Articles
Recepção: 05 Março 2019
Aprovação: 13 Fevereiro 2020
DOI: https://doi.org/0.4013/csu.2020.56.1.06
Resumo: O presente artigo tem como objeto o tema do desenvolvimento e direitos fundamentais no escopo da racionalidade constitucional ocidental, em especial, a brasileira, procurando responder à questão: como evidenciar a pluralidade de vidas e culturas que o projeto eurocêntrico racista busca apagar com o seu monismo desenvolvimentista? Com o pressuposto da necessidade de descentramento cognitivo para refletir sobre ontologias e epis-temologias sobre as quais o eurocentrismo se edificou e tematizar aspectos da formação da racionalidade ocidental, que oportunize aprender com culturas de povos originários na produção de outro dever ser. A metodologia usada foi orientada pela perspectiva quadripolar: epistêmica, teórica, morfológica e técnica, guiada ontologicamente com a perspectiva de identificar o monismo eurocêntrico confrontado por resistências. A técnica foi pesquisa bibliográfica e documental com levantamento em mapas de associação de ideias. E como principal resultado há a narrativa sobre a crise do projeto da modernidade seja como desenvolvimento, seja como regras que visam garanti-lo e a necessidade de enfrentá-la a partir da matriz que o estrutura.
Palavras-chave: desenvolvimento, constitucionalismo, direitos humanos, direitos fundamentais.
Abstract: This article aims to deal with the theme of development and fundamental rights in the scope of Western constitutional rationality, especially Brazilian one, intending to answer this central question: how can we show the plurality oflives and cultures that the racist Eurocentric project seeks to erase with its developmental monism? With the assumption of the need of cognitive decentration to reflect on ontologies and epistemologies on which eurocentrism was built above and thematize aspects of the formation of Western rationality in order to make it possible to learn from cultures of the peoples originary in the production of another must becoming. The methodology of work was oriented by the quadripolar perspective: the views of epistemic, theoretical, morphological and technical points, which are guided ontologically with the prospect of identifying the Eurocentric monism confronted by resistances. The technique of work was bibliographical and docu-mentary research, with survey in maps ofassociation of ideas. As the main result there is the narrative about the crisis on the project ofmodernity: on the subject of development and on the matter of rules that aim to guarantee such project, and the need to face it from the genesis of it is structures.
Keywords: development, constitutionalism, human rights, fundamental rights.
Introdução
Desenvolvimento e direitos humanos2, que se tornaram direitos fundamentais nas nações subalternizadas pelo colonialismo e colonialidade3 por imposição de relações de domínio, são categorias chave do projeto ocidental de civilização. O cerne do projeto é desenvolvimento e o direito é o seu viabilizador numa dinâmica em que direitos humanos e direitos fundamentais aparecem como questionamento ao direito e ao desenvolvimento.
A categoria desenvolvimento emergiu no âmbito das discussões sobre a situação social e econômica dos Estados nação como uma espécie de correção de termos como progresso, crescimento econômico, civilização, colonização, todos enfeixados na ideia de projeto único de ocidentalizar as comunidades políticas. Quanto mais próximo do modelo ocidental, mais desenvolvido, e quanto mais distante do citado modelo, menos desenvolvida será a nação.
A referida categoria foi sendo adjetivada com qualificações pretendidas para enfrentar as crises do projeto, tais como desenvolvimento sustentável com proteção ambiental, garantia de direitos humanos, reconhecimento dos vínculos territoriais e das diferenças existentes entre culturas e até mesmo a ideia de desenvolvimento solidário e fraterno. A pergunta que se faz é: há possibilidade de modificar o projeto de desenvolvimento e do direito da modernidade corrigindo detalhes da sua execução? E a resposta é não, considerando que para enfrentar os problemas ambientais, sociais, culturais e políticos do desenvolvimento é preciso enfrentar sua matriz, portanto a epistemologia, que o estrutura e sua ontologia.
Latouche (2010, 2013) indica que além de fazer o caminho oposto, é preciso buscar as bases que o projeto ocidental atacou e refere-se às relações sociais, ambientais, econômicas, comunitárias e jurídicas da África como oportunidade de aprendizagem. O autor afirma que a relação do ocidente com a África, para sair do escopo da colonialidade, precisa se estruturar na relação lógica de dom e contra dom, ou seja, organizar as relações dos que sofreram a colonização na perspectiva de que estes têm o que ensinar à Europa para além da contribuição da música e da estética, o que exige descentramento cognitivo.
A proposta pode ser ampliada para povos originários das américas que também sofreram a violência da colonização e que são ricos nas expertises referidas, considerando o debate sobre novo constitucionalismo latino-americano, que Médice (2012) refere como horizontalidade entre proteção à vida humana e à natureza, que resulta em cuidado com a diversidade de saberes e práticas de uma pluralidade de cultura, de ontologias e epistemo-logias que foram historicamente silenciadas, tendo como essência do ser o bem viver na perspectiva de cada povo e de sua diversidade cultural na relação com a natureza e com todas as vidas.
Gudynas e Acosta (2011) consideram que o bem-viver é uma forma de pensar em construção no âmbito de disputa pela ressignificação da constituição da América Latina que está problematizando o ser do projeto moderno do ocidente, voltado para uma perspectiva de sociedade em que convivem os humanos entre si e com as outras vidas nominadas de natureza. O fundamento para afirmação dos autores está na crença da necessidade de revisão da relação entre humanos e as forças cósmicas e telúricas, com sentidos relacionados ao sol, Pacha-tata, e a terra como Pachamama, tendo como valor a harmonia na relação entre as vidas orientadas pela inclusão, solidariedade, reciprocidade, respeito, complementaridade e equilíbrio.
Nesse viés, o bem viver é uma forma de perceber e conceber a vida e o universo a partir da relação entre a vida humana e as outras vidas, que assegure simultaneamente o bem estar das pessoas e a existência concomitante de todas as vidas, todas as espécies de plantas, animais e dos ecossistemas, o que exige outro entendimento a partir de forma diversa de conhecer, compreender a vida e conduzir-se no mundo.
Vale lembrar que as categorias desenvolvimento, constitucionalismo, direitos humanos e direitos fundamentais se tornaram estruturantes da racionalidade moderna após as duas guerras mundiais, em que as referidas categorias emergiram com natureza corretiva: o desenvolvimento como correção do progresso; constitucionalismo, direitos humanos e direitos fundamentais, como correção do direito. Foram consensos, ainda que precários, produzidos no pós guerra como forma de salvar a lógica da racionalidade moderna.
A relação entre as categorias referidas pode ser expressa da seguinte forma: desenvolvimento é o objetivo da vida em sociedade e os meios de alcançá-lo é a organização em comunidades políticas (constitucionalismo) formadas por regras (direito), havendo entre estas regras as que são o ponto de partida da vida em sociedade (direitos humanos e direitos fundamentais).
O presente texto tem o seu foco na discussão sobre desenvolvimento e direitos humanos e fundamentais, nestes incluído o direito ao meio ambiente sadio, tematizando aspectos da formação da racionalidade ocidental como parceria não autêntica (Latouche, 2013) com as nações colonizadas, que sempre tomou povos originários pelo critério da falta e pela inferioriza-ção racial.
O texto busca responder à questão: como evidenciar a pluralidade de vidas e culturas que o projeto eurocêntrico racista busca apagar com o seu monismo desenvolvimentista? O pressuposto é que a evidência só é possível com o descentramento cognitivo a partir de reflexões que permitam identificar que o projeto eurocêntrico se firmou atacando outras visões de mundo que são reveladas pelas resistências de povos colonizados como os continentes América Latina, África e parte da Ásia.
O objetivo geral desenvolvido foi analisar desenvolvimento, direitos humanos e direitos fundamentais como estruturas do projeto eurocêntrico e resistências que revelam as suas crises. E foram objetivos específicos: discutir desenvolvimento como finalidade do projeto eurocêntrico de dominação e direito como um dos mecanismos garantidores do alcance da finalidade do projeto referido, ambos questionados pelas resistências.
A orientação metodológica seguiu a perspectiva quadripolar (Bruyne et all, 1991) pelos polos: epistêmico, teórico, morfológico e técnico, na perspectiva de pluralidade ontológica, considerando a não existência de uma única visão de mundo, mas da configuração de ontologia hegemônica, a eurocêntrica, e as subalternizadas que permanecem como resistências, o que revela também a pluralidade de formas de conhecer, de refletir sobre a vida, de ver como as várias dinâmicas sociais se entrecruzam e que a técnica como se colhe informações, organiza-as e faz as leituras são reveladoras da cosmovisão adotada. A metodologia adotada é a hegemônica com a adoção da desobediência epistêmica (Mignolo, 2008) e ontológica no sentido de reconhecer a pluralidade e buscar revelar o que a epistemologia cartesiana sempre ocultou.
O estudo se deu por análise bibliográfica com levantamento em mapas de associação de ideias (Spink, 2010) orientado pelas categorias direito, direitos humanos, direitos fundamentais, progresso, desenvolvimento, economia auto-organizativa e juridi-cidades de resistência e fez parte de uma pesquisa sobre racismo como obstáculo à igualdade constitucional realizada em estágio de pós-doutoramento4. O resultado da análise é a presente narrativa sobre a relação desenvolvimento e constitucionalismo com a indicação da necessidade de descentramento cognitivo para aprender sobre a relação entre vidas humanas e as demais classificadas como natureza a partir de ontologias e epistemologias que foram e são atacadas pela racionalidade moderna, o que demanda o reconhecimento da relevância de todas as vidas e das comunidades políticas as quais pertencem os povos e que estes sejam reconhecidos como iguais pertencentes à sua comunidade política, cabendo a adoção de estratégias que favoreçam um constitucionalismo como comunidade política entre coassociados, que tenha como escopo a proteção de todas as vidas.
Progresso, desenvolvimento como objetivo de vida boa ou o bem viver?
No presente item, será discutida a categoria desenvolvimento como centralidade do projeto eurocêntrico orientada pela visão de tempo linear e em linha evolutiva, como estrutura de uma visão de mundo que se guia para um tempo futuro que nunca se alcança em razão de o olhar estar sempre deslocado do tempo presente. Também será apresentado questionamento à categoria desenvolvimento pela tematização do tempo linear, por sua atuação contra as outras vidas que compõem o planeta, por suas hierarquias entre nações colonizadoras e colonizadas. As críticas apresentadas atuam como resistência ao projeto hegemônico eurocêntrico e como descentramento cognitivo.
A categoria desenvolvimento atua como uma espécie de motor da racionalidade moderna, que orienta as relações humanas no tempo, espaço em perspectiva epistemológica, ontológica, a partir de teorias explicativas e justificadoras, técnicas e estratégias de operacionalidade. Ou seja, desenvolvimento é o orientador da vida, do projeto de felicidade, das utopias, é a própria razão de viver no projeto da modernidade. Vivemos para alcançar o desenvolvimento. E desenvolvimento está sempre associado à ideia de crescimento.
Primeiramente nominado como progresso que provocou danos à vida das pessoas e ao meio ambiente. A partir da política internacional, passou a ser nominado como desenvolvimento em forma de corretivo que satisfaz as necessidades do presente e das gerações futuras, mantém equilíbrio ambiental, respeita direitos humanos e cultura local. A cada anúncio de danos provocados pela lógica do desenvolvimento, uma nova qualificação emerge: desenvolvimento sustentável, solidário, fraterno, territorial etc.
É provável que a ideia de crescimento ou progresso tenha surgido nos preparativos para a adoção do paradigma da modernidade, considerando inferências em Aristóteles e Santo Agostinho. Por exemplo, em Aristóteles (1987), há afirmação de que o ser humano aspira saber, sendo as dificuldades o ponto de partida para conhecer numa abordagem de história como progresso contínuo. Não é possível afirmar que há aí a mesma concepção de progresso da racionalidade moderna, mas é possível identificar a ideia de evolução para enfrentar problemas cotidianos visando alcançar a vida boa. Também, em Santo Agostinho (2014), há a ideia de progresso com fulcro religioso cristão em que o horizonte justificador do enfrentamento das dificuldades está no reino dos céus.
É possível ainda relacionar o emergir do pensamento evolucionista com a própria observação do mundo empírico, no sentido em que a vida ganha autonomia na medida em que o ser cresce. O fato é que a orientação epistemológica da modernidade é a perspectiva evolucionista, portanto com crescimento num tempo orientado como flecha com o antes, o durante e o depois. Concepção que foi reforçada por pensamentos filosóficos e das ciências da natureza com a ideia de evolução das espécies de Darwin (2003) que influenciou teorias filosóficas e sociológicas, numa forma de darwinismo social.
Kant (2008) indica que o ser humano realiza os seus fins de modo progressivo na história e toma a ideia de progresso numa perspectiva teleológica e indica nove proposições a respeito do devir humano que vai do ser humano enquanto natureza com seus impulsos, vaidades e perfídia, que evolui progressivamente pela moral e razão, sendo racional apenas o ser humano, tendo este como maior desafio o viver sob regras, o que o faz com seu desenvolvimento moral pelo direito.
Outro reforço a perspectiva evolucionista da concepção de progresso é possível identificar em Adam Smith (1996), que divide a história da humanidade em quatro estágios: era dos caçadores, era dos pastores, era da agricultura e era do comércio, tomando como condição para definição das eras as atividades de subsistência empregadas, num viés de crescimento evolutivo, implicando em sair de uma situação inferior para uma melhor, chegando a mostrar-se explicitamente preconceituoso com relação a outros povos, que ele considerava em estágios inferiores.
Já para Hegel (1992), a história categorizada como universal representa o desenvolvimento da consciência de liberdade num progresso gradual com diferenciações cada vez mais reais que são resultado da ideia de autonomia numa dinâmica com natureza dialética, que vai da sensação, à consciência de si e consciência para si, que evolui por meio da razão, a qual faz emergir conhecimentos que possibilitam o trabalho para a produção de riquezas.
Como se pode notar, em Kant, o percurso da humanidade encontra-se numa evolução para melhor a partir da moral que é ensinada e aprendida e para Hegel a moral faz parte do sentimento que o ser humano passa a ter ao tomar consciência por meio de uma dinâmica de tese, antítese e síntese.
As críticas à ideia de progresso começam a ser percebida a partir da dialética indicada por Hegel, mas a crítica que evidencia o problema só aparece com Marx (2011), ao apresentar as contradições do próprio sistema, buscando responder a quem beneficia o progresso. Mas vai além disso: apresenta outra lógica do progresso pela apropriação da força de trabalho numa dinâmica em que a indústria se desenvolve e a criação de riqueza passa a depender menos do tempo e da quantidade de trabalho empregado, e mais do poder exercido na apropriação do trabalho alheio. A crítica de Marx não alcança o paradigma evolucionista em razão de o questionamento se referir à distribuição do produto do trabalho, o que não alcança a hierarquia em que o ser humano se coloca acima das outras vidas e se percebe em tempo linear.
A crítica à percepção do tempo como linear é feita por Walter Benjamin (2006), quando o autor teoriza sobre progresso com crítica à visão linear da história como continuum pela prática de encadeamento teleológico dos fatos históricos, com a recusa de um avanço positivo quanto a crença no devir da humanidade, adotando a perspectiva de que a ação atualiza a experiência do evento histórico, portanto a visão de um passado e futuro presentificado.
Vale considerar a crítica feita ao progresso no âmbito das resistências ao colonialismo, a qual denuncia que o pensamento europeu coloca a si próprio como a referência de civilização para o progresso e as diferenças são classificadas como não civilizadas, bárbaras, selvagens no projeto que se fez no par moder-nidade/colonialidade, que, segundo Arturo Escobar (2003), não se separa, teve início em 1492 na colonização das américas, é planetária, é racializada, atua pelo controle do trabalho sobre as outras vidas chamadas de natureza, como estratégia para eliminar o outro, o local, o tradicional.
Quijano (1992) afirma que a luta dos dominados, ao enfrentar e vencer o colonialismo, não derrotou o poder hegemônico dos europeus e seus descendentes euro-norte-americanos. E apresenta como os principais alvos desse poder a América Latina e a África, que continuaram sob o jugo da colonialidade como sucessora do colonialismo que se codificou como estruturas in-tersubjetivas pelas diferenças raciais, étnicas, antropológicas ou nacionais com pretensão científica e objetiva de significação a-histórica que atua como colonização do imaginário dos dominados, que é lida como progresso/desenvolvimento.
Ribeiro (1992) considera que o conceito de desenvolvimento é uma categoria inclusiva que faz parte tanto do senso comum quanto da linguagem especializada, destacando-se como uma das ideias básicas da modernidade como algo que atua como uma religião secular e quase impossível se opor a mesma. Trata-se de uma categoria com ampla abrangência, que recobre desde direitos individuais, de cidadania, até esquemas de classificação dos Estados-Nações num pretenso sistema planetário, passando por atribuições de valor à mudança, portanto com múltiplas faces que expressam tradição, justiça social, bem-estar, destino da humanidade, acumulação de poder econômico, político e militar, e muitas outras conotações vinculadas a ideais de relações apropriadas entre humanos e entre estes e a natureza.
Latouche (2013, p. 180) discute o quão dissonante é a palavra desenvolvimento para alguns povos africanos, inclusive o fato de não haver tradução para referida terminologia em muitas culturas africanas e a diversidade de sentidos atribuídos em outras, com sentidos tais como: "a voz do chefe"; para Camarões; "sonho do homem branco" em língua Eton; na língua Moré, não há tradução, há uma ideia associada: "nós lutamos para que sobre a terra, as coisas funcionem para o corpo" ou "a busca por um bem-estar social harmonioso pela comunidade, com raiz na solidariedade"; para a língua pulaar, significa "um bem-estar social harmonioso onde cada um dos membros, do mais rico ao mais pobre, pode encontrar seu lugar e sua realização pessoal". O autor considera que as influências do ocidente chegaram à África e onde há maior influência europeia, desenvolvimento é visto como "ganhar os projetos" ou "ganhar um branco", que funciona como solução para todos os problemas.
Ribeiro (1992) afirma ainda que a categoria desenvolvimento tem dois aspectos macro integrativos: como ideologia/utopia que dá sentido às posições desiguais e à explicação através da qual os considerados não desenvolvidos poderiam "entender" suas posições e acreditar que existe uma saída para a sua situação de atraso.
A concepção de desenvolvimento como ideologia/utopia organizativa, segundo Ribeiro (1992), informa as duas preponderantes visões opostas de sociedade para o ocidente: o discurso capitalista liberal e o socialista. O discurso capitalista apresenta-se centrado nas forças do mercado, entidade de poderes corretivos e reguladores da ação dos agentes econômicos e cujos trabalhos recompensarão os indivíduos mais capazes, permitindo que eles, e por extensão a sociedade como um todo, progridam, com objetivos a serem alcançados quase sem intervenção do Estado, com poder e acesso diferenciado a recursos naturais e humanos. E o discurso socialista considera que as sociedades se dividem em classes que têm acessos diferentes aos meios de produção, que o livre mercado é ilusão, com a defesa de que as forças do mercado devem ser reguladas pelo Estado para se atingir justiça social, sendo desenvolvimento o arranjo orquestrado de poder político e econômico que leve em consideração um objetivo redistributivo. Portanto, os dois discursos estão organizados em visão economicista a partir do desenvolvimento.
Ribeiro (1992) afirma que a questão central da diferença entre progresso e desenvolvimento é o discurso ambientalista que se apresenta como uma forma alternativa de desenvolvimento e que se tornou em interlocutor dos principais agentes do campo desenvolvimentista, com amplo leque de alianças desde as grandes corporações multinacionais, até o movimento popular e sindical. E que deve o seu sucesso por se mostrar cega às contradições de classe.
O fato é que seja progresso, seja desenvolvimento, o foco do projeto ocidental é a produção de riquezas e com o referido foco vêm as questões relativas à apropriação, divisão, modo de produzir e refletir sobre a produção de riqueza, sendo tudo mediado por regras.
Latouche (2010) reivindica a ideia do decrescimento para enfrentar a crise ocidental do desenvolvimento, como ruptura epistemológica com a sociedade do crescimento. E cita os objetivos do milênio que, segundo o autor, o único país que atenderia aos tais objetivos seria Cuba, tratando desenvolvimento como um sentido "etnocêntrico e etnocidário [que] se impôs por intermédio da sedução, combinada com a violência da colonização e do imperialismo, constituindo uma verdadeira "violação do imaginário" (Latouche, 2010, p. 221).
O citado autor discute que a crise da sociedade de mercado demanda a construção de organização social autônoma, democrática e ecológica como ruptura com a sociedade do crescimento, portanto a proposta de decrescimento, considerando tratar-se de uma crise de fundamentos do projeto cultural e civilizacional, que não significa pintar o desenvolvimento "de verdes, ou de sociais, ou de igualitárias, com uma dose mais ou menos forte de regulação estatal ou de hibridação pela lógica do dom e da solidariedade, mas de sair da economia" (Latouche, 2010, p. 224).
Para Latouche ser a-teu do desenvolvimento é romper com as bases imaginárias da instituição da economia para reencontrar a frugalidade da vida como pessoas livres da "escravidão publicitária criadora de necessidades fictícias" (2010, p. 224), que não significa necessariamente abolir dinheiro, os mercados, o salário, significa não ser dominado pelo dinheiro, pelos mercados e pelo salário, significa romper com o espírito do capitalismo, com a obsessão pelo crescimento, em substituição a "mão invisível" do mercado por mãos visíveis que trocam bens e serviços, em que a sociedade da boa vida terá o nome que a mesma quiser dar.
Latouche (2010) levanta algumas denominações da sociedade desejada em culturas diversas: florescimento; melhoria das condições sociais de todos; estar bem em grupo; brilho de uma pessoa bem nutrida e livre de toda preocupação; viver bem, com o objetivo único de romper com a cultura de destruição do projeto ocidental de europeizar o mundo que inferioriza os traços físicos diferentes dos seus para criar a condição de dominação; que empurra povos para guerras e no contexto bélico roubar suas riquezas; alimenta a inferiorização de povos que passam fome para produzir grãos para os animais dos europeus. O mediador de tudo isso é o conjunto de regras que garante o funcionamento de tudo conforme o previsto, portanto cabe tematizar e enfrentar a lógica de justiça e juridicidade ocidental que trata o conflito até a sanção, não sendo compromisso do direito a restauração dos elos sociais cindidos no conflito, funcionando como a cabeça de madeira da fábula de Fedro kantiana (Kant, 2003), podendo até ser bela, mas lhe faltando o cérebro.
Não há dúvidas de que o projeto modernidade/coloniali-dade enfrenta crises na sua estrutura mais adensada, ou seja, na sua ontologia e epistemologia, por isso não é possível corrigir um aspecto do mesmo sem se voltar para o seu ser de modo amplo.
A indicação de pensar as raízes do projeto, buscar compreender as culturas a que o referido projeto se impôs é oportunidade de ver além da história única, de refletir sobre o nosso ser e de como queremos conhecê-lo como resistência ao imaginário colonizado e pela ressemantização do nosso ser.
Constitucionalismo como correção do direito e o não enfrentamento das crises da juridicidade ocidental
O item foi desenvolvido com a discussão do direito como conjunto de regras que conduz ao desenvolvimento que, após as guerras mundiais, a Constituição ganhou evidência, como o ponto mais alto da pirâmide de Kelsen (1998), que atua como correção do conjunto de normas aprovados pelo poder político, o que não tem produzido o efeito de enfrentar a dupla crise da juridicidade ocidental: o não cumprimento da promessa do direito de pacificar a sociedade e a não garantia ao igual pertencimento ao pacto de nação. O desenho apresentado é confrontado com a apresentação de resistências das visões de mundo que foram atacadas pelo projeto colonial, seja quanto à finalidade da vida em sociedade pela resistência de povos originários do território que foi nominado como América com o princípio do bem viver no novo constitucionalismo latino-americano e pelo enfrentamento do conflito oriundo de povos tradicionais africanos. As resistências são apresentadas como descentramento cognitivo para repensar as crises vividas no âmbito do projeto eurocêntrico.
O objetivo do evoluir para melhor, segundo Kant, como já referido, seria alcançado pelas regras morais e do direito. Há pelo menos dois problemas estruturantes do direito que o impedem de ser o favorecedor do desenvolvimento: o não igual perten-cimento à nação e o não comprometimento do direito com a pacificação das relações em conflito.
Kant adensa o conceito de direito para além do conjunto de normas de um país para mostrar os seus fundamentos, tomando como lei universal do direito agir "externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos" (Kant, 2003, p. 77), com a perspectiva de que a restrição da liberdade não se dá em função da obrigação, mas pela lei universal, fazendo de todo injusto um obstáculo à liberdade, cabendo-lhe coerção justificada não por ela própria, mas pela lei universal.
O curioso dessa formulação de Kant é que a concepção foi produzida sob os escombros racializados, escravistas da colonização, que, por si só, representavam o obstáculo à liberdade. A única explicação plausível é o fato de as pessoas escravizadas não serem reconhecidas como parte da comunidade política que se regula pelo direito nem mesmo como humanos, o que é justificado por Hegel (1992) como não consciência da superioridade humana, inicialmente, explicada como desconhecimento da existência de espírito5 e que, nas revoluções burguesas, ocorre a revelação de a superioridade não se justificar pelo espírito, mas pela razão, o que se une à justificativa racional kantiana, com o diferencial da forma como evolui pela dialética, não como soma, mas pelo enfrentamento de contrários.
Os fundamentos apresentados por Kant serviram de parâmetro para a futura teoria geral do direito de Kelsen, embora tenha havido com Hegel proposta de leitura teórico-filosófica que poderia ser a base para uma futura crítica a base kantiana, mas a filosofia do direito hegeliana pouco foi explorada na discussão dos fundamentos do direito.
O diálogo mais ilustre com a filosofia do direito de Hegel foi a do jovem Marx (2005). Na referida obra, Marx considera o pensamento de Hegel místico e que o mesmo não percebe os paradoxos por ele constituídos, a que Marx chama de antinomia sem solução, resultando em uma inversão em que a condição se torna condicionada, o determinante torna-se determinado, o produtor torna-se produto, o sujeito torna-se predicado, o que o impede de perceber que o desenvolvimento lógico da família e da sociedade civil ao Estado é aparência.
Por outro lado, afirmando a perspectiva kantiana, Kelsen (1998) em sua teoria pura do direito, considera que o que faz do direito norma não é a sua forma, mas a sua natureza prescritiva, bem como não é sua generalidade, mas a natureza normativa como prescrição em forma de condicionamentos como norma, pelo enunciado hipotético: se A é, B deve ser, em que a primeira parte é o suporte condicional fático e a segunda é o suporte prescritivo, o dever ser.
Para Kelsen (1998), o dever-ser jurídico abrange as três significações: ser prescrito, ser competente e ser permitido positivamente numa comunidade jurídica formada pela conduta recíproca dos indivíduos como o que há de comum e que consiste numa ordem formada por indivíduos diversos, com diversidade de raças, religiões, concepções de mundo, grupos com interesses diferentes e antagônicos.
Eis a questão: a comunidade jurídica exige conduta recíproca. Qual a reciprocidade numa sociedade racializada movida pelo racismo estruturante? Não há. E quando Kelsen (1998) escreveu suas teorias o mundo já era racializado. Mais uma vez a justificativa plausível para isso é o não reconhecimento da racia-lização inferiorizada como parte do pacto de nação.
A teoria do direito acima apresentada tem sua identidade pela separação entre direito e: moral, política, ciência, educação e direito natural, que se faz por meio de normas gerais e abstratas aprovadas por procedimento legislativo considerado legítimo, que se aplicam ao caso concreto pelo poder judiciário como poder técnico.
As concepções de direito indicadas, no início e meados do século XX, assistiram a duas guerras mundiais, regimes totalitários como fascismo e nazismo. E, ao final da segunda guerra, os vencedores se reuniram e fizeram a Declaração Universal dos Direitos Humanos em que as tradicionais divisões entre direito e moral, direito e política, direito natural e direito positivo foram aproximadas e lidas por Habermas (1997) como tensões permanentes e necessárias.
Habermas (1997) considera que esse processo criou as estruturas para o salto paradigmático do estado social, que foi forjado para superar a crise do Estado liberal, mas que criou problemas por reforçar o poder executivo com oportunidade de poder concentrado que podia oportunizar regimes de exceção. Esse salto resultou no paradigma do estado democrático de direito ou estado constitucional, que aparece como corretivo do direito.
Para compreender o novo paradigma o autor acima citado propõe-se a fazer uma releitura da razão kantiana no âmbito da crise da modernidade, tomando o direito como medium das relações sociais, diferindo de Kant por considerar que não é a razão prática nem a razão pura que explica o direito, mas a razão comunicativa, por isso, para o autor, o direito como me-dium é auto-organizador de uma comunidade que se autossig-nifica como associação voluntária de membros do direito, livres e iguais, na qual o medium direito possibilita e operacionaliza a participação de todos os seus membros.
Habermas (1997) considera que o ponto de partida para o sistema jurídico são os direitos que os cidadãos se dão, se querem regular de forma legítima o seu viver conjunto, em que a legitimidade do direito, em última instância, depende de um determinado arranjo comunicativo, na condição de serem os membros da comunidade política coassociados livres e iguais pelo direito, sendo, portanto, o princípio da democracia a ideia de uma auto-legislação da cidadania.
Na releitura do direito pela relação direitos humanos, direitos fundamentais e soberania popular, Habermas (1997) retoma a afirmação kantiana de direito como liberdade e coerção, justificada a coerção como garantia de liberdade e, com isso, considera como direitos humanos e direitos fundamentais os direitos à liberdade subjetiva, o mais livre possível para conduzir suas vidas. E, para isso, reivindica garantias sociais, técnicas e ecológicas na medida em que cada povo e cada cultura considera como necessárias para o exercício das liberdades subjetivas, o que permite afirmar que só é direito, na racionalidade moderna, o que é aceito por todos e só é constituição se for democrática e tiver como fundamento os direitos fundamentais.
Vale ainda considerar que a categorização que o autor faz não deve ser lida como etapas ou gerações de direitos, mas que os direitos fundamentais são as iguais liberdades subjetivas de ação e as demais categorias são as viabilizadoras das referidas garantias. De modo que direitos fundamentais são as liberdades de ter direitos, de ir e vir, de se expressar, de ser proprietário, como membro de uma comunidade política e, por assim ser, pode reclamar quando considerar que o seu direito de ter direitos foi violado. E na condição de membro da comunidade política pode participar como seu representante. Quando considerar que não dispõe de iguais condições para ser igualmente cidadão/ cidadã pode demandar condições sociais, técnicas e ecológicas que promovam a participação dos membros como coassociados livres. Eis a metáfora do ponto de partida do direito criada por Habermas (1997) como direitos fundamentais.
Portanto, a gramática do constitucionalismo torna-se possível por meio de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos basilares que adquirem o seu sentido normativo, não por si próprio, através de sua forma, nem pelo conteúdo moral, mas por meio de um procedimento de elaboração legislativa que gera legitimidade pela aprovação do corpo representativo do povo em um procedimento caracterizado pela discussão e pela publicidade.
A atuação do cidadão em relação às normas estatais guarda a ideia de autolegislação como autonomia moral em nível da vontade individual e assume o significado de autonomia política na formação da vontade coletiva, que promove a organização do Estado que deve servir à auto-organização politicamente autônoma de uma sociedade que se constitui como associação de coassociados livres e iguais pelo direito.
Aqui reside o problema chave do direito enquanto racionalidade ocidental que se erigiu sob os desígnios da raça. A condição de livres e coassociados estruturou-se nas nações colonizadas e até nas colonizadoras, nos casos de migração, pela inferiorização dos não brancos, que foram escravizados ou dizimados. Após muitos anos e por meio de muitas lutas os não brancos ganharam formalmente a condição de iguais coassocia-dos, porém a condição não se materializa em razão do obstáculo estruturante da racialização em forma de imaginário coletivo, que se expressa nas estatísticas sociais, na ocupação de poder, nas hierarquias sociais, na produção de conhecimento. Esta garantia não ocorre para os não brancos nem na Europa nem na euro-américa, muito menos na África, América Latina e Ásia. As constituições se autodeclaram formadas por iguais pertencentes, mas a realidade se mostra muito distante.
Na perspectiva teórica de reconstrução feita por Habermas (1997), só é possível referir-se como direito propriamente dito, no contexto brasileiro, a partir da Constituição de 1988. É a primeira Constituição que trata todos como semelhantes pela garantia de igualdade6 como direito fundamental. Já no preâmbulo, a CF-88 anuncia o direito de que todos são semelhantes. As evidências de todos como semelhantes está em "povo brasileiro", "Estado Democrático", a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos e o fundamento na harmonia social.
Os fundamentos soberania, cidadania e dignidade também evidenciam o direito em que todos são semelhantes como coassociados livres em que a comunidade política garante as condições para igual participação, bem como consta nos fundamentos a finalidade ontológica do direito: "garantir o desenvolvimento nacional".
Nos objetivos, art. 3°, ou seja, o "para que" constitucional, novas evidências do direito como medium pelas categorias "reduzir desigualdades" e "promover o bem de todos", com a vin-culação do objetivo do projeto de nação como desenvolvimento, ou seja, a nação tem a funcionalidade de promover a boa vida para todas as pessoas.
Nos princípios, art. 4°, a evidência de direito como medium está na prevalência dos direitos humanos como condição para a promoção do projeto de nação. Já, o segundo título da CF-88, traz a enumeração das garantias fundamentais do Estado Brasileiro: art. 5°, as garantias propriamente ditas, na perspectiva de Habermas (1997), as liberdades subjetivas, incluído o direito de petição; no art. 6° e no 7°, os direitos sociais; do 8° ao 17°, as liberdades políticas, as garantias técnicas se encontram nos art. 209 a 214, a educação, e os art. 218 e 219, a ciência e a tecnologia. A garantia ecológica está no art. 225.
Ainda no âmbito da CF-88, há o reconhecimento de que o projeto de nação encontra-se racializado e por isso cria três instrumentos normativos para garantir os direitos fundamentais, sendo, portanto também direitos fundamentais que reforçam o ponto de partida do direito de uma comunidade política de semelhantes: o repúdio ao racismo, como princípio no art. 4°; inciso VIII; o racismo como crime inafiançável e imprescritível no art. 5°, inciso XLII; proteção à cultura afro-brasileira e indígena, nos art. 215, caput e § 1°, 2° e inciso V do § 3° e art. 216, caput, § 5°; bem como a garantia das terras aos remanescentes dos quilombos, no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT.
Os direitos e as garantias fundamentais positivados na CF-88 contam com as categorias teorizadas por Habermas (1997). É possível afirmar que, na CF-88, há as garantias fundamentais e mais os instrumentos da tipificação do racismo, da proteção à cultura afro-brasileira e a garantia de terras para os remanescentes dos quilombos. E, na legislação especial, há a garantia de promoção do ensino da história da África, Lei 10.639/03, alterada pela Lei 11.645/08; a condenação da prática de racismo, Lei 7.716/89, além dos direitos que garantem condições para o exercício da igual cidadania para atender a especificidade da desigualdade racial, como a lei de cotas na universidade, Lei 12.711/2012. Portanto, configuram-se, no plano legislativo, todas as garantias para os afro-brasileiros como semelhantes. Como se justifica a situação de racismo e de intolerância diante de leis tão precisas na garantia dos direitos fundamentais aos afro-brasileiros, que até mesmo permitem considerar o direito como medium das relações cotidianas?
Vale considerar que o direito não se trata apenas de leis, mas está implicado especialmente nas instituições que tornam concretas as políticas públicas que enfrentam a desigualdade racial e nas instituições que produzem a decisão judicial. E elaborar a lei parece acionar as esferas do pensamento racional, mas colocar em prática implica em enfrentar a cultura racista incrustrada no imaginário coletivo que nunca contou efetivamente com enfrentamento nem social, nem institucional, tendo em vista a orientação teórico-ideológica que considerou o Brasil como vivendo a cordialidade racial7 propalada por Gilberto Freyre (2004).
Na teorização de Habermas a questão do obstáculo da raça seria enfrentada pelo direito de petição e/ou pela demanda de garantias sociais. Do mesmo modo, seria com as condições ecológicas que seriam demandadas na medida em que afetassem a dignidade humana também em forma de requisição pelo sujeito constitucional.
Ocorre que a desigualdade racial e a exploração das condições naturais fazem parte do imaginário coletivo de nação como natural. Para as garantias serem acionadas com sucesso precisa haver um imaginário antirracista por parte do pretenso requerente e do intérprete do direito, seja como gestor público, seja como aplicador. E isso só ocorre com mudanças culturais favorecidas pela atuação do Estado, pelos processos de comunicação que formem e alterem a memória coletiva.
Halbwachs (1990) considera que o pensamento individual só se torna lembrado na medida em que este é colocado nos quadros sociais da memória e participa da memória coletiva e que as situações vividas só se tornam memória coletiva se o que vem à lembrança sentir-se ligado afetivamente ao fato lembrado.
O não registro na história dos atos heroicos do povo negro, como legítima resistência que resultou na mudança da arquitetura constitucional, é uma ausência que implica em falta dos referentes negros na formação da memória social e, consequentemente, não participação na memória coletiva e com isso o afeto produtor de pertencimento é impedido cotidianamente nos atos racistas e no silenciamento quanto aos heróis e às heroínas do povo negro e a natureza racial da exclusão social.
Nos dizeres de Rosenfeld (2003), constitucionalismo é um sentimento de pertencimento nas dinâmicas metafóricas e me-tonímicas. Seria como se o sujeito constitucional fosse esvaziado do seu conteúdo branco e elitizado para tornar-se um vazio metafórico a ser preenchido por todas as pessoas pertencentes à comunidade constitucional, sendo todas e ao mesmo tempo nenhuma delas e cada uma delas como parte do todo constitucional num desenho metonímico, o que só ocorre numa cultura que queira isso, o que será feito como direito à memória pelo direito de saber a verdade sobre a história da sua comunidade política, o que não ocorreu nem no Brasil e nenhum lugar sob o domínio do eurocentrismo.
Há a garantia constitucional de direito à memória que, na perspectiva do direito como integridade (Dworkin, 2003), trata-se de um direito fundamental, considerando que o direito à memória diz respeito à igualdade constitucional do Art. 5° da CF-88. Porém, a existência da garantia constitucional pouco alterou as dinâmicas sociais, continuamos não sendo ensinados a sentirmo-nos sujeitos constitucionais que convivem e se relacionam com outros sujeitos igualmente constitucionais, são poucas as oportunidades de aprendizado do sentimento de democracia constitucional8.
Embora o processo constituinte tenha sido importante para avançar em conquista de direitos, o aprendizado da experiência foi negligenciado na sua transmissão. As duas garantias, a de pertencer à comunidade política e a de ser tratada com igual respeito e consideração (Dworkin, 2003), configuram-se como necessidade básica para o exercício do direito subjetivo base, o de cidadania.
É como se o avanço entre o passado e o presente estivesse no reconhecimento legal do igual pertencimento dos afro-brasi-leiros, mas que não se aplica à realidade em razão de inexistência de um imaginário coletivo que não inferiorize a pessoa negra, de comportamentos sociais que expressem equidade, de políticas públicas e/ou em função da distorção das mesmas, de modo a repetir o passado, portanto exige reparação como forma de re-pactuar a nação.
Quanto ao outro problema do direito, o de pacificar as relações, há também a importância da formação de memória coletiva de nação pelo acionamento da complexidade da produção de consensos que a própria racionalidade ocidental buscou eliminar, como a perspectiva de juridicidade de povos originários alimentada por solidariedade que não se limita a funcionalidade da divisão do trabalho, que visa restaurar elos cindidos pelo conflito, sendo o ato da juridicidade não a decisão transitada em julgado, mas a pacificação das relações em conflito.
Latouche (2013, p. 187) considera a persistência e a res-surgência de uma certa "solidariedade africana". E, no âmbito desse tipo de solidariedade, a funcionalidade aparece num segundo plano e não como o principal. É como se fosse a inversão da lógica ocidental: aqui a solidariedade orgânica (Durkheim, 1987) é que é pressuposta: daí a valorização da consciência coletiva, a importância das relações de parentesco, o parentesco extenso que se estende para as relações de amizade, de vizinhança, política, religiosa, as relações de trabalho e as formas de poder, que é reforçado pelas cerimônias, cultos aos ancestrais, ligações com a terra e com o mundo invisível.
Latouche (2013) identifica que esse tipo de solidariedade afasta o isolamento e a solidão ocidental, ajuda nas dificuldades, resultando em obrigações de doar, de receber e retribuir que tecem os laços entre as pessoas, entre humanos e o sagrado, vivos e mortos, pais e filhos, entre os mais velhos e os mais novos, entre homens e mulheres e entre gerações. É esse tipo de solidariedade que orienta a reunião para resolução de conflitos de povos tradicionais da África.
A reunião ou a "palabre" de muitas culturas africanas vem sendo associada ao fenômeno das consultas nacionais e locais e modelos de resolução de conflitos pela recomposição, como o nome de justiça restaurativa e constelação familiar, nas quais as sociedades civis afirmam a exigência democrática e a desaprovação de ditaduras corruptas. O autor apresenta as dinâmicas vividas por povos tradicionais africanos em forma de reuniões comunitárias com a participação das pessoas da aldeia, que se reúnem e discutem até chegarem a um acordo. O evento é visto "como justiça de proximidade e modo de gestão de conflitos" (Latouche, 2013, p. 189).
As pessoas mais velhas, por serem as mestras na arte da palavra e no conhecimento dos costumes, atuam como guardiãs da memória da sociedade, mas tem sua ação no conjunto para evitar o risco de autoritarismo, sem deixar de usufruir da experiência das pessoas idosas que conhecem a história, os meios de garantir a subsistência e sabem enfrentar os problemas de administração das relações humanas, tais como luto, divórcio, conflitos, e sabem "interagir com as autoridades ancestrais (que têm o controle da chuva, da fertilidade e da fecundidade)" (La-touche, 2013, p. 192).
O autor apresenta uma espécie de reconfiguração do ju-rídico/político do projeto ocidental, como seu oposto, primeiro por associar aquilo que a lógica ocidental pretendeu a um custo alto separar e que não atingiu o mérito, a relação direito e política. E por elastecer a cena jurídica incluindo a restauração de elos cindidos. Enquanto no direito positivo ocidental o jurídico é concluído na decisão judicial, portanto se fecha na sanção, a "palavre" inclui um momento após, o da produção da conciliação como restauração dos elos sociais vinculados ao contexto, portanto à singularidade do caso e aos sentimentos produzidos no contexto.
O objetivo da "palabre" é mais a pacificação e a reconciliação e menos a busca da justiça em si, incluindo soluções místicas em que pode ocorrer de nenhuma pessoa ser denunciada e o conflito ser atribuído a um mau espírito, embora se saiba quem fez, mas perdoar para reconciliar e reestabelecer os laços históricos pode exigir a solução sobrenatural sempre com a aprovação do público. Entre os Odjukru da Costa do Marfim, a palabre termina com cerimônia, na qual cada pessoa do conflito prova o sal para esvaziar o rancor guardado (Latouche, 2013).
A função do sobrenatural é sancionar e garantir a decisão jurídica, concluindo a palabre com a reconciliação, que pode inclusive conter contradições, mas desde que reconcilie, a reunião atinge o seu fim. E mesmo os mais velhos precisam convencer, persuadir, num igualitarismo que não se confunde com a igualdade do ocidente.
O modelo ocidental de justiça também é questionamento por povos originários das américas. Huanacuni (2010) afirma a visão cosmogônica comunitária, não se limitando à relação social, mas de profunda relação com a vida, com duas fontes: Pachakama ou Pachatata (Pai cosmo, energia ou força cósmica) e Pachamama (Mãe terra, energia ou força telúrica), que geram todas as formas de existência, que buscam o permanente equilíbrio numa visão multidimensional, que inclui espírito, natureza com todas as vidas, sendo a terra o ponto de encontro de todas as vidas, em que o indivíduo não desaparece na comunidade, mas emerge, numa complexidade que exige além do código binário ocidental do sim e do não.
As discussões feitas têm o objetivo de ver outras ontologias e epistemologias embasadoras das formas de lidar com as regras para que vejamos a falibilidade do projeto jurídico e político da modernidade e ver as experiências sobreviventes ao modelo ocidental e com estas aprender. O exposto denota que a crise da racionalidade ocidental pelo direito que recebeu o corretivo do constitucionalismo padece de problema que afeta o seu ser nos seguintes aspectos: na sua identidade pelas separações a que está submetido e pela unidade pretendida; por ter modificado sua lógica de inclusão sem adotar transição para o novo parâmetro de inclusão, antes a pessoa escravizada não fazia parte do pacto de nação, o ex-escravizado passa a fazer parte do pacto, mas não houve transição para que este fosse devidamente incluído e sua extensão, onde começa, bem como onde termina a juridicidade, o que afeta o ser do direito.
Considerações finais
O texto discorreu sobre desenvolvimento, direitos fundamentais, constitucionalismo ou progresso e direito visando tematizar a centralidade da vida ou ontologia que nos move no modelo ocidental, suas crises e resistências, que revelam a pluralidade que o monismo desenvolvimentista busca ocultar.
A questão orientadora da discussão que foi como revelar a pluralidade de ontologias ou cosmovisões e epistemologias que o monismo eurocêntrico busca ocultar foi enfrentada por meio do descentramento cognitivo de duas categorias centrais do referido projeto: desenvolvimento e direito, sendo o primeiro a finalidade da vida na sociedade ocidental e o segundo uma dos mecanismos que visam garantir a finalidade buscada, pelo direito.
O que foi considerado como descentramento cognitivo foi a busca de resistências ao modelo que revelam outras finalidades da vida e outros meios de alcançá-la. Também fez parte do descentramento cognitivo a apresentação de aspectos da crise vivida que indicam problemas na ideia de desenvolvimento e no direito. O desenvolvimento resultou em cultura de consumo, que não garante nem a vida humana nem outras vidas, chamadas de natureza e se organiza num tempo evolutivo impossível de ser sustentável. Já o direito padece de dois problemas estruturantes: somos uma sociedade racializada, portanto impossível a ideia de comunidade política de iguais pertencentes e na funcionalidade do direito não constar a sua principal razão de ser a pacificação dos conflitos. Tudo isso enfoca a perspectiva ontológica, o ser da vida em sociedade.
Como lidar com isso? O texto apostou no descentramento cognitivo como caminho de identificar os aspectos da crise vivida, bem como de aprender com culturas de povos originários sobre o que queremos, sobre o propósito da vida em sociedade, que pode ter vários nomes, mas que seja centrado na vida em sentido amplo. E sobre o direito à memória como forma de enfrentar a memória coletiva racializada e para produzir consensos que pacifiquem a vida em sociedade.
A abordagem do viés do desenvolvimento se encaminhou para a visão de tempo linear evolucionista com produção de riquezas como finalidade única buscada, fundada em hierarquias produzidas entre as vidas humanas e as da natureza, em que o ser humano é separado das outras vidas, com a apresentação do modelo ocidental como inalcançável para todo o planeta, visto que o padrão de consumo é impossível de ser alcançado por todas as pessoas e que as condições do planeta não suportariam o disparate do consumo. Tudo isso com a tematização da finalidade da vida em sociedade: o bem viver das Constituições da Bolívia e do Equador com base em filosofias de povos indígenas ou as filosofias africanas da reconciliação ou a boa vida aristotélica que se configurou como consumo? Sabemos que permanecemos no modelo desenvolvimentista do consumo, mas o descentramento visou conduzir à reflexão de que precisamos mudar.
Além de discutir o que queremos, o texto trouxe a oportunidade de reflexão de como queremos alcançar a finalidade de nossas vidas ao tematizar o direito que deve ser o meio de pacificar os conflitos vividos, reconectar os elos cindidos nos conflitos ao trazer o todo do conflito para a cena do direito com as experiências africanas sob a orientação de uma perspectiva de restaurar a dinâmica social que se desfez ou foi atingida pelo conflito mesmo que isso não possa ser algo passível de ser replicado em todas as culturas e em todos os conflitos, portanto garantindo aquilo que já é princípio do direito, a singularidade do caso na produção da decisão judicial.
As duas dimensões refletidas possibilitam o descentramento cognitivo anunciado no texto ao apresentar aspectos ocultados pelo eurocentrismo de culturas e povos que foram vistos como não civilizados, selvagens quando, de fato, eram povos, culturas, economias, políticas, tecnologias, filosofias e ciências que foram dominadas nos processos de colonização, resultando em subalternizações que permanecem replicadas e alimentadas como colonialidade nas estruturas racializadas de poder e de domínio de povos e de territórios. Pensar sobre os temas podem nos levar a insurgências que conduzam a modificações da cultura hegemônica vivida.
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Notas
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