Resumo: O artigo aborda a questão do protagonismo feminino dentro das romarias de Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil. O objetivo é demonstrar como determinadas mulheres – líderes de grupos de romeiros denominadas de “fretantes” - vão construindo e desempenhando dentro dessas romarias papéis sociais que as tornam protagonistas das mesmas. Aqui o termo protagonismo não deve ser lido como algo que se remete à ideia de visibilidade dentro do cenário em questão – na realidade essas mulheres e a sua importância para as romarias passam despercebidas para a ampla maioria dos atores que não são especificamente romeiros – mas algo que se remete à relevância delas para a existência, continuidade e dinâmica interna dessas romarias a partir da maneira como elas agenciam seus papéis femininos e de liderança nas romarias.
Palavras-chave: Padre CíceroPadre Cícero,romariasromarias,agênciaagência,mulheresmulheres.
Abstract: The article focuses on the feminine protagonism within the Juazeiro do Norte pilgrimages, Ceará, Brazil. The objective is to show how certain women - leaders of groups of pilgrims named “fretantes” - construct and play social roles within these pilgrimages that make them their protagonists. The term protagonism in the article should not be read as something that refers to the idea of visibility within the scenario in question. These women and their importance for the pilgrimages go unnoticed by the vast majority of the actors who are not specifically necessarily pilgrims. The term protagonist should be understood as something which refers to their relevance regarding the existence, continuity and internal dynamics of these pilgrimages. As well as the way they manage their feminine and leadership roles in the pilgrimages.
Keywords: Padre Cicero, pilgrimages, agency, women.
Artigos
Fretantes Romeiras: Resistência e Protagonismo Feminino nas Romarias de Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil
Pilgrims “Fretantes”: Resistance and Female Protagonism in the Pilgrimages of Juazeiro do Norte, Ceará, Brazil
Recepção: 05 Dezembro 2018
Aprovação: 18 Setembro 2019
Este artigo aborda a questão do protagonismo feminino dentro das romarias de Juazeiro do Norte, Ceará, Brasil. O objetivo é demonstrar como determinadas mulheres vão construindo e desempenhando dentro dessas romarias papéis sociais que as tornam protagonistas das mesmas. O termo protagonismo não deve ser lido aqui como algo que se remete à ideia de visibilidade dentro do cenário em questão – na realidade essas mulheres e a sua importância para as romarias passam despercebidas para a ampla maioria dos atores que não são especificamente romeiros – mas algo que se remete à relevância delas para a existência, continuidade e dinâmica interna das romarias a partir da maneira como agenciam os seus papéis.
Neste sentido pode-se falar de um “protagonismo invisível”, que se constitui como parte relevante dessas romarias. Buscando demonstrar como isso se dá, serão analisados como algumas romeiras agenciam seus papéis de chefes de grupos de romeiras e romeiros e como elas vão construindo e realizando esse protagonismo agindo dentro de uma estrutura e contexto sociocultural que a priori é marcadamente patriarcal e que, consequentemente, busca posicionar as mulheres em posições de subalternidade, sujeição e invisibilidade. Este artigo se insere, portanto, no debate sobre desempenhos e agências de resistência e protagonismo feminino em contextos adversos.
Para construir a análise o artigo tem como ponto de partida o fato de que fazer uma peregrinação ao Juazeiro significa para a grande maioria dos peregrinos ser membros de um grupo de romeiros (i.e., participar de uma experiência grupal). Levando em conta esse caráter grupal o protagonismo feminino nessas romarias é analisado justamente a partir dos papéis desempenhados por mulheres que são líderes desses grupos de romeiros e que são conhecidas como fretantes 2.
Para a elaboração deste artigo foram utilizados dados obtidos por meio de pesquisa etnográfica desenvolvida entre os anos de 2003 e 2006. Para tanto foram realizadas de forma intermitente idas a campo a Juazeiro durante períodos de romarias e o acompanhamento de dois grupos de romeiros: um da cidade de Murici (Alagoas), que era liderado por Dona Ilza (em torno de 70 anos); e um outro da cidade de Caetés (Pernambuco), liderado pela fretante Dona Geniza (cerca de 60 anos).
Em determinados momentos do artigo os e as peregrinas em questão serão referidos como romeiros ou romeiras do Padre Cícero. Isto devido ao fato de que é assim que se autodenominam, como usualmente buscam se identificar.
As romarias de Juazeiro ocorrem em torno da devoção ao santo popular católico brasileiro Padre Cícero 3 e são feitas na sua maior parte por grupos oriundos de diferentes lugares do Nordeste do Brasil. A grande maioria delas ocorre entre os meses de setembro e fevereiro, o chamado ciclo das grandes romarias. Dentro deste ciclo, caracterizando seu início e conclusão, destacam-se três grandes romarias festivas: a de Nossa Senhora das Dores (cuja data principal é 15 de setembro), a de Finados (2 de novembro) e a de Nossa Senhora das Candeias (2 de fevereiro). Há ainda uma importante romaria que ocorre fora do ciclo, que é a romaria de 20 de julho que celebra a data de falecimento do Padre Cícero.
As romarias de Juazeiro são romarias católicas. Isto significa que o catolicismo está ali presente enquanto religião, práticas e experiências religiosas que oferecem e sustentam uma parte relevante dos significados, motivações e justificações mobilizadas pelos atores sociais nelas envolvidos. Dado seu caráter católico, essas romarias têm uma presença ativa da Igreja Católica enquanto instituição religiosa que exerce o importante papel de gerenciadora da religião e de práticas religiosas, buscando controlar o que pode ou não ser considerado legítimo em termos de um catolicismo oficial.
O caráter católico dessas romarias implica que catolicismo e Igreja Católica estão ali presentes como duas realidades sociais que tem suas diferenças, mas existem de forma interdependente, inseparáveis e que formam um todo. Uma não existe sem a outra. Uma dá sentido à outra. Elas formam uma unidade/ dualidade complementar que se move de forma dialética. O que permite pensar as romarias de Juazeiro a partir daquilo que Pierre Sanchis denomina de “uma estrutura de encontro” na qual ocorre “conflito e compatibilização entre uma religião ‘popular’ e a instituição oficial de regulação autoritária –ortodoxia e ortopráxis – da religião católica” ( Sanchis, 1979) e que, portanto, são atravessadas por questões de autoridade e conflito.
A regulação autoritária da religião católica por parte da instituição oficial - que busca definir e regulamentar a ortodoxia a e ortopráxis católica que deve ser considerada “verdadeiramente correta” – tem como um dos seus desdobramentos a presença de princípios patriarcais que terminam por favorecer condições estruturais que tendem a colocar as mulheres em posições subalternas dentro de contextos religiosos católicos. Isto se deve principalmente ao fato de que a hierocracia católica é fundamentalmente masculina, já que apenas aos homens é dado o direito de serem legítimos sacerdotes, mediadores do sagrado. Isto se funda na exclusividade masculina de obtenção do sacramento da Ordem, o sacramento que dá direito ao exercício legítimo do “ministério eclesiástico”. Este sacramento separa os católicos em duas categorias qualitativamente distintas: os ordenados (diáconos, padres e bispos) e os leigos e as leigas (categoria onde estão inclusos todos e todas as católicas que não receberam o sacramento da Ordem).
Isto tem efeitos práticos relevantes dentro da Igreja Católica. Sendo um deles o de justamente vetar a toda e qualquer mulher a possibilidade de acesso ao uso pleno do direito à mediação do sagrado. Sendo algo que acontece dentro de uma instituição em que uma de suas principais características é justamente ser uma Igreja onde a relação com o sagrado é fortemente mediada por sacerdotes. Isto termina fazendo com que a relação dos e das romeiras com os locais oficiais de devoção do Juazeiro seja quase sempre atravessada por uma tensão latente. Suas práticas e crenças religiosas específicas, não raro, apresentam pontos de divergência em relação ao que está sendo colocado pela ortodoxia e ortopráxis oficial da Igreja Católica através de seus sacerdotes. Ou seja, a ortodoxia e ortopráxis estão ali, concretamente, nos locais oficiais de devoção do Juazeiro 4, sendo administradas por sacerdotes – homens consagrados detentores do poder e autoridade eclesiástica – que detém um importante poder de definir quais são as crenças e práticas que podem serem aceitas como legitimas pela Igreja Católica.
Mas não é só na relação entre catolicismo e Igreja Católica que o patriarcalismo se faz presente nas romarias de Juazeiro. O patriarcalismo também tem conexões com o contexto sócio-histórico onde elas se dão e com o fato de que essas romarias, seus romeiros e romeiras são parte de uma sociedade marcada por profundas contradições e desigualdades: a sociedade brasileira. Aspecto este que é agravado pelo fato de que a grande maioria dos romeiros e romeiras ocupam posições bastante desprivilegiadas dentro dessa sociedade, de sua estrutura socioeconômica e política. Isto porque a maioria delas e deles é formada por pobres, membros de classes populares, oriundos de áreas rurais ou das periferias de pequenas, médias ou grandes cidades do Nordeste brasileiro.
O fato de serem pobres implica que eles com significativa frequência estão sendo expostos ou colocados em posições e situações socioeconômicas, sócio-estruturais e políticas muito desfavoráveis. O que faz com que terminem tendo de enfrentar situações caracterizadas por adversidades tais como dificuldades econômicas, precariedade de suas condições materiais de existência e situações de violência tanto de natureza concreta, estrutural, quanto simbólica. Tal qual é o caso da dependência de um sistema educacional e de saúde precário. Da pouca qualificação profissional ligada a ausência ou à baixíssima quantidade e capacidade de mobilização de capital econômico, social ou cultural dentro do mercado de trabalho e de distribuição de riquezas e benefícios. Da dependência do poder público e seus recursos. Isto em contextos em que o poder público é controlado por elites locais que alimentam e retroalimentam relações e práticas de dependência que sustentam uma dinâmica clientelista que busca impedir os mais pobres a saírem dessa dinâmica. Sendo que tentar sair dessa dinâmica pode implicar em riscos inerentes à busca de ruptura. Risco significativamente grande se for considerado que os pobres inseridos neste sistema de desigualdade vivem quase sempre no limite ou próximos do limite de acesso ao mínimo necessário para a subsistência dentro de sua sociedade.
Essas são algumas adversidades objetivas que muitos romeiros e romeiras podem ter de encarar no seu cotidiano. O que implica dizer que parte de suas ações e esforços visa (ainda que não exclusivamente) ter de enfrentar e encontrar suas próprias maneiras de superar as formas concretas pelas quais essas adversidades se apresentam. Sendo que de maneira geral a exposição a essas adversidades independerá de diferenças de gênero, etárias, ou de qualquer outro tipo. E que nas suas formas específicas essas adversidades vão atingi-los de forma distinta, conforme essas diferenças. Ou seja, mesmo estando todos submetidos a uma mesma estrutura social que lhes é desfavorável, as diferenças de gênero, etárias, religiosas, ou de outros tipos tendem a implicar em formas distintas de serem atingidos pelas adversidades geradas a partir dessa estrutura.
Implica, por exemplo, no fato objetivo de que quando se trata de uma mulher ou de um homem isto resultará em formas distintas de ser atingido pelas consequências das contradições e desigualdades sociais que estarão ali em jogo. Distinção esta que passa pelo fato de que a sociedade brasileira é atravessada por um patriarcalismo difuso, decorrente do fato de que o modelo de família patriarcal é parte do processo de gênese e formação sócio-histórico brasileiro. Esse patriarcalismo, subsequentemente, se reflete nas formas como se configuram as relações de dominação sobre as mulheres em espaços públicos e privados ( Aguiar, 2000). Como é o caso dos contextos aqui tratados.
Em relação ao caso das romarias de Juazeiro o que se tem é que visões de mundo e padrões e dinâmicas de comportamento de tipo patriarcal estão presentes na realidade social da qual fazem parte a maioria dos e das romeiras do Juazeiro, seja tanto nos espaços públicos, quanto nos privados. Como consequência as mulheres romeiras têm de lidar não apenas com o patriarcalismo eclesiástico católico, mas também com o patriarcalismo mais geral que atravessa as realidades sociais onde estão inseridas.
É importante ressaltar que, independentemente da forma em específico que o patriarcalismo possa vir a assumir, em comum há quase sempre a possibilidade de ocorrer uma desvalorização daquilo que remete ao universo feminino. É o que ocorre quando, por exemplo, busca-se restringir as possibilidades de protagonismo feminino aos espaços domésticos. Sendo que, como é colocado por Bila Sorj ( Sorj,2005), essa associação do feminino com o doméstico constitui um habitus presente na sociedade brasileira que é muito resistente a mudanças e que se soma a uma tendência à desvalorização tanto do feminino, quanto do doméstico. Clara Araújo e Celi Scalon relacionam isso a uma tendência histórica a se manter um padrão de hierarquia entre os sujeitos sociais onde os homens tendem a assumir posição dominante. Neste caso há uma divisão de atribuições assimetricamente valorizadas relativas à divisão sexual do trabalho: as mulheres ficariam “responsáveis pela reprodução e pelas tarefas domésticas, que são esferas menos valorizadas, e os homens pelo que se denominou esfera da produção e pelas atividades conduzidas na vida pública, ambas valorizadas na vida social” ( Araujo e Scalon, 2005).
As colocações dessas autoras são pertinentes ao caso das romarias de Juazeiro, pois ali é relativamente fácil perceber a predominância de homens ocupando posições dominantes de gerenciamento da vida pública (padres, políticos, autoridades públicas), enquanto que às mulheres são destinados os espaços e posições subalternas ou de pouca visibilidade. A dicotomia público-privada, portanto, também faz parte do tipo de configuração de distribuições de posições e papéis sociais que buscam restringir o maior protagonismo feminino aos espaços domésticos e – por relação de interdependência e por consequência – restringir suas ações e sua maior relevância dentro dos espaços públicos.
Este artigo, ao focar sua atenção no caso das romeiras fretantes, busca justamente mostrar como – diante desse quadro – algumas mulheres romeiras conseguem agir dentro desses contextos adversos resistindo e, em alguma medida, superando as limitações que lhes são impostas. Ações que, como veremos, muitas vezes envolvem – por exemplo – usar as romarias como forma de borrar as fronteiras do que seriam os espaços a priori públicos e privados, para poderem se posicionar a agir de formas que lhes são mais favoráveis. O argumento é que – frente a uma estrutura, tradição e contexto social marcadamente patriarcal – essas romeiras conseguem encontrar maneiras criativas de agir em relação às condições, atores e situações adversas com as quais se deparam – e com os quais interagem - que as possibilitam, ao menos em parte, exercer um protagonismo feminino que a priori lhes é negado.
Para identificar isso é preciso, contudo, abordar as romarias não a partir de leituras, visões e posições mais hegemônicas e totalizantes, mas buscar observar as romarias como são feitas pelos romeiros e romeiras nas suas intricadas ações e interações particulares, diádicas, intergrupais. O que se verá é um complexo jogo de papéis, ações e interações onde certas forças atuam e revelam dinâmicas sociais que tendem a ser imperceptíveis para as abordagens analíticas mais macrossociais. E ao fazer isso a pesquisa que sustenta este artigo deparou-se com um fenômeno sociorreligioso marcado por uma intensa presença de forças femininas. O que se propõe aqui é, portanto, um determinado tipo de olhar para as romeiras e para as romarias. Um olhar que ao voltar-se para as capacidades de agência dessas mulheres coloque em evidência seus protagonismos criativos.
O ponto central do argumento desenvolvido até agora é o de que um dos elementos do contexto religioso e social dentro do qual as romeiras do Padre Cícero estão inseridas é a presença de um patriarcalismo que procura colocar as mulheres em posições de subalternidade ou invisibilidade, na medida em que busca restringir à esfera das relações domésticas suas maiores possibilidades de protagonismo e poder de ação. Isto é algo que pode ser percebido nas romarias de Juazeiro quando são observadas de forma mais geral. Há ali uma baixíssima presença de lugares, posições e papéis que podem proporcionar poder ou protagonismo feminino nos espaços públicos. O que contrasta com a forte presença masculina ocupando e exercendo papéis e posições chaves. Os casos da hierocracia católica (“o” padre, “o” bispo) e dos lugares de destaque do poder público ou econômico (“o dono”; “o” prefeito; “o” secretário; “o” político) são bons exemplos.
Essa forte presença masculina exercendo papéis e posições sociais com maior poder agregado nos espaços públicos das romarias de Juazeiro podem levar a dois tipos de leituras: (1) a de que os papéis que as mulheres desempenham nas romarias são realmente secundários e de menor relevância; (2) a de que a capacidade de ação das mulheres nas romarias do Juazeiro é sempre restrita e reduzida porque há uma estrutura social e uma tradição que limita repetidamente suas ações ( Barbosa, 2007).
Este artigo vai numa direção contrária. Primeiramente porque ele defende que, mesmo não sendo imediatamente visível, há nessas romarias um protagonismo feminino que é fundamental para as suas existências. Um protagonismo que é realizado a partir, e na contramão, das adversidades já apontadas anteriormente. Adversidades essas que levam algumas romeiras a agirem de forma criativa, buscando contornar as condições socioculturais preexistentes que lhes são desfavoráveis. Em segundo lugar porque o artigo deliberadamente não aborda as romarias como grandes arenas públicas de disputas ( Eade e Sallnow, 1991). O foco são os grupos de romeiros e romeiras. Grupos que são tomados aqui como o núcleo vital das romarias de Juazeiro. Grupos esses que são como células, carregadas de vida. Células que conjuntamente compõem, em cada grande romaria, a multidão de romeiros e romeiras que todos os anos, ano após ano, se dirigem a Juazeiro. A abordagem adotada no artigo é: - Quer compreender romarias como as de Juazeiro? Siga os grupos de romeiros!
Quanto a esses grupos de romeiros, vamos encontrar um grande número deles tendo mulheres exercendo a liderança, a sua chefia. Este artigo trata destas mulheres. Mulheres que transformam a sua invisibilidade pública e as condições objetivas que tendem a subalternizá-las em possibilidades de exercício de protagonismo nas romarias. Longe dos lugares de destaque público, muitas vezes cientes de que ocupam as posições mais frágeis dentro das estruturas de poder, elas fazem do lugar que ocupam e de onde realizam as romarias a fonte de seu protagonismo. Um protagonismo que justifica pensar que sem essas mulheres seria difícil imaginar que essas romarias, da forma como elas são, ocorressem e se repetissem, ano após ano.
É muito difícil encontrar um romeiro ou uma romeira do Padre Cícero que esteja realizando a romaria de Juazeiro individualmente, sozinho, fora de um grupo. A grande maioria, aparentemente a quase totalidade dos romeiros e romeiras do Padre Cícero, vai para Juazeiro em grupo. Percebe-se que para esses romeiros há uma preeminência da experiência grupal - da coletividade - sobre a experiência individual – a individualidade - ( Duarte, 1986). Há uma predileção pelo grupo. Há como que uma valorização do coletivo, da comunidade e das formas de experiências que tornam aquela peregrinação distinta de outras formas de experiência peregrina que se caracterizam por ter a individualidade (o self) como seu cerne ( Carneiro, 2007; Steil e Carneiro, 2011).
Fazer essas romarias em grupo significa, contudo, muito mais do que simplesmente fazer parte de uma forma específica de coletividade, agrupamento. O grupo surge como parte daqueles elementos que dão sentido à romaria e à experiência que se faz na romaria. O pertencimento a um grupo oferece a uma romeira ou romeiro a possibilidade de sentir-se parte de algo que lhe torna mais forte, que lhe dá um papel, um lugar, uma identidade social particular dentro da experiência maior e dispersiva que é a romaria como um todo: no grupo o romeiro ou a romeira não é mais um, mas é alguém.
Ao pertencer a um grupo os romeiros ou as romeiras vão encontrar ali condições que os favorecem a serem pessoas dentro do contexto das romarias a partir de diferentes e significativos sentidos ( Mauss, 2003; Radcliffe-Brown, 1973). Podem se realizar enquanto pessoa porque o grupo lhes oferece um ou mais papéis, posições e funções dentro do mesmo. E, subsequentemente, uma identidade social. E ela ou ele também é pessoa porque o seu grupo, ao lhe dar condições de recordar-se quem ela ou ele é em termos sociais específicos, também lhe permite perceber a si mesmo em termos pessoais (particular), lhe dando suportes e oferecendo um caminho para que entre em contato consigo próprio, com aquilo que torna ele e a sua experiência algo singular. Isto é, o faz pessoa ( Mauss, 2003).
O grupo, em suma, é um remédio aos possíveis efeitos do anonimato, da diluição do “eu”, que podem ocorrer quando ela ou ele se veem diante e dentro do gigantismo de uma romaria. Para a ou o romeiro o grupo está ali como aquele lugar, aquela referência para onde poderá recorrer diante de qualquer adversidade que possa encontrar durante a romaria. O grupo costuma ser também o ponto de partida para o exercício das experiências de individualidade e particularidade que um romeiro ou uma romeira realizam em Juazeiro no decorrer de uma romaria. Se, por exemplo, ela ou ele for fazer uma visita devocional a um lugar sagrado do Juazeiro, necessariamente se vinculará ao seu grupo antes, durante e/ou depois da visita. Ou seja, para a grande maioria dos romeiros e romeiras a romaria a Juazeiro começa, termina e existe em torno de seu grupo de romeiros.
Aqueles ou aquelas que estão a frente e lideram um grupo de romeiros ocupam, portanto, uma posição-chave nas romarias. Por serem muitos, podem parecer não serem tão importantes. Mas é justamente por serem muitos a estar à frente daquilo que alimenta as romarias ano após ano – os grupos de romeiros, que às centenas, aos milhares, tornam essas romarias um dos fenômenos religiosos mais extraordinários do Brasil – que essas lideranças são importantes. As romarias passam por elas: os grupos e seus, suas líderes. Mas ser líder, exercer essa liderança exige destreza. É justamente na destreza das romeiras fretantes, na forma como elas lidam com as adversidades que encontram em determinadas situações, que elas mostram sua força e protagonismo.
Fretantes, como já dito, são aqueles, aquelas que formam, organizam, viabilizam e administram o grupo de romeiros que fará a romaria a Juazeiro. É em torno dele ou dela que se formará o grupo 5. O papel e funções de um/uma fretante para o grupo começa antes da ida a Juazeiro e terminará ao seu fim, na chegada à cidade de origem. E ele ou ela geralmente retoma esse seu papel quando se aproxima o tempo de uma nova romaria. Quanto a questões de gênero – se é um ou uma fretante – isso é algo que tende a resultar em algumas diferenças na forma de ser fretante. Como o foco deste artigo são as mulheres fretantes, a análise aqui se remete principalmente e – em alguns momentos - exclusivamente a elas, as fretantes.
É já no processo de formação do grupo de romeiros que uma fretante surge em cena. É quando ela vai negociar, definir e viabilizar quem serão os membros do seu grupo. Caberá a ela identificar e decidir sobre questões tais como quem tem interesse de ir, quem pode ir, se será aceito ou não no grupo, qual a composição do grupo. Grupo esse que tenderá a ter uma pré-formação, já que usualmente é composto por pessoas que já foram juntas em romarias anteriores. O que não impede que novos membros sejam incluídos e que membros antigos saiam do grupo. Tudo isto tendo em vista que a última palavra deve ser dada pela fretante. Fretante cuja capacidade de viabilizar o grupo é origem do mesmo e de sua autoridade sobre ele.
Formado o grupo a fretante deve providenciar e conseguir aquilo que viabiliza a ida dos romeiros e romeiras a Juazeiro: o transporte.
A possibilidade de uma fretante formar um grupo e levá-lo a uma romaria dependerá de ela conseguir ou não o meio de transporte, o que dependerá da capacidade de mobilização de recursos dos romeiros e da fretante. Aqui cabe enfatizar que uma boa parte dos romeiros do Padre Cícero é pobre. Logo, há uma expectativa de que a fretante consiga um transporte que seja de preferência gratuito, ou, pelo menos, com um preço baixo. O que ajuda a explicar porque há uma predominância de ônibus simples, com pouco conforto, e uma presença notável de paus-de-arara nas romarias de Juazeiro. Em suma, o fator econômico tem um grande peso.
O certo é que a fretante terá dois trabalhos antes da romaria: (1) formar o seu grupo de romeiros a partir de um amplo conjunto de critérios tais como: interesse em ir; possibilidade e recursos para ir; ser conhecido da fretante ou ter uma boa referência por parte de alguém de confiança; saber se tem ou não problemas de relacionamento com pessoas do grupo, o histórico pessoal da pessoa (sua conduta em outras romarias); (2) conseguir o meio de transporte para a romaria, buscando o melhor meio possível dentro das possibilidades de recursos dos romeiros (usualmente bem reduzidas).
Neste momento – o da viabilização do transporte – costuma entrar em cena um ator que mesmo de forma indireta fará parte das romarias de Juazeiro: o político local. Isto porque usualmente é através de uma liderança política local (vereador, prefeito, ex-prefeito, deputado) - ou de um representante seu ou do seu grupo (muitas vezes um cabo eleitoral) - que o/a fretante costuma conseguir o transporte para a romaria tendo os seus custos total ou parcialmente pagos. Portanto, já no processo de conseguir o transporte a fretante terá de demonstrar seu prestígio e capacidade de mobilizar aliados. Sendo que isso é uma via de mão dupla. Se por um lado o político dá um benefício material (o transporte), em contrapartida ele estará se associando a alguém que costuma ter prestígio moral e respeito dentro da comunidade local, a fretante. O fato é que em grande medida um político local costuma ajudar com o transporte porque isso lhe dá dividendos políticos 6 e ajuda na manutenção da aliança assimétrica que existe entre ele e a população pobre da localidade onde ele atua. A assimetria é, portanto, uma das bases das relações clientelistas. Sendo uma das características do clientelismo a busca contínua do mais forte em manter uma relação onde o mais fraco deve sempre que possível depender dele, o mais forte.
Mas para ajudar com o transporte o político – diretamente ou através de seu representante - terá de fazê-lo através de um ou uma fretante. E neste momento costuma ficar evidente que os políticos se esforçam em se associar a fretantes que tem um maior prestígio e uma melhor reputação na comunidade. Logo, ajudar uma fretante antiga costuma ser algo que eles costumam valorizar. É uma associação que lhes traz vantagem. Desta forma, ainda que seja uma relação de aliança que não supera a assimetria que lhe é própria, isto significa que há uma quantidade de poder (em termos de prestígio e respeito que lhe são depositadas) que está em posse da fretante e que garante que ela tenha uma capacidade de agenciamento e realização de formas específicas de ação empoderada dentro de tudo que envolve ela e as romarias.
Tendo conseguido o transporte a fretante buscará o lugar onde os romeiros vão ficar hospedados em Juazeiro. Algo que ela faz pessoalmente ou por meio de intermediários. E assim como na questão do transporte, o primeiro ponto a ser trabalhado é conseguir um local cujo valor caiba dentro dos parcos recursos econômicos dos romeiros. Esse local, independentemente de ser uma casa alugada, um quarto de pousada ou hotel, o que seja, será denominado de “rancho” pelos romeiros e romeiras. Logo, em sentido literal o rancho é um espaço físico, o local de pouso onde ficam os romeiros durante o período das romarias em Juazeiro. Sendo também um lugar onde se estabelece um grupo de romeiros e por onde muitas coisas se movimentam. É um local onde ocorre e por onde passam muitas interações, atores e mediadores das romarias de Juazeiro e seus romeiros.
Como dito acima, do ponto de vista mais objetivo, um rancho pode ser uma pousada, um hotel mais simples, um quarto ou casa alugada durante o período das romarias. Isso vai depender dos recursos financeiros dos romeiros, da rede de contato e apoio dos e das fretantes, da relação entre oferta e procura de locais de pouso no período das romarias. O local em si pode ter mais ou menos conforto. O número de romeiros e romeiras dividindo o mesmo cômodo pode variar de romaria para romaria, ou de grupo de romeiro para grupo de romeiro. Mas, independentemente dessas variáveis e do tipo de lugar, para ser um rancho é necessário que aqueles que ali estarão hospedados se conheçam ou tenha alguma forma de ligação. É, portanto, na relação e interação do grupo de romeiros com um dado espaço – o lugar específico onde eles vão ficar durante a romaria –, deste lugar com os romeiros e dos romeiros entre si que o rancho passa a existir efetivamente na romaria.
Assim como a experiência romeira no Juazeiro é fundamentalmente grupal, também a experiência do rancho é uma experiência coletiva, grupal. Em termos de contraste pode-se considerar, por exemplo, que um rancho não é um hotel de padrão turístico onde usualmente há um desconhecimento de quem ocupa o quarto ao lado e onde isto é tanto uma possibilidade real, quando senão um desejo, uma expectativa do turista que ali se encontra. Um rancho é um lugar onde existe um grupo de romeiros que se conhecem e se sentem como um grupo, ao menos no período da romaria.
É no rancho e a partir do rancho que as coisas acontecem para os romeiros. É dali que eles saem e retornam das suas visitas aos locais de devoção, ao comércio, às festas. É ali onde usualmente conversam sobre as romarias que já fizeram, as experiências que já viveram, relatando casos e histórias sobre suas vidas e as de outros, estejam eles presentes ou ausentes. No rancho, os romeiros vivenciam e resolvem conflitos, fazem piadas, compartilham sentimentos, coisas, alimentos. É ali onde passam um bom tempo das romarias, onde dormem, cozinham, comem. O rancho é por excelência o principal espaço de interação dos romeiros e romeiras que pertencem a um mesmo grupo.
O fato é que nesta perspectiva um rancho pode ser tomado como o ponto de convergência central da romaria para um dado grupo de romeiros. Há um fluxo contínuo de pessoas, no grande movimento de romeiros saindo e voltando de suas visitas e obrigações religiosas, dos passeios, das feiras e festas, nos encontros e desencontros que ele provoca. Nisto tudo o rancho vai como que costurando o grupo, ligando um romeiro ao outro, uns mais, outros menos, mas de alguma forma permitindo que o grupo exista de fato como tal.
A relação dos membros do grupo de romeiros com o rancho não é algo homogêneo. Alguns romeiros e romeiras passam mais tempo no rancho, outros menos. Ha diferenças de gênero, etárias, de prestígio, de vínculos originais (vicinais, familiares, de amizade) que influenciará na relação de um romeiro ou romeira com o rancho. O tempo e o horário em que um romeiro fica no rancho vai depender de variáveis como o fato de ser homem ou mulher, ser uma criança, um jovem, adulto ou idoso. Mas, independentemente dessas variáveis, o rancho termina sendo de alguma forma o principal ponto de referência de cada um e é, sobretudo, ali que eles irão interagir. Sua importância é tamanha que, usualmente, a primeira coisa que um grupo de romeiros faz ao chegar a Juazeiro é ir para o lugar onde será seu rancho. Chegar a Juazeiro é chegar ao rancho. É a partir do lugar onde será seu rancho que os romeiros se posicionarão e se referenciarão espacialmente em relação a Juazeiro e os seus mais diferentes espaços e localidades. A experiência romeira em Juazeiro passa necessariamente pelo rancho. Pode-se afirmar, portanto, que para os romeiros do Padre Cícero não existe romaria sem rancho. Para eles o rancho é um dos atores principais das romarias. Para eles é no rancho e a partir do rancho que uma boa parte de uma romaria acontece.
Outro aspecto que se destaca no rancho é que ele é como que um espaço onde vínculos e sentimentos de pertencimento a um grupo são construídos, efetivados, alterados, reelaborados. No rancho a dimensão do coletivo e das dinâmicas relacionais, sejam elas harmoniosas ou conflituosas, ganha centralidade. O rancho é o coração do grupo numa romaria. Um lugar onde o que ali ocorre é algo que é elaborado, construído, a partir de elementos que os e as romeiras trouxeram de seus contextos de origem, de sua comunidade de origem.
A experiência de uma romaria, ainda que seja um processo ritual que de alguma forma transforma o romeiro ( Turner, 1978), é algo que existe num continuum, numa relação de continuidade entre o local de origem e o local da devoção. Como num movimento cíclico-espiral há elementos que se deslocam nesse processo. Dentre esses elementos estão determinados papéis sociais que, já existindo no contexto social de origem dos romeiros, são operados, performatizados e acionados nas romarias a partir de novos significados, formas e performances. Sendo que dentre esses papéis que são trazidos para o contexto das romarias há um que costuma ser valorizado pelas fretantes: o de “mãe”.
Durante pesquisa de campo (em 2005), numa segunda romaria acompanhando o grupo de romeiros de Dona Ilza, uma das mais conhecidas e respeitadas fretantes da cidade de Murici, Alagoas, ela fez o seguinte comentário:
“- O rancho, meu filho, é lugar de família, de gente de família!”.
Esta frase revela muito do rancho, sua dinâmica, quando visto e vivido da perspectiva de uma fretante como Dona Ilza. Diz muito sobre como Dona Ilza procurava viabilizar certo tipo de experiência a ser feita pelos romeiros e romeiras de seu grupo nas romarias e, principalmente, o seu próprio lugar e papel dentro do grupo. Isto porque na sua relação com os membros do seu grupo dois papéis se destacavam: o de ser fretante e o de ser “mãe/avó”. Neste último caso porque ela ia para as romarias sempre acompanhada de uma filha, de um filho, um neto ou neta. No primeiro caso porque muitas vezes sua forma de agir como fretante ia de encontro às expectativas do que deveria ser o comportamento de uma figura materna dentro daquele contexto sociocultural.
Ao afirmar que o rancho é “lugar de família” Dona Ilza também estava apontando para algo que é muito usual nos ranchos de Juazeiro: o fato de que ali, na sua dinâmica grupal interna, costumam ser acionados determinados papéis, certas situações, representações e relações que em muito se assemelham com aquelas encontradas na casa, no lar, na vida familiar dos romeiros. Semelhanças que contribuem para se pensar o rancho como a “casa” dos romeiros nas romarias. “Casa” não propriamente enquanto metáfora ou literalidade, mas principalmente pela presença de importantes semelhanças entre as dinâmicas sociais das suas casas de fato e das suas “casas” (rancho) na romaria. E tanto numa casa quanto noutra, uma fretante pode encontrar espaço para ser e exercer seu papel de “mãe”. Na casa original o de mãe de fato. Na “casa” da romaria a de “mãe romeira”.
Quando se comparam os casos analisados nas romarias de Juazeiro com o que Carlos Steil observou em sua pesquisa sobre as romarias de Bom Jesus da Lapa (Bahia, Brasil) uma similitude é a de que tanto numa quanto noutra os homens têm certos privilégios, como o de andar livremente pela cidade, “enquanto as mulheres ficavam mais restritas aos rituais e ao caminhão (rancho)” ( Steil, 1995). E isto ocorre porque os dois casos remetem-se a tipos de sociedade onde a reprodução dos ideais de gênero tende a colocar a “casa”, as “tarefas da casa” e a “religião” como “coisas de mulher”. Ou seja, tanto no caso de Juazeiro quanto no de Bom Jesus da Lapa vigorariam formas de sociabilidades idealizadas, hegemônicas ( Williams, 2011), que facilitam a reprodução e a prática do que seria o modelo mais amplo de estruturação e justificação ( Boltanski, 2001) dos papéis sociais que vigoram em muitos contextos da sociedade brasileira. Modelo que parte de certos ideais de feminilidade, como o de que as mulheres devem ser mães e esposas zelosas, sempre atentas à casa, ao bem-estar da família e honrarem e serem respeitosas com o “homem da casa”.
Mas se por um lado implicações desse modelo estão presentes nas romarias de Juazeiro, por outro não se deve descartar o fato de que uma romeira pode agir dentro deste modelo de matriz patriarcal dentro de uma margem de ação criativa que não implica seguir de forma precisa aquilo que está prescrito nesse modelo - que tem como uma de suas finalidades reificar a subalternidade da mulher frente a um mundo forjado para a manutenção da dominação masculina. Margem de ação criativa que aparece no seguinte relato da fretante Dona Geniza 7, e que ilustra como tipos idealizados de feminilidade podem ser operados dentro de uma lógica um pouco diferente dos seus sentidos hegemônicos originais comprometidos com um conteúdo de papel social que procura impingir às mulheres uma atitude de submissão:
Olhe meu filho, teve uma vez que eu fiquei no rancho fazendo almoço. Fiz o almoço, todo mundo comeu. Mas teve um homem do nosso grupo que ficou na rua bebendo. Ele chegou ao rancho tarde e bêbado e falou: - “Prepara aí a minha comida!” – “Não é você que tem de cozinhar?”. Eu falei que não ia preparar nada não, que não ia cozinhar para bêbado, para quem vem para a romaria beber. Ele resolveu me xingar, falando alto. Foi quando o motorista, que é dono do caminhão falou: “- Que é isso rapaz? – Você não sabe que Dona Geniza é uma mãe para a gente? Pois saiba que essa romaria é dela, na romaria até o caminhão é dela e é melhor você respeitá-la!”. E assim meu filho o homem foi para a rua de novo e não veio mais em romaria minha.
O caso relatado por Dona Geniza – que tem semelhanças com algumas situações observadas na romaria de Dona Ilza - aponta para o fato de que o seu papel de fretante (chefe da romaria) se conecta com o de ser uma “mãe” para os membros do seu grupo de romeiros e que isso implica numa certa autoridade dela sobre eles. Contudo, para se compreender o que significa esse ser “mãe para a gente” é necessário levar em conta dois pressupostos. O primeiro é o de que esse não é um papel já dado que a fretante pode reivindicar em todo ou qualquer momento. E isto implica dizer que ela precisa estar atenta a que momentos, quais são as situações em que esse papel pode e deve ser posto em evidência, ser explicitado. Implica na necessidade de ela discernir bem os momentos em que esse papel de “mãe” deve se fazer presente de forma latente e os momentos em que ela deve agir como se esse papel não existisse. Em suma, a fretante deve ter destreza e habilidade para saber quando, onde e como acionar e colocar em cena o seu papel de ser “mãe da gente”.
O segundo pressuposto é o de que uma fretante dever ter ciência de que esse papel de “mãe romeira” não é algo preexistente numa romaria. É necessário que ela traga isso junto com as outras coisas que ela traz para uma romaria: ela pode trazer roupa, alimentos, ex-votos, pessoas; ela traz suas crenças, seus conhecimentos e práticas religiosas; traz sua história, quem ela é no seu contexto de origem, na sua comunidade. É somando a essas outras coisas que ela pode trazer seu papel de “mãe romeira” e as possibilidades de ação que a torna “uma mãe para a gente”.
O que se está sendo denominando aqui de “mãe romeira” é, portanto, um papel social que se manifesta através da capacidade criativa da romeira fretante em deslocar o que é um valor hegemônico tradicional patriarcal arraigado no seu contexto social de origem para certos espaços intersticiais de ação nos quais ela encontra maiores possibilidades de agenciamento não subalternizado de sua condição de mulher. Neste caso trata-se de saber fazer o jogo sério da resistência ( Ortner, 2007). Há um sentido original de valor tradicional que busca subalternizá-la: “- Lugar de mulher é em casa, cuidando das coisas da casa!”. Trata-se de resistir por entre aqueles interstícios da vida social onde ela encontra maiores oportunidades para um protagonismo que lhe é a priori negado. Uma romaria é um tipo de espaço e tempo onde seu próprio conhecimento e o domínio sobre si mesma lhe abre diferentes possibilidades de agir nesses espaços intersticiais.
O que se defende aqui é que esse é um dos motivos – ainda que não seja o único - pelos quais uma romeira fretante traz seu papel social de “mãe” para as romarias. E se à primeira vista isso pode parecer uma atitude cordada a um valor que subalterniza a mulher, o que uma análise mais atenta, próxima e contextualizada revela é algo diferente. Nos micro-cenários romeiros do grupo, do transporte, do rancho (e que são a seus modos experiências públicas que mobilizam a comunidade de origem dos romeiros) as romeiras fretantes realizam um tipo de experiência social onde elas afirmam sua importância, sua relevância e a fonte de seu poder e autoridade frente ao seu grupo e, por consequência, a sua comunidade de origem.
Os casos de Dona Ilza e Dona Geniza citados neste artigo ilustram bem isto: seus esforços em manter o rancho como um espaço familiar, do grupo, lhes trazem ganhos em termos de uma maior possibilidade de protagonismo e relevância social. Se elas conseguem fazer isso é porque dentro do contexto sociocultural onde elas e suas romarias se inserem o que pode ser entendido como família, casa, correspondem a espaços sociais onde a figura feminina, especificamente a de mãe, tem um peso e costuma ser um estruturador e mediador muito importante das relações sociais intrafamiliares.
Nesse contexto, ser uma fretante – ser a chefe de uma romaria e exercer este poder e prestígio de “ser uma mãe” para os membros de seu grupo – oferece a essas mulheres oportunidades de vivenciarem experiências e formas de sociabilidade que correspondem justamente a uma forma de inversão dos valores dominantes que hierarquizam as relações de gênero, na sociedade mais ampla onde estão inseridas. Sociedade cuja uma das características é justamente a pouca valorização dos papéis sociais femininos, sobretudo os relativos ao trabalho e funções domésticas. Em outras palavras, enquanto na ordem cotidiana da sociedade na qual estas mulheres estão inseridas a condição de mulher, dona de casa e mãe tende a ser pouco valorizada, no contexto de uma romaria o “ser mãe” pode vir a ser justamente aquilo que, ao ser acionado em determinadas situações, pode lhe dar prestígio e poder fora do seu núcleo familiar, frente a um grupo que é formado por pessoas que não pertencem diretamente ao seu grupo familiar. Mesmo porque uma fretante é uma figura pública, e não privada.
Outro caso estudado, a pesquisa da antropóloga Silvana Nascimento sobre as romarias do Divino Pai Eterno, em Goiás, também parece ir de encontro ao que está sendo proposto:
A conhecida expressão “lugar de mulher é na cozinha”, tão pejorativa no universo urbano das grandes cidades, revela-se aqui uma realidade cotidiana que não é vista nem como ultrapassada nem como negativa. A cozinha é predominantemente o lugar das mulheres. A romaria transpõe para o mundo da festa uma parte fundamental do seu cotidiano: o universo da cozinha, lugar feminino e, ao mesmo tempo, da mais íntima convivência social entre parentes. Na festa de romaria, a cozinha está representada pelo interior das barracas (aqui, no caso, o rancho). (...) O fogão simboliza um elemento fundamental do universo dos romeiros e, em particular, do feminino. A presença do fogão dentro das barracas, tanto nos pousos quanto no acampamento no santuário, representa uma unidade familiar. (...) A romaria, então, não elimina propriamente as posições sociais. No tempo da festa, ao mesmo tempo em que afirma o lugar social de cada participante, associado ao fato de ser homem ou ser mulher, casado (a) ou solteiro (a), apresenta novos arranjos para as relações estabelecidas pela rotina”. ( Nascimento, 2002)
Avançando um pouco mais sobre o argumento de Nascimento na questão dos rearranjos das posições sociais, outro ponto a ser considerado é que o que está em jogo não é apenas a questão de o lugar da mulher ser ou não ser negativo, ou aquilo que esses elementos e espaços simbolizam. Trata-se também de entender como essas mulheres agenciam tudo isto afirmando sua própria importância e relevância em termos sociais.
Uma pista para se entender isso – como essas mulheres afirmam sua relevância - pode estar naquilo que a antropóloga Marjo de Theije afirma ser comumente encontrado em certos contextos sociais latino-americanos, que ela denomina de “marianismo”, e que corresponderia a determinada visão de feminilidade relativa à figura materna:
“O marianismo é o culto da superioridade espiritual feminina (Steenbeek, 1966, p. 64, tradução MdT), que retrata as mulheres como semidivinas, superiores moralmente e espiritualmente mais fortes do que os homens. Essa superioridade dá às mulheres o dom do sacrifício e da humildade. Embora estas características sejam tipos ideais e o comportamento real varie conforme a personalidade individual e o contexto em que ele se dá, esta ideologia geral acerca dos gêneros prevalece na sociedade brasileira.” ( Theije, 2002)
Theije, portanto, posiciona o “marianismo” como uma possível chave interpretativa para se compreender melhor aquilo que é uma ambiguidade relativa ao papel de certas mulheres em alguns contextos da sociedade brasileira: ao mesmo tempo em que elas podem, em alguns aspectos, ser vistas e tratadas como cidadãs de segunda classe (o que remete à ideia de “fragilidade”), também podem ser vistas como moralmente superiores aos homens. Isto, no que se refere ao caso aqui abordado, ajuda compreender um pouco melhor o papel e a forma de agir de certas romeiras fretantes nas romarias de Juazeiro. Aquilo que Theije denomina de “marianismo” tem correlação e pertinência com a capacidade que certas fretantes têm de converter o que por princípio pode ser visto de forma negativa (dom de sacrifício e humildade = submissão) em algo que dá credibilidade as suas ações (pois são moralmente superiores), notadamente dentro de algo cuja existência precisa necessariamente se justificar em termos religiosos: uma romaria.
Por fim é necessário considerar que os efeitos práticos de tudo isso não se restringem ou se findam na própria romaria. Isto é, eles também vão até certo ponto se estender para além do tempo e espaço específicos do ritual das romarias, alcançando de alguma forma as e os romeiros em sua sociedade de origem. Afinal, como demonstram Victor e Edith Turner (1978), a experiência de retorno gerada por uma romaria é sempre uma experiência de retorno ao lugar de origem que implica em algum tipo de transformação. Ou melhor, os e as romeiras tendem a voltar de alguma forma e em alguma medida transformados. Não se trata de dizer – frisa-se – que a realidade social e a estrutura foram alteradas. Mas trata-se de considerar que dentro da localidade e contextos sociais do Nordeste do Brasil de onde partem as romarias, quem a faz realiza algo merecedor de reconhecimento, admiração. E quem faz ano a ano uma romaria a Juazeiro, sendo fiel à tradição, merece ainda mais reconhecimento. E as romeiras fretantes, que se empenham para que isso não cesse, se tornam ainda mais merecedoras de admiração e respeito. Logo, a cada retorno um fretante tem a oportunidade de reafirma seu prestígio, sua reputação, sua ascendência moral para sua comunidade.
O que se defende neste artigo é que – ao contrário daquilo que se torna aparente a uma primeira vista - muitas mulheres romeiras do Juazeiro tem uma relação bem menos cordata com as estruturas, valores e condições sociais objetivas que visam colocá-las numa posição de subalternidade e passividade. Noutros termos, se por um lado elas não assumem uma posição mais radical que busca a transformação das condições objetivas da sua realidade e que lhes são desfavoráveis (e devemos considerar que isto pode ser uma escolha, como revela a afirmação de Dona Ilza no decurso da pesquisa: “- Meu filho, a corda sempre arrebenta do lado do mais pobre! E romeiro do Padre Cícero é tudo pobre!”), por outro lado elas não deixam de estar atentas aos interstícios da vida social nos quais elas podem realizar suas formas de resistência ( Scott, 1987, 2002) e a afirmação do seu próprio valor social.
Logo, muitas omeiras, por seu envolvimento com as romarias, longe de ser marcadas apenas por atitudes de mero conformismo às estruturas e dinâmicas patriarcais de nossa sociedade, são também marcadas por atitudes que tomam os espaços e tempos das romarias como lugares onde buscam agenciar seus papéis sociais numa perspectiva que, na medida do possível, é de não conformidade, de busca de reposicionamentos que reafirmem sua importância e seus respectivos valores como mulheres – como o ser mãe, o ser avó, o ser romeira – tanto nas próprias romarias, quanto dentro dos contextos sociais de origem, nas suas famílias e comunidades.
Mas para perceber isto é necessário questionar com qual olhar, qual perspectiva os e as romeiras e suas romarias estão sendo analisados ( Braga, 2015). É preciso questionar se não se está adotando uma atitude que valoriza muito pouco a capacidade de agência das romeiras e romeiros, subestimando a capacidade de resistência que também faz parte de suas práticas nas romarias. Na verdade a posição analítica que se defende aqui tem de fato uma posição política (que não significa um falta de compromisso científico social na análise aqui realizada): defende-se a realização de um olhar antropológico “por sobre o ombro dos nativos” ( Geertz,1989), que se esforce por ser uma interpretação válida das práticas e visões de mundo desses e dessas romeiras, dentro da qual seja igualmente possível identificar como, onde, quando, de que forma eles e elas conseguem estabelecer com as romarias e a devoção ao Padre Cícero relações e ações onde sejam senhores e senhoras de suas histórias, suas vidas. Perspectiva esta que busca posicionar o tipo de análise aqui proposta numa relação de oposição às análises que colocam os e as romeiras numa perspectiva de reprodutores da tradição, ou que os colocam à mercê ou à deriva de forças sociais que lhes seriam superiores e nas quais lhes escapa qualquer capacidade de agência.
antonio.braga@unesp.br