Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar algumas práticas de cuidado de pessoas com transtorno mental. Estas práticas estão ancoradas em apoio social desenvolvido durante a escuta e discussão de fatores estressantes (a maior parte deles resultante de ausência adequadas condições de vida) que contribuem para o enfrentamento do estado de adoecimento. A partir de observação direta de sessões de Terapia Comunitária nos bairros de Engenho do Meio e Brasilit em Recife, Pernambuco, tive a oportunidade de examinar como estas práticas alavancam o apoio social entre os participantes, promovendo desta forma importantes formas de resiliência que ajudam a mitigar os danos do sofrimento psíquico. A metodologia utilizada apoia-se na utilização de métodos qualitativos, com observação direta, entrevistas semiestruturadas e, ainda, a construção de indicadores de redes sociocentradas das pessoas participantes da roda de terapia.
Palavras-chave: Apoio SocialApoio Social,Transtorno MentalTranstorno Mental,Terapia ComunitáriaTerapia Comunitária,Redes SociaisRedes Sociais.
Abstract: This article aims to present some practices for people with mental health problems. These practices are anchored in social support developed through the hearing and discussing the stress factors (mainly resulting from the lack of adequate social condition of life) that contribute to recover from these mental disorders. During the direct observation of the so-called Communitarian Therapy in the Neighborhoods of Engenho do Meio and Brasilit in Recife, Federal State of Pernambuco I had the opportunity to examine how these practices trigger social support between the participants, promoting thus important forms of resilience to cope with suffering. The methodology used employs qualitative methods, with direct observation, semi-structured interviews and also the construction of indicators of socio-centered networks of people participating in the Communitarian Therapy activities.
Key words: Social Support, Mental health disorder, Communitarian Therapy, Social Network.
Artigos
A terapia comunitária enquanto instrumento para a construção de práticas de cuidado: uma abordagem a partir das redes sociais
Community therapy as a tool for building care practices: an approach from social network
Recepção: 13 Dezembro 2018
Aprovação: 09 Outubro 2019
“... entrara na casa do Zé e não percebera... Este não é apenas um refrão com que se iniciam as terapias comunitárias. É a metáfora que nos assegura de que participamos de uma nova forma de se trabalhar o sofrimento em comunidade ao mesmo tempo em que nos tratamos ao dela tratarmos” 2
O que se segue tem por objetivo apresentar algumas reflexões sobre práticas de cuidado para pessoas com transtorno mental que têm por instrumento principal a construção do apoio social através da escuta. Pessoas que se reúnem e, animadas por um moderador, expõem seus problemas, suas angústias, compartilham o sofrimento. Pessoas pobres que buscam o alívio de seu sofrimento no ombro amigo, daquele que, também com problemas, escuta, pensa junto, busca caminhos para enfrentar a dura jornada da vida. Temos por objetivo, a partir de dados de pesquisa empírica levantados em duas comunidades de baixa renda da cidade do Recife, buscar nas falas dos participantes daquelas rodas de terapia algumas respostas sobre o enfrentamento do sofrimento, da busca do cuidado através do apoio e das sociabilidades cotidianas.
Este artigo é o resultado de uma longa pesquisa de campo, iniciada ainda como estudo exploratório em Fortaleza e Recife, com a primeira aproximação da Terapia Comunitária. Depois, procedemos a uma intensa investigação em comunidades da cidade do Recife, com duração de cerca de 10 meses. Neste processo, realizamos entrevistas semiestruturadas com participantes das rodas de terapia (animadores e participantes em geral); aplicamos questionários com os participantes das rodas, com utilização da metodologia da Análise de Redes Sociais, com o objetivo de reconstruir os sociogramas e as práticas de sociabilidades das pessoas envolvidas; finalmente, acompanhamos as reuniões das rodas de terapia – que aconteciam semanalmente – por todo o período da pesquisa de campo. Utilizo, por conseguinte métodos de análise mistos, com importante destaque na análise do discurso dos participantes, mas também a partir da observação direta, dos diversos índices de sociabilidades que foram construídos a partir da participação nas rodas de terapia: expressões corporais, interações entre os participantes, os processos de inserção destas pessoas em seus territórios, com diversos acontecimentos vivenciados durante as tardes compartilhadas durante o período da pesquisa de campo 3.
O primeiro contato com a técnica de terapia comunitária aconteceu quando de um almoço na casa do Padre Rino, no bairro de Bom Jardim, Fortaleza 4. Lá tomei conhecimento de que havia algo diferente do que conhecia nas experiências de pesquisa acadêmica em comunidades de baixa renda. Tendo trabalhado em diversos locais, vivenciei a imensa capacidade de organização popular, em seus diversos aspectos: lúdico-recreativos, de assistência, de ajuda mútua, de luta política. Também experienciei várias práticas visando a produzir bens e serviços para a comunidade, com maior ou menor participação de seus moradores: horta comunitária, escola comunitária, farmácia popular (a partir de remédios caseiros e uso de ervas), padaria comunitária... Mas ainda não tinha presenciado a prática da terapia comunitária. É verdade que se trata de um movimento já relativamente consolidado, e a experiência ultrapassou há muito as fronteiras de Fortaleza, a casa de quatro varas do Prof. Adalberto Barreto. Mas para mim era algo inédito, novo, e o sabor típico da curiosidade, naquele almoço na casa do Padre Rino prenunciava experiências ainda muito fortes. Nesta casa se encontra a Sede do Movimento de Saúde Comunitária de Bom Jardim. Sentado à mesa, antes do almoço, ia o Padre Rino me explicando das atividades da associação, das práticas de terapia comunitária que ele, enquanto religioso e também psiquiatra, introduziu. Durante o almoço, entre uma conversa e outra, o Padre Rino explica com detalhes o trabalho que desenvolve na comunidade de Bom Jardim. Já tendo ciência da minha pesquisa, o Padre Rino direciona a sua conversa para as atividades do movimento comunitário direcionadas para alívio do sofrimento psíquico. Sou apresentado então à prática da terapia comunitária.
O bairro de Bom Jardim localiza-se na periferia de Fortaleza, tem cerca de quarenta mil habitantes 5; como em todos os bairros de periferias de grandes cidades brasileiras, é habitado por populações carentes: baixos rendimentos, ocupando moradias com condições inadequadas, localizadas em ruas não pavimentadas, sem sistema de drenagem, coleta de lixo deficiente, enfim, sem as facilidades da vida urbana que são oferecidas na cidade visível, aquela dos turistas, dos cartões postais, dos moradores mais privilegiados. Como também acontece nestas áreas, a dura vida resulta em populações vivendo em situações diversas de risco: crianças e adolescentes sem estrutura familiar adequada e vivenciando muitas vezes situações de violência, abuso em seu ambiente doméstico; desemprego e alcoolismo dos pais; situação de carência e de fragilidade que me são bastante conhecidos. Mas há também a fragilidade resultante da dureza da vida que reverbera no equilíbrio psíquico: incertezas quanto ao futuro, da distante perspectiva da felicidade, derrotas e frustrações vividas repetidas vezes.
A técnica da terapia comunitária pode ser descrita, brevemente, como um compartilhar do sofrimento, da escuta das vivências do outro, da ajuda e encontro de um ombro amigo. É fundamentalmente uma experiência de compaixão, de se compadecer do sofrimento do outro, ao mesmo tempo em que ampliando a sua experiência para o enfrentamento de seus próprios problemas. Foi-me apresentado um livreto Terapia comunitária: cantos, dinâmicas e poesias (2007), um instrumento auxiliar nas sessões de terapia comunitária. No dizer do Padre Rino, na apresentação do livro, “o canto, a poesia e a sabedoria popular serão estímulos para gerar a vontade de mudança, lembrando a importância de cuidar de si, oferecendo um espaço de revitalização da esperança que inclusive muitos militantes dos movimentos sociais também precisam”. A publicação serve de instrumento auxiliar na condução das sessões de terapia comunitária, dirigidas por terapeutas treinados 6, muitos deles participantes do movimento popular e moradores da comunidade. Canções populares, parábolas, poesias conduzem à reflexão de diversas situações de sofrimento psíquico (os motes, como por exemplo, abandono, depressão, medo, solidão...).
Neste mesmo dia tive a oportunidade de acompanhar uma sessão 7. O espaço se localiza nos fundos do CAPS V de Bom Jardim 8: uma palhoça circular, ampla e ventilada, com espaço para acomodar comodamente cerca de 50 pessoas. O público é variado: pessoas adultas, adolescentes, pessoas idosas. Não é possível - a partir das falas dos que participam mais ativamente - ter mais informações sobre quem são estas pessoas. É, entretanto, visível o fato de que alguns estão mais confortáveis, indicando que são frequentadores assíduos, e outros tímida e retraidamente observam, talvez em uma primeira aproximação. Há um fluxo de pessoas que entram e saem, indicando uma relativa flexibilidade na condução do processo. A sessão dura aproximadamente duas horas.
A sessão é conduzida por duas pessoas, uma delas organizando as falas, e a outra conduzindo as canções
9. A sessão é iniciada
10. Há o momento das falas, entrecortadas por músicas, mas ainda com o silêncio dos que ouvem, dos que simplesmente cantam e compartilham a emoção daquele que expressa o seu sofrimento. Várias falas
11:
Uma pessoa do sexo feminino, de meia Idade que ex-pressa o medo pelo que lhe pode acontecer com o seu adoecimento; que sofre com o preconceito das pessoas;
Outra mulher, também de meia idade, visivelmente emocionada, fala de seu sofrimento, da sua angústia, do seu corpo adoecido (artrose). A mediadora consola, e diz que ela pode chorar sem vergonha. Segue-se uma música (“encosta tua cabecinha no meu ombro e chora... e conta logo tuas mágoas todas para mim...”)
Mais outra pessoa, também do sexo feminino: depres-são, insônia, está na lista de espera do CAPS e participa dos grupos da Igreja;
Uma senhora, reclamando de perturbação na cabeça, pensamentos ruins; ouve vozes e tem visões; quer remédios; o animador, que acompanha a terapeuta inicia uma música (“tristeza, por favor, vá embora...”)
Mais uma mulher, desta vez uma pessoa jovem. De-pressão, vontade de chorar, sem razão para viver. Sentimentos negativos que a perseguem. Outra musica (“Viver e não ter a vergonha de ser feliz...e a vida, é bonita, é bonita e é bonita...”)
Seguem-se ainda outros relatos, até que o terapeuta pede ao grupo que escolha um caso, a ser discutido e aprofundado por todos. Este é o momento da escolha do tema, seguido da contextualização e da problematização 12. O grupo escolhe discutir o relato da jovem mulher, acometida por desejos suicidas. Ela retoma o seu problema, acrescentando detalhes e respondendo a perguntas do grupo. A fala retorna ao terapeuta, que tenta sintetizar os diversos discursos (da jovem mulher, dos outros participantes), introduz os motes do abandono 13 e desespero 14, convidando todos à reflexão. Neste momento eu me retiro da sessão.
As ideais centrais que estruturam a prática da terapia comunitária têm origem nos trabalhos do Professor Adalberto Bezerra, da UFC (Universidade Federal do Ceará). O Professor Bezerra, diante de problemas importantes na assistência a populações de baixa renda, experimenta em uma comunidade carente de Fortaleza novas práticas de cuidados com a saúde mental. Estes cuidados têm por ingrediente básico a escuta, animada por terapeutas leigos. A experiência tem início em 1987 na favela do Pirambu, na capital cearense 15. Diante de manifestações de profundo sofrimento psíquico e da incapacidade de se prover uma adequada atenção por parte do setor público, inicia-se uma série de experiências na tentativa de, a partir da escuta e da solidariedade, coletivamente se buscar o alívio para o sofrimento psíquico. A terapia comunitária se apoia na ideia de que seja possível, a partir da organização comunitária e do envolvimento de algumas pessoas com formação relativamente simples e acessível, instrumentalizar técnicas de escuta que possibilitem às pessoas enfrentar com mais serenidade o sofrimento psíquico. Que o apoio social resultante inclusive promova a resiliência a crises cotidianamente enfrentadas pelas pessoas.
Pessoas em sofrimento buscam alívio em práticas de cura que promovam o bem-estar. Cuidam-se, na medida em que instrumentalizam os recursos disponíveis para a cura. Cuidar de si significa, grosso modo, o estabelecimento de práticas de vida saudáveis, de um lado, e a busca de soluções para ocorrências de desorganização do corpo e da mente que provocam o adoecimento. Trata-se, como percebemos, de uma definição muito frouxa, que contém pelo menos dois ingredientes: (a) os significados de doença e de enfermidade, e (b) práticas de cura. Os dois remetem a um campo complexo de símbolos, caracteristicamente ancorados na singularidade de cada cultura, que ordenam as práticas e as relações das pessoas com o mundo e com seus semelhantes. Cabe considerar, em primeiro lugar, que a doença assume um significado particular, distinto da concepção mais geral de enfermidade, esta remetendo à crença pelo individuo que existe em seu ser algo que desorganiza o seu bem estar, algo, consequentemente que é passível de uma explicação. A doença, por sua vez remete a causas, a uma etiologia conhecida do que provocou o desconforto 16. Desnecessário dizer que a partir da modernidade conceitos de doença e enfermidade ligam-se diretamente a um discurso médico, em práticas que, a partir de técnicas de escuta, buscam ordenar os sintomas da enfermidade em um quadro de explicação biológica. ( FOUCAULT, 1975)
Mas não existe um sistema de cura exclusivo, embora normalmente se constate um dominante. Sociedades modernas, como vimos, têm a base classificadora de doenças (e, por conseguinte, um sistema de práticas de cura), orientada a partir da biomedicina; mas convivem – e com frequência cada vez mais importante – com outras práticas, ditas alternativas ou complementares, com discursos distintos, modelos etiológicos particulares, e técnicas específicas 17. Ao lado deste complexo e diversificado discurso também não podem ser esquecidas as narrativas apoiadas em uma história mágica e religiosa: doenças e situações de desconforto também podem ser interpretadas como desorganizações do espírito. Estas particularmente significativas para as construções discursivas da saúde mental 18.
As pessoas buscam desta forma, soluções para o desconforto do adoecimento em diversos campos de saberes, muitas vezes combinados. Assim, por exemplo, em uma situação de sofrimento psíquico, pode-se procurar ajuda em uma consulta com um psiquiatra, e ao mesmo tempo em uma visita a um terreiro de candomblé ( RABELO, 2001). Estas trajetórias são descritas como itinerários terapêuticos 19:
A ideia de itinerário terapêutico remete a uma cadeia de eventos sucessivos que formam uma unidade. Trata-se de uma ação humana que se constitui pela junção de atos distintos que compõem uma unidade articulada. Aqui, novamente, temos dois aspectos a observar: primeiro, o itinerário terapêutico é o resultado de um determinado curso de ações, uma ação realizada ou o estado de coisas provocado por ela. Estabelecido por atos distintos que se sucedem e se sobrepõem, o itinerário terapêutico é um nome que designa um conjunto de planos, estratégias e projetos voltados para um objeto preconcebido: o tratamento da aflição ( SOUZA, 2003).
Os assim chamados itinerários terapêuticos se organizam a partir de dois momentos: (a) repertórios de experiência, e (b) recursos mobilizados. As pessoas orientam suas ações a partir da opões que lhe são disponíveis, e estas se apresentam a partir do que conhecem da realidade. A realidade é lida dentro um quadro de conhecimentos presentes em cada biografia, acumulados durante as experiências do viver cotidiano. Esta ideia, a de repertórios de experiência, a princípio se aplica para a tomada de decisões as mais variadas possíveis, desde aquela trivial de escolher um cardápio em um restaurante (combinam-se neste caso os gostos e recordações dos sabores dos pratos já experimentados, o preço e outras considerações mais específicas, como por exemplo, da adequação de um determinado alimento ao estado de saúde, ou a expectativas sobre a qualidade desta comida e suas qualidades nutricionais), até a da escolha de uma prática terapêutica. Buscam-se, desta forma, em acontecimentos passados similares, orientações para a tomada de decisão sobre que providência tomar para o alívio do desconforto da pessoa ou de seu familiar.
Mas nem sempre as experiências pessoais são suficientes, as pessoas mobilizam outros recursos, neste caso informação, a partir de seus círculos sociais - os repositórios de fontes de informações - que naquele momento de angústia são importantes para a decisão de busca de ajuda. Recursos, então, dizem respeito, a informações sobre possíveis soluções para aquele problema de saúde vivido 20. Torna-se claro, desta forma, que o uso da metodologia das redes - em especial aquele orientado para a reconstrução dos círculos sociais e estruturação de capital social - é um forte instrumento teórico-metodológico para estudo dos itinerários terapêuticos.
Do ponto de vista prático, o aporte de capital social disponível para as pessoas se traduz em Apoio, que provém essencialmente das interações sociais, dos campos de sociabilidade inscritos na estrutura das redes dos atores. As formas de recursos acessadas são, entretanto, múltiplas, e os padrões de sociabilidade que originam a mobilização dos recursos, também. De início, podemos assinalar que os efeitos do apoio sobre o indivíduo são de duas ordens: (a) aqueles ligados diretamente à melhora do bem estar, de quem é o receptáculo do apoio, de um lado, e (b) os efeitos amortecedores 21 sobre os riscos de adoecimento, ou do agravamento das condições de saúde, de outro ( CHEUNG, 2000). Quer dizer, efeitos de natureza preventiva. Pessoas que têm laços principalmente ligados ao preenchimento de necessidades afetivas e de sentimento de pertença a um grupo, a uma comunidade, apresentam maior resiliência, tanto no enfrentamento da doença quanto na resistência ao stress e consequente adoecimento. A literatura também classifica apoio social em cinco tipos:
1. Socialização e companheirismo . Pessoas com quem eu saio, que pertencem aos mesmos clubes ou grupos que eu, com quem eu convido, e que também me convidam, e com quem eu converso no telefone; 2. apoio emocional . pessoas com quem eu compartilho meus sentimentos mais pessoais e com quem eu conto quando preciso; 3. conselhos e orientações . pessoas com quem eu consulto sobre decisões importantes, cujos julgamentos eu respeito e que me são úteis por sua experiência; 4. ajuda tangível . Pessoas que me emprestam ou me dão bens e serviços, como empréstimo de dinheiro, uma carona, ajuda com meus filhos nas tarefas cotidianas; 5. apoio na construção de minha autoestima. pessoas que me ajudam a ter mais autoestima mostrando-me que fiz as coisas competentemente e que, portanto, tenho valor. (GOTLIEB,1985: 297).
Os recursos de apoio mobilizados através das redes têm origem em espaços de sociabilidade diversos, o que significa, de um lado, que deve ser levada em consideração a estrutura das redes onde os atores se localizam e, por outro, a qualidade destas relações, visto que pode acontecer o fato da existência de posições estruturais semelhantes entre atores, mas com capacidade de mobilização de recursos diversos. Regra geral, entretanto, há o pressuposto de que pessoas com estruturações de redes ancoradas em círculos não multiplexos 22 de sociabilidade têm mais chance em acessar recursos mais diversificados que entre pessoas com campos de sociabilidade multiplexos, de um lado; que, por outro, redes sociais de populações vulneráveis como é o caso daquelas de pessoas com transtorno mental – são menos densas e consequentemente menos funcionais ao recrutamento de recursos. Disto se conclui, metodologicamente, que importa estudar, de um lado as características estruturais da rede (densidade, centralidade, multiplexidade, entre outras), e também a qualidade destas relações 23.
Partimos do pressuposto de que as redes sociais de pessoas com transtorno mental são sensivelmente diferentes da média dos indivíduos em uma sociedade considerada. Este fato é relativamente consenso na literatura. Em casos mais extremos, mesmo em situações de não asilamento, verificam-se quadros de exclusão bastante graves. Regra geral, a depender da cronicidade e do tempo de adoecimento, a perdas dos laços sociais talvez seja um dos efeitos mais importantes do adoecimento. Perda essa que se reflete tanto no empobrecimento da vida cotidiana destas pessoas, de um lado, como também na relativa fragilidade decorrente da capacidade reduzida de mobilizar recursos, tão importante como vimos para o enfrentamento do sofrimento psíquico.
Estas questões são centrais para o nosso estudo, quando da observação de rodas de terapia na cidade do Recife. O que nos interessa, neste movimento, não é exatamente a eficácia desta técnica terapêutica, mas o seu conteúdo associativo, ancorado na comunidade, com participação ativa de seus membros 24. O que significa que exista a possibilidade de o movimento de terapia comunitária ligar-se a outras práticas associativas; que estas práticas são o componente central 25. Assim, grupos que se formam em sindicatos, associações de moradores, clubes de mães, Igrejas de denominações diversas são exemplos interessantes do vigor associativo. Há um eixo central neste trabalho, o da terapia, “uma rede de conversa, onde são trocadas informações. É a transformação da dor em solidariedade 26”, que também se complementa com as outras atividades acima descritas, objetivando o resgate da autoestima e o consequente empoderamento dos indivíduos no enfrentamento das constantes situações de risco que enfrentam no seu cotidiano marcado pelas precárias condições de vida. Como consequências, a resiliência adquirida para o enfrentamento do stress emocional, mas também o empoderamento social, que se traduz na maior capacidade de organização comunitária, na construção de uma sólida sociabilidade secundária (traduzida em movimentos associativos) 27.
Nossa questão central se liga diretamente aos processos de formação de sociabilidades primárias e secundárias que estão presentes nos grupos de terapia comunitária, fornecendo a seus participantes instrumentos para o enfrentamento de adversidades, inclusive aquelas relacionadas com questões de saúde mental. Enfrentamento que se dá na ótica de construção de círculos sociais, com participação de usuários, familiares, grupos associativos e outros atores inscritos na comunidade.
As práticas de terapia comunitária orientam-se para a busca de apoio social entre seus participantes, que podem bem ser resumidas em um mote frequentemente empregado nos fechamentos das rodas de conversa, as pessoas em um círculo, abraçadas, entoando o refrão: “tô balançando, mas não vou cair”. Não cair significa estar apoiado no outro, compartilhando os problemas e os desafios da vida cotidiana 28. Temos por hipótese que os laços formados pelas pessoas no compartilhar de seus problemas não se limitam àqueles formados nos encontros semanais, mas podem se estender com vínculos de amizade e interações vividas em ambientes domésticos e o partilhar de espaços públicos, como as Igrejas, Associações e Clubes de convivência. Pensamos que as rodas de terapia podem se constituem em um relé social 29 que aciona as pessoas para novos espaços de sociabilidade. Não exatamente a partir de novas pessoas que se adicionam à rede, mas inclusive a partir do reforço de laços mais antigos, que são revigorados no convívio com a Terapia. Mesmo assim, temos que considerar o fato de que estas pessoas necessariamente não aumentem seus laços. O fato de o adoecimento impingir aos que sofrem estigma e consequente empobrecimento dos laços deve ser considerado; as rodas de terapia para estes, portanto, podem não implicar em ampliação dos laços de sociabilidade.
Durante aproximadamente dez meses, no ano de 2013, acompanhamos 30 dois grupos de Terapia Comunitária localizados no Distrito Sanitário IV da Cidade do Recife. Estes grupos têm algumas características. Seus membros moram em bairros de forte expansão imobiliária, localizados próximos a importantes equipamentos públicos (Universidades, Tribunais de Justiça, Hospitais e outras instituições públicas federal e estadual). Há, com efeito, nestes dois bairros, a presença cada vez mais importante de populações de classe média, atraídas pelos preços de imóveis comparativamente competitivos em relação ao restante da cidade, e pela presença destes equipamentos públicos. Estas pessoas, muitas vezes, trabalham neste local. Mas também, como em todos os bairros da cidade do Recife, há uma importante população de baixa renda, habitando em áreas não urbanizadas 31.
Há ainda o fato importante a assinalar que as duas rodas de Terapia Comunitária são animadas por profissionais das Unidades de Saúde de Família do Bairro, com clientela formada basicamente por usuários destas USF. São médicos que, confrontados com a situação de encontrar pessoas em sofrimento psíquico que não conseguem atendimento na rede de saúde mental (CAPS 32, principalmente) por conta da alta demanda, ou de pessoas que são encaminhadas pelos CAPS para prosseguimento do tratamento (na maioria dos casos a partir de prescrição de remédios), resolvem animar rodas de Terapia comunitária, serviço de saúde complementar. Importa assinalar que esta prática terapêutica está regulamentada pelo Ministério da Saúde, através da Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Poucas USF, entretanto, fazem uso desta prática terapêutica.
A referida portaria define a Terapia comunitária integrativa enquanto
uma prática de intervenção nos grupos sociais e objetiva a criação e o fortalecimento de redes sociais solidárias. Aproveita os recursos da própria comunidade e baseia-se no princípio de que a comunidade e os indivíduos possuem problemas, mas também desenvolvem recursos, competências e estratégias para criar soluções para as dificuldades. É um espaço de acolhimento do sofrimento psíquico, que favorece a troca de experiências entre as pessoas.
Pode animar a roda qualquer pessoa que tenha recebido treinamento – oferecido pela associação Brasileira de Terapia Comunitária 33 . Assim, profissionais de saúde da USF, moradores da comunidade, ou mesmo terapeutas comunitários são os atores mais frequentes nestas rodas de Terapia. Para o caso das comunidades por nós estudadas, médicos das USF e também terapeutas voluntários são as pessoas que animam as rodas de TCI.
Os argumentos dos médicos 34 que participam desta roda de terapia justificam o seu uso a partir dos seguintes pontos: (a) mais de 90% das pessoas atendidas nas USF onde trabalham que apresentam problemas de sofrimento psíquico são acompanhadas exclusivamente pelo médico de família; (b) as rodas de terapia são importante apoio para a pessoa com transtorno que, na maioria dos casos faz uso exclusivo de medicamentos, que não tem acesso a práticas terapêuticas tradicionais de fala, como psicanálise ou a psicoterapia.
Os grupos acompanhados, localizados nos Bairros do Engenho do Meio e de Brasilit, eram animados pelos profissionais de saúde das USFs. As rodas de Terapia do Engenho do meio e Brasilit têm composição semelhante: a maioria dos participantes do sexo feminino, de baixa renda, de meia idade, e membros ativos de confissões religiosas.
A roda de terapia de Brasilit, entretanto, durante a nossa pesquisa de campo, era relativamente pouco frequentada. Em algumas reuniões, por exemplo, a frequência registrada maior era a de técnicos da USF e estudantes, em estágio acadêmico ou desenvolvendo pesquisas. Animada pela médica da USF 35, percebe-se claramente que o grupo ainda não ganha adesão significativa entre os usuários daquela Unidade de Saúde; percebe-se também que os participantes ainda não se encontram perfeitamente integrados.
Em Engenho do Meio, por sua vez, encontramos um grupo ativo, integrado e participante. Seus membros já se conheciam há algum tempo, e o engajamento nas atividades da roda era evidente: as pessoas se reuniam na praça do bairro; as cadeiras eram emprestadas por um morador; antes do início da sessão de terapia era comum acontecer uma conversa animada; e frequentemente as reuniões eram continuadas com festas e comemorações (aniversários, algumas festas populares, celebrações de nascimento e casamento, entre outras). Este grupo, além de contar com a participação do médico da Unidade de Saúde, também era animado por uma terapeuta voluntária. Além dos participantes das rodas de terapia, entrevistamos terapeutas e terapeutas formadores. Para este caso, tínhamos interesse em buscar informações sobre a prática de terapia comunitária, seus princípios, a rotina das sessões 36, as dificuldades encontradas, e as virtudes desta técnica de terapia de fala. Os entrevistados foram escolhidos pela disponibilidade (em se tratando de temas bastante delicados, a disposição para as entrevistas é sensivelmente menor). Buscou-se representatividade geracional, de gênero e socioeconômica A predominância quase exclusiva de mulheres reflete o perfil dos grupos, quase exclusivamente feminino 37.
Cabem, ainda, algumas observações de cunho metodológico. Tenho a opinião de que a questão mais importante a considerar, neste momento, se destaca a partir de uma frase de Goffman: “Reinos do ser são aqui objetos de estudo, e o dia a dia não é um domínio especial a ser colocado em contraste com os outros, mas simplesmente uma outra realidade” 38 (1974:573). Quer dizer, os indivíduos, enquanto tais, são uma realidade única, um outro que a realidade dos seres, considerados abstratamente ou enquanto universais. O que significa dizer que não se pode extrair das pessoas que entrevistamos ou observamos conclusões sobre todas as pessoas. Elas incorporam ingredientes que as fazem únicas, e desta forma, a sua completude não é o espelho da humanidade. Como fazer, então? Acho que aqui Goffman nos mostra um ingrediente fundamental dos estudos qualitativos: extraímos das pessoas que conversamos, observamos, entrevistamos algo de sua identidade biográfica que nos permita visualizar bem o seu physique de role, a sua performance de papel em uma ocasião, um momento interativo. A sua performance irá depender, em primeiro lugar, das características da pessoa (se é tímida ou extrovertida, se faz uso de expressões corporais, o seu vocabulário, o campo interativo etc.). Mas a nossa análise, embora deva levar em consideração índices de expressões corporais, maneirismos, centra-se nos ingredientes mais amplos das performances de ação, dos enquadramentos dos atores em campos normativos e estruturadores de identidades. Desta forma, quando trabalhamos com um grupo de pequeno de pessoas, tendo a consciência de que não preenchem os cânones de uma amostra estatística probabilística (e que, portanto não representam o universo), a ambiguidade da análise se revela: são, de fato, indivíduos únicos, mas ao mesmo tempo são pessoas que carregam consigo um código que é compartilhado intersubjetivamente e que desta forma enquadra seus atos em práticas perfeitamente compreensíveis para aquela comunidade de origem. Não nos interessa como aparentemente Goffman faz nesta obra, observar as nuances dos enquadramentos (as práticas performativas, as diversas formas particulares de comportar-se, ou – o que é o mesmo – uma possível tipologia de enquadramentos). Aqui o ponto em questão remete as possibilidades de verificar como as pessoas constroem representações sobre seu mundo e como orientam seus comportamentos a partir delas, de um lado; de outro, como as pessoas, em suas práticas, constroem suas redes e mobilizam recursos (mesmo aqui temos, ainda que indiretamente, a possibilidade de utilizar a ideia de enquadramento em Goffman para investigar o complexo processo de formação de redes: quais são as regras para manter a alimentar amizades, contatos profissionais, encontros ocasionais, e como a observância destes protocolos permitem os atores serem mais eficientes em seus objetivos).
Neste sentido, em nosso universo, a partir de entrevistas, das falas destas pessoas, sobre determinados campos (loucura, adoecimento, amizades etc.) poderemos verificar que índices nos permitem inferir conclusões mais amplas, extraindo de suas falas os campos normativos e estruturantes das práticas de sociabilidade. Questões sobre como a ideia de loucura (e desta forma como os comportamentos observáveis e rotuladores do estado de insanidade) e outras relacionadas podem ser categorizadas naquele universo particular que constitui o nosso campo empírico de pesquisa.
Uma primeira questão a observar é o fato que pessoas com transtorno têm suas redes sociais reduzidas, com pouca representação nas chamadas sociabilidades secundárias, isto é, são pessoas que estruturam suas redes principalmente em torno da família, vizinhança e amigos, e alguns poucos laços secundários. O que se pode ver no sociograma abaixo, onde a maioria dos contatos é estabelecida em casa (do entrevistado ou das pessoas citadas). Há também, decorrente deste fato, uma importante constatação, a de que os laços têm uma âncora territorial importante. Outras questões também podem ser extraídas deste sociograma, o fato, em primeiro lugar que o campo religioso é um importante espaço de sociabilidade (fato que se confirma com a declaração de filiação religiosa entre os entrevistados) . Resta-nos ainda tecer alguns comentários sobre as construções discursivas dos entrevistados sobre o seu sofrimento, suas sociabilidades e suas práticas de cura. Os três assuntos estão fortemente interligados, como veremos adiante.
A fala dos entrevistados sobre sofrimento foi agrupada em dois campos, o do adoecimento e aquele relativo às concepções sobre a loucura. Estes dois campos nos indicam as posições discursivas sobre os entrevistados a respeito da enfermidade que são acometidos e é o resultado de uma série de informações adquiridas durante o seu trajeto biográfico 39, que incorpora, entre outros elementos, a carreira moral do doente mental 40, o campo do repertório de experiência vivenciado a partir de relatos, encontros, uma busca ativa no acervo do saber popular que dê sentido às experiências com que vem passando. Os entrevistados, em sua totalidade, têm um histórico de visitas a especialistas 41, alguns com registros de internamento psiquiátrico, e a totalidade deles é usuária de psicofármacos 42. O discurso sobre a loucura é recortado, desta forma, a partir de dois universos, não exclusivos, do saber popular e do saber médico, ambos incorporados ao mundo da vida das pessoas, sinalizadores do agir cotidiano. Estes universos não são incorporados de forma única, e muitas vezes são ressignificados. É o caso, por exemplo, do adoecimento enquanto causa biológica, confirmado por um entrevistado, quando afirma que foi ao neuro, e que um exame de imagem confirmaria o seu estado de saúde.
Regra geral, podemos estabelecer uma classificação de tipos de adoecimento a partir de três grandes eixos: (a) aquele provocado por causas naturais (índices de adoecimento com causas explicáveis pela biomedicina, mas aqui fortemente ressignificadas); (b) aquele provocado pelo stress do viver cotidiano, do sofrimento das auguras da vida”: “quando uma pessoa sai de si é quando aperreiam muito ela 43”; (c) finalmente, o campo religioso, do controle da vida a mãos da autoridade transcendente: “Deus tinha um plano na minha vida”. Estas três categorias estão também presentes na ideia de “loucura”, de descontrole emocional, cujas causas são buscadas nos campos, como dissemos médico, social ou transcendental.
Outro importante cenário para compreendermos a dimensão do sofrimento psíquico são as sociabilidades construídas pelas pessoas, no lidar cotidiano com o transtorno mental. O quatro II nos informa sobre três importantes campos, os dois primeiros remetendo a interações – positiva ou negativa – por que passam os entrevistados, e o segundo as trajetórias de enfrentamento construídas cotidianamente. Importa assinalar que, diferentemente do que apresentaremos adiante, as práticas de cura propriamente, os itinerários terapêuticos, conforme discutimos acima, indicam as possibilidades que a vida apresenta aos entrevistados enquanto repertórios de experiências, um guia prático para a orientação de suas ações. Desta forma, diversos espaços de sociabilidade diversos do tradicional - o campo da biomedicina - são apresentados: amigos, profissionais de saúde, religião, medicalização prescrita por não profissionais, terapia alternativa.



No que diz respeito às interações sociais – apoio e estigma – os entrevistados nos mostram a dupla face de suas sociabilidades: de um lado, apoio recebido, em diversas modalidades (emocional, financeiro, informações, solidariedade, etc.); por outro, o campo da rejeição, do afastamento e do preconceito proporcionado pelas interações sociais negativas 44. O sentimento que as pessoas não compreendem, têm medo e se afastam daqueles que têm transtorno. Estas experiências certamente contribuem – positiva ou negativamente – para o bem-estar daqueles que sofrem. Facilitam ou dificultam o percurso de uma vida plena e saudável, com espaços de sociabilidade preenchidos em diversos círculos sociais: familiar, do trabalho, dos momentos de lazer.
Regra geral, aqueles com sofrimento psíquico têm campos de sociabilidade reduzidos, afastam-se do mundo do trabalho, e perdem os amigos. Sua vida é cada vez restrita ao espaço doméstico 45. O sociograma que apresentamos acima nos confirma o fato a redução dos espaços de sociabilidade.
As construções discursivas sobre as práticas de cura refletem o campo da representação dos entrevistados sobre adoeci-mento e loucura. Os entrevistados, quando perguntados sobre as possibilidades terapêuticas indicadas, constroem seus discursos a partir da visão de loucura que têm. Escolhemos como índices para nossa análise as categorias “terapia comunitária”, “medicalização” e “práticas terapêuticas para o sofrimento”, todas inscritas nos campos discursivos dos entrevistados, e refletindo concretamente os signos de interpretação da vida, consequentemente de orientação de suas práticas de cura. Importante assinalar que na maior parte dos casos as pessoas se utilizam de diversas práticas de cura, em uma mescla de conhecimento popular e saber médico. Mas há um consenso que contemporaneamente a medicalização se torna um ingrediente central nas práticas terapêuticas do transtorno mental. Ehrenberg (2012) já assinala uma tendência dos tempos modernos: a depressão, a melancolia, conceitos já utilizados no início do século XX, são ressignificados neste novo século. Âncoras como culpa, disciplinarização e obediência que impossibilitam os sujeitos desejantes de realização plena, agora são deslocadas para as exigências da performance desta nova era: exigências de desempenho no trabalho, na vida sexual, nas relações de amizade, enfim, o desempenho como deus ex machina desta nova civilização. Em muitos casos, o uso de psicofármacos funciona como uma espécie de “aspirina psíquica” 46, indicando alívio imediato do sofrimento, o que permite a supressão momentânea da dor. Desta forma, o transtorno em algumas vezes é reduzido a um caso simples 47, que invariavelmente é aliviado a partir do uso de medicamentos. Mas mesmo considerando outras práticas como paliativas ou complementares, elas são administradas na maior parte dos casos. Haveria que comentar com mais cuidado o fenômeno religioso. O lugar da religião para a explicação do transtorno e consequentemente para o aliviamento do sofrimento é recorrente entre os entrevistados. O não controle do destino (foi Deus que quer assim) tem por consequência o fato que cabe somente ao poder transcendental 4849 a cura e o equilíbrio.

Cabem, ainda, algumas considerações sobre a terapia comunitária enquanto prática de cura. Para este caso, diferentemente das outras práticas de fala, a terapia se apoia no compartilhar de experiências de outras pessoas, que também sofrem; segundo os que pensam esta técnica, há o resgate do saber popular. Trata-se, acredito, de uma prática que se ancora fortemente no apoio social: na solidariedade da escuta, na compaixão para o sofrimento do outro. É, consequentemente, um recurso que busca o alívio do sofrimento a partir do apoio social, na evitação da solidão e do estigma, ambos com presença importante no cotidiano dos que sofrem. O depoimento abaixo ilustra bem o caso:
[...] ela é uma das pessoas mais fiéis da terapia por ser sempre assídua. Ela tinha um problema de saúde mental em tratamento, mas a queixa que ela trazia mais é a solidão, o sentimento de sentir sozinha, porque ela morava sozinha em casa... depois que ela começou na roda [de terapia] começa a construir novas redes ... o interessante é que a terapia comunitária para ela não era somente nas quintas-feiras, ela também ia à casa de algumas pessoas da terapia para conversar ... fez amizade com pessoas do grupo. Tinha sempre alguém para conversar, visitar, passear”49
Apresentamos, a partir de pesquisa empírica, alguns ingredientes que julgamos úteis para a compreensão da Terapia Comunitária, instrumento importante para o alívio de pessoas em sofrimento psíquico. Esta técnica, regulamentada pelo Ministério da Saúde no âmbito das terapias complementares, ainda não é largamente utilizada pelas Unidades de Saúde da Família. Fato importante, porque, de um lado, problemas de saúde mental, em especial a depressão, são um dos principais motivos de queixas das pessoas que buscam atendimento 50. Com efeito, conforme afirma Albuquerque (2012: 232), “os médicos de família e comunidade são, geralmente, os únicos recursos da saúde mental a que pessoas têm acesso e aqueles assumem a responsabilidade pelos cuidados continuados a longo prazo destas pessoas”. Para quase totalidade destas pessoas, a única forma de terapêutica é a medicamentosa, com a prescrição de psicofármacos, especialmente os ansiolíticos e os antidepressivos, para os transtornos mentais mais prevalentes (MANCINI: 2012). Com efeito, cabe a atenção básica uma importante função na rede de atenção à saúde mental. A atenção dispensada pelos CAPs e outras unidades que dispõem de atendimento especializado é para os casos considerados mais graves. Os outros recebem atenção do médico de família, que, como dissemos, dispõe quase exclusivamente do recurso da prescrição de medicamentos.
A terapia comunitária cumpre um importante papel enquanto lugar de escuta de pessoas atormentadas pelo stress da vida cotidiana. Não discutimos aqui a eficácia da técnica e seus fundamentos. O que julgo importante ressaltar é o lugar privilegiado desta roda de terapia para a construção de laços, para o necessário apoio social que, como vimos, se revela indispensável para o bem-estar das pessoas 51.
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