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“Os novos imigrantes”: construções discursivas sobre haitianos e senegaleses em um jornal do Sul do Brasil 1
“The new immigrants”: discursive constructions around Haitians and Senegalese from the perspective of a newspaper of Southern Brazil
“Os novos imigrantes”: construções discursivas sobre haitianos e senegaleses em um jornal do Sul do Brasil 1
Ciências Sociais Unisinos, vol. 55, núm. 3, pp. 387-396, 2019
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Recepção: 13 Janeiro 2019
Aprovação: 14 Outubro 2019
Resumo: O presente artigo busca compreender como um jornal de circulação regional, o jornal Zero Hora (ZH), constrói discursivamente a figura dos imigrantes haitianos e senegaleses que passaram a ingressar no Rio Grande do Sul entre os anos de 2014 e 2015. Com base em três Especiais ZH, verificou-se que o jornal estabelece construções discursivas variadas em relação a esses indivíduos, trazendo à tona discursos permeados por uma gramática étnico-racial e pelo ingresso no mercado de trabalho.
Palavras-chave: Haitianos, senegaleses, construções discursivas, imprensa.
Abstract: The present article seeks to understand how a newspaper of regional circulation – the Zero Hora newspaper –, discursively constructs the image of the Haitian and Senegalese immigrants, who started to arrive in the Rio Grande do Sul state in 2014 and 2015. Based on the analysis of three ZH Specials, it was verified that the newspaper establishes diverse discursive constructions concerning these individuals, calling attention to speeches permeated by an ethnic-racial grammar and regarding its relations on the labor market.
Keywords: Haitian, Senegalese, discursive constructions, press.
Introdução
Ao analisar a formação histórica do Brasil, é possível perceber que o país vivenciou diferentes fluxos migratórios ao longo dos séculos. De imigrantes europeus a imigrantes caribenhos, verifica-se que as mais variadas nacionalidades e culturas foram capazes de influenciar a sua constituição como território em diferentes períodos. No presente, por exemplo, vê-se um número significativo de imigrantes pertencentes a países integrantes à região sul do globo, assim como do Caribe, cruzando suas fronteiras. Um movimento vivenciado nos dias atuais em decorrência de ondas migratórias diversas, que fizeram com que indivíduos, em conjunto com suas famílias, buscassem no Brasil novas oportunidades.
Nesse contexto, podemos citar os imigrantes haitianos, que começaram a ingressar em terras brasileiras, especialmente a partir de 2010, após o forte terremoto que atingiu seu território, e os imigrantes de origem senegalesa. De fato, segundo Cogo (2014), a segunda década dos anos 2000 passou a chamar a atenção de novos imigrantes para o Brasil, como consequência da crise econômica mundial iniciada em 2008, e da realização de eventos esportivos mundiais previstos no país para os anos de 2014 e 2016. Ou ainda, como no caso dos haitianos, uma consequência das ações realizadas pelo exército brasileiro no país caribenho, ao assumir as tropas das Nações Unidas a partir de 2004, que vieram por estreitar laços geopolíticos entre os países. Indivíduos que, em sua maioria, ingressaram no Brasil pelo estado do Acre e foram realocados para outras regiões posteriormente, em especial para estados pertencentes à região Sul e Sudeste do Brasil. Deslocamentos que, em função de seu volume e suas características, vieram a repercutir em diferentes mídias, possibilitando uma articulação entre esferas do contexto migratório, midiático e social.
Levando em consideração tais aspectos, este estudo busca compreender de que maneira a temática migratória é representada na imprensa na atualidade, tendo como base os imigrantes de origem haitiana e senegalesa, que tiveram um grande destaque na imprensa brasileira. Para isso, foi analisado um jornal de circulação estadual junto ao estado do Rio Grande do Sul, o jornal Zero Hora, com o objetivo de verificar de que forma o jornal constrói discursivamente a figura dos chamados novos imigrantes entre os anos de 2014 e 2015. O período de análise foi estabelecido a partir de três reportagens especiais publicadas sobre o tema em estudo.
Nessa perspectiva, apresentamos um breve referencial sobre a temática migratória para, no seguimento, abordar sobre o método utilizado para a análise das reportagens: a análise de discurso. A escolha da análise do discurso se deu tendo em vista o tipo de material em estudo e os objetivos da pesquisa. Por fim, serão apresentadas as notícias selecionadas, chamando a atenção para os elementos que vêm a destacar e qualificar quem são os novos imigrantes que estão ingressando no Rio Grande do Sul, no caso, os haitianos e senegaleses, segundo a narrativa estabelecida pelo jornal.
Pensando a temática migratória e o contexto em análise
Falar em fluxos migratórios nos leva a pensar em movimentos de entrada e saída de uma região para a outra ou de um país para o outro. Uma ação que pode parecer simples, porém, que é carregada de significados capazes de influenciar o entorno tanto dos que migram, como dos que os recebem. No caso do Brasil, ao longo de sua trajetória histórica, é possível observar diferentes movimentos populacionais ( Zamberlam et al., 2014 ). Dos portugueses, no período colonial, dos escravos, decorrentes da migração europeia desse período, dos imigrantes europeus, entre a metade do século XIX até a metade do século XX, aos imigrantes fronteiriços e oriundos de países africanos e da Coreia do Sul, a partir da última década do século XX, diferentes nacionalidades e culturas se veem presentes nas mais variadas regiões do país (Zamberlam et al., 2014; Patarra e Baeninger, 2006). Formas de deslocamento que consequentemente influenciaram também na constituição do estado do Rio Grande do Sul ao longo de sua trajetória. Por exemplo, de acordo com Maestri (1993), após a fundação do Rio Grande, há registros de diferentes indícios sobre a presença de trabalhadores negros nos mais diferentes locais da região exercendo especialmente trabalhos domésticos ou junto ao campo.
Da mesma forma, ainda no século XVIII, também há registros sobre a chegada dos portugueses, que, além de propiciar o estabelecimento dos primeiros grupos de indivíduos luso-brasileiros, também intensificou o tráfico de escravos como mão de obra para o território ( Maestri, 1993). Além dos portugueses, o estado também registrou a presença de imigrantes de outras nacionalidades europeias, especialmente a partir do século XIX. Registros que apontam que esses imigrantes, em sua maioria, eram de origem alemã e italiana, e que posteriormente vieram a formar colônias na região ( Jardim e Barcellos, 2011).
Porém, novas mudanças passaram a ser percebidas quanto a esses deslocamentos, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, quando se verificou uma diminuição considerável no número de estrangeiros no país como um todo. Realidade que se mostrou presente até a década de 1980, quando o Rio Grande do Sul começou a receber um grande número de imigrantes de países fronteiriços, especialmente do Uruguai e da Argentina (Jardim e Barcellos, 2011). Fluxos que sofreram transformações novamente a partir do século XXI com a chegada de imigrantes de países pertencentes ao Caribe e do continente africano no território. Jardim (2013) mostra como estes deslocamentos contemporâneos no sul do Brasil emergem, no discurso hegemônico, enquanto um “problema social”:
Mesmo que os haitianos representem numericamente menos pessoas, em comparação aos 20 mil uruguaios que historicamente tramitam documentos para fixar residência no RS, ou o grande fluxo de trabalhadores nordestinos nas obras de estádios no sul do país, é a presença de haitianos e, posteriormente a de senegaleses nas cidades industriais no Rio Grande do Sul, que conflagrou uma atenção na qual se agregam elementos diversos; um extremo estranhamento local da presença de pessoas negras em áreas de colonização majoritariamente italiana e alemã, um apelo intenso das entidades religiosas em função do rigoroso inverno e da precariedade com que essas pessoas o enfrentavam ao circular nos lugares públicos, desprotegidos do frio e casos em que essa frequência no mercado informal despertava na ação da polícia local ( Jardim, 2013, p. 74).
Assim, para refletir sobre essas mudanças e fluxos existentes é preciso entender características que estão relacionadas às formas como a migração acontece. Por exemplo, os imigrantes, ao se deslocarem, passam a ocupar papéis e posições distintas como migrantes, o que faz com que eles sejam vistos como: “[...] trabalhadores manuais, especialistas altamente qualificados, empresários, refugiados ou como familiares de imigrantes” ( Castles e Miller, 2009, p. 4, tradução nossa 4). Posições que vem a refletir na forma como esses indivíduos ou grupo de indivíduos são vistos em seus países de destino, tanto pelas autoridades locais, como pela sociedade. Aspectos que fazem com que as clivagens de classe e as dinâmicas econômicas que envolvem os fluxos migratórios sejam destacadas, segundo Castles e Miller (2009).
São formas de designação que, conforme Etcheverry (2016), demonstram que os imigrantes ao ingressarem no território devem ser submetidos a um controle burocrático, encaminhado individualmente ou até mesmo por seus possíveis empregadores, a fim de obter os documentos necessários para sua permanência no novo território. Nesse contexto, pode-se destacar que:
Uma carteira de identidade ou um passaporte tem a capacidade de evocar, transformar e ressignificar os discursos sobre identidade, pertença, inclusão ou exclusão. O documento tem o poder de ampliar o campo discursivo, tanto pelo direito ao pronunciamento que confere ao sujeito – o documento confere existência ao sujeito, lhe dá a palavra – como pelo deslocamento de lugar de enunciação e, consequentemente, de paradigma, que ele implica. A obtenção de documentos implica passar de um “estar fora” a um “estar dentro” do estado-nação, pelo menos no aspecto formal das relações ( Etcheverry, 2016, p. 125).
Laços de pertença que também se sobressaem quando esses imigrantes ingressam no mercado de trabalho, visto que a migração e as questões laborais podem ser divididas:
[...] em dois polos (um mercado de trabalho qualificado e de trabalho de qualidade para trabalhadores nacionais e um mercado de trabalhadores subqualificados ou de menor qualificação técnica e social para trabalhadores imigrantes), essa dupla evolução que governa o fenômeno migratório, constitui o mecanismo que contribui mais fortemente para erigir a imigração em verdadeiro sistema ( Sayad, 1998, p. 106).
Fato que reforça a ideia de que o lugar social desses indivíduos é evidenciado a partir de suas relações laborais formais ao chegar ao país destino ( Cavalcanti, 2015). Divisões e distanciamentos que também podem ser percebidos através de uma gramática étnico-racial, especialmente ao se estudar imigrantes de origem africana e caribenha.
Ao falarmos em gramática étnico-racial, partimos da noção de raça apresentada por Guimarães (2008, p. 66), segundo o qual, raça, enquanto uma construção social, compreende os “[...] discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas, etc., pelo sangue”. Para Guimarães (2008, p. 65), “raças são efeitos de discursos”. Nesta perspectiva, o racismo decorre do significado atribuído à diferença, de modo a instituir um inferior racial. Em relação à etnicidade, esta pode ser entendida como um “[...] resultado da intensa interação entre diferentes grupos culturais” ( Cohen, 1976, p. 96, tradução nossa 5). O resultado de um embate entre grupos étnicos instituídos e grupos políticos e econômicos locais. Uma batalha que faz com que esses grupos étnicos se organizem em diferentes escopos, a fim de conservar e manter a sua essência. Trata-se de um conceito que pode ser entendido como uma linguagem ( Cunha, 1986).
Essas diferenças, no entanto, podem, em muitos casos, ser encaradas de forma negativa, sendo associadas a questões de desigualdade, voltadas, por exemplo, à noção de minorias étnicas ou ainda ao racismo. As minorias étnicas se constituem a partir de indivíduos classificados em uma posição inferior devido aos seus marcadores culturais. São indivíduos que se identificam entre si por compartilharem características étnico-raciais análogas. Já o racismo se apresenta como o resultado de uma prática em que indivíduos ou grupos são inferiorizados em função de marcadores culturais e fenotípicos. Conceito que, no contexto migratório, também pode ser entendido como hostilidade aos estrangeiros, etnocentrismo ou xenofobia (Castles e Miller, 2009).
São características que, na temática migratória, para Frankenberg (2004), podem ser destacadas através do uso de vocábulos distintos que demarcam a noção de grupos, como povos, nações, culturas etc., uma vez que a noção racial pode ser vista de diferentes formas ao longo do processo de ingresso junto aos territórios.
[...] devemos observar que, tal como a palavra ‘raça’ e a expressão ‘termos raciais’ (branquidade, negritude e assim por diante), as palavras ‘cultura’, ‘nação’ e ‘povo(s)’ continuam a ser organizadas por sistemas classificatórios hierárquicos que remontam aos primórdios do projeto colonial da Europa ocidental. No contexto colonial, a denominação das ‘culturas’ e ‘povos’ esteve muito ligada à prática de denominar e marcar uma porção de Outros como seres considerados inferiores aos Eus ‘nacionais’ que procuravam dominá-los. Além disso, esses Outros foram denominados em termos que justificam, pelo menos na cabeça das nações saqueadoras, a legitimidade da colonização ( Frankenberg, 2004, p. 310-1).
Nessa perspectiva, no caso específico dos imigrantes em análise, tanto dimensões étnico-raciais, como as questões relacionadas ao trabalho ganham destaque. Por exemplo, o mercado laboral brasileiro apresentou um crescimento considerável (em torno de 50%) com a chegada de novos imigrantes no país, sendo os haitianos os imigrantes que se apresentaram em maior número deste total no início da segunda década dos anos 2000. Durante este período, o número de haitianos registrados com um emprego formal aumentou em torno de dezoito vezes, sendo a maioria do sexo masculino, na faixa entre 25 e 50 anos ( Cavalcanti, 2015).
No caso dos haitianos e senegaleses que se estabeleceram no Rio Grande do Sul, observa-se que a lógica segue a mesma do perfil vivenciado junto ao mercado de trabalho. Segundo Uebel (2015), eles são homens jovens e adultos alfabetizados que, em muitos casos, apresentam diferentes graus de estudo. Trata-se de pessoas proficientes em diferentes línguas, entre elas o espanhol e o francês, além de seus dialetos locais. Ainda quanto aos haitianos, vale ressaltar que, dentre os casados, há um crescimento de imigrantes do sexo feminino, observada a partir da segunda onda imigratória haitiana ao estado. Características não tão presentes entre os imigrantes senegaleses, em função da religião e das dificuldades enfrentadas no percurso para chegar ao Brasil.
Desta forma, considerando esses elementos, vê-se que os migrantes ao se deslocarem acabam ocupando posições que demarcam uma noção de diferença, o que faz com eles sejam classificados e/ou rotulados a partir de determinados marcadores, sejam eles físicos, culturais, laborais etc. Características que muitas vezes tendem a causar efeitos negativos em seu cotidiano. Assim, tendo em vista essas particularidades, buscamos verificar como o jornal retrata esse contexto através de sua narrativa, sendo capaz de criar distinções ou não entre haitianos e senegaleses, o que faz com que eles sejam chamados de “novos imigrantes” na narrativa jornalística. Assim, para entender esses elementos, é necessário retomar conceitos voltados à noção de discurso.
A imprensa e o discurso
Os meios de comunicação possuem um grande poder simbólico devido a sua função, que está relacionada ao desenvolvimento e à disseminação de informações. Informações que são relevantes tanto para aqueles que a produzem, como para os que a consomem, de acordo com Thompson (1998). Essa característica, consequentemente, faz com que a mídia seja vista por meio de sua finalidade, uma vez que “[...] ela tem o poder de selecionar e criar a pauta, podendo incluir apenas temas que lhe interessam e excluir os que podem vir a contestá-la”. ( Guareschi, 2007, p. 10). Nesse sentido, os contornos da vida social podem vir a ser influenciados de diferentes maneiras, a partir da forma como a comunicação dispõe de seus conteúdos, criando assim discursos de diferentes matizes.
O discurso, dessa forma, pode ser entendido como um enunciado ou um grupo de enunciados que, ao serem concretizados, criam uma interpretação possível, a partir de uma sequência realizada em determinado tempo e espaço. Trata-se de um sistema de significação que traz à tona a noção de formação discursiva, que está relacionada a um conjunto de elementos que faz com que diferentes significados sejam apreendidos, de acordo com o contexto em que um enunciado é proferido. Característica que faz com que a posição ocupada pelo sujeito seja de extrema importância ( Foucault, 1987).
Partindo dessa noção, a análise desenvolvida das notícias busca entender de que forma o jornal estabelece suas construções discursivas sobre os imigrantes haitianos e senegaleses. Para isso, foi utilizado como base a análise do discurso. Assim, para que esse método seja aplicado, é necessário que o analista percorra o texto para, ao longo da leitura, ser capaz de desprender sua discursividade, isto é, o seu objeto discursivo. Objeto a partir do qual ele será capaz de observar os sentidos existentes, criando correlações com diferentes formações ideológicas, trazendo à tona o que se entende como o interdiscurso, segundo Orlandi (2001). Um discurso proferido a partir de diferentes lugares de fala, ou seja, das diferentes posições que os sujeitos ocupam.
Dessa forma, levando em consideração esses conceitos relacionados ao discurso, a formação discursiva e aos lugares de fala, a análise foi conduzida a fim de identificar os seguintes elementos: a) as formas utilizadas pelo jornal para descrever quem são esses novos imigrantes – para isso, buscou-se evidenciar termos, expressões e metáforas utilizadas para os caracterizarem; b) as expressões subentendidas presentes ao longo das reportagens; e c) a apresentação de elementos relacionados à questão migratória e seus desdobramentos, especialmente no que tange a gramática étnico-racial presente.
Porém, antes de partir para a análise desenvolvida, é valido retomar características presentes no jornal em estudo, a fim de compreender o lugar de fala de seus sujeitos, isto é, dos autores das notícias. O jornal Zero Hora é integrante do Grupo RBS, conglomerado midiático considerado líder de mercado na região Sul, tendo em vista sua inserção em segmentos tanto de mídia tradicional, como digital ( Grupo RBS, 2016). Sua origem remonta à década de 1960 antes de fazer parte do Grupo RBS, quando ainda era chamado de Última Hora e circulava não só no Rio Grande do Sul, mas também em outras regiões. Seu nome atual passou a ser utilizado somente em 1964 e sua venda para o Grupo RBS foi consolidada somente na década de 1970, período no qual o jornal passou por remodelações para seguir a estratégia utilizada pelo grupo em seus demais veículos, proporcionando mudanças que vieram a contribuir com sua linha editorial ( Faccin, 2009).
Ademais, o jornal ainda passou por novas readequações e processos de expansão, respondendo às lógicas de mercado presente ao longo dos anos. No aniversário de 50 anos do grupo, por exemplo, ele ingressou no meio digital, através da página ZeroHora.com ( Grupo RBS, 2007). Posteriormente, ele expandiu sua circulação para aplicativos móveis. Nesse contexto, em sua estrutura atual, sabe-se que ele “É editado em Porto Alegre e conta com 17 cadernos, mais de 200 jornalistas, uma sucursal em Brasília e mais de 100 colunistas. O jornal está presente nas redes sociais (Twitter, Facebook, Instagram e Google +)” (Grupo RBS, 2016).
Porém, quando se estuda questões relacionadas à mídia, cabe ainda destacar o poder econômico e político por trás destes empreendimentos. Ainda que este estudo não seja voltado a uma análise de recepção ou especificamente das condições de produção das reportagens, é válido levar em consideração essa dimensão no decorrer da análise das notícias. No caso da Zero Hora, por fazer parte de um conglomerado de comunicação, o veículo tem de manter sua receita através de diferentes recursos, como é o caso da publicidade. Aspecto que faz com que o jornal e, a mídia de modo geral, realize uma cobertura voltada para os acontecimentos que estão em evidência, a fim de manter a sua visibilidade, segundo Junior e Sarmanho (2015). Desta forma, para que isso aconteça, “A escolha de palavras, imagens ou espaços, denota posição, o que é inerente a qualquer instituição que seja detentora de poder e que esteja interessada em mantê-lo” (Junior e Sarmanho, 2015, p. 452). Assim, partindo desse contexto, na sequência, serão analisadas as notícias veiculadas no referido jornal dando enfoque ao discurso produzido.
Os “novos imigrantes” e suas construções discursivas
Para a realização da análise proposta, os anos de 2014 e 2015 foram considerados, a partir do crescimento de imigrantes haitianos e senegaleses que passaram a chegar ao Rio Grande do Sul no período. Nesse recorte temporal, que totalizou 14 meses (de agosto de 2014 a outubro de 2015), foram coletadas 76 notícias relacionadas aos imigrantes haitianos e senegaleses no jornal Zero Hora. Desse total, verificou-se a presença de notícias em seções distintas, sendo uma delas o Especial ZH. No contexto do Especial ZH, três notícias foram veiculadas, notícias que, de forma indireta, proporcionaram um ritmo e deram lógica às demais publicações, exemplificando elementos característicos do contexto migratório: a entrada, o percurso e a saída de indivíduos ao território brasileiro. Aspecto que fez com que essas notícias, veiculadas na seção Especial ZH, fossem as escolhidas para análise neste artigo. São elas: a) Os novos imigrantes, publicada em 16 de agosto de 2014, notícia que relata a chegada de imigrantes de diferentes nacionalidades ao Rio Grande do Sul nos dias atuais; b) Inferno na Terra Prometida, publicada em 7 de julho de 2015, que apresenta as condições dos abrigos utilizados pelos imigrantes africanos e caribenhos ao cruzarem a fronteira no Acre; c) Sonhos partidos, publicada em 4 de outubro de 2015, que noticia o deslocamento desses imigrantes para novos destinos após as dificuldades encontradas no Brasil.
As categorias de análise dos três Especiais ZH em estudo foram definidas com base na chamada do primeiro especial, que redireciona para a reportagem intitulada Novos imigrantes muda o cenário do Rio Grande do Sul. Na chamada, os autores da notícia destacam três aspectos que demarcam a ideia do novo, do diferente: “Nova migração é um movimento recente, mas suficientemente forte para causar modificações econômicas, étnicas e culturais”. ( Rollsing e Trezzi, 2014). Assim, a partir desses elementos, serão destacados a seguir trechos que representam essas mudanças.
A questão étnico-racial e cultural
A primeira categoria a ser analisada está relacionada às mudanças étnico-culturais mencionadas na chamada. Os primeiros exemplos destacam a figura dos imigrantes que vieram a se estabelecer no Rio Grande do Sul no passado e na atualidade. No Quadro 1, foram selecionados trechos que evidenciam esse comparativo.

No primeiro trecho, a dicotomia é apresentada destacando a diferença de nacionalidade entre os povos. Enquanto no século passado via-se a entrada de indivíduos pertencentes ao continente europeu, nesse novo fluxo vê-se a presença de imigrantes de origem africana e caribenha. Nacionalidades distintas daquelas que foram as responsáveis por se estabelecer na região no passa- do. Nesse contexto, percebe-se que o jornal faz uso de uma historiografia ou senso comum relativo à composição e à formação do estado do Rio Grande do Sul, reconhecendo um pertencimento racial singular, branco e de origem europeia ao fazer referência somente a um período histórico vivenciado junto ao estado.
Seguindo uma estrutura comparativa, o texto segue de acordo com o segundo trecho do quadro. Primeiro, os jornalistas chamam a atenção para o fato de que a regiões colonizadas pelos imigrantes europeus prosperaram (apesar deles informarem que esses imigrantes apresentam baixa escolaridade no trecho seguinte); segundo, eles ressaltam que os novos imigrantes que estão chegando à região são negros. Porém, são indivíduos diferentes de seus antecessores, que vieram para o Brasil sob a condição de escravos. No contexto atual, eles possuem escolaridade e migram de regiões urbanas. Esses elementos, assim, trazem à tona a gramática étnico-racial que envolve os deslocamentos atuais: a cor da pele. Nas descrições apresentadas, chama a atenção que somente a figura do negro ganha destaque, e, consequentemente, da discriminação, ao mesmo tempo em que a figura do branco se mantém neutralizada, não dita. Uma ausência que retoma estudos relacionados ao conceito de branquidade, visto como “[...] um lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na dominação racial” ( Frankenberg, 2004, p. 312).
Essa questão da branquidade é reforçada também através da fala de um historiador ao ser questionado sobre o tema migratório, conforme ilustra o quarto trecho. No excerto, os movimentos de branqueamento da população são destacados, salientando a política estabelecida pelo Estado durante esse período, que se mostrou efetiva em um nível discursivo. Assim, com base nos trechos em análise, verifica-se que a relação dicotômica criada destaca a diferença entre continentes e imigrantes de pertencimentos étnico-raciais distintos. Forma encontrada pelos autores das notícias para salientar o perfil dos imigrantes que estão chegando ao Rio Grande do Sul. Além disso, através do comparativo estabelecido, vê-se que, em nenhum momento, outros fluxos migratórios que existiram no estado são mencionados ao longo da reportagem. Movimentos relacionados à presença negra, aos portugueses ou, ainda, aos fluxos mais recentes, ilustrados pelos imigrantes fronteiriços, passam despercebidos. Ou seja, a narrativa estabelecida propõe a construção de um discurso entre passado e presente, entre europeus e africanos, como se a região apresentasse somente descendentes de origem europeia, alemães e italianos em específico, sem dimensionar a diversidade cultural presente na região.
Ainda no que tange à questão étnico-racial presente, além do comparativo entre o passado e presente, é possível verificar trechos que destacam a discriminação e a xenofobia vivenciada nos dias atuais pelos imigrantes. Um embate percebido entre os imigrantes e os descendentes de italianos na região sul, entre os imigrantes e os cidadãos acrianos e entre os próprios imigrantes, conforme os fragmentos que serão apresentados na sequência.
No final do primeiro Especial ZH, o jornal traz o depoimento de uma descendente de avós italianos, atuante de um Centro de Evangelização, localizado em Encantado. Esse Centro, seguindo a narrativa apresentada, dá assistência aos imigrantes em necessidade: “Depois de amparar os italianos, os scalabrinianos atravessaram mais de cem anos de espera para acolher os imigrantes negros da África e da América Central” (Rollsing e Trezzi, 2014). Novamente, ao apresentar o trabalho realizado pela organização, a estrutura frasal estabelecida faz questão de destacar a presença de imigrantes negros de origem africana e caribenha, em oposição aos italianos, mencionados sem a demarcação da cor. Aspecto que vem a corroborar com a noção de branquidade mencionada anteriormente. Em seguida, a reportagem traz à fala da descendente destacando a discriminação:
- No início, tínhamos preocupação com a receptividade porque o italiano, em geral, é racista. Mas quase não tivemos problemas. Usamos o histórico a nosso favor. Dissemos que somos uma comunidade que nasceu da imigração. Por isso, entendemos que o mais justo era receber bem esses novos imigrantes (Rollsing e Trezzi, 2014, notícia publicada em 16/08/2014).
Nessa passagem, a fala da descendente ilustra de forma clara uma característica dos cidadãos da região, segundo a sua percepção e narrativa construída. Porém, nesse caso, a própria situação migratória é utilizada como exemplo para dirimir esse preconceito, uma vez que os antepassados desses descendentes também enfrentaram a mesma situação, ocupando um território pertencente a indivíduos de origens distintas, em outro período. Cabe evidenciar nesse trecho, no entanto, o fragmento “entendemos que o mais justo era receber bem”, destacando um racismo velado e uma espécie de obrigação, uma vez que se estava falando também de imigrantes. Uma questão que ilustra a contraposição entre a noção dos Eus nacionais e dos Outros ( Frankenberg, 2004), ao falar sobre os diferentes processos resultantes dos movimentos migratórios, em especial no período da colonização.
Já com relação aos cidadãos acrianos, percebe-se uma mudança na forma como o preconceito é apresentado, conforme ilustra o trecho a seguir:
Secretário estadual dos Direitos Humanos, [...] afirma que a vizinhança da chácara está incomodada com a ininterrupta presença dos imigrantes, enquanto na área mais central de Rio Branco ‘há medo de disseminação de doenças’. Embora não haja violência, a convivência não tem sido pacífica, com sinais de preconceito e xenofobia despertando.
- Esses pretos só vem para incomodar – disse, furioso, um morador da antes pacata rua do abrigo [...] ( Rollsing, 2015a, notícia publicada em 07/06/2015).
No fragmento exposto, o jornalista expõe a fala indireta do secretário estadual, comentando sobre o medo da propagação de doenças na região, como se, por virem de outros países, esses imigrantes trouxessem consigo enfermidades. Em seguida, fazendo uso da fala do morador local, há o uso da expressão “esses pretos”. A forma como o cidadão local se refere a esses indivíduos reforça o racismo presente nas palavras. Desse modo, percebe-se que observar o emprego dos vocábulos ao longo da notícia se mostra relevante, pois são através dessas expressões que a noção de inferioridade se destaca, salientando assim uma imagem preconcebida em relação a esses imigrantes.
Além desses exemplos, ainda é possível verificar que o embate entre diferentes culturas não se dá somente entre os cidadãos locais e os estrangeiros, conforme apresentado pelo jornal. Ele também pode ser ilustrado através das diferenças entre os próprios imigrantes em análise, segundo a narrativa estabelecida. Essa comparação é ilustrada no segundo Especial ZH:
Haitianos são mais baixos e fortes. Senegaleses são mais altos e magros. Ambos são vaidosos e gostam de se vestir bem, principalmente os haitianos, com marcas famosas e camisas de Messi, Neymar, Cristiano Ronaldo e Michael Jordan. Os dois países foram colonizados pela França e, hoje, oferecem dificuldades, miséria e desemprego aos seus povos. Essencialmente, são negros. Mas os imigrantes do Haiti e do Senegal que chegam ao Acre não se gostam, evitam o contato, preferem a distância. A religião é o pilar dessa segregação ( Rollsing, 2015a, notícia publicada em 07/06/2015).
Nesse fragmento, são as características físicas, visíveis aos olhos do jornalista, que ganham destaque no início do parágrafo. Com isso, percebe-se que entre tantos aspectos que poderiam vir à tona, é o físico desses indivíduos que é utilizado para descrevê-los e diferenciá-los, reforçando a descrição de um estereótipo, de um marcador fenotípico. Segundo a narrativa proposta, trata-se de um grupo de imigrantes que, apesar de apresentarem similitudes quanto a sua aparência, ainda possuem uma falta de entrosamento entre si. Nessa perspectiva, a noção de comunidades e minorias étnicas pode ser evidenciada, uma vez que, mesmo estando em um mesmo ambiente, eles ainda são capazes de se distanciarem. Com isso, nota-se que mesmo ao dividir um espaço e estar enfrentando a mesma situação por serem imigrantes, isso não irá sobrepor seus marcadores culturais no momento de estabelecer laços de pertencimento. Entre os aspectos que criam esses distanciamentos, a religião é apontada como um exemplo, segundo o jornalista.
Mais rígidos e unidos, imigrantes do país africano fazem suas celebrações religiosas muçulmanas no abrigo, com cantos e saudações.
– Não temos problemas com os haitianos, respeitamos eles e as diferenças – diz [o imigrante senegalês], que ajudava o ‘presidente’ dos imigrantes do Senegal – escolhido para liderar o grupo – a organizar os compatriotas no abrigo.
Apesar da declaração conciliadora [do imigrante senegalês], a realidade é diferente. O senegalês manifesta suas rejeições em relação ao haitiano, muitas vezes em gozações ou insultos em francês, praticamente a segunda língua falada nos dois países.
– O senegalês se acha superior ao haitiano. Dizem que descendem de escravos – conta [...], coordenador do abrigo ( Rollsing, 2015a, notícia publicada em 07/06/2015).
Nesse excerto, o jornal constrói uma narrativa em que se evidencia a relação existente entre haitianos e senegaleses no abrigo. Porém, enquanto o jornalista apresenta a fala de um imigrante enfatizando que há uma relação de respeito entre eles, ele também traz a fala do coordenador do abrigo que comenta a forma como os senegaleses se reconhecem, levando em consideração a sua descendência. Com isso, ao mesmo tempo em que o autor da matéria enfatiza as diferenças, ele também faz uso de diferentes argumentos, estabelecendo um jogo de diferentes tipos de interação entre esses grupos que reforça o entendimento da etnicidade ( Cunha, 1986) e da noção do Outro em diferentes contextos.
Além dessas questões, outro ponto que ganha destaque na chamada do primeiro Especial está relacionado às mudanças econômicas que nas reportagens são retratadas através da noção do trabalho e que, como consequência, vem a refletir na forma como esses imigrantes vêm a se estabelecer no Brasil e, posteriormente, na região Sul.
A questão econômica
No contexto migratório, pensar sobre os ingressos de imigrantes junto ao mercado de trabalho pode vir a refletir sobre como esses indivíduos são percebidos nesse novo território. No Quadro 2, são apresentados excertos do jornal relacionados a essa temática.
Nos fragmentos apresentados, o jornal narra como os imigrantes em estudo encaram essa mudança para o Brasil – uma oportunidade de crescimento profissional. No primeiro trecho, eles enfatizam as condições que os imigrantes enfrentam em seus países, reforçando como no Brasil eles têm a chance de ser melhor remunerados. No segundo excerto, apesar deles novamente os compararem aos imigrantes do século passado, o que se destaca é a motivação por trás desses deslocamentos, novamente reforçando as possibilidades de crescimento no Brasil. No terceiro fragmento, os jornalistas apresentam a história de um imigrante em um novo local, destacando os pontos negativos da jornada até se estabelecer na cidade de Bento Gonçalves e os pontos positivos resultantes dessa mudança para o Rio Grande do Sul, trazendo dados concretos referentes ao salário e ao auxilio prestado à família que ainda está no Haiti.
Nesse contexto, independente das características apresentadas e da forma como os fragmentos são construídos, em todos eles os autores mostram como seria a conquista de um sonho para esses indivíduos, especialmente ao chamar a atenção para as dificuldades enfrentadas ao longo do percurso. Isso faz com que o jornal crie uma cadeia significativa em relação a esses indivíduos. Assim, seguindo a construção estabelecida, tem-se uma noção de que esses imigrantes, ao chegarem ao Brasil, buscam se estabelecer e conseguir um emprego para, assim, ter renda o suficiente para ajudar sua família que ainda continua em seu país de origem. Uma característica que reforça o lugar social do imigrante, uma vez que “[...] é o trabalho que funda a existência do imigrante, que lhe confere seu estatuto social, legitima sua presença” (Sayad, 1998, p. 109).

Esse cenário aparentemente idealizado em relação ao território brasileiro, proporcionando a cadeia significativa mencionada anteriormente, está relacionado à forma como ele é vendido para esses imigrantes, segundo a narrativa construída. Tema que devido a sua relevância tornou-se o foco do segundo Especial ZH, intitulado Inferno da Terra Prometida:
Terra prometida é o slogan atribuído ao Brasil pelos vendedores de ilusões que atuam em países berço de imigrantes contemporâneos. Aproveitando o contexto de miséria, desemprego e desesperança de nações como Haiti e Senegal, os agenciadores de viagens estimulam as migrações ( Rollsing, 2015a, notícia publicada em 07/06/2015).
Nessa reportagem são abordadas as dificuldades enfrentadas pelos haitianos e senegaleses ao chegarem ao Acre, porta de entrada da maioria desses indivíduos no Brasil. Dentre as dificuldades enfrentadas, chama a atenção para o local em que eles são colocados, o oposto da imagem vendida no Exterior.
[...] no abrigo disponibilizado pelo governo do Acre, encontram uma morada emcondições desumanas. Superlotação, colchões úmidos e semidestruídos, mau cheiro, esgoto, banheiros inutilizáveis e doenças.
[...].
O local étomado por sujeira, banheiros inutilizáveis, esgoto corrente a céu aberto, mau cheiro. Os colchões estão velhos, rasgados e carcomidos.Os imigrantes dormem amontoados e na umidade.Doenças se proliferam. ( Rollsing, 2015a, grifo nosso, notícia publicada em 07/06/2015).
Nesses fragmentos, verifica-se uma presença maior do jornalista nas descrições, chamando a atenção para uma narrativa em um tom mais literário. Porém, apesar disso, ele faz questão de destacar o papel do estado do Acre nesses movimentos, a partir de sua relação com a administração dos abrigos. De acordo com a reportagem, os abrigos não estão em condições de receber hóspedes, levando em consideração os adjetivos utilizados para descrever o local: condições desumanas, colchões unidos, mau cheiro, sujeira etc. Subentende-se, com isso, que os imigrantes que ali chegam não são tratados como se deveria, pois não recebem o mínimo de assistência, nem sequer um local em condições habitáveis, destacando novamente a noção de inferioridade enfrentada por eles ao chegar no Brasil. Condições que após o deslocamento desses imigrantes para outras regiões são amenizadas, porém, que continuam presentes no mercado de trabalho:
– Eles têm muita facilidade para o trabalho, são honestos, disciplinados e não reclamam. Aprendem rápido, inclusive o idioma – diz a gerente de Relações Humanas [de empresa de móveis].
São 15 na fábrica, todos homens: dois costureiros, um contador, um pintor e os demais, marceneiros (Rollsing e Trezzi, 2014, notícia publicada em 16/08/2014).
Nessa passagem, são listadas características que qualificam esses imigrantes, características que são atribuídas a sua personalidade. No entanto, é a necessidade de elencar essas qualidades que ganha destaque no trecho, uma vez que é como se tais particularidades não fossem esperadas desses indivíduos. Se, por eles serem estrangeiros e de origem haitiana e senegalesa, eles não pudessem ser honestos e disciplinados como qualquer pessoa ou outro empregado da empresa. Aspectos que suscitam novamente a noção do preconceito presente, fortalecendo a oposição existente para com o Outro.
Além disso, a narrativa destaca a presença masculina entre os imigrantes, visto que todos os empregados mencionados são homens. Quanto aos cargos ocupados, ele também especifica as posições ocupadas na empresa e, indiretamente, a formação desses indivíduos vem à tona. Entre os citados, somente o contador prevê a necessidade de uma formação complementar, uma vez que os demais imigrantes passam a assumir cargos que não exigem uma formação em específico. Esses aspectos retomam, assim, o que foi visto em termos teóricos, chamando a atenção para o perfil dos imigrantes e para a visibilidade e presença desses grupos junto ao mercado de trabalho, ao ocupar posições que exigem baixo grau de qualificação na maioria dos casos.
Essa questão novamente é reforçada no terceiro Especial ZH, intitulado Sonhos partidos, quando o jornalista salienta as dificuldades enfrentadas pelos haitianos e senegaleses, destacando a questão laboral:
Acredito que a redução de imigrantes passa pela frustração deles, até de exercer um serviço pesado para o qual não foram capacitados. Muitos têm formação superior, a gente vê arquitetos e advogados pintando paredes ou na base da indústria. Hoje, existe um movimento de saída da cidade. Para essas pessoas, realmente acredito que o sonho não se tornou realidade – diz [prefeito] de Bento Gonçalves ( Rollsing, 2015b, notícia publicada em 04/10/2015).
Nessa passagem, o jornalista traz a fala do prefeito para enfatizar a saída desses imigrantes para outro local, em função das condições encontradas no mercado de trabalho do Rio Grande do Sul, estabelecendo um ciclo de início, meio e fim dessa jornada. Segundo o trecho, esses imigrantes não concretizaram seus sonhos no Brasil, tendo em vista que os empregos aos quais tiveram oportunidade não superaram suas expectativas ao considerar suas qualificações profissionais. Aspecto que em nenhum momento fez com que eles negassem a aceitar trabalhos pesados, com base em outras matérias publicadas pelo jornal. Nesse contexto, percebe-se como o trabalho expõe esses imigrantes e tende a influenciar a maneira como eles são percebidos pela sociedade local, estabelecendo diferentes formas de pertencimento.
Porém, apesar dessas particularidades, cabe salientar que, junto aos empregadores, os haitianos e senegaleses sempre são percebidos de forma positiva, se for levado em consideração à forma como o papel das empresas é estabelecido pelo jornal:
Se os imigrantes foram alcançados pelo desemprego, crise e violência, ainda há faces positivas da presença deles no Brasil. Os empresários estão satisfeitos com o comprometimento dos forasteiros. Assumem serviços pesados que, até então, estavam vagos devido ao desinteresse do brasileiro que conquistou qualificação e ascensão financeira.
- Tivemos redução de pessoal em 2015, mas os chefes da fábri-ca sempre procuraram preservar o emprego dos 15 senegaleses que estão conosco. Gostam do trabalho deles, são habilidosos – diz [...] gerente de recursos humanos [...] ( Rollsing, 2015b, notícia publicada em 04/10/2015).
Nesse fragmento, a questão da mão de obra vem à tona e, da forma como é abordada, passa a ser vista então como um jogo de contrapartidas e benefícios entre empregadores e imigrantes, sendo os empregadores, no caso, os grandes beneficiários da situação que se apresenta, visto que, no mercado presente, não há mão de obra nacional para ocupar as vagas ofertadas.
Assim, partindo dos trechos analisados, verifica-se que as temáticas abordadas nos três Especiais dão ritmo e criam um entendimento sobre a representação dos fluxos imigratórios em estudo. Porém, mesmo que as notícias não tenham apresentado uma linearidade em termos de conteúdo ao longo dos Especiais, é possível notar a construção de um ciclo, com início (determinado pela chegada dos imigrantes), meio (mostrando as dificuldades enfrentadas, especialmente junto ao Estado do Acre após a sua chegada) e fim (marcado pela saída desses imigrantes para outros destinos). Uma narrativa marcada por uma gramática étnico-racial e pelo ingresso racializado desses imigrantes no mercado de trabalho no Rio Grande do Sul.
Considerações finais
Considerando os três Especiais ZH em análise, foi possível perceber que o jornal, no decorrer das reportagens, focalizou-se nas diferentes dimensões discursivas presentes nesse novo fluxo migratório vivenciado no estado do Rio Grande do Sul entre os anos de 2014 e 2015. Ele foi capaz de criar narrativas que mostram que os haitianos e senegaleses são indivíduos que buscam, ao migrarem, novas oportunidades. Oportunidades que poderão contribuir para sua qualidade de vida, bem como de sua família, com os quais, mesmo longe, não perdem o contato e auxiliam enviando recursos financeiros. Indivíduos que não se mantém inertes, pois estão em constante movimento caso não estejam satisfeitos com a realidade que os cercam, um dos motivos que fizeram com que eles viessem a se estabelecer no Rio Grande do Sul após a sua chegada. Indivíduos ligados as suas origens étnicas e culturais, o que faz com que mantenham suas tradições, seja através de sua religião ou outros fatores, mesmo que elas os distingam dos demais e façam com que eles estabeleçam novos grupos no território brasileiro. Indivíduos que se tornam vítimas de agenciadores que os vendem uma terra prometida, mas que, em nenhum momento, desistem e deixam de trabalhar.
Com base nessas percepções, é possível argumentar que o jornal constrói um discurso social marcado pela figura do imigrante negro, qualificado profissionalmente, que busca no Brasil a realização de um sonho. Grupos formados em grande parte por homens, em idade laboral, que buscam ajudar suas famílias. Nesse contexto, a partir das notícias apresentadas, vê-se a construção de um cenário, atenuando as adversidades resultantes desses processos, principalmente a partir do primeiro Especial ZH. Uma construção que expõe parte da cultura local, tendo em vista o comparativo utilizado em diferentes trechos para ilustrar que o Rio Grande do Sul fora ocupado por imigrantes de origem europeia no passado. Locais que agora são também o destino dos imigrantes do Haiti e do Senegal, imigrantes capazes de provocar mudanças no cenário até então estabelecido na região. Essa dicotomia, entre passado e presente é a que mais evidencia a gramática étnico-racial que envolve esses novos fluxos, em função dos marcadores culturais atrelados a esses processos distintos. Marcadores que, consequentemente, são responsáveis por outros pontos de destaque no jornal: (1) a questão do racismo e da discriminação, assim como (2) a designação como mão de obra não qualificada junto ao mercado de trabalho no Rio Grande do Sul.
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Notas
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