais, jurídicas, intelectuais e educacionais. Não se trata de um processo unilateral, dotado de uma intencionalidade unidimensional que a tudo conspurca, perverte e solapa. Trata-se de uma constelação de múltiplas figurações relacionais, no qual a face comercial da internet, a web, desempenha um papel decisivo na coordenação, integração e estruturação das ações e práticas humanas cotidianas nas sociedades contemporâneas. Os indicadores, as séries históricas e dados que recortam os últimos dez anos são unanimes em registrar o avassalador processo de expansão das atividades digitais envolvendo os conteúdos políticos, os conteúdos estético-artísticos, as trocas econômicas e comerciais, as atividades financeiras, os códigos indenitários, étnicos e culturais, as trocas e reciprocidades afetivas, emocionais e sexuais, as práticas de aprendizado intelectuais e acadêmicos, entre muitas outras.
Em 2018, dos 7.5 bilhões de habitantes do planeta nada menos do que 4.4 bilhões eram usuários regulares da internet (58% de toda a humanidade). Sendo que 5.1 bilhões de seres humanos dispunham de um telefone celular móvel com acesso à internet (smartphone), e 3.5 bilhões (46% da população do planeta) eram usuários ativos de mídias sociais e, desses, 3.2 bilhões utilizavam as mídias ou redes sociais através de smartphones ( Global Digital Yearbook, 2019). Em 2014, 2.5 bilhões de pessoas utilizavam regularmente a internet, no primeiro trimestre de 2019 esse número saltou para 4.4 bilhões – um crescimento de 60.7% em pouco mais de quatro anos. O Brasil possui a segunda maior média mundial de tempo diário gasto na internet, 09:29 (nove horas e vinte nove minutos), superado apenas pela Filipinas. Desse total, os brasileiros usam em média 4:45 (quatro horas e quarenta e cinco minutos) por dia acessando a internet móvel, situando o Brasil na terceira maior média de tempo de uso da internet móvel, atrás apenas das Filipinas e da Tailândia.
Em janeiro de 2019, de acordo com o Global Digital Yearbook, a cada mês, do total de usuários 92% assistiram vídeos (filmes e séries), 53% assistiram conteúdos de TV pela internet, 30% jogaram games pela internet, 23% assistiram jogos online praticados por outras pessoas e 16% assistiram torneios de esportes online. Ainda segundo o Global Digital Yearboo, em janeiro de 2019, 99% da população do EUA possuía ao menos uma rede social digital ativa, o no Brasil esse percentual foi de 66% da sua população. Nesse mesmo período, o Brasil possuía uma média geral de 03:34 (três horas e trinta e quatro minutos) de uso diário gasto nas redes sociais digitais, em qualquer dispositivo, figurando assim na segunda colocação global, superado apenas, mais uma vez, pelas Filipinas. Em 2016, de acordo com a UNESCO, em todo o mundo, em apenas 60 segundos, 701 mil conexões foram realizadas no Facebook, 69 mil horas de conteúdos foram assistidas na Netflix, 347 mil novas postagens no Tweet, 51 mil aplicativos da Apple foram baixados, 203 mil US$ foram comercializados pela Amazon, 2,4 milhões de consultas realizadas junto ao Google, 38 mil horas de músicas ouvidas através do Spotify, 39 mil postagens no Instagram e 2,7 milhões de vídeos vistos no Youtube.
A digitalização da vida ocorre em graus variados em diferentes sociedades; com maior ou menor intensidade entre as diferentes classes sociais, os gêneros, as raças, as regiões, reforça e potencializa novas desigualdades e assimetrias; desencadeia novas lutas e tensões políticas; corrobora para a construção de novas hegemonias; integra diferentes espaços e segrega outros; define os contornos do planejamento econômico das empresas e os seus modelos de negócios; mobiliza os governos e impacta na oferta e avaliação dos serviços públicos; remodela o poder de consumo, avaliação e julgamento dos consumidores; mobiliza novos engajamentos; pressiona os profissionais dos mais variados domínios ocupacionais; remodela as práticas didáticas e formas de aprendizado; e altera a percepção do corpo, do mundo, do tempo e do espaço. Dessa moldura sociológica geral, complexa e muito recente, nos interessa, neste trabalho, o processo de digitalização dos mercados culturais. E, em particular, o processo de competição, que aciona novos investimentos e estratégias empresarias em torno do controle do mercado de serviços culturais-digitais, mais especialmente o mercado digital de séries e filmes por meio da tecnologia de streaming. Tencionamos evidenciar como as estratégias adotadas por corporações como Disney e Apple, durante os anos de 2018 e 2019, consolidam a estrutura econômica, criativa e tecnológica que temos nomeado de capitalismo cultural-digital.
A competição entre poderosas corporações globais de tecnologia digital, entretenimento e inovação, tais quais Netflix, Disney, Apple e Amazon, somente pode ser compreendida e explicada a partir do uso de um modelo empírico e analítico específico. Primeiro é preciso demostrar por que e como empresas de tecnologia, as maiores do planeta, como Apple e Amazon, passaram a se interessar pela produção, o controle e a comercialização de conteúdos de arte, cultura e entretenimento. Elas o fizeram porque a digitalização do simbólico e a criação dos serviços culturais-digitais se expandiram de tal sorte em todo o globo que tornaram a criação, o controle e a comercialização de conteúdos de séries, filmes, animações e games uma das atividades econômicas mais lucrativos do mundo.
Para que esse aspecto fique claro é preciso compreender o que são os serviços culturais-digitais. Um bem simbólico-cultural é todo conteúdo (editorial, teatral, fotográfico, audiovisual, visual, pictórico, etc.) comercializado e consumido in loco, ou seja, no local onde é apresentado, exibido e consumido – em um museu, galeria, teatro, cinema, ópera, entre outros. Uma peça de teatro, um filme exibido na tela de um shopping center, uma exposição em uma galeria ou no interior um museu, um espetáculo de dança, realizado numa sala de teatro ou concertos, e um show musical, ocorrido em um grande espaço público, são todos bens culturais. Se por acaso esses conteúdos forem todos transmitidos, de forma gratuita ou não, em plataformas especializadas, como o Youtube, por exemplo, tornam-se serviços culturais-digitais. Esses, por usa vez, são apenas mais um dos muitos e possíveis mercados e esferas de negócios existentes no interior da web, cuja expansão e diferenciação, especialmente nos últimos vinte anos, produziu uma serie de diferenciações nas economias pós-industriais de serviços ou nas chamadas economias do conhecimento (Castells, 2014).
Como demostra a figura 1, os serviços culturais-digitais constituem o núcleo de diferentes camadas da economia das sociedades pós-industriais em rede. O primeiro círculo abarca os infinitos setores de serviços, alguns dos quais exigem ocupações e profissões com elevada especialização técnica e complexas habilidades intelectuais e cognitivas (como os serviços de saúde, segurança digital e aviação) outros envolvem ocupações precarizadas e com habilidades pouco valorizadas (como os serviços de limpeza). Os mercados culturais convencionais, segundo círculo, corresponde as atividades de comercialização e consumo de dos bens culturais praticados ao vivo, de maneira off-line. Esses mercados, cinema, televisão, artes cênicas, música e mercado editorial cresceram muito nas sociedades ocidentais entre as décadas de 1950 e 1990. São ainda mercados robustos, mas sofreram inflexões definitivas, a mais relevante delas o ingresso das principais corporações de tecnologias digitais do mundo. O terceiro círculo da figura corresponde às operações de compra e venda pela internet através de sites especializados, sejam eles de roupa, livros, eletrodomésticos, produtos eletrônicos em geral, móveis, passagens aéreas, e uma infinidade de outros produtos e serviços. Essa foi a primeira esfera econômica a se expandir com o advento e a profusão da internet desde meados dos anos de 1990. De acordo com o Global Digital Yearbook, em 2018, 28% da população feminina, com 15 anos ou mais de idade, de todo o mundo, realizou compras online, ao passo que a população masculina foi de 30%. Dentre as compras realizadas através da web, o e-commerce, os percentuais entre os segmentos se dividiram da seguinte forma, em todo o mundo: moda e beleza correspondeu a US$ 525 bilhões; eletrônicos e mídias físicas correspondeu a US$ 392 bilhões; comida e cuidados pessoais corresponderam a um total de vendas de US$ 209 bilhões; móveis e eletrodomésticos alinhavaram um total de vendas de US$ 272 bilhões; brinquedos e artesanato correspondeu a um total de US$ 386 bilhões; já as viagens corresponderam US$ 750 bilhões; música digital, por sua vez, abarcou a quantia de US$ 12 bilhões, e os videogames alcançaram uma vendagem digital de US$ 70 bilhões. O quarto círculo concêntrico abarca uma esfera inteiramente nova, cujo crescimento redefiniu o modo como se hospeda, se desloca nos centros urbanos e como se alimenta. Trata-se da nova economia digital, que tem no seu centro a chamada inovação disruptiva, resultado do crescimento dos aplicativos digitais como Uber (maios plataforma de serviço de transporte do mundo), o Airbnb (maior plataforma online de serviços de hospedagem) e Ifood (maior plataforma digital de serviços de alimentação). Por fim, a figura 1 apresenta no seu núcleo os serviços culturais-digitais, que, como modelo de negócio mais exitoso, consiste na oferta de serviços de assinatura digital mensal, por meio da tecnologia instantânea e online de streaming, de conteúdos de séries, filmes, games, livros, jornais e serviços educacionais. As maiores corporações de tecnologia digital do planeta, como Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft (GAFAM), passaram a investir significativas somas no desenvolvimento dos seus próprios serviços de streaming, desencadeando uma das maiores competições econômicas deste início de século.

Os serviços culturais existem, por sua vez, em razão de quatro processos conjugados, que urdiram o processo de digitalização do simbólico, que, como corolário, plasmou o capitalismo cultural-digital. São os seguintes processos: 1) advento da tecnologia de transmissão e distribuição contínua de daFonte: elaboração do autor dos online, o streaming, que, nos últimos cinco anos, passou a permitir que series, filmes, vídeos, games e demais conteúdos audiovisuais possam ser consumidos instantaneamente sem a necessidade de aguardar um determinado tempo para baixar (download); 2) a profusão dos dispositivos digitais móveis, especialmente os smartphones, cujo número já é de 5.1 bilhões em todo o planeta, amparado nas bandas largas móveis 3G e 4G; 3) a convergência digital, que permitiu que as diversas mídias e linguagens convergissem para um único aparelho e suporte, o smartphone; 4) o advento e a profusão da internet 2.0, fase da web em que a grande maioria dos usuários (cerca de 75%) produz, distribui e consome os conteúdos (informações, fotografias, textos, imagens, vídeos, música, etc.) que circulam na web. Nos últimos cinco anos, em meio a conjugação desses processos, as companhias que compõem o GAFAM (Google, Amazon, Facebook e Microsoft) passaram a investir na criação dos seus serviços-culturais digitais, conferindo os contornos definitivos ao capitalismo cultural-digital.
O capitalismo cultural-digital é uma complexa figuração ( ELIAS, 1993) tecnológica, criativa e econômica composta por diversos mercados culturais-digitais. Sem a consolidação e profusão do processo de digitalização do simbólico (descrito na figura 2) não haveria o capitalismo cultural-digital. O capitalismo cultural-digital é a fase digitalizada do capitalismo cultural. Quatro processos/vetores, como delineia a figura 3, ancoram e estruturam o capitalismo cultural-digital: i) o grau de inovação tecnológica; ii) o grau de digitalização; iii) o grau de convergência e iv) a penetração da internet 2.0. Os quatro mercados situados na parte superior da figura 3, mercado musical, mercado audiovisual, mercado editorial e mercado publicitários, são aqueles que dispõem de maior grau de inovação tecnológica (por exemplo, a inovação tecnológica que resultou no suporte digital de leitura de livros Kindle, da Amazon), o uso, cada vez mais frequente e disseminado, dos smartphones para ouvir músicas e assistir séries e filmes. Quanto mais um mercado cultural está digitalizado, quanto mais ele apresenta um maior grau de inovação tecnológica e convergência digital, tanto mais ele se inscreve na fronteira de expansão global do capitalismo cultural-digital. Por exemplo, de todos os principais mercados culturais apresentados na figura, 3, o mercado musical é o que apresenta maior grau de digitalização, convergência e inovação tecnológica, abrigando serviços de streaming, como Spotify e Deezer, que promoveram grandes inovações. Em 2016, dos US$ 15,7 bilhões de faturamento do mercado musical 50% já foi obFonte: Alves, 2019. tido exclusivamente por meio do fluxo de conteúdo digital, ou seja, os serviços culturais-digitais de música.
No interior de cada um dos mercados culturais apresentados na figura 3 atuam cinco agentes econômicos estruturais, que dispõem de mais ou menos poder dependendo do maior recurso financeiro de investimento aplicado pelas empresas, do poder de renda dos consumidores, da legislação vigente em cada estado nacional e das políticas de estímulo aos processos criativos e à valorização das ocupações desenvolvedoras de conteúdos existentes em diferentes contextos locais, regionais e nacionais. São os seguintes agentes: 1) empresas culturais especializadas; 2) bancos privados; 3) profissionais e trabalhadores criadores de conteúdos; 4) instituições estatais-governamentais e 5) os consumidores. No caso dos mercados culturais mais digitalizados, mais inovadores tecnologicamente e que apresentam o maior grau de convergência digital (os mercados musical, audiovisual, editorial e publicitário), o primeiro agente econômico, as empresas culturais, são também empresas de tecnologia, que, muito recentemente, passaram a investir na criação, desenvolvimento, licenciamento, distribuição e comercialização de conteúdos artístico-culturais: músicas, filmes, séries, games, livros, entre outros. Essas empresas passaram a adotar modelos de negócios voltados para os serviços culturais-digitais, oferecendo serviços mensais de assinaturas de acesso aos variados conteúdos artístico-culturais. Essas empresas são Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft – GAFAM. Como assinalado antes e como demonstra a tabela 3, essas são também as maiores corporações privadas do planeta.
Em grande medida, as empresas que compõem o GAFAM copiaram e/ou adaptaram o exitoso modelo de negócio criado e adotado pela companhia norte-americana Netflix. Nos últimos cinco anos a Netflix foi uma das empresas que mais cresceu no mundo, superando gigantes do setor de entretenimento e mídia, como a Disney. Ancorado em um serviço streaming de assinatura mensal com a cesso a uma cartela de séries e filmes, com preços bem inferiores aos praticados pelas empresas de canais de televisão por assinatura, a Netflix criou um modelo inteiramente novo, presente em 170 países. Um dos aspectos mais decisivos do seu êxito comercial e econômico concerne ao seu mecanismo de análise preditiva, que consiste em cruzar os dados dos assinantes, principalmente aqueles referentes às preferencias e gostos estéticos, e, com isso, sugerir conteúdo específicos, que estabelecem um parâmetro percentual de relevância para o assinante. No final de 2018, a Netflix já contava com 140 milhões de assinantes em todo o mundo. De acordo com o estudo da Ampare, no final de 2018, a Netflix já dispunha de 10 milhões de assinantes no Brasil, superando, assim, a soma dos assinantes das empresas de Televisão por assinatura Net e Claro TV, que, juntas, possuíam 9 milhões de assinantes. No primeiro semestre de 2018, a empresa se tornou a companhia de mídia mais valiosa do mundo, com valor de mercado de US$ 152,3 bilhões, superando a Disney, que estava avaliada em US$ 151,7 bilhões. Em 2018, a Netflix encerou o exercício figurando como a terceira empresa que mais cresceu no mundo, apresentando, como constata a tabela 4, um crescimento de US$ 53 bilhões. É emblemático que uma companhia especializada no desenvolvimento, licenciamento e distribuição de serviços-culturais, especialmente de séries e filmes, tenha obtido um crescimento de quase o dobro de uma companhia de petróleo, a China Petroleum, evidenciando, dessa forma, uma mudança acentuada na matriz de acumulação do capitalismo.



Dois grandes fatos empresariais e econômicos marcaram recentemente as estratégias de duas das maiores empresas do mundo, Disney e Apple. Ambos envolveram decisões envolvendo os serviços culturais-digitais. Em março de 2018 a Disney comprou, por US$ 71,3 bilhões, 21st Century Fox. Foi a maior aquisição da história do mercado de mídia, entretenimento e cultura nos EUA. A compra da 21st Century Fox permitiu a Disney dispor de um novo e disputado acervo de conteúdos, antes controlados pela 21st Century Fox. Entre esses conteúdos destaca-se series como Os simpsons (serie de animação mais vista em todo o mundo), além de séries como Star Wars, National Geographic, entre outros. A aquisição da 21st Century Fox assinalou o ingresso da gigante de animação no mercado dos serviços de assinatura por streaming, cujo objetivo foi competir diretamente com a Netflix. No início de 2019, a criação e a oferta do Disney +, serviço de streaming de animação, serie e filmes da companhia. Desse modo, a empresa passa a dispor do maior catalogo de conteúdos de animação e filmes infantis do planeta, incluindo todo o catalogo da Pixar, empresa de animação controlada pela Disney e criadoras de sucessos mundiais como “Toy Story”, “Procurando Nemo”, “Procurando Dory”, “Os incríveis”, entre outros.
Em março de 2019, a Disney anunciou o preço do serviço Disney + nos Estados Unidos, no valor de US$ 6,99, inferior ao serviço mais barato da Netflix nos EUA, US$ 8,99. A empresa ainda anunciou que nos próximos dois anos, 2020 e 20121, o serviço estará disponível em todo o mundo, e que, ainda em 2019, a companhia estrearia 25 novas séries e 10 filmes. No mesmo dia em que anunciou o início das operações do serviço Disney + e o seu preço básico, as ações da Netflix recuaram em 4% na Bolsa de Valores de Nova York, resultando numa perda de cerca de US$ 6 bilhões em um único dia. Seguindo esse diapasão, a Disney anunciou um investimento de US$ 1 bilhão para a criação de conteúdos originais em 2019, e mais US$ 2 bilhões até 2024. De acordo com o planejamento estratégico da empresa, o objetivo e alcançar entre 60 e 80 milhões de assinantes em todo o mundo, obtendo lucratividade com os investimentos realizados no ano fiscal de 2024.
O segundo fato empresarial e econômico envolvendo o mercado de serviços culturais-digitais diz respeito, também em março de 2019, ao anuncio de criação do serviço de assinatura via streaming da Apple, o Apple TV+. Uma das razões para que a Apple ingressasse no mercado de conteúdo foi a desaceleração global nas vendas do seu principal produto, o iPhone. Mas o aspecto mais relevante, que condicionou essa decisão, diz respeito, assim como a Disney, ao fato de que a digitalização do simbólico e, por conseguinte, a digitalização dos mercados culturais, tem esvaziado os mercados convencionais (off-line) de cinema e televisão, territórios dominados pela Disney, especialmente na linguagem de animação. No caso da Apple, mesmo liderando a inovação de produtos, a inovação nos serviços de conteúdos tornou-se imperativo.
Logo no lançamento mundial do seu serviço de assinatura por streaming, a Apple anunciou um investimento de US$ 1 bilhão na criação de conteúdos originais, séries e filmes, que, encontraria espaço de fidelização, com a facilidade de os conteúdos serem fidelizados diretamente para os 1,4 bilhões de aparelhos de iPhone existentes em todo o mundo. A criação do Apple + sinalizou a maior inflexão na rota de consolidação de empresa desde a criação do iPhone 1, em 2007. Apple TV + passou a integrar o serviço do Apple Music, e logo no lançamento anunciou a criação das séries The Morgan Show, See e For All Manind, além da contratação de nomes como Steven Spielberg. A Apple TV + abarca outros produtos e serviços, tais quais um cartão de crédito (Apple Card), um serviço de assinatura de conteúdo de games (Apple Arcad), que contém um catálogo com mais de 100 logos, um serviço de streaming de notícias (Apple News +), que abriga mais de 300 títulos, entre jornais e revistas especializadas de todo o mundo, no valor de US$ 9,99.
Além de Disney, Apple e Amazon (que já dispõem do seu próprio serviço de streaming, o Amazon Prime Video, principal concorrente da Netflix até 2019), a norte-americana AT & T também anunciou, no início de 2019, uma reformulação nas suas estratégias empresarias, informando também a criação de uma plataforma global de assinatura e acesso a conteúdos exclusivos. A AT &T é um dos maiores conglomerados de mídia, comunicação e jornalismo do mundo, com a aquisição da Time Worner (proprietária de empresas como HBO, CNN, DC Comics e Worner Bros) a empresa decidiu investir na criação dos serviços culturais-digitais.
Ao mesmo tempo em que Disney, Apple e AT &T anunciavam a criação de modelos de negócios que tencionavam concorrer com a Netflix, a empresa anunciava a instalação de um grande escritório administrativo e executivo em Nova York, comunicando também a contratação de 12 altos executivos. O escritório abrigará um grande centro de produção, com sies estúdios de TV, totalizando um investimento de US$ 100 milhões até 2024, contando com uma infraestrutura total de 24 mil metros quadrados. Também no primeiro trimestre de 2019, a empresa anunciou as suas novas estratégias de expansão para países como Índia e China. A Netflix passou a ofertar um plano de assinatura, exclusivo para dispositivos digitais móveis, no valor de 250 mil rupias – o equivalente a US$ 3,63. Os planos de assinatura oferecidos pela Netflix na Índia, até 2019, possuíam valores que iam de 500 a 800 rupias. Já a Amazon Praime Vídeo praticava em seu serviço de assinatura o valor de 999 rúpias. Como resultado desses aspectos, a Netflix, em abril de 2019, apresentou um balanço financeiro extremamente positivo. No primeiro trimestre de 2019, a empresa expandiu a sua base de assinantes em 7,8 milhões, superior aos 5,4 milhões esperados, amealhando um lucro de 344 US$ milhões, superior aos US$ 290 milhões registrado no primeiro trimestre de 2018. Por conseguinte, a receita total saltou de US$ 3,7 bilhões para US$ 4,5 bilhões ( Exame, 2019).
O Brasil tornou-se um mercado estratégico para a Netflix e as companhias do GAFAM. O país, mesmo diante de uma das mais severas crises econômicas, registrando uma aguda recessão e uma acentuada queda no consumo das famílias, experimenta um intenso processo de digitalização. Como destacado antes, de acordo com o Global Digital Yearbook, o Brasil apresenta a segunda maior média global de horas diárias gastas na internet, 09:29 (nove horas e vinte nove minutos), superado apenas pela Filipinas. Desse total, os brasileiros usam em média 4:45 (quatro horas e quarenta e cinco minutos) por dia acessando a internet por meio dos dispositivos digitais móveis, situando o Brasil na terceira maior média de tempo de uso da internet móvel.
De acordo com o IBGE, em 2017, 75% dos domicílios permanentes no Brasil dispunham de acesso à internet. Do total de domicílios que dispunham de internet, 98,7% acessaram a rede por meio do aparelho celular móvel, o smartphone. Sendo que 43,3% acessaram a rede exclusivamente por meio do smartphone. No escopo total do uso da internet, predomina a conexão via banda larga móvel (3G e 4G). Do total da população brasileira que utilizava a internet em 2008, 53% acessava a rede todos os dias ou quase todos os dias. Oito anos após, em 2016, esse percentual subiu para 86% (CGI-BR, 2018). O gráfico 1 revela a recente dinâmica de expansão da internet no Brasil.
Em 2017, de todo o universo da população brasileira entre dez anos ou mais de idade (181 milhões de pessoas), 70% utilizaram regularmente a internet, crescimento significativo comparado com o ano anterior, que era de 64,7% ( PNAD/IBGE 2019). Novamente predomina, entre esse universo populacional, o uso do smartphone para acessar a internet. Como assinala o gráfico 2, há um declínio bastante significativo do uso do microcomputador para acessar a internet, especialmente entre as faixas etárias mais jovens e os estratos mais pobres da população.

De acordo com o Comitê Gestor de Internet no Brasil (CGI-BR), em 2016, entre os estudantes brasileiros de nove a dezessete anos de idade, 93% acessavam a internet por meio do smartphone. Desses, 77% acessaram a rede para assistir filmes, séries, programas e outros 75% o fizeram para ouvir música. Mesmo entre os estratos mais pobres, com renda mensal bastante reduzida, tem ocorrido uma expansão significativa do uso da internet. De acordo com o IBGE, em 2013, 22,8% da população brasileira que recebia entre ¼ e ½ de salário mínimo dispunha de acesso à internet. Dois anos depois, em 2015, esse percentual saltou para 45%, um crescimento substancial em apenas dois anos. No estrato que recebia entre ½ salário mínimo e 1 salário mínimo também ocorreu um significativo avanço. Em 2013, 43% da população situada nesse estrato de renda acessava a internet, em 2015 esse percentual subiu para 54,7%. O gráfico 3 demonstra como no Brasil, assim como em diversas outras partes do mundo, no uso da internet predomina a troca de mensagens de texto e de voz através de aplicativos como o Whatsapp. Salta aos olhos ainda, e esse é o aspecto que, no caso brasileiro, mais interessa a empresas como Netflix, Disney e Apple, 81,8% de toda população brasileira com dez ou mais anos de idade que utiliza a internet (o que representa 126,7 milhões de brasileiros) utilizaram a internet para assistir vídeos, séries e filmes.


O fator de maior destaque, no entanto, cabe ao uso do smartphone. No modelo de negócios construído por empresas como Netflix, Apple e Disney, esse suporte torna-se o centro da convergência digital, da inovação tecnológica e da digitalização. Em outros termos, a ponta de lança do capitalismo cultural-digital. O telefone celular com acesso à internet, o smartphone, deixou de ser um aparelho utilizado para ligações telefônicas, tornou-se um dispositivo permanente de atividades profissionais, afetivo-familiares e entretenimento, convertendo-se no centro de consumo de conteúdos de arte e entretenimento. Esse é um aspecto central da transição digital e da expansão dos serviços culturais-digitais em todo o mundo, principalmente os conteúdos de música, games, séries, programas e filmes. No Brasil, por exemplo, mesmo diante da forte redução do consumo per capta das famílias, que caiu 4,4% em 2015, e 4,1% em 2016, e subiu apenas 0,3%, em 2017, ocorreu uma expansão do consumo dos planos de telefonia móvel que permite maior acesso à internet, os chamados planos pós-pagos, que são os planos maiores, que transmitem um maior volume de dados, com maior velocidade e, portanto, mais caros. Em julho de 2016, apenas 28% da população que dispunha de smartphones e acesso regular à internet possuía planos pós-pagos. Exatos dois anos depois, em julho de 2018, esse percentual saltou para 40%.
Os planos pós-pagos, dotados de maior velocidades e pacotes de dados muitas vezes ilimitados, permitem o consumo mais regular aos conteúdos de séries, filmes e programas. No Brasil, por exemplo, os planos pós-pagos de operadoras como a TIM já anunciam parcerias com a Netflix. A Samsung, maior fabricante de smartphones do mundo, já programa os seus aparelhos da série Galax com o ícone de acesso de plataformas como Netflix e Youtube, que pertence ao Google. Esses aspectos evidenciam a centralidade dos smartphones na construção dos modelos de negócio da Disney, Netflix e Apple. A Netflix e o Youtube, antevendo e constatando a importância que os smatphones têm para as crianças, notadamente aquelas entre 5 e 10 anos, lançaram conteúdos exclusivos para essa faixa etária. De acordo com o IBGE, em 2016, do universo da população que dispunha de smartphones, 62% assistiram a séries, filmes e vídeos, ao passo que esse percentual foi bem menor dois anos antes. Seguindo esse diapasão, o percentual da população usuária de smartphones que ouvia música saltou de 57%, em 2014, par 66%, em 2016. Salta aos olhos também o consumo de jogos de videogames por meios dos smartphones. Em 2016, dos usuários desses dispositivos 39% consumiram jogos digitais de games. A tabela 5 demonstra o crescimento no consumo dos conteúdos de séries, filmes, músicas, gemas e outros no intervalo entre 2014 e 2016.
Os dados mais recentes, que abarcam o ano de 2017, registram um crescimento ainda maior no consumo de conteúdos de séries, filmes, músicas e games, assim como evidencia a força da tecnologia instantânea do streaming. Como comprova o gráfico 6, o crescimento no consumo de filmes, séries, programas, vídeos e música através dos smartphones não só cresceu como também foi potencializado pela velocidade de dados que essa tecnologia permite em comparação à prática de baixar os conteúdos – download. De acordo com o CGI-BR, em 2014, 58% do total de usuários de smartphones no Brasil (126,7 milhões de brasileiros com mais de dez anos de idade) utilizaram o aparelho para consumir séries, filmes, programas e vídeos. Em 2017, esse percentual subiu para 71%, um crescimento bastante acentuado em apenas três anos. Do mesmo modo, 57% utilizaram o aparelho, em 2014, para ouvir música através da internet, percentual que chegou, em 2017, a 71%.



A espiral de competição descrita no decurso do texto evidencia duas consequências imediatas: uma de cunho empresarial, outra mais de caráter criativo. A primeira refere-se ao fato, incontornável, de que a produção, criação, controle, licenciamento e distribuição de conteúdos artístico-culturais (séries, filmes, programas, games e livros) ancorados em assinaturas mensais, que permitem aos assinantes acessarem um grande acervo de conteúdos, tornou-se o centro das estratégias comerciais e econômicas das maiores empresas do mundo. Logo, o eixo da inovação deixa de ser de produtos tangíveis, com elevado potencial tecnológico agregado, e se desloca para a inovação de conteúdos artístico-culturais propriamente ditos, cujos investimentos, o processo e os capitais necessários para sua feitura exigem competências e habilidades muito mais estéticas do que propriamente tecnológicas. A segunda consequência, já explorada em outras oportunidades (ALVES, 2017), repousa no fato de que as profissões criativas, Fonte: CGI-BR, 2018. as carreiras artísticas e o trabalho artístico de um modo geral, muito presente e consolidado no âmbito dos mercados culturais convencionais, off-line, estão, paulatinamente, drenados para a orbita econômica e para a estrutura de oportunidade dos mercados culturais-digitais e, como corolário, para o centro do capitalismo cultural-digital. Esse fenômeno impõe muitos desafios, pois o trabalho artístico, cultural e criativo e suas interfaces com a dimensão tecnológica, exige novas competências e recursos face aos desafios do amalgama entre arte, tecnologia e inovação.
Por fim, o acervo de dados mobilizados, de cunho estatístico-descritivo obtido junto a fontes secundárias, bem como a disseminação de novas racionalidades empresarias, permite sustentar que as ciências sociais, especialmente a sociologia, tem conferido pouca relevância empírica e conceitual a essa nova face do capitalismo, que temos denominado de capitalismo cultural-digital. No âmbito da sociologia econômica esse fenômeno reclama um tratamento em rede, que integre diversas instituições, pesquisadores, governos e empresas. As transformações envolvendo os mercados culturais, e a espiral de competição travada entre algumas das maiores corporações globais de tecnologia do mundo, não permitem hesitação: trata-se de uma fronteira de estudos e análises que impõe desafios multidisciplinares e transdisciplinares. Todos esses aspectos concorrem para demonstrar que a agenda de pesquisa no âmbito da sociologia, em geral, e no escopo da sociologia econômica, em particular, necessita se renovar e se atualizar diante de uma agenda de pesquisa tão contundente, complexa e multifacetada.
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