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O envolvimento ativista como parte do “renomear o vivido”: reflexões sobre experiências femininas pelos ativismos populares 1
Cessimar de Campos Formagio
Cessimar de Campos Formagio
O envolvimento ativista como parte do “renomear o vivido”: reflexões sobre experiências femininas pelos ativismos populares 1
The activist involvement as part of “renaming the lived”: reflections on women’s experiences by popular activism
Ciências Sociais Unisinos, vol. 55, núm. 3, pp. 362-372, 2019
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
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Resumo: Este texto, fruto de pesquisa de doutorado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCAR/ São Carlos/ SP, investiga a relação entre o envolvimento feminino em ativismos populares e os processos – individuais e coletivos – de nomeação de estranhamentos relacionados a subordinações sociais percebidas no cotidiano. A partir de interlocuções, ocorridas entre 2015 e 2017, com mulheres que, por diferentes formas e caminhos, passam/ passaram por experiências em práticas ativistas nas cidades de Campinas e São Paulo, percebeu-se que o envolvimento ativista pode ser parte de uma busca social por mapear e nomear angústias e insatisfações em relação a normatizações sociais que tecem o convívio nos espaços públicos e na família e naturalizam subordinações e violências. O exercício de “dialogar em público” sobre questões sociais, possibilitado nos encontros ativistas, coloca-se como uma possibilidade de nomear coletivamente sensações iniciais de não identificação a, principalmente, a dois reguladores presentes no contexto brasileiro de expansão da racionalidade neoliberal: os discursos/práticas de privatização do espaço público e o dispositivo familiar que centraliza na figura feminina a responsabilidade pelos cuidados domésticos e familiares.

Palavras-chave: envolvimentoenvolvimento,ativismos popularesativismos populares,renomeaçõesrenomeações,angústias sociaisangústias sociais,gênerogênero.

Abstract: This text reflects about the relationship between popular activist involvement and the individual and collective process of naming strange sensations arising from social subordinations that build subalternities perceived in everyday life. In interviews with women, conducted from 2015 to 2017, who had experiences in popular activism in the cities of Campinas and São Paulo, it was perceived that popular activism involvement can be part of a social quest to name anxieties and dissatisfaction related to social norms that weave socializing in public places and in the family. Public dialogues about social issues, made possible by activist meetings, may be a possibility of naming previously sensations that were previously confusing sensations and to strengthen dis-identification in relation to two social regulators present in neoliberal rationality: the discourses/ practices of privatization of public spaces and the family dispositive that centralizes domestic and family care responsibilities for women.

Key Words: involvement, popular activisms, renaming, social sensations, genre.

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O envolvimento ativista como parte do “renomear o vivido”: reflexões sobre experiências femininas pelos ativismos populares 1

The activist involvement as part of “renaming the lived”: reflections on women’s experiences by popular activism

Cessimar de Campos Formagio
UFSCAR, Brazil
Ciências Sociais Unisinos, vol. 55, núm. 3, pp. 362-372, 2019
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Recepção: 28 Agosto 2018

Aprovação: 20 Outubro 2019

O envolvimento ativista popular como parte do “renomear o vivido”

Dos anos de 1970 para as primeiras décadas que seguem os anos 2000, o envolvimento em ativismos populares passou por significativas mudanças. O fim dos anos de 1970/ início de 1980, momento que rodeou o fim da ditadura militar no Brasil, foi cercado de muitas expectativas tanto em relação à participação institucional de movimentos sociais e grupos de militantes como à conquista de direitos sociais. Tais expectativas se somaram à ampliação da oferta de trabalho, em tempos de expansão industrial e de serviços, e ao intenso crescimento das periferias das grandes cidades, em que muitas pessoas chegavam sob as esperanças de moradia e trabalho. Esses feixes compuseram um momento histórico em que o envolvimento ativista popular se expandiu no cenário político. Movimentos por transporte, por moradia, por educação e saúde, entre outros, se fizeram presente de forma mais marcante nos bairros, nos centros de educação formal, nas comunidades eclesiais de base, nas ruas e em outros espaços públicos das cidades. Envolver-se em alguma ação ativista, neste momento, era algo de possibilidade crescente, visto que se irradiava um entusiasmo político em relação a mudanças nas extremas desigualdades que marcam o cotidiano brasileiro.

Este cenário se altera nos anos de 1990/2000, quando as práticas militantes no Brasil, a partir da intensa dispersão da racionalidade neoliberal nas relações sociais, confrontam-se com desafios reconfigurados. Há um conjunto de mudanças - como o avanço da acumulação via capital financeiro, a precarização das relações de trabalho e a privatização de bens e serviços públicos ( Oliveira, 2007) - que repercutem diretamente nos modos de pensar e interagir dos sujeitos e, consequentemente, nos modos de se agrupar (ou não) politicamente. Como pontua Oliveira (2007), essas mudanças constroem uma subjetividade em que a desnecessidade do público aparece como premissa, dada a capacidade dos discursos neoliberais em produzir consensos, mesmo entre os grupos envolvidos na construção de resistências. Se considerarmos, por exemplo, a força que o discurso do “empreendedorismo de si” ganhou na organização social, alastrando uma lógica competitiva que se faz presentes tanto nas relações de trabalho, na família e nos relacionamentos em geral, podemos imaginar a dificuldade em criar contrapontos a essa lógica. A expansão desta racionalidade empreendedora tem impacto direto nas práticas militantes, tanto que parte da bibliografia ( Oliveira, 2007; Rizek, 2007; Baierle, 2009) aponta a linha tênue entre mediação e gestão conservadora que passa a envolver de forma mais acentuada os movimentos sociais.

Neste trabalho, busco um olhar ao envolvimento ativista popular e suas nuances sociais, subjetivas e históricas, focando uma dimensão específica que pode ocorrer neste tipo vínculo social: a busca por construir narrativas que se oponham a um determinado feixe de discursos e práticas hegemônicos com os quais se têm – inicialmente de forma difusa – discordâncias. Considerando que o envolvimento ativista popular pode se dar por múltiplos interesses e finalidades, as quais se embaralham de modos diferentes conforme o momento histórico, proponho um recorte sob a seguinte perspectiva: refletir a possibilidade de que o envolvimento ativista ocorra como parte de práticas sociais que chamo aqui de “renomear o vivido”. “Renomear o vivido” remete a um conjunto diverso de interações em que são elaboradas contranarrativas a dispositivos de poder que normatizam a vida social. Jacqués Rancière (2000) direcionou o olhar a tais práticas nomeando-as como literalidades, uma multiplicidade de palavras e sons que ecoam em dissenso a uma determinada racionalidade existencial que se impõem:

Esse excesso de palavras, ao qual chamo de literalidade (literarity), interrompe a relação entre uma ordem do discurso e sua função social. Ou seja, literalidade refere-se, ao mesmo tempo, a um excesso de palavras disponíveis em relação à coisa nomeada; excesso ligado aos requerimentos para produção da vida e aos excessos diante dos modos de comunicação que tentam legitimar a própria ordem adequada ( Rancière, 2000:115)

Construir renomeações do vivido ou, usando os termos de Ranciére, produzir literalidades. O envolvimento ativista pode se dar, para além de outras motivações ou interesses, como parte destas movimentações, tal como indicaram os relatos das interlocutoras e as observações de campo que compõem a pesquisa 3 de que texto é parte.

Entre os anos de 1970/80, como indicado nas linhas acima, a ligação entre esse renomear e o envolver-se nos ativismos populares se estabelecia de forma mais visível, dadas todas as dimensões daquele contexto histórico. Nas décadas seguintes, profundas mudanças, decorrentes da dispersão da racionalidade neoliberal nas variadas dimensões das práticas sociais, vêm embaralhar esse cenário: desemprego, intensa precarização do trabalho, dificuldade extrema de moradia, expansão da lógica concorrencial nas relações sociais, incentivos ao ativismo de viés empreendedor e empresarial ( Maranhão, 2011; Feltran, 2006), apropriação normativa de parte dos movimentos sociais ( Baierle, 2009; Rizek, 2007). Renomear o vivido, num contexto de precarização das condições de sobrevivência e desilusões em relação às expectativas coletivas anteriores, torna-se ainda mais complexo.

As reflexões que desenham este texto indagam em que medida é possível, no cenário contemporâneo, que o envolvimento feminino ativista se concretize enquanto parte de processos – subjetivos, culturais e políticos – de construir contranarrativas a dois conjuntos de valores e práticas sociais propagados pela racionalidade neoliberal: o que se relaciona à privatização de espaços públicos e o que remete a um modelo de família que direciona o tempo feminino centralmente para atribuições relacionadas ao doméstico e ao cuidado familiar.

A opção por uma perspectiva de gênero que tenha como recorte a categoria “mulheres” se delineia com a preocupação de considerar que há diferentes hierarquizações que transpassam as classificações relacionadas ao masculino/feminino. As representações de gênero em circulação no social operam, ao se interseccionarem com as subordinações de classe e raciais, expectativas e normatizações diferentes para os seres sociais, de modo que feixes de subordinação configuram um emaranhado de assimetrias tanto entre homens e mulheres, como entre homens e entre mulheres. As representações que incidem sobre o comportamento feminino se diferem conforme as dinâmicas de raça e classe e criam diferentes hierarquias sociais, de modo que é preciso, conforme frisam autoras feministas de diferentes vertentes analíticas 4, reconhecer que há diferentes normatizações e experiências de gênero. Todavia, tal fato não deve ser considerado sem que se admita, também, a existência de feixes normativos, balizados pela situação da classe, que conferem a certos grupos de mulheres cobranças semelhantes. A questão da responsabilidade do trabalho doméstico e cuidado familiar, por exemplo, envolve de forma marcante o tempo de vida das mulheres das classes populares, o que não significa negar que as dinâmicas raciais, como nos mostra Pacheco (2013), constroem a tendência de que mulheres subordinadas pelos dispositivos raciais estejam envolvidas no trabalho doméstico e familiar a partir de uma diferenciação hierárquica entre a mulher branca, que no processo histórico foi construída na posição de esposa, e a mulher negra, herdeira das representações sobre a mucama ( Gonzales, 1984), aquela que é encarregada pelo trabalho do cuidado e da casa em relações patriarcais que compreendem hierarquizações raciais que se estabelecem também entre mulheres.

O envolvimento ativista popular em tempos de expansão da racionalidade neoliberal

Para compreender o que é esse conjunto de práticas, discursos e valores disseminados de forma mais intensa a partir dos anos de 1990 e que nomeamos de neoliberalismo, nos apoiamos nas contribuições de autores que visualizam este como uma racionalidade política que desenha as movimentações do capitalismo financeiro, as ações do Estado e as interações sociais em múltiplos planos, propagando valores, pensamentos e comportamentos sintonizados ao ideário do indivíduo empreendedor e do empresariamento de serviços e espaços públicos. Francisco de Oliveira (2007), ao analisar a dispersão dessa lógica política no Brasil, destaca que a financeirização do capital, aliada às inovações tecnológicas, trouxe o atropelo das relações trabalhistas que se faziam sob a égide de direitos e garantias sociais, construindo um cenário de amplo desemprego e intensa precarização das formas-trabalho. A fragilização da perspectiva de mobilidade social via trabalho, somada à privatização dos espaços públicos, algo que remete tanto a uma configuração material, de venda de patrimônio público, como a uma dimensão subjetiva de desnecessidade da sociabilidade pública 5, configuram o contexto neoliberal no Brasil. A interpretação de Oliveira pode ser cruzada às observações de autores que buscam destacar, interpretando os textos de Foucault, que neoliberalismo não remete somente a uma relação entre Estado e mercado, mas sim ao que Foucault chamou de “arte de governo” ou “governamentalidade” ( Foucault, 2008): um exercício político tecido na esfera estatal e também nas múltiplas formas com que os seres sociais se relacionam e governam uns aos outros. Neste sentido, é importante considerar a variedade de dispositivos de normatização que se irradiam nos circuitos sociais, sejam os que partem das políticas de Estado e dos grandes conglomerados econômicos, sejam os que se dispersam entre os seres sociais através de suas interações cotidianas.

Há uma variedade de dispositivos de controle que perfazem a lógica neoliberal e se manifestam em diferentes momentos da vida social. Nildo Avelino (2016) aponta que Foucault, em “Nascimento da Biopolítica” e também em outros textos, se diferenciou das interpretações mais freqüentes sobre o tema por visualizar o neoliberalismo enquanto uma complexa gestão social operada por múltiplos atores e dispersa nas relações sociais. Acompanhando Foucault, Avelino destaca o neoliberalismo enquanto uma sofisticada forma de governamentalidade, como salienta o autor:

Para Foucault, aquilo que é peculiar, relevante e específico na história do (neo)liberalismo não é a valorização da liberdade, tampouco é o exercício da opressão; mas é sua configuração enquanto racionalidade política governamental, como a maneira como os homens governam uns aos outros ( Avelino, 2016:251)

Se, acompanhando as leituras desses autores, podemos nomear essas formas de se relacionar, de pensar o público e de “conduzir a conduta” como neoliberalismo, é necessário indicar quais os principais componentes desta específica “arte de governar”, assim como as relações sociais que, nessa racionalidade, passam a ser constantes.

Um dos aspectos comumente mencionado na bibliografia ( Oliveira, 2007; Foucault, 2008, Avelino, 2016; Dardot e Laval, 2016) é a lógica utilitarista empresarial que passa a ser difundida tanto nas políticas de Estado - através da transferência de propriedades públicas para grupos privados ou pela gestão do público conforme critérios empresariais 6 - como nas várias dimensões da vida social, em que os seres passam a se relacionar mais incisivamente sob uma lógica do custo/benefício em que mostrar-se “produtivo” opera como critério valorativo e de seleção do acesso a espaços e oportunidades. A atitude empreendedora, cuja exigência é bem comum em espaços empresariais, passa a ser um parâmetro comum nas interações sociais e configura-se como uma das formas de governo, de “controle da conduta”, a qual é operado tanto pela maquinaria estatal, como entre sujeitos e pelo sujeito para consigo mesmo. Como salientam Dardot e Laval (2016), a especificidade da governamentalidade neoliberal se desenha na valorização da concorrência e de uma lógica utilitarista empresarial, sendo que ambas atuam como “técnicas de dominação exercidas sobre os outros” e, também, como “técnicas de si”, ou seja, o “espírito” empreendedor não é uma cobrança apenas externa, vinda das instituições ou de pessoas próximas, mas é também uma “relação consigo”, algo que tende a existir como expectativa do ser em relação a si próprio para que tenha um bom “desempenho” e a capacidade de melhorar sua inserção social independente das condições adversas circundantes.

Desemprego, ampla precarização das formas-trabalho, intensa dificuldade de acesso à moradia, restrição dos espaços de convívio e debates públicos, esses são fatos sociais que, nutridos pelas narrativas do empreendedorismo (de si e dos outros), configuram o dispositivo neoliberal. Num cenário de extremas desigualdades sociais, reduzidas nos governos petistas, mas mantidas em suas grandes proporções ( Rizek, Georges e Ceballos, 2014; Ivo 2008), a lógica da concorrência e do “empreender” passam a atuar como uma sofisticada e muitidirecionada forma de “governo dos outros” ( Foucault, 2008), reconfigurando subalternidades (raciais, de gênero e de classe). Neste processo, as narrativas da família como núcleo centralizado e a consequente atribuição do trabalho doméstico e de cuidado familiares às mulheres se reiteram e atuam como um impactante regulador do tempo de vida feminino, sobretudo das mulheres que vivenciam contextos econômicos mais precarizados.

Apresentar os componentes e os efeitos da racionalidade neoliberal é um passo necessário no caminho de refletir as interações sociais que compõem o envolvimento ativista e analisar quais as possibilidades destas práticas estabelecerem contrapontos às subalternidades que são acentuadas por esta racionalidade política.

A reflexão sobre o envolvimento ativista popular contemporâneo depara-se com um cenário bem diverso daquele que se fez em décadas passadas, quando palavras como autonomia popular, democracia de base e participação direta soavam repetidamente e de forma mais incisiva nos cotidianos ativistas. Considerável parte da bibliografia ( Sader, 1988; Baierle, 1992; Dagnino, 2006) vislumbrava nos movimentos populares grandes possibilidades de construção de formas de sociabilidade divergentes do cenário autoritário e de extremas desigualdades que marcavam a vida política. Raquel, uma das ativistas 7 que contribuiu com a pesquisa, destacou em sua fala alguns dos anseios políticos que marcaram aquele período:

Naquele momento imediato pós ditadura, ainda não tinha tanta fragmentação entre os movimentos, a gente sabia que a ditadura ainda estava ali, tinha a ideia clara de um inimigo comum. Muitos grupos se formaram no caldo da oposição à ditadura. A gente pensava em construir algo novo ... Havia um sonho de refazer a democracia, fazer políticas públicas democráticas, os conselhos populares – que não tinham nada haver com os conselhos municipais que vieram depois. A gente discutia autonomia absoluta, porque a gente passou anos contra o Estado e, de repente, a gente estava cobrando do Estado participação, mas ainda tinha aquela oposição ao Estado, aquela ideia de autonomia (Raquel, ativista em Campinas, Marcha Mundial das Mulheres e com vinculação partidária, fevereiro de 2017)

Como Raquel indica, havia nos ativismos populares dos anos de 1970/80, uma ideia mais fortalecida de um sujeito político popular que se organiza de forma diversa dos parâmetros estatais, produz suas formas de atuação próprias e que estão ligadas ao desejo de política 8, de que grupos subalternizados tenham a possibilidade de fala pública e de interferência direta nos projetos estatais. Essas narrativas passam, conforme Raquel indica, por alterações contínuas conforme no imaginário político vão se firmando possibilidades de inserção institucional de grupos ativistas. Essas alterações, permeadas de ambiguidades, tomam um sentido bem distante do ideário de “autonomia popular”, quando, a partir dos anos de 1990, do interior de governos, de empresas e de outros organismos nacionais e internacionais (Maranhão, 2011; Feltran, 2006; Magalhães, Regina, 2017) espalham-se discursos sobre uma forma de ativismo que tem como componentes palavras como atendimento, protagonismo, parcerias, eficiência, demanda, projetos. Um ativismo que, diferente do “fazer por nós e entre nós”, desloca o vocábulo para o “fazer por” e cria a ideia de “público-alvo”, de serviços, de atendimento a grupos “excluídos” 9. Há um amplo incentivo, a partir deste momento, a uma forma de envolvimento ativista que colabora com políticas públicas, as quais apropriam-se de narrativas e demandas trazidas por movimentos sociais e operam um sofisticado deslocamento de sentido, diluindo o objetivo de construção coletiva mais igualitária para fortalecer uma simbologia que gira em torno da ideia de serviços prestados, frutos de concessão de grupos gerenciais.

As reflexões contemporâneas, bem diferentes das que se dedicaram aos movimentos populares dos anos de 1970/1980, destacam os consensos, cooptações, dificuldades de sobrevivência que permeiam o envolvimento ativista hoje, de modo que procurar possíveis relações entre ativismo popular e reinvenções políticas torna-se mais complexo, um caminho que requer cuidados para que sejam considerados os dispositivos políticos de normatização dos ativismos, sem deixar de considerar os múltiplos sentidos e a dimensão de desejos que o envolvimento ativista pode, também, carregar.

Este “ativismo gerencial” é mais facilmente associado, na bibliografia, a empresas, ONGs e associações comunitárias, mas pode-se identificar, também, que houve movimentos populares que, surgidos a partir da narrativa do “sujeito popular”, foram deslocando seus discursos e passaram a agir conforme a lógica gerencial, atuando na regulação de questões sociais em partilhas com o Estado, como ocorreu, de forma mais facilmente perceptível, em parte dos movimentos sociais relacionados à moradia 10. Tal partilha, embora pouco admitida e não nomeada como tal, é um elemento importante do cenário político contemporâneo. Como observaram Dardot e Laval (2016) uma sofisticada prerrogativa neoliberal relaciona-se a uma concepção de liberdade em que se é livre no exercício do consenso: mais do que proibir e policiar determinadas práticas, a melhor forma de gestão do social é incentivar que uma ação se dê sob determinadas formas e direções, fazer com que a racionalidade dominante seja propagada como se fosse “escolha” de quem a compartilha. Neste sentido, incentivar práticas ativistas próximas ao modelo de gerenciamento governamental é um modo mais sofisticado e menos perceptível de cercear possíveis ativismos dissonantes. A ascensão neoliberal parece vir acompanhada desta tática política, que mostra no destaque que algumas formas de ativismo ganham na cena pública. Neoliberalismo e ascensão de grupos ativistas populares não são fatores que se contrapõem, a participação ativista sob determinados moldes é fundamental na conformação de alguns programas governamentais de gestão das questões sociais ( Rizek et al., 2014). O envolvimento ativista é incentivado conforme se coloca como parte do gerenciamento de questões sociais.

Se, em ventos neoliberais, expande-se o caráter de gestão social que as práticas ativistas podem ter, há espaços para se relacionar, no momento atual, ativismo popular e contrapontos à existência neoliberal? As práticas ativistas populares teriam se tornado práticas policiais e seu potencial político seria algo próximo do nulo? Perturbada por estas questões, a principal tarefa da pesquisa foi verificar quais aspectos deste envolver-se podem ser entendidos como elementos de contraposição à lógica neoliberal de existir e agir que se propaga e molda a vida nas cidades. Compartilhando da consideração de que todo exercício do poder se depara com contrapontos ( Foucault, 2008) ou, em outros termos, possui “linhas de fuga”, ( Deleuze, 1990), a pesquisa busca visualizar em que medida o envolvimento ativista feminino pode se configurar como parte de uma busca social que nomeio como “renomear o vivido”, algo que se refere aos processos de construção de formas de entender e sentir o mundo que divergem das racionalidades hegemônicas que ordenam os espaços sociais, algo próximo daquilo que Rancière (2000) nomeou como literalidades: aquelas palavras, ações, discursos, sentimentos que trazem dissonâncias a um modo único e preponderante de ordenação do mundo social.

“Renomear o vivido”: do estranhamento ao envolvimento ativista

Desidentificação, estranhamento, desencontro. Como nomear, em termos sociológicos, sentimentos – inicialmente não nomeados ou decifrados - de desidentificação em relação a práticas e discursos de subordinação vivenciados pelos sujeitos? Como nomear sensações de distanciamento, de não partilha em relação a narrativas coletivas que buscam a construção e consolidação de uma ordem do sensível com a qual não se comunga os sentidos? Marx, quando refletiu os sentidos do trabalho no capitalismo, talvez tenha nomeado parte destes “sentimentos sociais” sob o termo estranhamento 11, algo decorrente da situação do trabalhador diante do exercício de tarefas que, além de não conferirem satisfação, correspondem a fins sociais alheios às necessidades do abrangente grupo social de que o mesmo faz parte.

Estranhamento pode ser uma categoria interessante para nomear a não identificação primária em relação a um dispositivo normativo. Aquela sensação social que, ainda não elaborada discursivamente, ao contrário de indicar um consenso, expõe, de forma inicial e dispersa, uma discordância ainda não compreendida ou nomeada.

Um caminho para refletir este “estranhamento primário” pode ser retomar parte do percurso de discussões das Ciências Sociais sobre a relação entre as práticas/discursos normativos e a agência dos sujeitos. É possível iniciar a reflexão partindo de um texto frequentemente mencionado – em concordância ou críticas - em discussões teóricas sobre agência e processos sociais. “Aparelhos Ideológicos do Estado”, de Louis Althusser, é contemplado nas reflexões que autora(e)s como Stuart Hall (2006), Judith Butler (2001) e Tereza de Laurets (1994) fazem sobre subjetivações e normas sociais. No referido texto, Althusser traz a discussão sobre a relação entre as “forças normativas” que convocam (interpelam) os seres a ocupar determinadas posições e os comportamentos decorrentes de tal “chamado” (agência). O autor cita a cena do policial que “chama” o sujeito 12 e tem como resposta o consentimento à classificação que a este foi conferida. O policial pode, na situação, ser uma metáfora do Estado, da família, da igreja, dos grandes grupos midiáticos ou outras instituições. As considerações do autor no referido texto refletem as expressões sociais que se dão em consenso aos enquadramentos e subalternidades, mas secundarizam possíveis discordâncias e contrapontos aos “chamamentos” sociais normativos.

Refletir a agência dos sujeitos enquanto concordância, enquanto movimento favorável diante dos “estímulos” de dispositivos de poder é um exercício intelectual fundamental, todavia é necessário também pensar como se elaboram as variadas dissonâncias ou, pensando em trabalhos contemporâneos ( Piscitteli, 2006; Butler, 2001; Hall, 2006), ponderar como consensos e discordâncias se manifestam de formas embaralhadas, imprevisíveis, exigindo de quem as observa um grande e paciente cuidado analítico.

Refletir os dissensos é tarefa tão complexa que até mesmo Foucault, um autor tão referenciado pelos olhares pós-estruturalistas, cedeu, em parte de seus textos, à tendência de pontuar mais frequentemente a repetição das normas. Em “História da Sexualidade I”, Foucault mostra que, para além dos aparatos repressivos, os discursos normativos se expandem a partir de seu potencial de produzir identificações e ser difundido em múltiplas direções e lugares. Se Foucault, de um lado, contestou a hipótese repressiva, de outro, teria reforçado a tendência à reprodução social, com menor atenção às possibilidades do “poder produtivo” falhar, como observou Hall:

Mesmo considerando o trabalho de Foucault, sem dúvida, como produtivo, podemos dizer que ele pula muito facilmente de uma descrição do poder disciplinar como uma tendência das modernas formas de controle social para uma formulação do poder disciplinar como uma força monolítica plenamente instalada. Isso leva a uma supervalorização da eficácia do poder disciplinar e a uma compreensão empobrecida do indivíduo, o que impede que se possa explicar as experiências que escapam ao terreno do “corpo dócil” (Hall, 2006: 123)

Ao desenvolver sua crítica a uma possível dificuldade de Foucault em pontuar as resistências – essas que o mesmo admite como parte do poder ( Foucault, 2001: 125) - Hall 13 salienta que Foucault reconheceu esse limite, algo que se mostrou nos esforços de seus últimos textos (O uso dos prazeres, 1987 e Cuidado de si, 1988) no sentido de direcionar o olhar aos processos de subjetivação que perfazem a relação entre sujeitos e dispositivos: “Foucault tacitamente reconhece que não é suficiente que a lei convoque, discipline, produza e regule, mas deve haver também a correspondente produção de uma resposta e, portanto, a capacidade e o aparato de subjetividade por parte do sujeito” (Hall, 2006:124).

As ponderações de Stuart Hall sobre Foucault trazem ao debate a dimensão subjetiva que envolve os processos em que os sujeitos se identificam ou não como as práticas e discursos que lhes “chamam” a determinadas formas hegemônicas de ver e ser no mundo, ou seja, há um direcionamento do olhar para uma dimensão do ser que a sociologia moderna rodeou, mas não tocou; foram as teorias contemporâneas, sobretudo as produções das últimas décadas, que se detiveram de forma mais incisiva na relação subjetividades divergentes/ poder/ normatividade. Este olhar é importante nesta pesquisa, pois pode nos orientar em um caminho para pensar este escorregadio “estranhamento primário” referido nas linhas anteriores, e na possibilidade de que esse “estranhar” se dê como um momento inicial de um processo de “renomeação do vivido”, o qual encontraria nos ativismos populares uma forma de apoio.

Há uma analogia entre o estranhamento apontado por Marx quando analisa as relações de trabalho no contexto da propriedade privada e a dimensão subjetiva que Judith Butler (2001) explora ao pensar como subjetivamente os seres lidam com as regulações sexuais a que estão sujeitos inclusive desde antes do nascimento, quando a primeira ecografia já serve de pretexto para que uma expectativa de gênero incida sobre a futura criança. Tanto Marx como Butler, embora partindo de questões e perspectivas bem diferentes, destacam a produção da subjetividade e seu possível teor dissidente em relação a uma norma social. Marx usa a expressão estranhamento enquanto Butler (2001) nomeia como “apropriação constrangida” a elaboração subjetiva que indica variados graus de discordância em relação a uma racionalidade hegemônica.

Algumas das ativistas interlocutoras da pesquisa mencionam um sentimento difuso de estranheza que as acompanhava, seja em relação à vida na cidade, no trabalho ou na família. Tal sensação, inicialmente não nomeada, acabou, a partir do envolvimento em ativismos populares, por se transformar num desejo de construir contranarrativas aos fatos socais “estranhados”. A fala de Ana Piva, que mora na cidade de São Paulo e tem um percurso de experiências ativistas em diferentes questões sociais e grupos (educação, transporte, coletivo feminista e cultura) expõe esse percurso:

Minha primeira experiência militante foi aos 19 anos, no meu primeiro trabalho com carteira assinada. Até então, eu era um tipo de adolescente bem alienada, naquele mundinho fechado, preocupada com as baladas e com as roupas que eu queria comprar. Nos meus primeiros meses naquele lugar, caí na realidade. Presenciei situações que me revoltavam e comecei a me questionar mais sobre o que eu queria da vida, se eu ai ser das que pensam “as coisas são assim mesmo” ou se ia por outro caminho. Eu sentia um desespero muito grande e não sabia pra onde ir, nem quem procurar. Ninguém, nas minhas relações mais próximas, tinha um olhar diferente. Então, um dia, ao acompanhar uma paralisação de funcionários da prefeitura, conheci um moço que morava num centro cultural anarcopunk na periferia da cidade. Me contou um pouco de sua vida, de como virou anarquista e de como era o espaço coletivo em que morava, o qual fui visitar depois. Nunca esqueço esse dia. E esse moço, que hoje nem sei onde anda, encontrei outras vezes, em outros atos que passei a ir, e nossas conversas me ajudaram a perceber que a cidade era muito mais do que eu sabia, que existia toda uma vida de lutas que, naquele cotidiano classe média baixa, eu ignorava. Eram conversas que eu não conseguia ter nem na minha família, nem com meu namorado ou amigos e parece que, desde então, comecei a perceber que muitas das angústias que eu sentia era por viver um cotidiano fútil e alienado, por ser pobre mas ter cabeça de classe média e não questionar quase nada das injustiças que estavam em volta”. (Ana Piva, coletivo popular de mulheres escritoras, São Paulo, 2016)

Ana Piva nasceu em São Paulo, teve seu primeiro contato com atos de militância quando, sufocada pelas situações que presenciava no trabalho, passou a participar de manifestações trabalhistas que ocorriam na cidade. Foi num ato grevista dos trabalhadores municipais, em que Ana participou em apoio ao movimento, que conheceu um jovem que lhe possibilitou conversas que não conseguia ter em casa, na escola ou com o namorado. Por intermédio do rapaz, Ana, que vivia num bairro de classe média baixa, conheceu um centro cultural anarquista numa área mais periférica da cidade e também outras pessoas envolvidas em ativismos.

O impulso inicial para participar de mobilizações coletivas foi quando, nas experiências de seu trabalho, “sentia um desespero muito grande, não sabia para onde ir”. É assim que Ana nomeia o estranhamento que sentia: “desespero”, “não saber para onde ir”, “revolta”. Essa “sensação social”, expressão de um não compartilhar com as lógicas das relações que vivenciou no trabalho, foi ponte inicial da ligação de Ana ao ativismo. Antes de participar dos atos, Ana sentia um “mal-estar”, foi essa sensação – existente numa interação entre dimensões psíquicas, corporais e sociais – que impulsionou Ana a aproximar-se de encontros relacionados aos ativismos populares. A sociabilidade nestes espaços, por sua vez, acabou por propiciar que o estranhamento inicial se transformasse num desejo, desejo de contrapor-se a discursos e práticas pelas quais sentia estranhamento, angústia. Quando se aproximou das manifestações, Ana fez contatos que a possibilitaram outro olhar à sua própria vida e à cidade em que vivia: “comecei a perceber que muitas das angústias que eu sentia era por viver um cotidiano fútil e alienado, por ser pobre mas ter cabeça de classe média”.

Estranhamento inicialmente não nomeado ... aproximação ao ativismo popular ... desejo de vivenciar e elaborar outras narrativas e relações sociais. Tal sequência – estranhamento, envolvimento, desejo – compõe a trajetória de Ana e o sentido que os encontros ativistas adquiriram em sua vida. O envolvimento ativista teve uma importante contribuição na significação que Ana conferiu ao estranhamento inicial e potencializou o desejo de fortalecer formas de ver e interpretar que possibilitassem a construção de contrapontos aos discursos que tendem a legitimar subordinações implícitas nas normas sociais. As experiências no trabalho suscitaram uma desidentificação com uma “ordem do sensível” ( Rancière, 1996) que Ana não sabia pontuar bem qual era; o mal-estar não tinha ainda uma interpretação que o nomeasse, essa nomeação construiu-se a partir do envolvimento ativista, que lhe possibilitou momentos de sociabilidade em que outras chaves de interpretação eram circuladas.

Podemos considerar que o estranhamento inicial que Ana sentia poderia ter sido direcionado para outra atividade social e ter outro encaminhamento. Ana poderia ter recebido uma “promoção” no trabalho e, fascinada pela nova “superioridade” profissional, atenuar seus sentimentos ou, poderia, num procedimento bem comum no mundo contemporâneo, interpretar suas aflições de acordo com narrativas que nomeiam como fracassos pessoais e fraquezas aquelas sensações sociais que divergem das esperadas pelos aparatos normativos. É interessante, pensando nas possibilidades de encaminhamento de uma estranheza difusa, as considerações construídas por Safatle (2016) quando o autor defende que o conceito de estranhamento de Marx pode ser um caminho para direcionar o olhar às insatisfações e desidentificações com as lógicas e narrativas sociais normativas:

Será o caso de procurar reler o conceito de trabalho em Marx como se tal trabalho fosse a “expressão do impróprio” com seus afetos de estranhamento. Isso para defender a necessidade de pensarmos como as sociedades neoliberais produzem não apenas a espoliação econômica da mais-valia, mas também a espoliação psíquica do estranhamento, como o poder espolia o estranhamento levando que toda negatividade somente se manifeste como depressão ou melancolia ( Safatle, 2016: 27)

Safatle nomeia como “espoliação psíquica do estranhamento” a nomeação patologizante de uma insatisfação ou discordância social contranormativa e a consequente diluição da dimensão social dissidente que esta expressão pode conter. No caso de Ana, o encaminhamento do estranhamento foi o envolvimento no ativismo popular, o que acabou por lhe alimentar o desejo de construir outras nomeações, dar outras palavras às coisas nomeadas ou, como nas palavras de Rancière, construir novas literalidades: narrativas que se contrapõem à lógica que tende a naturalizar relações cujo sentido não encontra ressonância em alguns grupos sociais. O envolvimento ativista, como já se frisou no início deste texto, pode se dar a partir de múltiplos interesses e finalidades, a dimensão normativa que este também pode conter não é negada, a questão é indicar que, mesmo no cenário contemporâneo, em que sentidos e nomeações de movimentos sociais são captados e deslocados pela racionalidade neoliberal, há um potencial criativo neste tipo de vinculação social. Como mostra a trajetória de Ana, este envolvimento pode ser, também, um componente do processo social que chamo de “renomeação do vivido”: a busca pela construção de narrativas divergentes, que trazem pontos de dissenso à racionalidade neoliberal e aos tipos de relações que esta determina.

Outro ponto a ser observado na fala de Ana é a menção à família e ao namorado como relações em que não via espaço para dizer o que sentia. Em alguma medida, a família e o namorado partilhavam uma racionalidade existencial com que Ana ia deixando de se identificar. Acho importante destacar esse trecho da fala, porque Ana é uma mulher de origem popular que viveu sua juventude no início dos anos 2000, momento em que os questionamentos em relação às atribuições femininas no interior das famílias se expandem, embora a vinculação entre o feminino e cuidados domésticos e familiares, sobretudo para mulheres de grupos populares, ainda seja intenso no imaginário e práticas sociais. Tanto Ana como as demais ativistas interlocutoras da pesquisa mencionaram que o envolvimento nos ativismos potencializaram o desvio de seus comportamentos em relação às expectativas familiares relacionadas ao cuidado da casa e da família e aos seus relacionamentos conjugais.

O mal-estar que Ana sentia no trabalho, e que a levou aos ativismos, foi, mais tarde, associado por Ana a uma esfera mais ampla, ligada à forma como vivia, a seus objetivos de vida e às relações que mantinha na e com a cidade. Nessa construção de sentidos, há uma dimensão de gênero presente. O tempo que Ana passou a dedicar às militâncias era parte daquele “tempo livre” em que não estava no trabalho ou no cursinho. Tal tempo, reduzido num contexto em que o trabalho toma aos seres grande parte jornada diária, é cercado – e disputado – pelas várias atribuições e necessidades que se colocam no cotidiano: tempo do lazer, do cuidado de si, do cuidado dos próximos, do relacionamento amoroso, da religiosidade, entre outros. Ao dar prioridade a práticas ativistas e aos vínculos sociais que tecia a partir dele, Ana colocou em segundo plano às atribuições femininas relacionadas à família que pudessem lhe ser direcionadas. Talvez se Ana fosse uma jovem de origem popular em décadas anteriores, as expectativas sociais de que ela desse outro destino a seu “tempo livre” fossem de um peso redobrado, possivelmente até seria reduzida a possibilidade desse “tempo livre”, dado o fato de que o trabalho doméstico e cuidado familiar sempre existiu como um incisivo regulador do tempo 14 feminino, sobretudo para mulheres de grupos populares ( Sorj e Fontes, 2007). O direcionamento que Ana deu ao seu tempo é mediado pelas possibilidades trazidas pelo processo histórico de deslocamentos nas configurações de gênero.

Nas falas das ativistas, foi comum a associação entre o envolvimento ativista e a elaboração de comportamentos que divergem dos cultivados no grupo familiar ou outros espaços em se socializam. Os relatos de Laura, ativista que mora em Campinas e iniciou seu percurso militante no movimento por moradia, indicam essa vinculação. Laura teve um grande desentendimento com os pais quando esses descobriram que ela namorava uma menina. Ao ser expulsa de casa, aos 16 anos, foi compor uma ocupação por moradia que ocorria na cidade. Ali conheceu pessoas que a ajudaram a encontrar trabalho, fez amizades e acostumou-se à rotina de assembleias e de mobilizações pela cidade: “Me falavam que eu levava jeito, que eu falava bem para as pessoas, que eu tinha carisma, e eu fui vendo que eu sentiria muita falta se não tivesse mais aquele dia-dia, aquilo foi fazendo parte de mim” 15.

A partir da experiência no movimento de moradia, Laura inspirou-se em construir um coletivo que discutisse sobre divergências sexuais na periferia de Campinas. Os integrantes do grupo formado conseguiram um espaço para se reunir e organizaram algumas edições de um fanzine que circulou por alguns bairros. Laura passou a frequentar diferentes espaços na cidade por causa das atividades do coletivo, expandiu sua rede de contatos, passou a ser reconhecida de um modo que dificilmente se daria em outros espaços sociais, tal como os eventos familiares, que passaram cada vez mais a serem momentos de tensão, como me contou:

Eles estranham até hoje. Eu sempre fui de obedecer muito a família. Na minha criação, o lance era: ou obedece, ou obedece, e o PT era partido que come criancinha e tudo de esquerda era ruim. O que me era permitido era a igreja. Eu não podia jogar futebol, não podia jogar vôlei, nada disso. Mas eu fui, eu joguei futebol por muito tempo, mas para minha família, jogar vôlei, futebol, basquete não era algo que te preparava pro trabalho, então não fazia sentido, isso foi cortado da minha vida. Eles não entendem e acho que nunca entenderão, pois além da minha militância social eu tenho a militância homossexual, então é uma dupla confusão pra eles, é um duplo rompimento, o primeiro quando eu saio da igreja e venho militar no PT. Eles entendiam a militância, por exemplo, quando era algo mais ligado aos vicentinos, mas quando eles souberam que eu ia em manifestação, aí foi uma crise, que aumenta quando eles começam a desconfiar da minha sexualidade, dos lugares que eu ia. Aí era falar que eu tinha que ir em psicólogo para tentar entender o que estava acontecendo. Não tem conversa, é uma relação muito superficial, é uma relação hoje que você não está na lista de batizado, na de casamento, de chá de bebê, você não faz parte do convívio social da família. E é aquilo, quando vai visitar a família, o assunto é: “Oi, como vai, tá trabalhando?”. E a sua resposta tem que ser aquela: Tô. Não queira falar de movimento social, não fale disso, eles não querem saber (Laura, coletivo de sexualidade em Campinas, Frente de Mulheres Negras e com vinculação partidária, janeiro de 2016)

Na família de Laura, circulavam expectativas em consonância a normatividades sociais relacionadas à família, ao trabalho e a estratégias de ascensão social. A jovem mostrava crescentes desidentificações com estas normativas. As experiências que vivenciou nas práticas da militância fortaleceram-na na construção de narrativas que conferiram a ela sentidos de vida divergentes aos veiculados por muitos dos dispositivos que operam as regulações sociais e que se mostram presentes em suas relações familiares. O cotidiano da ativista é permeado de interações sociais em que circulam discursos que trazem contrapontos à sociabilidade neoliberal e ao modelo de centralizado de família. As relações de troca, de afeto e de valorização social que Laura vivencia no ativismo, para além dos conflitos e subordinações que também se fazem presentes 16 nestas interações políticas, trouxeram o apoio para que Laura nomeasse seus estranhamentos em relação aos dispositivos de gênero e sexualidade que lhe cercam.

Assim como Laura, as demais ativistas/ interlocutoras da pesquisa mantêm-se vinculadas às práticas ativistas por vivenciarem nestes espaços redes de apoio na construção de contranarrativas a práticas e discursos normativos com os quais mantém desidentificação. Desidentificações que parecem estar diretamente relacionadas tanto à privatização dos espaços públicos, a qual dificulta encontros coletivos em que se pode partilhar dissensos, como a um dispositivo familiar em que o lugar feminino se firma através de um cuidar do outro que pressupõe a anulação de si e de seus potenciais desejos políticos.

Experiências femininas pelos ativismos populares – considerações finais

A pesquisa de doutorado 17 de que este texto é parte baseou-se nas interlocuções com dez mulheres que passaram por experiências 18 variadas em ativismos populares e mantiveram este envolvimento como parte de suas vidas. Além das interlocuções mais aprofundadas com as militantes, realizei, nos anos de 2015 a 2017, uma contínua observação de atos públicos, rodas de conversa, passeatas, atividades culturais e outras ações organizadas por grupos ativistas nas cidades de Campinas e de São Paulo. Estes dois momentos – as interlocuções e as observações – me permitiram verificar que é possível estabelecer uma relação entre o envolvimento ativista feminino e uma busca social – individual e coletiva – por nomear estranhamentos a narrativas de subalternidade que operam no cotidiano. A este processo de renomeação dei o nome de “renomear o vivido”.

A forma como as ativistas/interlocutoras da pesquisa se envolveram com os ativismos populares contrapõe a racionalidade política neoliberal, principalmente, em dois aspectos. O primeiro relaciona-se à privatização dos espaços públicos, um fenômeno social que envolve tanto a venda de patrimônio público a grandes grupos empresariais transnacionais como a lógica de convivência desigual e privatista que se estabelece também nos espaços públicos de convívio ( Oliveira, 2007; Dardot e Laval, 2016). O envolvimento em ativismos populares pode proporcionar, como apontam as trajetórias de Ana e Laura aqui destacadas, o debate de questões sociais que poderiam, caso não houvesse espaço público de fala e de nomeação coletiva, confinar-se como questões privadas e particulares 19. Ana e Laura, assim como as outras ativistas com quem conversei, encontraram uma forma de estabelecer vinculações de sentido entre sensações de estranhamento - que poderiam ser reduzidas a desvios individuais – e subordinações que compõem a vida social.

A segunda contraposição à racionalidade neoliberal, efetuada no envolvimento político observado, relaciona-se ao dispositivo familiar que atribui às mulheres a centralidade dos cuidados domésticos e familiares. O modelo centralizado de família - em que as atribuições familiares exercem um controle moral e político sobre a movimentação dos sujeitos, principalmente sobre as mulheres – é reatualizado 20 pelos discursos neoliberais. São narrativas que reiteram e atualizam a centralidade feminina no cuidado familiar. O envolvimento de mulheres em práticas ativistas pode se colocar como uma contraposição a esta normatização conforme as envolvidas optam por direcionar parte do tempo “além trabalho” para uma atividade que, além de não estar diretamente ligada aos cuidados domésticos e familiares 21, ocorre muitas vezes sob a irradiação de comportamentos e discursos que buscam desconstruir a associação entre mulheres e a centralidade dos afazeres domésticos e do cuidado parental.

Os conflitos familiares decorrentes do envolvimento em práticas ativistas se fizeram presentes nos relatos das ativistas/ interlocutoras da pesquisa. As maiores tensões se mostram, conforme pontuaram, no questionamento de familiares sobre o sentido de envolverem-se com ativismos, sobre a quantidade de tempo direcionado a estas práticas e também nas negociações com parceiro(a)s sobre a divisão do cuidado dos filhos e da casa. Houve também a menção a tensões nos relacionamentos conjugais, quando parceiro(a)s não compreendem os compromissos ativistas ou colocam algum tipo de obstáculo ao envolvimento das entrevistadas nas práticas que compõem os ativismos populares. Este último fato faz com que algumas ativistas prefiram envolver-se com pessoas que também estejam ligadas aos ativismos, com as quais teriam maior facilidade em compartilhar questionamentos relacionados ao modelo centralizado de família e às representações de gênero relacionadas ao cuidado doméstico e familiar.

Material suplementar
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Notas
Notas
1 Este artigo é produzido a partir de pesquisa de doutorado que contou com financiamento da CAPES.
3 Na pesquisa de doutorado de que este texto é parte, defendida em 2019 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCAR/SP, com apoio financeiro da CAPES, sob o título “O envolvimento ativista popular entre o “renomear o vivido” e os dispositivos de normatividade: experiências femininas pelos ativismos populares”, realizei conversas mais aprofundadas com mulheres que possuem experiências ativistas relacionadas a diferentes questões (gênero, sexualidade, raciais, saúde, entre outras) que envolvem os ativismos populares. As interlocuções se cruzam com a observação participante de atos, rodas de conversas e outras atividades organizadas por grupos ativistas nas cidades de São Paulo e Campinas entre os anos de 2015 e 2017.
4 A heterogeneidade das experiências de gênero e os cruzamentos entre dispositivos de subordinação social são temas de destaque tanto em análises feministas pós-estruturalistas, sendo parte delas inspiradas no trabalho de Michael Foucault e Judith Butler, como também entre autoras que se dedicam a investigar o cruzamento entre as assimetrias de classe, gênero e raça, e defendem a importância de se pensar numa perspectiva racial que pode ser nomeada como feminismo negro ( Pacheco, 2013).
5 Francisco de Oliveira (2007) trata essa questão ao mencionar a “subjetivação da desnecessidade do público”, que é uma das dimensões do processo de privatizações: “A privatização do público é a falsa consciência da desnecessidade do público” e se faz presente, de modos diferentes, em todas as classes sociais, ou seja, há um disseminado consenso a ela, algo que tece a dificuldade de elaboração de um dissenso que realmente se coloca como contranarrativa neoliberal e permeie, no sentido de Jacqués Rancière, o coração da política.
6 Rizek (2011), acompanhando algumas transformações recentes em três regiões da cidade de São Paulo (Nova Luz, Jardim Panorama/Parque Cidade Jardim, Jardim Olinda), mostra como a “forma empresa” é incorporada na ordenação das cidade paulistana, apoiando-se em um intenso policiamento espacial, destino de recursos públicos a grupos imobiliários privados e gestão social de favelas, através de agentes como ONGs ou OSs (Organizações Sociais), as quais especializam-se no chamado ¨trabalho social¨.
7 Foram realizadas interlocuções mais aprofundadas com 10 mulheres que vivenciam experiências ativistas, sob diferentes formas, nas cidades de Campinas e São Paulo. Optei por mencionar o grupo com quem elas mantém vínculos sem o nome e de forma genérica, para evitar possíveis identificações e também para diminuir a possibilidade de associações estereotipadas entre a personagem e o grupo a que está vinculada. Por esta mesma razão, não mencionarei nomes de partidos, apenas menciono se existe ou não vinculação partidária, fato que julgo importante em razão do debate em torno da forma partido, o qual se faz bem presente no cenário ativista atual. Todas as ativistas mantém vínculos com agrupamentos (partidos, movimentos, coletivos) que se organizam sob discursos de esquerda; são reconhecidos e se reconhecem sob esta denominação.
8 Política, na formulação de Rancière (1996), remete à uma interrupção ou deslocamento momentâneo numa ordem desigual, algo que causa um profundo questionamento e estabelece um dissenso em relação a uma racionalidade política dominante.
9 No texto “Rebelião do público- alvo: lutas na Fábrica de Cultura, publicado no site “PassaPalavra” por “Dany, Caio, Léo e Taiguara”, há uma reflexão que exemplifica como programas governamentais se aliam a grupos ativistas para partilhar a gestão de problemas sociais, atuando em complexos rituais em que a criação de consenso é que está em jogo. Acesso em agosto/ 2018: http://passapalavra.info/2016/07/108789.
10 Em Rizek, Amore e Camargo (2013), há uma reflexão sobre políticas sociais e os movimentos de moradia, através da análise sobre o programa Minha Casa, Minha Vida.
11 Jesus Ranieri (2000) pondera que alienação e estranhamento são termos interligados e que, nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos de Marx, remetem a momentos diferentes na configuração do trabalho no contexto capitalista. Alienação, ao contrário de um uso que é corrente em muitas interpretações, remete, conforme Ranieri, ao processo de exteriorização, de configuração de uma atividade laboral humana, já o estranhamento é tecido no contexto em que a racionalidade em que o trabalho se dá constrói um distanciamento entre o ato executado e um sentido existencial que considere as necessidades objetivas e subjetivas de quem trabalha. Como frisa o autor estranhamento e alienação são: “um movimento que se desdobra em dois, mas compõem um só momento” ( Ranieri, 2000:74)
12 Althusser traz o exemplo de uma abordagem policial: “ei, você aí” e considera: “Supondo que a cena ocorre na rua, o indivíduo interpelado se volta. Nesse movimento físico de 180o ele se torna sujeito. Por que? As práticas de interpelação são tais que jamais deixam de atingir o ser, o interpelado sempre se reconhece na interpelação. As considerações de Althusser sobre a produtividade direta das interpelações sociais são problematizadas e criticadas por Judith Butler, Tereza de Laurets e também Stuart Hall, nos textos já indicados.
13 A interpretação de Stuart Hall sobre a dificuldade de Foucault em pensar as subjetivações dissonantes difere daquela expressa por outros autores, como Gilles Deleuze (1990), para quem Foucault, em seus últimos trabalhos, teria se concentrado nas dobras (escapes normativos). A interpretação de Deleuze é também partilhada por um conjunto de autora(e)s que trabalham com Foucault (Margareth Rago, Sívio Gallo, Alfredo Veiga-Netto. Trago as considerações de Hall por entender que elas contribuem para uma reflexão mais detalhada sobre “as razões pelas quais os indivíduos ocupam certas posições de sujeito e não outras” (Hall, 2006: 120)
14 Como indicado na introdução deste artigo, os dispositivos raciais conferem diferenças aos modos de regulação do tempo de vida feminino, de modo que há variações no modo como o trabalho doméstico e do cuidado é associado às mulheres brancas e negras. Tal premissa precisa ser considerada, assim como é preciso indicar, também, que as configurações de classe delineiam um cenário em que as mulheres das camadas populares têm, de um modo geral, seu tempo de vida intensamente regulado pelo trabalho doméstico e de cuidado familiar.
15 Laura, ativista em um coletivo de sexualidade e da Frente de Mulheres Negras de Campinas, janeiro de 2016. Os nomes dos partidos e dos coletivos, no caso das ativistas que têm essa vinculação, não são publicizados na pesquisa, diante do intuito de preservar o anonimato das interlocutoras, algo acordado com as mesmas. Pelo mesmo motivo, o nome das ativistas é fictício.
16 Entre ativistas se estabelecem variadas formas de diferenciação social e de assimetrias. Algumas delas são pontuadas na tese de doutorado e serão exploradas em texto futuro.
17 “O envolvimento ativista popular entre o “renomear o vivido” e os dispositivos de normatividade: experiências femininas pelos ativismos populares”. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCAR, com apoio financeiro da CAPES, em maio de 2019.
18 Para a escolha das ativistas interlocutoras da pesquisa, considerei o tempo de envolvimento em ativismos populares, o qual deveria indicar permanência do vínculo, e a não vinculação profissional e/ou remunerada com ativismos populares. São critérios que me permitiram abordar mais facilmente a vinculação entre ativismos e dissidências a normas sociais. Das dez ativistas, cinco são negras. Todas as interlocutoras estudaram em escola pública e são, também, de origem popular, sendo que cinco delas tiveram acesso à universidade pública, uma estuda numa faculdade privada, três concluíram o ensino médio e uma não passou pela alfabetização.
19 A reflexão de Rancière (1996) sobre o movimento operário caminha neste sentido, quando o autor afirma que a maior conquista deste movimento foi tornar público um conflito que, até então, aparecia como algo particular entre patrões e empregados, como se não houvesse nenhum interesse ou vínculo público maior desta relação. Os discursos neoliberais caminham hoje no sentido contrário, tentando particularizar, trazer ao privado, questões que historicamente foram reconhecidas como assuntos públicos. Exemplo expressivo é a alteração da CLT para que prevaleça o negociado (acordos entre agentes locais) sobre o legislado (regra geral).
20 As pesquisas de ( Mioto, 2010; Mariano e Carloto, 2009) indicam que nos discursos irradiados pelas políticas sociais contemporâneas, a família centralizada e a associação entre mulher e cuidado familiar são reforçadas e colaboram na responsabilização dos integrantes da família pelas mazelas que vivenciam, sendo este um traço comum das diretrizes da política neoliberal propagada pelo Banco Mundial ( Maranhão, 2016)
21 Aline Bonetti (2007), ao acompanhar mulheres ativistas em Recife, argumenta que interpretações que associam o envolvimento ativista feminino às atribuições sociais direcionadas às mulheres como mães ou cuidadoras, muitas vezes deixam de observar que acionar o discurso da maternidade para justificar o envolvimento pode ser uma estratégia política para que mulheres justifiquem seu envolvimento em atividades públicas e coletivas sem que passem por constrangimentos em relação ao espaço que conferem em suas vidas para este envolvimento.
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