Articles

Entre a posição e as práticas: classes médias nas perspectivas de Erik Olin Wright e Pierre Bourdieu

Between position and practices: middle classes in the perspectives of Erik Olin Wright and Pierre Bourdieu

Luís Fernando Santos Corrêa da Silva
Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil

Entre a posição e as práticas: classes médias nas perspectivas de Erik Olin Wright e Pierre Bourdieu

Ciências Sociais Unisinos, vol. 56, núm. 1, pp. 48-57, 2020

Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Recepção: 21 Dezembro 2018

Aprovação: 04 Dezembro 2019

Resumo: O artigo apresenta as contribuições teóricas de Erik Olin Wright e Pierre Bourdieu para o desenvolvimento contemporâneo de uma sociologia das classes sociais, sobretudo para a análise das classes médias. A teoria neomarxista de Erik Olin Wright procura superar o dilema do crescimento da classe média no processo de desenvolvimento capitalista, mediante a noção de "posição contraditória de classe", pois, apesar da classe média vender sua força de trabalho, é também possuidora de ativos de qualificação e autoridade que lhes diferenciariam da classe trabalhadora tradicional. Já a teoria do espaço social de Pierre Bourdieu, que enfatiza a dimensão simbólica das relações de classe, destaca características que seriam peculiares às classes médias, como a rigidez moral, a ascese, a valorização da educação e da cultura e a aposta no mérito individual como forma de ascensão social. Essas características seriam entendidas pela classe média como critérios de distinção e como um tipo de capital específico, que contribui para separar a classe média das classes populares. Conclui-se que enquanto Wright está interessado em reformular as bases teóricas do marxismo para a compreensão da estrutura de classes no capitalismo contemporâneo, mediante a problematização da classe média como estrato social heterogêneo, Bourdieu está interessado nas construções simbólicas que dão sustentação a uma noção de classe média que empreende estratégias para se distinguir das classes populares, por meio da valorização de bens culturais escassos ou considerados como supérfluos por quem se encontra nas proximidades da fronteira das necessidades básicas.

Palavras-Chave: Classes Médias, Estratificação Social, Teoria Sociológica.

Abstract: The article presents the theorithical contributions of Erik Olin Wright and Pierre Bourdieu to the contemporary development of a sociology ofsocial classes, especially to the analy-sis of social classes. Erik Olin Wright 's neomarxist theory seeks to overcome the social classes growth in the capitalist development process through the idea of "contradictory class location", as, regardless of the fact that the middle class sells its labour force, it also owns quality and authority assets which differentiate it from the traditional working class. However, Pierre Bourdieu's theory ofsocial space emphasising the symbolic dimension of class relations highlights some features that would be particular to middle classes, such as the moral rigidity the asceticism, valorisation of education and culture and the focus on individual merit as a form of upward social mobility. These characteristics could be construed by middle class as differentiating criteria and as a specific type ofcapital, which has contributed to separate middle class from the popular class. It is concluded that while Wright takes interest in reshaping the theoretical grounds ofMarxism to understand the class structure in the contemporary capitalism, by problematising the middle class as a heterogeneous social layer, Bourdieu is interested in the symbolic constructions sustaining a concept ofmiddle class which undertakes strategies to diferentiate itself from popular classes by valorising scarce or found to be superfluous cultural goods by those who are close to the border of basic-needs.

Keywords: Middle Classes, Social Stratification, Sociological Theory.

Introdução

O debate sobre classes sociais, em termos de suas fronteiras e práticas internas, é um tema presente na sociologia desde a fundação da disciplina como campo do conhecimento científico. Parte do esforço empreendido pelos autores clássicos da disciplina envolveu a definição dos contornos e os tipos de relações que estabeleciam os grupos constitutivos das sociedades modernas. Conceitos como classe social, luta de classes, status e tipos de solidariedade assumiram centralidade nas obras de Marx, Weber e Durkheim, denotando a demarcação de especificidades e características dos grupos que compõem o tecido social.

No caso do debate sociológico contemporâneo, novas perspectivas teóricas surgiram na tentativa de dar conta de uma realidade social em mudança, mais complexa e multifacetada. Tais perspectivas buscaram justamente na teoria sociológica clássica as bases para propostas de novos modelos interpretati-vos, mas também apresentaram contribuições originais e conectadas com os desafios impostos pelo presente, visto que tinham por finalidade analisar estruturas sociais dotadas de maior he-terogeneidade.

É no quadro do debate contemporâneo sobre classes sociais que o presente trabalho se insere. Nesse artigo, propõe-se analisar as perspectivas teóricas de Erik Olin Wright e Pierre Bourdieu à luz das suas contribuições para o desenvolvimento contemporâneo de uma sociologia das classes sociais, enfatizando, mais detalhadamente, o tipo de abordagem que propõe para a análise das classes médias.

Cabe destacar que, segundo Estanque (2012), a partir do Século XX, a classe média passou a cumprir um papel de "zona de amortecimento de conflitos", visto que o seu surgimento e expansão significaram a ruptura com a polarização de classes retratada por Marx no contexto da Revolução Industrial. Nesse período, o crescimento da classe média esteve relacionado à consolidação da indústria e ao desenvolvimento do segmento de serviços, aspectos que contribuíram para uma estrutura ocupa-cional mais complexa e menos dual, na qual a mobilidade social se tornou relativamente acessível. Dada essa realidade, a classe média transformou-se em um "problema sociológico".

O trabalho está organizado do seguinte modo: inicialmente são apresentadas as bases teóricas do pensamento de Wright e Bourdieu e as suas contribuições para o desenvolvimento de uma teoria sobre as classes médias. Posteriormente, trata-se de comparar tais postulados teóricos, de modo a destacar quais são as suas influências, como se diferenciam e se aproximam. Por fim, retoma-se o trabalho em seu conjunto e são apresentadas as considerações finais.

Classe média e a situação contraditória de classe na teoria de classes de Erik Olin Wright.

O sociólogo estadunidense Erik Olin Wright ocupa espaço importante no debate contemporâneo sobre estratificação social e análise de classes. Cabe destacar que o autor classifica a sua teoria como neomarxista, visto que realiza um esforço de reformular as bases do marxismo clássico no que tange à análise de classes, incorporando, sobretudo, o dilema do crescimento da classe média no processo de desenvolvimento capitalista.

Segundo o autor, o debate marxista contemporâneo tem proposto uma série de soluções para aquilo que ele chama de "problema da classe média", que se impõe devido ao crescimento desse estrato social e à consequente dificuldade da teoria marxista em explicar esse fenômeno (WRIGHT, 1998). O núcleo duro da teoria marxista apostava na crescente polarização das classes sociais fundamentais que estruturam a sociedade capitalista, mesmo que intermediadas por um estrato social de maior ou menor abrangência e densidade, fato que não se confirmou.

Então, Wright (1998) identifica quatro abordagens adotadas no interior da teoria marxista na tentativa de superar a contradição conceitual da existência de uma estrutura de classes não-polarizada, decorrente do crescimento dos estratos sociais intermediários no capitalismo avançado, no quadro de relações de classes polarizadas, cerne da teoria marxista. A primeira delas nega essa contradição, sustentando que a estrutura de classes na sociedade capitalista é realmente polarizada e que a classe média é apenas uma ilusão ideológica (WRIGHT, 1998, p. 3 -4).

Já a segunda abordagem considera que a classe média deveria ser entendida como um segmento de alguma outra classe, como a "pequena burguesia" ou a "nova classe trabalhadora". Isso significa que o mapa básico de classes da sociedade capitalista permaneceria intacto, mas as diferenciações internas das classes sociais poderiam ser analisadas pelos estudos sobre estruturas de classes (WRIGHT, 1998, p. 3 -4).

A terceira abordagem sustenta que a classe média é, de fato, uma nova classe social, inclusive com estatuto independente da burguesia, do proletariado e mesmo da "pequena burguesia". Eventualmente, a classe média é tratada, por essa abordagem, como uma "classe profissional gerencial" ou mesmo como uma "nova classe". Desse modo, a terceira abordagem opta por uma modificação mais profunda do mapa de classes do capitalismo, sobretudo quando comparado ao entendimento das duas primeiras abordagens (WRIGHT, 1998, p. 3 -4).

E, por último, a quarta abordagem, a qual Wright se filia, considera que a classe média é uma "posição contraditória de classe". Conforme Wright (2015), a classe média situa-se em uma posição de classe contraditória porque é composta, predominantemente, por aqueles que vendem a sua força de trabalho na esfera do mercado, mas que, ao mesmo tempo, se diferenciam da classe trabalhadora tradicional devido a seus membros ocupar posição de autoridade dentro da produção, ou então, porque são possuidores de ativos, entendidos como qualificações e especializações, altamente valorizados no mercado de trabalho.

Neste sentido, o papel desempenhado pelos gerentes seria um caso clássico enfatizado por Wright (1998, p. 4):

Gerentes, por exemplo, devem ser vistos como simultaneamente na classe trabalhadora (na medida em que são trabalhadores assalariados pelos capitalistas) e na classe capitalista (na medida em que controlam a operação da produção e os trabalhadores). Essa estratégia se afasta mais da visão tradicional marxista da estrutura de classes, uma vez que o próprio significado de um "local" é alterado: não há mais uma correspondência de "um para um" entre locais estruturais preenchidos por indivíduos e classes [Tradução livre].

Wright (1983) afirma que Marx não tratou de elaborar conceitualmente a noção de classe social, mesmo que a relação complementar e antagônica entre burguesia e proletariado perpasse toda a sua obra. Para Marx, mais importante que a definição conceitual do que é uma classe social, era a necessidade de demonstrar que tipos de relações se estabeleciam entre as classes sociais fundamentais da sociedade capitalista, e como a exploração se transforma na base dessas mesmas relações (WRIGHT, 1983).

No entendimento de Wright, Marx teria considerado a "pequena burguesia" como "classe em transição", que somada ao campesinato, tenderia a desaparecer em decorrência da crescente polarização ensejada pelas relações capitalistas de produção. Como tal polarização não se confirmou, os esforços teóricos dos marxistas ulteriores trataram de encontrar soluções para aquilo que Wright chama de "espaços vazios" de classes, entendidos como estratos médios ou classe média. Neste sentido, a opção adotada sempre tendeu a considerar esses "espaços vazios" como parte de outra classe - burguesia ou proletariado - ou como uma nova classe social (WRIGHT, 1983, p. 21 - 22).

A proposta de Wright, que parte dos lugares contraditórios de classe, pretende romper justamente com esse impasse até então vigente, pois incorpora ao seu modelo de análise uma noção de ambivalência até então ausente na análise de classes marxista tradicional. Conforme Wright (1983, p. 22):

Desta reconceptualização da estrutura de classes resulta que certos lugares de classe não exprimem qualquer interesse de classe específico: os interesses de classe de tais posições serão incoerentes e não deixarão de refletir o lugar contraditório dessas mesmas posições no conjunto das relações de classe. Isto implica, por outro lado, que essas posições tenderão para um "vai-e-vem" entre diferentes classes em momentos de conflito de classes ou, pelo menos, assumirão uma posição ambivalente no contexto desses conflitos.

Wright (1983) também argumenta que o debate marxista sobre classes sociais não tem um fim em si mesmo, mas pretende disponibilizar ferramentas para a interpretação do conflito e instrumentalizar possibilidades de transformação revolucionária em dada sociedade e contexto histórico. Por isso, definir posições de classe trata-se de uma empreitada importante, visto que os papéis assumidos na luta pela transformação social dependem da posição dos agentes e grupos sociais na estrutura de classes.

Ainda em relação à classe média, Wright afirma que há segmentos constitutivos desse estrato social que não poderiam ser considerados explorados ou exploradores no âmbito das relações capitalistas, como é o caso da pequena burguesia e dos trabalhadores por conta própria, visto que são possuidores de um elevado nível de ativos ou estoque de capital. Tais estratos pertenceriam ao que Wright chama de classe média tradicional ou velha classe média. Por outro lado, a chamada "nova classe média" seria composta pelos trabalhadores altamente qualificados, que são, ao mesmo tempo, explorados porque não possuem ativos de capital (atuam para um capitalista que os contrata), e também são "exploradores de habilidades", devido à posição que ocupam no processo produtivo (WRIGHT, 1998, p. 24).

Nas relações de produção, gerentes e supervisores exer-ceriam funções de dominação que são próprios da classe capitalista, mesmo que não sejam proprietários dos meios de produção. Contudo, como atividades gerenciais e de supervisão obedecem a uma hierarquia, e há posições de mando superiores e inferiores no quadro dessas ocupações, quanto mais próxima do topo da estrutura ocupacional está a atividade gerencial e de supervisão, maiores serão os interesses capitalistas expressos nessa posição de classe (WRIGHT, 2015).

Cabe também destacar um critério de diferenciação no interior da classe média, que diz respeito àquilo que se expressa na relação entre remuneração e apropriação do excedente. Segundo Wright (2015, p. 143 - 144):

A localização estratégica dos gerentes na organização da produção lhes permite fazer algumas demandas significativas sobre uma parte do excedente social (...), na forma de rendimentos relativamente elevados. Com efeito, isso significa que os salários e as remunerações da força de trabalho gerencial estão acima dos custos de produção e reprodução de sua força de trabalho (incluindo quaisquer qualificações que possam ter).

Tais vantagens financeiras seriam uma espécie de recompensa pela lealdade, que tem como finalidade gerar fidelidade com os objetivos da empresa. Somada a possibilidade de ascensão na estrutura de cargos, as vantagens financeiras criariam as condições para que um sistema de dominação na esfera produtiva que não depende exclusivamente do controle direto do empresário capitalista.

Assim como os gerentes e supervisores, trabalhadores altamente qualificados ocupariam posição privilegiada na estrutura ocupacional da empresa, dada a escassez de qualificações, sempre reguladas por mecanismos sociais de seleção e diferenciação. Segundo Wright (2015), a posse de qualificações valorizadas no mercado de trabalho contribui para que o indivíduo ocupe uma posição privilegiada no tocante às relações de classe, distinguindo-o, por exemplo, dos trabalhadores manuais.

Wright também sustenta que a localização de classe é condicionada por aspectos outros que ultrapassam a posição dos indivíduos na estrutura ocupacional. Segundo Wright (1997, p. 149):

As estruturas de classes diferem não só na distribuição das pessoas através de várias localizações nessa estrutura, mas também na medida em que a vida das pessoas é delimitada por localizações de classe específicas. No nível micro, a classe é explicativa porque molda os interesses, as capacidades estratégicas e as experiências das pessoas, e cada um desses efeitos depende não apenas da localização estática dos indivíduos na estrutura ocupacional, mas também das maneiras complexas pelas quais suas vidas estão ligadas a várias classes através das carreiras, mobilidade, associações voluntárias e laços sociais.

O autor destaca alguns casos particulares, como clubes esportivos, igrejas e grupos de amizade, que podem apresentar elevado grau de homogeneidade em termos da classe social dos seus membros, assim como podem reunir indivíduos pertencentes a classes sociais diferentes, o que torna as fronteiras de classe mais permeáveis. Wright (1997) argumenta que coalizões políticas específicas são facilitadas na medida em que vínculos de amizade e laços familiares ultrapassem as fronteiras de classe. Contudo, essa situação contribui para a fragilidade da consciência de classe, visto que a multiplicidade de vínculos estabelecidos fora das fronteiras de classe condicionaria trajetórias de vida heterogêneas e pouco vinculadas à posição dos agentes na estrutura de classes.

A análise da teoria neomarxista de classes de Erik Olin Wright permite identificar a tentativa de superação de uma abordagem marxista clássica, que não previa a ascensão das classes médias no capitalismo contemporâneo. Mesmo mantendo pressupostos relativos ao marxismo clássico, como a centrali-dade das relações de exploração, Wright propõem compreender a estrutura de classes a partir de ativos de qualificação e autoridade, aspecto ausente até então na teoria marxista.

Ademais, o autor reconhece que a classe social não se define exclusivamente pelo papel desempenhado no processo produtivo, mesmo que esse seja considerado ainda o aspecto mais determinante. Na medida em que incorpora elementos exteriores às relações de trabalho para compreender a posição de classe, Wright se aproxima de uma abordagem weberiana de classes, tendo em vista que procura mesclar diferentes domínios da vida social e, até mesmo os estilos de vida, para a definição das classes sociais no contexto das sociedades capitalistas contemporâneas.

A classe média na perspectiva da teoria do espaço social de Pierre Bourdieu.

A teoria do espaço social de Pierre Bourdieu propõe uma ruptura com a teoria marxista de classes sociais e, nesse sentido, se difere substancialmente da proposta de Erik Olin Wright. Mesmo reconhecendo a importância do marxismo para o desenvolvimento teórico do debate sobre as relações de classe na sociedade capitalista, Bourdieu sustenta que o projeto teórico de Marx precisa ser superado devido a três limites que apresenta: a) o substancialismo, porque considera a classe social construída pelo pesquisador como "classe real"; b) o economicismo, porque enfatiza o predomínio da dimensão econômica, em detrimento das demais esferas de atividade social; c) o objetivismo, porque desconsidera as lutas simbólicas pela representação do mundo social (BOURDIEU, 2001a, p. 133).

Para o autor, o espaço social deve ser entendido como uma construção multidimensional, no qual agentes e grupos sociais se organizam mediante o uso de diferentes espécies de capitais, sobretudo de natureza econômica e cultural. Bourdieu entende que tais capitais possuem pesos diferentes conforme o campo2 considerado, sendo a posição que o agente social ocupa em cada campo condicionada pela quantidade de capital específico que ele é portador.

Bourdieu considera que os agentes sociais podem ser distribuídos no espaço social considerando duas dimensões principais. A primeira dimensão, e mais importante, põe em evidência os volumes globais de capital (econômico e cultural) que os agentes possuem, enquanto que a segunda dimensão considera o peso relativo desses dois tipos de capital no volume global de seu capital (BOURDIEU, 1996, p. 19).

Como exemplo, Bourdieu cita a relação de oposição que se estabelece na primeira dimensão, entre agentes sociais que possuem mais capital global, como empresários, profissionais liberais e professores universitários, e agentes que possuem menos capital global, como os operários não-qualificados. No que concerne à segunda dimensão, seria possível identificar uma relação de oposição entre professores universitários e empresários, visto que os primeiros detêm muito capital cultural, mas pouco capital econômico, enquanto que os segundos, inversamente, possuem muito capital econômico e pouco capital cultural (BOURDIEU, 1996, p. 19).

É deste modelo de representação do espaço social que deriva a definição de Bourdieu para as classes sociais, que segundo o autor são:

(...) conjuntos de agentes que ocupam posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a condicionamentos semelhantes, têm, com toda a probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de posição semelhantes (BOURDIEU, 1989, p. 136).

Na perspectiva de Pierre Bourdieu, as classes sociais teriam existência teórica, como classes prováveis, visto que decorrem de um esforço classificatório de natureza abstrata. Entretanto, mesmo não sendo possível tratar as classes sociais como "classes reais", o esforço classificatório do qual nos fala o autor sinaliza a probabilidade de que os grupos sociais venham a se constituir em classes práticas, que se organizam segundo uma identidade coletiva ou por meio de demandas objetivas. Cabe destacar que esse entendimento impõe uma ruptura com a noção marxista de "consciência de classe", pois sustenta que a percepção do mundo social não é mero produto da posição que os grupos sociais ocupam na estrutura produtiva (BOURDIEU, 2001a).

Em lugar de uma consciência de classe autodeterminada, conforme propõe a teoria marxista, Bourdieu considera que o habitus3 de classe atuaria como elemento unificador das condutas, dos gostos e dos estilos de vida. Segundo Bourdieu:

Uma das funções da noção de habitus é a de dar conta da unidade de estilo que vincula as práticas e os bens de um agente singular ou de uma classe de agentes. (...) O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas (BOURDIEU, 1996, p. 21 - 22).

Desse modo, o habitus de classe pode ser entendido como um princípio que engendra práticas de distinção social que, por sua vez, remetem a diferentes esferas da vida coletiva, como as preferências alimentares, de consumo e de lazer, as opiniões políticas, as opções por práticas esportivas, entre outros aspectos. Tais distinções transformam-se em diferenças simbólicas, que reforçam a oposição entre grupos distintos no espaço social.

Nisto reside a importância da dimensão simbólica4 da vida social. As características de uma determinada classe social derivam das relações simbólicas que seus membros estabelecem com os membros de outras classes sociais. Estas relações podem ser de disputa pela definição das propriedades de um campo, ou mesmo assumir caráter complementar, mediante o estabelecimento de acordos e alianças no interior de cada campo (BOURDIEU, 2001a; 2007).

Por isso, a identidade de uma classe social é produto de longa e lenta elaboração coletiva, porque coloca em relação atores sociais situados, mas que podem modificar suas posições ao longo de suas trajetórias. Conforme argumenta Bourdieu, não é possível falar em um habitus de classe de caráter unicamente estático, visto que a posição dos agentes ou grupos na estrutura social está permanentemente condicionada pela trajetória desses mesmos agentes ou grupos. Mesmo que o ha-bitus de classe possa expressar uma posição sincrônica na estrutura social, ele também está sujeito a mudanças no tempo, conforme o tipo de trajetória percorrida, se de ascensão ou de descenso (BOURDIEU, 2007, p. 7 - 8).

Ademais, Bourdieu considera que as classes sociais precisam ser entendidas de modo não-dualista, superando perspectivas que privilegiem o objetivismo ou o subjetivismo como elementos definidores dos critérios de demarcação de fronteiras classificatórias. Conforme argumenta Bourdieu (2013, p. 111):

Os grupos sociais, e notadamente as classes sociais, existem de algum modo duas vezes, e isso antes mesmo de qualquer intervenção do olhar científico: na objetividade de primeira ordem, aquela registrada pela distribuição das propriedades materiais; e na objetividade de segunda ordem, aquela das classificações e das representações contrastantes que são produzidas pelos agentes na base de um conhecimento prático das distribuições tal como se manifestam nos estilos de vida. Esses dois modos de existência não são independentes, ainda que as representações tenham certa autonomia em relação às distribuições: a representação que os agentes se fazem de sua posição no espaço social (assim como a representação - no sentido teatral, como em Goffman - que realizam) é o produto de um sistema de esquemas de percepção e de apreciação (habitus) que é ele mesmo o produto incorporado de uma condição definida por uma posição determinada quanto à distribuição de propriedades materiais (objetividade 1) e do capital simbólico (objetividade 2) e que leva em conta não somente as representações (que obedecem às mesmas leis) que os outros têm dessa mesma posição e cuja agregação define o capital simbólico (comumente designado como prestígio, autoridade, etc.), mas também a posição nas distribuições retraduzidas simbolicamente no estilo de vida.

Por outro lado, Bourdieu sustenta que o distanciamento das necessidades econômicas se configura em um elemento importante de distinção social, visto que os grupos sociais privilegiados apresentam maior probabilidade de desenvolver atividades desinteressadas, sejam elas relacionadas ao senso estético ou à própria reprodução do status de classe. O autor afirma que:

À medida que aumenta a distância objetiva à necessidade, o estilo de vida torna-se cada vez mais o produto do que Weber designa como uma "estilização da vida", expediente sistemático que orienta e organiza as mais diversas práticas, por exemplo, escolha de vinho de determinada safra e de um queijo, ou decoração de uma casa de campo. Enquanto afirmação de um poder sobre a necessidade dominada, ele traz sempre em seu bojo a reivindicação de superioridade sobre aqueles que (...) permanecem dominados pelos interesses e pelas urgências comuns (BOURDIEU, 2011, p. 56).

Mesmo que sustente a ênfase na dimensão simbólica da vida social, em oposição ao economicismo, ao objetivismo e ao substancialismo, Bourdieu não deixa de reconhecer a importância da dimensão econômica para a compreensão das relações de classe. Em sua teoria, a dimensão econômica não assume centra-lidade como em outras abordagens concorrentes, mas opera em um arcabouço multidimensional, que funciona mediante condicionamentos recíprocos.

Por seu turno, a dimensão da dominação simbólica é destacada por Bourdieu (2001a) como aspecto que contribui para a integração da classe dominante, visto que estabelece as fronteiras que a distinguem das demais classes sociais. Neste sentido, o autor destaca que:

As diferentes classes e frações de classe estão envolvidas numa luta propriamente simbólica por imporem a definição do mundo social mais conforme os seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posição ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais. Elas podem conduzir esta luta quer diretamente, nos conflitos simbólicos da vida quotidiana, quer por procuração, por meio da luta travada pelos especialistas da produção simbólica (produtores a tempo interior) e na qual está em jogo o monopólio da violência simbólica legítima (cf Weber), quer dizer, do poder de impor - e mesmo de inculcar - instrumentos de conhecimento e de expressão (taxinomias) arbitrários - embora ignorados como tais - da realidade social (BOURDIEU, 2001a, p. 11 - 12).

Ainda segundo Bourdieu (2001a), a legitimidade da dominação exercida pelas classes dominantes sustenta-se no papel exercido pelos ideólogos conservadores, que atuam no sentido de reproduzir a cultura dominante, por meio da comunicação, reconhecida como cultura de todas as classes sociais.

Em relação às classes médias, Bourdieu considera que as mesmas justificam a sua posição na estrutura social mediante a valorização da educação e da cultura. O acesso a bens simbólicos se constituiria em elemento de distinção social para as classes médias, de modo que também assume o papel de principal con-dicionante da ascensão social. Conforme o autor:

A descrição deste estilo de vida aponta inúmeros traços que, sobretudo em matéria de atitudes com relação à educação e à cultura, seriam válidos, afora um certo colorido circunstancial, para as classes médias da nossa sociedade: a crença no valor da educação como instrumento de ascensão social, como "meio de curar os males sociais, de produzir felicidade e tornar a humanidade mais sábia, mais rica e mais piedosa", a reivindicação de uma educação "prática" capaz de propiciar um treinamento na futura profissão, a estética "utilitarista" que leva a julgar o valor de um livro segundo a sua utilidade (BOURDIEU, 2007, p. 9).

Ademais, o autor argumenta que a pequena burguesia, entendida como uma fração da classe média, assume um papel de classe em transição, definida mais pelo que (ainda) não é. A pequena burguesia estabelece, portanto, uma relação de dupla oposição: Por um lado, em relação às classes superiores, e por outro, em relação às classes populares. Tais oposições se materializam justamente numa educação mais "rígida e repressiva" no âmbito das classes médias, reforçando os valores éticos do trabalho, do esforço, da seriedade, entre outros aspectos, de modo que esses valores éticos estariam se opondo à permissividade da educação das classes populares, bem como ao relaxamento moral presente na educação das classes superiores (BOURDIEU, 2007, p. 9 - 10).

Neste sentido, Bourdieu sustenta que a classe média lança mão inclusive de estratégias de controle da fecundidade, de modo a concentrar seus recursos em um número reduzido de filhos.

Ao limitar a família a um pequeno número de filhos, quando não é ao filho único, nos quais se concentram todas as expectativas e os esforços, o pequeno-burguês obedece apenas ao sistema de restrições implicado em sua ambição: por ser incapaz de aumentar a renda, é obrigado a restringir a despesa, ou seja, o número de consumidores. Mas, procedendo desse modo, ele se conforma, por acréscimo, com a representação dominante da fecundidade legitima, ou seja, subordina aos imperativos da reprodução social: o controle da natalidade é uma forma - sem dúvida, a forma elementar - de numerus clausus. O pequeno burguês é um proletário que se faz pequeno para tornar-se burguês (BOURDIEU, 2011, p. 2016).

Em termos morais, a classe média ascendente refaz a trajetória do início do capitalismo, fundamentada na ascese. Na ausência de capital econômico e com um capital cultural ainda em construção, são justamente em garantias morais que, segundo Bourdieu (2011), a classe média pode afiançar a sua condição de classe, diferenciando-se na medida em que assume renúncias e privações de diversas ordens. Bourdieu (2011, p. 312) afirma que:

Os pequeno-burgueses têm a propriedade paradoxal de se determinarem apenas em função de oportunidades objetivas das quais eles não se apropriariam se não tivessem a pretensão de obtê-las e se não acrescentassem, assim, um suplemento de recursos "morais" a seus recursos em capital econômico e cultural. Tendo conseguido desvencilhar-se do proletariado, seu passado, e pretendendo ter acesso à burguesia, seu futuro, eles devem encontrar em algum lugar, a fim de atingir o acúmulo necessário para esta ascensão, os recursos indispensáveis para suprir a falta de capital.

Segundo o autor, o espírito ascético seria mais identificado no estrato de classe média relacionado às novas profissões (quadros médios e empregados de escritório). Bourdieu afirma que tal fração da classe média, que progrediu por meio da educação, tende a possuir, por um lado, uma visão de mundo progressista, fundamentada nos valores da instrução e da inteligência, e, por outro, um espírito reformista, que naturalizaria o mérito como único meio de distribuição dos bens socialmente produzidos. Neste sentido, a legitimidade das hierarquias encontra respaldo justamente nas credenciais escolares, mais especificamente nos diplomas, e na competência (BOURDIEU, 2011, p. 330).

Analisando a realidade da França no final da década de 1970 e início da de 1980, Bourdieu (2011) sustenta que são profissões características de uma nova pequena burguesia as atividades relacionadas a serviços de publicidade, jornalismo, relações públicas, enfermagem, artesanato, moda e decoração, assim como aquelas ocupações que envolvem a venda de bens e serviços simbólicos, como conselheiros conjugais, sexólogos e dietéticos. Tais profissões seriam ocupadas mais por mulheres, que se reconheceriam nessas atividades devido a "aptidões" internalizadas para a produção e venda desses bens ou serviços. Considerando a pesquisa realizada por Bourdieu na França, a nova pequena burguesia encontraria apenas em Paris as condições plenas para a sua realização, tendo em vista, simultaneamente, a demanda e o reconhecimento pelas profissões que desempenham (BOURDIEU, 2011, p. 340 - 342).

Bourdieu também destaca o papel do mérito para a classe média, que é entendido como um "contar somente consigo para conseguir a sua salvação: cada um por si, cada um consigo mesmo" (BOURDIEU, 2011, p. 316). A crença no mérito produziria a ruptura com vínculos pessoais e familiares que ofereçam risco à trajetória pessoal ascendente, isso porque a pobreza condiciona tipos de solidariedade que impedem a ascensão.

Apesar da importância das diferentes influências que ajudaram a conformar o pensamento de Pierre Boudieu, cabe destacar a originalidade da teoria de classes proposta pelo autor. Em sua obra, Bourdieu trata de incorporar aos estudos sobre classes sociais a dimensão simbólica da realidade social, utilizada para identificar as relações de força dentro dos campos onde se desenvolvem a disputa por capitais dotados de valor.

Ao enfatizar a dimensão simbólica do social, em contraposição a uma perspectiva objetivista, Bourdieu fornece subsídios para a análise dos mecanismos de dominação em termos não exclusivamente econômicos, mas por meio de relações de força que se estabelecem entre as classes sociais dispostas num mesmo campo de disputas pela legitimidade da representação do mundo.

Tomando como base a realidade da França, seu país de origem, Bourdieu também destaca características que seriam peculiares às classes médias, como a rigidez moral, a ascese, a valorização da educação e da cultura e a aposta na meritocracia como forma de ascensão social. Tais características, mais do que regras de conduta, seriam entendidas pela classe média como critérios de distinção e como um tipo de capital específico, que contribui para separar a classe média (ou a pequena burguesia, nas palavras do próprio autor) das classes populares.

Marxismo, neomarxismo de Wright e teoria da prática de Bourdieu em perspectiva comparada: contribuições para pensar as classes médias.

Assim como ocorreu com outros pensadores contemporâneos, Pierre Bourdieu construiu seu legado teórico em diálogo com diferentes correntes de pensamento. Sociólogos clássicos como Weber, Durkheim e Marx, epistemólogos como Gaston Ba-chelard e a escola estruturalista francesa têm sido mencionados como importantes influenciadores do pensamento do autor. O diálogo com tais correntes teóricas e autores, mesmo que eventualmente marcado pela crítica, não reduziu a originalidade dos conceitos elaborados por Bourdieu. Ao contrário, os nexos produzidos pelo encontro das reflexões inéditas do autor com as de seus interlocutores, no campo teórico, têm contribuído decisivamente para o desenvolvimento da sociologia como campo do conhecimento na contemporaneidade.

Ademais, no fim da vida (Bourdieu faleceu em 2002), o autor tratou de participar do debate público crítico sobre os efeitos da mundialização e do neoliberalismo. Em obras como A Miséria do Mundo (2001b) e Contrafogos (1998), Bourdieu se aproxima consideravelmente do marxismo, se não em termos teóricos, pelo menos na intenção de produzir uma sociologia política e socialmente engajada, capaz de refletir sobre os problemas do mundo contemporâneo, de modo a apontar possibilidades de intervenção.

Cabe destacar que o esforço teórico de confrontar Bourdieu com o marxismo clássico foi empreendido recentemente pelo sociólogo estadunidense Michael Burawoy, no livro intitulado O Marxismo Encontra Bourdieu (2010). A obra é fruto de um seminário oferecido pelo autor no Havens Center, da Universidade de Wisconsin-Madison, EUA. Além de buscar aproximações e divergências entre os escritos de Marx e Engels e a teoria bourdieusiana, Burawoy também trata de pensar possíveis conexões entre Bourdieu e autores marxistas como Gramsci, Frantz Fanon e Simone de Beauvoir.

Em relação ao pensamento de Marx vis-à-vis Bourdieu, Burawoy (2010) afirma que ambas as perspectivas enfatizam a importância da luta por conservação ou mudança do poder no interior de um campo. No caso de marxismo, esse campo é de natureza estritamente econômica, visto que envolve as forças produtivas e as relações de produção que correspondem à infra-estrutura da sociedade capitalista. Por outro lado, a teoria do espaço social de Bourdieu considera que tais lutas pelo poder se situam em uma multiplicidade de campos, entendidos como domínios da realidade social para além da dimensão estritamente econômica, mas também cultural, política, etc. (BURAWOY, 2010, p. 34).

Não obstante, Burawoy (2010) também enfatiza a ausência de uma noção de exploração na teoria bourdieusiana, destacando que este é o aspecto que mais distancia Bourdieu do marxismo. Segundo Burawoy, Bourdieu reduziria as relações de produção à posse de capitais predominantemente simbólicos, o que, em última instância, impediria a própria compreensão do que está em jogo na luta de classes.

Por outro lado, no que se refere a Wright, mesmo que o autor defina-se como um neomarxista, a análise de classes por ele proposta incorpora também elementos da tradição weberia-na, aspecto que o aproxima de Bourdieu. Conforme argumenta o próprio Wright (2015, p. 153):

Na verdade, pode-se argumentar que o conceito de estrutura de classes proposto incorpora elementos weberianos significativos, uma vez que a inclusão explícita de qualificações como critério para a divisão de classes e a importância concedida aos privilégios de renda para gerentes e especialistas diplomados são características de análise de classes weberiana. Em um sentido real, portanto, as categorias empíricas com que trabalho podem ser consideradas um híbrido daquelas convencionalmente encontradas nas análises de classes marxista e weberiana.

Já os vínculos da perspectiva de Wright com o marxismo derivam da importância que o autor atribui ao processo produtivo e às relações de exploração a ele inerentes. Wright considera que a posição de classe condiciona as formas de vida e não o inverso. Mesmo assim, pode-se afirmar que Wright se aproxima de Bourdieu quando considera a posição no processo produtivo e as formas de vida como duas dimensões em relação. Isso fica explicito quando Wright trata dos grupos sociais formados de mod exterior à produção capitalista, como clubes esportivos e igrejas, que ultrapassam as fronteiras tradicionais de classes.

Se em Wright a apropriação de Weber está relacionada à importância das qualificações e dos diferenciais de renda utilizados, sobretudo, para pensar a diferenciação entre a classe média e a classe trabalhadora tradicional, em Bourdieu, a referência a Weber deriva da tentativa de superar o objetivismo da teoria marxista e o subjetivismo das teorias que reduzem a realidade social às representações que os agentes possuem dela. Bourdieu (2013, p. 108) argumenta que:

(...) o mérito de Max Weber reside no fato de que, longe de apresentá-las como mutuamente excludentes, como a maior parte de seus comentadores e de seus epígonos norte-americanos, ele reúne as duas concepções opostas, colocando assim o problema do duplo enraizamento das divisões sociais na objetividade das diferenças materiais e na subjetividade das representações.

Segundo o sociólogo francês Loic Wacquant, um dos principais comentadores da obra bourdieusiana, a teoria de classes formulada por Bourdieu tem o mérito de incorporar elementos que vêm sendo discutidos pela sociologia desde o pensamento clássico. Neste sentido, Wacquant (2013, p. 90 - 91) argumenta que:

(...) a abordagem de classes feita por Bourdieu (...) entretece tradições teóricas que, geralmente, são percebidas como antagônicas, se não incompatíveis, uma vez que retém a insistência de Marx em assentar a classe em relações materiais de poder, mas a remete aos ensinamentos de Durkheim sobre as representações coletivas e à preocupação de Weber com a autonomia das formas culturais e a potência do status como distinções sociais percebida.

Para Wacquant (2013), a teoria do espaço social tem contribuído decisivamente para colocar o debate sobre classes sociais numa perspectiva relacional, visto que a realidade social é entendida por Bourdieu não como a soma de indivíduos ou grupos, mas como um conjunto de relações materiais e simbólicas. Tal compreensão a respeito da realidade social aproximaria Bourdieu das perspectivas de Marx e Durkheim (WACQUANT, 2013, p. 88).

Por outro lado, Wacquant (2013) sustenta que a perspectiva de Bourdieu difere das tradições neomarxistas e neo-weberianas surgidas na década de 1970. No caso da perspectiva neomarxista, que nos interessa nesse momento para efeito da presente análise, a teoria de classes de Bourdieu, devido ao seu conteúdo relacional, rompe com a ideia de um agente social como "um mero ocupante de uma posição estrutural" (WAC-QUANT, 2013, p. 88), ou seja, como alguém que se define pela posição que ocupa na estrutura de classes.

Por fim, cabe destacar a crítica do sociólogo anglo-bel-ga Ralph Miliband sobre o papel do conceito de dominação na perspectiva de Wright. Segundo Miliband (1999), Wright prefere enfatizar o conceito de exploração em detrimento do conceito de dominação, visto que o último pode derivar para um espectro de "múltiplas opressões", o que enfraqueceria a centralidade da noção de luta de classes, sempre fundamental para o marxismo.

Contudo, Miliband (1999) sustenta a importância da dominação para a compreensão das relações de classes, visto que a exploração seria um dos objetivos - e talvez o mais essencial - da dominação. Segundo o autor:

Mas o foco na dominação (...) permite um exame e uma identificação mais abrangentes e realistas dos protagonismos da luta de classes. Com esse foco, a classe dominante na sociedade de classes deixa de ser definida unicamente em termos da propriedade dos meios de produção (MILIBAND, 1999, p. 476).

Neste sentido, Miliband (1999) propõem um modelo para a análise de classes centrada na dominação que se estrutura em três eixos: 1) Econômica, relativa aos meios de produção; 2) Política, relativa aos meios de administração e coerção do Estado; e 3) Simbólica, relativa aos meios para estabelecer a comunicação e o consenso. Desse modo, o autor apresenta um modelo capaz de incorporar aspectos centrais tanto na perspectiva de Erik Olin Wright, quanto na perspectiva de Pierre Bourdieu, mesmo que também situado no interior de uma abordagem neomarxista.

Em termos comparativos, o Quadro 1 sistematiza as perspectivas de Erik Olin Wright e Pierre Bourdieu:

Quadro 1
Dimensões comparativas das perspectivas de Erik Olin Wright e Pierre Bourdieu
Dimensões comparativas das perspectivas de Erik Olin Wright e Pierre Bourdieu

Mesmo que apresentado com o objetivo de sistematizar informações discutidas no texto, o quadro acima permite visualizar aspectos importantes do pensamento de Wright e Bourdieu. Conforme mencionado, tanto Marx quando Weber influenciaram decisivamente o pensamento dos dois autores, seja mediante a incorporação de aspectos centrais das teorias dos clássicos, seja como contraponto em perspectiva crítica.

Cabe destacar que as análises empreendidas sobre a classe média partem justamente do enquadramento teórico original de cada autor: enquanto Wright está interessado em reformular as bases teóricas do marxismo para a compreensão da estrutura de classes no capitalismo contemporâneo, mediante a problema-tização da classe média como estrato social heterogêneo e com características particulares que lhe diferenciam da burguesia e do proletariado, Bourdieu enfatiza as construções simbólicas que dão sustentação para uma noção de classe média que empreende estratégias para se distinguir do proletariado, por meio da valorização de bens culturais escassos ou considerados como supérfluos por quem se encontra nas proximidades da fronteira das necessidades básicas.

Considerações finais

No quadro da sociologia contemporânea, as perspectivas teóricas de Erik Olin Wright e Pierre Bourdieu têm sido operacio-nalizadas para diversos estudos empíricos realizados em espaços sociais diversos. Enquanto a proposta neomarxista de Wright tem sido instrumentalizada em estudos que têm como objetivo descrever a estrutura de classes de sociedades específicas, compreendendo o peso de cada segmento de classe na composição dessa mesma estrutura, a perspectiva de Bourdieu encontra acolhida em estudos que se apropriam dos conceitos de habitus, campo e capital simbólico, no intuito de evidenciar as relações de poder que se estabelecem entre grupos sociais concretos.

Mesmo partindo de premissas epistemológicas distintas, Wright e Bourdieu estabelecem diálogo fecundo com a teoria sociológica clássica, seja adotando pressupostos já presentes em autores como, principalmente, Karl Marx e Max Weber, ou mesmo fundando novas bases teóricas mediante apropriação crítica. Se, por um lado, a perspectiva neomarxista de Wright pode ser entendida como um "marxismo" que incorpora categorias weberianas para explicar a complexidade da estrutura social no capitalismo contemporâneo, por outro, a abordagem bourdesia-na afirma a importância da dimensão simbólica para explicar as relações concretas estabelecidas entre as classes sociais, aspecto que aproxima Bourdieu da teoria weberiana.

Em Wright, a noção de "posição contraditória de classes" surge como uma inovação na tentativa de explicar a consolidação de uma classe média que tenderia ao desaparecimento segundo a teoria marxista clássica. A posse de ativos de qualificação e autoridade no processo produtivo parecem realmente estabelecer uma distinção desse estrato social para a classe trabalhadora tradicional. Mesmo que também dependa da venda da força de trabalho na esfera do mercado, a classe média possui interesses que, em oportunidades específicas, não convergem com os da classe trabalhadora, o que reforça a ideia da posição contraditória.

Por seu turno, a perspectiva de Bourdieu interpreta o universo simbólico da classe média como espaço dotado de regras morais que permitem a sua diferenciação das classes populares, muitas vezes o ponto de partida de uma trajetória de vida marcada pela ascensão social. Por isso a centralidade da rigidez moral e a importância da educação e da cultura erudita, entendidas como peças chave pela classe média, em termos de capitais simbólicos produtores de distinção.

Por fim, cabe destacar que, seja por meio de um marxismo reformulado, ou pela reafirmação da importância da dimensão simbólica na vida social, Wright e Bourdieu oferecem contribuições originais e efetivas para o estudo das estruturas e relações de classes nas sociedades contemporâneas. Isso torna tais perspectivas leitura obrigatória por todos aqueles que se aventuram pelos estudos sociológicos de classes sociais.

Referências

BOURDIEU, P. 1996. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus. 232 p.

______. 1998. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neo-liberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 152 p.

______. 2001a. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 311 p.

______. 2001b. A miséria do mundo. Petrópolis: Editora Vozes. 752 p.

______. 2007. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva. 361 p.

______. 2011. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zoulk. 560 p.

______. 2013. Capital simbólico e classes sociais. In. Novos Estudos CEBRAP. N° 96. São Paulo, julho. p. 105 - 115. https://doi.org/10.1590/S0101-33002013000200008

BURAWOY, M. 2010. O marxismo encontra Bourdieu. Campinas: Editora da Unicamp. 184 p.

ESTANQUE, E. 2012. A classe média: ascensão e declínio. Lisboa: FFMS. 115 p.

SANTOS, J. A. F. 1998. A teoria e a tipologia de neomarxista de classes de Erik Olin Wright. In: Dados [Online], Rio de Janeiro, Volume 4, n° 2. p. 377 - 410. https://doi.org/10.1590/S0011-52581998000200004

MILIBAND, R. 1999. Análise de Classes. In: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan. In: Teoria Social Hoje. São Paulo: Editora UNESP. p. 471 -502. 609 p.

WACQUANT, L. 2013. Poder simbólico e fabricação dos grupos: como Bourdieu reformula a questão de classes. In. Novos Estudos CEBRAP . N° 96. São Paulo, julho. p. 86 - 103. https://doi.org/10.1590/S0101-33002013000200007

WRIGHT, E. O. 1983. O que é marxista e o que é marxista na análise neomarxista das classes. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n° 12.

______. 1997. Class counts: comparative studies in Class Analysis. Cambridge: Cambridge University Press. 576 p.

______. 1998. A general framework for the analysis of class struc-ture. In: WRIGHT, E. et al. The debate on classes. London: Verso. p. 3 - 43. 356 p.

__________. 2015. Análise de Classes. In: Revista Brasileira de Ciência Política. Nº 17. Brasília, maio – agosto. p. 121 – 163. https://doi.org/10.1590/0103-335220151705

Notas

2 Toda a construção de uma cronologia é arbitrária, no sentido de que envolve escolhas e disputas. Nesse sentido, alguns autores consideram o marco inicial da institucionalização a Reforma Benjamin Constant, de 1890, enquanto outros propõem que ocupem esse lugar os pareceres de Rui Barbosa, de 1882, embora não tenham chegado a ser debatidos no Parlamento.
3 A definição geral do conceito de habitus remete à capacidade criadora e inventiva dos agentes e grupos sociais, um conhecimento adquirido que se transforma em razão prática.
4 Bourdieu afirma que acentuar a dimensão simbólica da vida social não significa atribuir menos importância à dimensão econômica, mas sim de fazer justiça a algo relevante que tem sido negligenciado (BOURDIEU, 2007, p. 25).

Autor notes

lfscorrea@gmail.com

HMTL gerado a partir de XML JATS4R por