Resumo: O artigo, vinculado aos estudos sociais da ciência e, mais especificamente às controvérsias científicas, problematiza a questão energética proveniente de hidrelétricas como fonte de geração de "energia limpa" Apresenta-se, assim, de forma detalhada, a controvérsia da geração de energia limpa, em usinas de clima subtropical (região Norte do Brasil), tomando-se como investigação empírica a Usina brasileira chamada de Hidrelétrica Belo Monte, situada no Pará. Ao se utilizar a metodologia de Bruno Latour (Latour, 2016) para descrever e cartografar a controvérsia demonstra-se que a "realidade" é fabricada por estudos tecnocientíficos que direcionam a análise dos estudos, excluindo importantes variáveis de suas equações gerando conflitos ambientais relacionados com a controvérsia da energia limpa.
Palavras-chave: Hidrelétrica Belo MonteHidrelétrica Belo Monte,Controvérsias científicasControvérsias científicas,Energia limpaEnergia limpa.
Abstract: The article, linked to the social studies ofscience and, more specifically to scientific con-troversies, problematizes the energy issue from hydroelectric plants as a source of "clean energy"generation. Thus, the controversy ofclean energygeneration is presented in detail in plants of a subtropical climate (Northern Brazil), taking as an empirical investigation the Brazilian Plant called Hydroelectric Belo Monte, located in Pará. The methodology used to describe the controversy was the cartography of the controversy (Latour, 2016). In the end, it is demonstrated that the "reality" is fabricated by technoscientific studies that direct the analysis of the studies excluding important variables of their equations generating environmental conflicts related to the controversy of the clean energy.
Keywords: Belo Monte Hydroelectric Plant, Scientific controversies, Clean energy.
Articles
A Hidrelétrica Belo Monte: da controvérsia sobre energia limpa à produção da "verdade científica"1
The Belo Monte Hydroelectric Plant: from the controversy over clean energy to the production of "scientific truth"
Recepção: 05 Novembro 2018
Aprovação: 30 Março 2020
A matriz energética brasileira é majoritariamente renovável e a maior fatia provém das usinas hidrelétricas, que são também consideradas fontes limpas de energia por não emitirem Gases de Efeito Estufa. Entretanto, esse posicionamento que têm se mantido hegemônico é controverso e cientificamente tem sido debatido desde a década de 1990 sobre qual seria de fato a contribuição das usinas hidrelétricas quanto à emissão de gases que contribuiriam para o aquecimento global. Assim, este trabalho debruça-se no resgate da controvérsia sobre a geração de energia limpa na versão dos estudos tecnocientíficos que disputam os indicadores (e a produção da verdade) sobre a energia limpa.
Neste trabalho serão expostos dois cenários sobre o "estado da arte" desta controvérsia. O primeiro cenário expõe como a controvérsia opera no contexto energético brasileiro; no segundo, como ela é acionada para a construção da viabilidade Ambiental da Usina Hidrelétrica Belo Monte. A lente sociológica utilizada para acompanhar essa exposição faz parte das abordagens conca-tenadas sob o termo de "Estudos Sociais da Ciência e da Técnica", que emergem na década de 1970, e se dedicam a compreender as condições materiais, históricas, antropológicas de produção da objetividade do conhecimento (Latour, 2013). Essas abordagens chamadas de a "nova sociologia da ciência" (Shinn; Ragouet, 2008) dedicam-se a pesquisar a distinção entre política e ciência; a relação entre valores e a construção de fatos no fazer científico. De forma geral, são estudos que contrapõem-se à noção de racionalidade científica "pura" vinculada às noções de modernização e de verdade (Latour, 2013).
O programa inaugural que adota a abordagem de investigar como os elementos sociais influenciam na construção do conhecimento científico é a Escola de Edimburgo, com o Programa Forte da Sociologia, cujo principal representante é David Bloor que produz o princípio da simetria (Bloor, 1976) para analisar o que é considerado erro e acerto na construção científica. Nessa mesma esteira contextual, Harry Collins, principal representante da "Escola de Bath", propõe como forma de análise das controvérsias científicas uma versão própria do Programa Forte de David Bloor, conhecido como Empirical Programme on Relativism (EPOR) (Pestre, 1996).
A EPOR empenha-se em realizar estudos que demonstrem a flexibilidade interpretativa dos dados e resultados científicos; estudar os mecanismos que permitem o fechamento das controvérsias (por meio da estabilidade da flexibilidade interpretativa) e delinear a relação entre contexto social e político no fechamento das controvérsias científicas (Spiess et al. 2013). Para a EPOR a controvérsia é uma forma de compreender por quais atores e como os fatores sociais estão imbricados no conhecimento científico. A resolução da controvérsia não é fácil nem rápida e o autor argumenta que o acesso à verdade sobre como o mundo é não é acessível e óbvio, por isso o consenso científico é raro (Collins; Evans, 2010).
Há ainda mais uma abordagem dentro da "nova sociologia da ciência", que é a abordagem teórica e metodológica da Teoria do Ator-Rede (TAR), de Bruno Latour (1994; 2000; 2013; 2016) e colaboradores como Michel Callon (1986), Venturini (2010). Chamamos a atenção para a potencialidade desta abordagem ao invés das citadas anteriormente no que tange ao papel da materialidade das coisas (dos não-humanos) na construção do conhecimento. A TAR questiona a separação entre sociedade e natureza por meio da extensão do princípio da simetria de Bloor (1976), propondo, entretanto, a noção de "simetria generalizada" para dar o mesmo peso ontológico à ação dos humanos e dos não-humanos, adotando o termo "actantes" para nomear humanos e não humanos.
A ação do actante é delimitada pelo papel que ele promove na rede. Se sua presença faz diferença4 no curso da ação ele se transforma em um mediador importante que conecta outros actantes na rede. As associações da rede permitem visualizar, por meio de uma análise de flashbacks (Latour, 2000) quais actantes são mais fortes (atraindo mais actantes para próximo de si) e geram conexões mais longas em relação a outras redes. Redes que conquistam mais ligações geram, como efeito, a estabilização de argumentos, sociedades, naturezas construídas. Assim, poder e influência são efeitos construídos e negociados, nas situações de interação, sendo que cabe aos actantes gerar "interessamento" no maior número de actantes possíveis.
Para a TAR, o conceito de tradução está vinculado ao conceito de ação. A ação é um movimento composto por "desvios" provocados por actantes que traduzem seus anseios (e de outras pessoas e coisas) e que buscam interessar outros actantes nos momentos de interação social (Latour, 2016). Traduzir é "transportar transformando" (Latour, 2016); por exemplo, quando se diz: "a Eletrobrás defende que a energia proveniente de hidrelétricas de clima subtropical é limpa", a Eletrobrás opera como um tradutor da energia limpa. Há, contudo, diversos tradutores para o enunciado em questão, como veremos ao longo do trabalho. É no sentido de disputas entre versões de traduções que o conceito de controvérsia destaca-se por mostrar como são arranjados humanos e não humanos em diferentes versões sobre determinado fato5.
O primeiro passo na apreensão de como os fenômenos sociais e materiais são constituídos é possuir uma problemática de pesquisa, o segundo ponto é olhar em retrospectiva como os actantes se relacionam (ou são relacionados) em flashback (La-tour, 2000). Assim, ao invés de considerar a energia proveniente das barragens como limpas (como um a priori a ser seguido), considera-se que há uma tentativa de transformar esse enunciado "a energia proveniente de hidrelétricas de clima subtropical são limpas" em um fato (quando na verdade, trata-se de tentativas de estabilizar o enunciado em uma rede de relações que possuem ligações precárias e contingentes) (Latour, 2000).
A rede sociotécnica6 enquanto recurso analítico e metodológico tem o objetivo estético de mostrar os resultados do processo de tradução e interessamentos e de demonstrar que as "descobertas" técnicas e científicas (como a própria criação da eletricidade) são parte de um processo de "estabilização de redes" (Latour, 2000). A rede constitui-se num recurso em que actantes heterogêneos (rio, peixe, barramento, reservatório) são ligados por uma estrutura não linear, aberta aos actantes que promovam a diferença no curso da ação.
A Teoria do Ator-Rede questiona a utilização de indicadores apriorísticos para desenhar o que é sociedade e natureza e esse questionamento é também estendido para a construção de ontologias (ao invés de existir duas formas de ser no mundo, uma construída pelas ciências da natureza e outra pelas ciências da cultura). Tal construção é dada nas associações dos actantes e trata-se de uma ontologia das "geometrias variáveis" (Queiroz e Melo, 2008) que se formam na rede de relações. Assim, nas construções e negociações para transformar um enunciado em fato ou em ficção estão também em disputa as construções on-tológicas de sociedades e naturezas.
Nesse trabalho são disputados os indicadores sobre a emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE)7 dos reservatórios de barragens de clima subtropical. A controvérsia da energia limpa foi dividida de forma didática, em dois pólos de ação: um que constitui o "programa de ação", formado por actantes que trabalham para possibilitar a construção do enunciado "usinas hidrelétricas de clima subtropical geram energia limpa"; e; outro, chamado de "antiprograma de ação", formado por actantes que se colocam críticos em relação ao primeiro enunciado, advogando que o mesmo é uma ficção e que na prática as barragens contribuem com o aquecimento global. A nomenclatura "programa" e "antiprograma", na interpretação de Nunes e Matias (2003) propõe uma distinção ontológica que, embora revele agendas e demandas opostas, não é engessada, permanente.
Controvérsias, seguindo-se Latour (2000; 2016), são consideradas como conflitos que ocorrem entre cientistas, instituições, variáveis, indicadores, incluindo dimensões ontológicas, dentre outros elementos, nos momentos em que conhecimentos científicos não estão assegurados8. Na situação de estudo das controvérsias em empreendimentos conflituosos e muito impac-tantes, elas são acionadas por grupos de pressão (como cientistas, populações impactadas) que forçam a abertura de conhecimentos estabilizados, isto é, de caixas-pretas.
Este texto tem como objetivo secundário também demonstrar como e quanto a ciência e a tecnologia "trabalham" para ambos os lados de uma controvérsia, situando-se numa verdadeira esfera da disputa política. Assevera-se que o papel político deste artigo ao descrever as retóricas, as contrarre-tóricas, as "verdades que se estabilizam", as "ficções que são construídas", é apontar o que está em jogo (e como é jogado) a viabilidade da maior usina brasileira, em um momento histórico que um complexo de hidrelétricas são planejadas para o rio Tapajós.
Metodologicamente esse trabalho baseia-se na cartografia das controvérsias que segundo Venturini (2010) consiste em seguir três regras: a) a observação não deve restringir-se a apenas uma lente teórica ou metodológica; b) o pesquisador deve atentar-se ao máximo de pontos de vista possíveis; c) a expressão dos atores ganha predileção sobre as presunções do pesquisador. Entretanto, não se trata de dizer qual lado é mais científico que outro, mas de demonstrar os mecanismos que ambos os lados utilizam para estabilizar suas versões e, consequentemente, para encerrar a controvérsia.
A cartografia das controvérsias (Latour, 2016) consiste em seguir o enunciado "usinas hidrelétricas de clima subtropical geram energia limpa" enquanto ele está sofrendo um embate, e uma das formas de buscar esses dados é a análise documental de estudos como Gagnon (2002); Rosa et al. (2004; 2006); Eletrobrás (2009)Fearnside (2009; 2016); Fearnside e Pueyo (2015); Feitosa et. al (2011); Kemenes et. al (2008)) que colocam a controvérsia em movimento. Os estudos citados foram selecionados por que Philip Fearnside e Pingueli Rosa têm se destacado no embate sobre a emissão das hidrelétricas, desde a década de 1990.
É em 2004 que a controvérsia ganha destaque, ou seja, quando Fearnside escreve um artigo para a Climatic Change, usando como exemplo uma garrafa de coca-cola recém aberta para explicar a emissão massiva de metano que ocorrem nos vertedouros das usinas hidrelétricas. De acordo com seu artigo, os cálculos das emissões das barragens Amazônicas contribuem mais do que a utilização de combustíveis fósseis para o aquecimento global (McCully, 2006). Pinguelli Rosa et al. publicaram outro artigo, na Climatic Change em 2005, respondendo aos argumentos de Fearnside e questionando a analogia da emissão de metano, alegando que o guaraná seria a bebida brasileira mais indicada para perceber que as bolhas não escapam imediatamente, mas ficam ainda tempo suficiente para que o metano se transforme em gás carbônico (McCully, 2006ROSA et.al. 2004), supervalorizando assim as projeções das emissões.
Essa controvérsia foi chamada de fizzy science (McCully, 2006) e tem como centro da discussão sobre a emissão de gás carbônico e de metano nas turbinas e nos vertedouros das hidrelétricas. Aqui essa controvérsia será resgatada com base na metodologia latouriana da cartografia das controvérsias (Latour, 2016), a qual analisa um enunciado com base em documentos científicos sobre a controvérsia, notícias nos órgãos estatais.
Pela extensão e complexidade do tema esse trabalho se divide primeiro em descrever a controvérsia da energia limpa (trabalhada por meio da controvérsia da emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) nos reservatórios de barragens em clima subtropical) contemplando as hidrelétricas construídas na região Amazônica; depois é descrito como a controvérsia é reproduzida na construção da viabilidade ambiental de Belo Monte. O objetivo é demonstrar como os actantes e os mecanismos que operam na controvérsia mais ampla são apropriados na produção da viabilidade ambiental da Hidrelétrica Belo Monte.
Como dito anteriormente, para compreender a controvérsia da energia limpa em Belo Monte faz-se essencial descrever como se organiza a dinâmica da controvérsia sobre a emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) nos reservatórios de Usinas Hidrelétricas, em climas subtropicais. Recorrendo à cartografia das controvérsias vamos seguir o enunciado "a energia proveniente de hidrelétricas de clima subtropical são limpas", sendo que a natureza dos actantes não humanos acionados pelos cientistas são os GEE (CO29 [dióxido de carbono ou gás carbônico], CH4 [metano10]) e a floresta amazônica estão em disputa.
Esse enunciado é defendido pela rede do programa de ação porque quer transformá-lo em um fato. Contudo, o enunciado sofrerá variações por actantes que querem transformá-lo em ficção, porque acreditam que os reservatórios de hidrelétricas em clima subtropical não são limpas e geram alta emissão de GEE - posição defendida pela rede do antiprogra-ma. Salienta-se que as redes do programa e do antiprograma são desenhadas com base nas relações entre os actantes. Isto implica que a um actante interessa o outro para sustentar seus argumentos, suas versões sobre os fenômenos. Para adquirir o caráter de fato o enunciado deve resistir à "luta" entre os enunciados concorrentes e, uma vez que resiste, ele se transforma em um objeto do conhecimento científico, contudo, não é apenas o conteúdo do enunciado que está em jogo, mas também seu contexto de produção (Bachur, 2016).
Essa controvérsia está ancorada no contexto de inundação da área (florestas em áreas tropicais) que dá espaço para a formação do reservatório de água para a construção da hidrelétrica. Segundo Kemenes (2008) quando as plantas da região inundada são submersas, elas morrem e entram em decomposição, gerando
CO2 [gás carbônico] e CH4 [metano], que são liberados para a atmosfera por muitos anos. Parte desses gases são liberados para a atmosfera, por difusão ou por ebulição, na superfície da água. Outra parte é liberada abaixo das barragens, na saída das turbinas, devido à queda da pressão hidrostática (assim como parte do gás de um refrigerante sai logo que se abre a garrafa). Uma terceira parcela é lançada na atmosfera lentamente, por difusão, ao longo do canal dos rios, abaixo das barragens (Kemenes et al., 2008, p. 22).
Além dos pontos de medição da emissão dos gases (na superfície do reservatório, na saída das turbinas e ao longo do rio, abaixo da barragem), que são utilizados para diagnosticar o grau de emissão de GEE, estão no centro da disputa sobre o enunciado da energia limpa as formas de medir e avaliar a emissão de metano, um gás altamente poluidor "O impacto comparativo de CH4 sobre a mudança climática é mais de 20 vezes maior do que o CO2, isto é, 1 unidade de metano equivale a 20 unidades de CO2." (Gases, 2014, s/p).
A rede do programa utiliza os indicadores resultantes da medição de GEE (fluxos ebulitivo no reservatório, fluxo difusivo no reservatório e no trecho de jusante e degassing - "emissão de gases por estruturas de defluência da barragem" (BRASIL, 2014, p. 78)) na superfície dos reservatórios, e de metano emitido pela decomposição da vegetação na sub-superfície. Já os indicadores da rede do antiprograma são baseados nessas emissões, isto é, nas emissões de sub-superfície e superfície de metano nas turbinas e vertedouros e na zona de deplecionamento11.
A rede do programa de ação é composta por Luiz Pingue-li Rosa12 (ex-presidente da Eletrobrás, nos anos de 2003/2004); pesquisadores canadenses, como Luc Gagnon (2002); por instituições do setor elétrico como a Centrais Elétricas do Brasil S.A (ELETROBRÁS), Centrais Elétricas do Norte S.A (ELETRONORTE), Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL); Empresa Pública de Energia (EPE), além da organização International Hydropower Association (IHA). Essa rede utiliza o "método Furnas" (RUDD et al., 1993; ROSA et al., 2004; 2006) para produzir dados e buscam transformar o enunciado "a energia proveniente de hidrelétricas de clima subtropical são limpas", em um fato estabilizado.
O método é a alusão à forma que o estudo sobre emissão das barragens, realizado por FURNAS13 chegou à "conclusão de que as barragens são 100 vezes melhores do que os combustíveis fósseis, do ponto de vista das emissões de gases de efeito estufa" (Fearnside, 2015, p. 8). Sendo que "a omissão das emissões provenientes da desgaseificação nas turbinas e nos vertedouros é uma das principais razões por que o estudo (Ometto et al., 2011, 2013) produziu valores tão baixos para as emissões" (Fearnside, 2015, p. 8).
Para contrapor-se a esse posicionamento, Rosa et al. (2006) argumenta que os dados utilizados por Fearnside baseiam-se em outros estudos como o de Tundisi (não publicado), mencionado em Rosa et al. (1997) e de dados sobre a emissão das turbinas oriundos do trabalho feito por Galy-Lacaux et al. (1997) sobre a usina de Petit Saut, para utilizar em seu estudo sobre tucuruí (Rosa et. al., 2006). Portanto, a rede do programa empenha-se em demonstrar que a rede do antiprograma utiliza dados frágeis e que, portanto, não possuem as mesmas condições de pesquisa e de generalização que a rede do programa.
A rede do programa participa da execução de estudos financiados pelo setor elétrico (portanto, interessa o setor elétrico) e sua versão sobre a emissão de gases nos reservatórios estão sendo desenvolvidos pelo projeto "Balanço de Carbono em Reservatórios Hidrelétricos" (BALCAR14). Ressalta-se que os antecedentes desse projeto operam estudos desde 1992, "quando a COPPE/UFRJ e a USP/São Carlos iniciaram estudos com apoio da ELETROBRAS e do MCT" (Brasil, 2014, p.16). Participam do projeto como empresas executoras oito instituições de pesquisas brasileiras, são elas: Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (CEPEL15); Coordenação dos Programas de Pós Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE); Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Laboratório Central da Eletronorte (LACEN); Universidade Federal do Pará (UFPA); Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Associação Instituto Internacional de Ecologia e Gerenciamento Ambiental (IIEGA) (Brasil, 2014). O objetivo do projeto é:
o estabelecimento de diretrizes para monitoramento, análise de dados e modelagem, definição de boas práticas de gerenciamento relativas às emissões de gases de efeito estufa em reservatórios de hidrelétricas e execução de campanhas de campo em 11 hidrelétricas (oito em operação e três em construção) (Brasil, 2014, p.15).
Ressalta-se que os dados da emissão das usinas são essenciais para constar nas projeções que o setor elétrico realiza sobre as emissões brasileiras. Atualmente, a EPE desconsidera a emissão de GEE nas hidrelétricas, na projeção de emissões de gases do setor elétrico, para o ano de 2023 argumentando a falta de consenso sobre os métodos e os dados disponíveis de emissão de GEE, alegando a necessidade de consenso para começar a contabilizar a geração de GEE em hidrelétricas.
No que diz respeito às emissões provenientes de reservatórios hidrelétricos, apesar de existirem vários estudos nessa seara, não há até o momento consenso acadêmico sobre um método de estimativa confiável. Por esse motivo, tais emissões não são contabilizadas. Vários dos estudos existentes se baseiam nas emissões brutas dos reservatórios, porém os estudos mais recentes apontam para a necessidade de se contabilizar não somente as emissões brutas, mas sim as emissões líquidas, ou seja, é necessário se descontar as emissões existentes antes da construção do reservatório e as contribuições de montante, entre outros fatores. (Epe, 2014, p. 355. Grifos acrescidos).
A rede do programa sustenta que não há a alta emissão de GEE dos reservatórios tropicais, uma vez que a emissão de GEE, no ambiente tropical é parte da dinâmica da natureza daquele ambiente, posto que são áreas inundáveis em épocas de chuva, período em que emitem, naturalmente, uma determinada quantidade de gases (Gagnon, 2002). Logo, para esse grupo é necessário aferir a emissão natural do ambiente antes de fazer considerações sobre as emissões na zona de deplecionamento. Esse argumento busca respaldo no estudo "The International Ri-vers Network statement on GHG emissions from reservoirs, a case of misleading science" (Gagnon, 2002)16 que aponta para a necessidade de se fazer uma análise prévia da emissão de GEE para que seja verificada a emissão de GEE do próprio ambiente subtraindo esse valor após a instalação do empreendimento.
Ainda, a rede do programa aciona a comparação entre as suas projeções e as emissões das termelétricas, conforme consta em noticiado do dia 31/07/2014, no sítio eletrônico da Eletro-brás, quando fora divulgado a seguinte reportagem: "Pesquisa de abrangência inédita no Brasil comprova que hidrelétricas em áreas tropicais emitem muito menos GEE do que termelétricas de mesma potência17".
A rede do antiprograma, por sua vez, aglutina argumentos críticos aos estudos nos quais a rede do programa se baseia. Ela é formada por alguns pesquisadores ligados ao "International Rivers Network' (IRN) e à época, também ao "Intergovernmen-tal Panel on Climate Change"(IPCC)18,e a instituições brasileiras como o Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (INPA). Essa rede busca transformar o enunciado "a energia proveniente de hidrelétricas de clima subtropical são limpas" em ficção. Eles apóiam seus diagnósticos em indicadores, tais como: zona de deplecionamento, emissão nos vertedouros, nas turbinas, e sustentam que há grandes emissões de metano nos reservatórios (Fearnside, 2015), sendo que tucuruí seria, segundo esse autor, uma "fábrica de metano". Esses actantes têm posicionamentos críticos e alegam que os GEE, em usinas com reservatórios, são subanalisados pelos indicadores apontados por estudos financiados pelo setor elétrico.
Autores que constituem a rede do antiprograma são Philip Fearnside, José Tundisi, Bruce Forsberg e Eric Duchemin e membros da International Rivers Network (IRN), experts que estudam há anos os efeitos da decomposição de matéria orgânica nos reservatórios das usinas hidrelétricas brasileiras e canadenses e têm problematizado a questão mantendo-se, com isso, na disputa da controvérsia - pleiteiam a "verdade científica" -, utilizando-se de indicadores diferentes daqueles oficiais. Esse grupo de pesquisadores argumenta que os pontos de coleta de emissão de GEE, como a medição nas turbinas e nos vertedouros, na superfície do reservatório, e na zona de deplecionamento, constroem tecnocientificamente um cenário diferente dos "estudos oficiais".
Pesquisadores do "antiprograma", como Fearnside (2009), Kemenes et. al (2008), têm problematizado a responsabilidade da ELETROBRÁS quanto à "análise incompleta" das emissões feitas nos reservatórios. Alegam que o órgão governamental não exige que o levantamento seja feito nos pontos de coleta que apresentariam números mais expressivos de emissão de GEE. Argumentam, ainda, que as baixas emissões de metano das hidrelétricas nos estudos ocorrem porque não é exigida a medição de "duas das principais rotas para emissão desse gás: a água que passa pelas turbinas e pelos vertedouros. (Fearnside, 2009, p. 110).
O metano (CH4) é o gás responsável por números mais expressivos de emissão de GEE sobre o aquecimento global. De acordo com o relatório do Intergovernamental Painel on Clima-te Change (IPCC)19, de 2013, ficou estabelecido pelo "Protocolo de Quioto" que uma tonelada de CH4 é equivalente a 28 toneladas de CO2. Segundo Fearnside (2009), os reservatórios são fontes constantes de emissão de CH4, por isso, são, no mínimo, quatro vezes mais poluentes que as usinas térmicas. A emissão de CH4 é encontrada na emissão das turbinas, vertedouros e na zona de deplecionamento, ou seja, é uma área do reservatório que fica exposta quando "o nível mínimo operacional normal [do reservatório] é atingido, um vasto lamaçal é exposto, e a vegetação herbácea, de fácil decomposição, cresce rapidamente nesta zona" (Feitosa et al., 2011, p. 713), assim, quando o volume do reservatório retorna ao nível usual, a decomposição da vegetação que submerge, emite CH4.
O diagrama abaixo representa de que forma o enunciado é manipulado pela rede do programa (direita do diagrama) e an-tiprograma (esquerda do diagrama). O diagrama mostra a composição da ação no que tange a controvérsia em questão. Assim, ele é dividido em duas linhas, uma horizontal, que mostra o movimento de associação (E), que indica as associações de actantes para fortalecer o enunciado; e, uma vertical, que mostra o movimento de substituição (OU), que indica as transformações, os desvios que o enunciado passa para se tornar mais convincente.
Para acompanhar o movimento do enunciado adota-se a seguinte nomenclatura: A rede do programa (A); A rede do antiprograma (B); Hidrelétricas de clima subtropical geram energia limpa (A'); Hidrelétricas de clima subtropical não geram energia limpa (B').
A linha de frente indica os processos de tradução pelos quais os enunciados passam para tornarem-se aceitos. Essa controvérsia segue em aberto e mesmo que os actantes tenham conexões e alcances diferentes, ela segue sendo disputada. Entretanto, "existir é sempre se manter na linha de frente" (Latour, 2016, p. 80) e, por isso, nada é definitivo. No próximo item será analisado como as diferentes redes são agenciadas, para encerrar em uma "caixa-preta", o enunciado "Usina Hidrelétrica Belo Monte gera energia limpa", mesmo a despeito das tentativas da rede do antiprograma em manter a controvérsia ativa no licenciamento ambiental da Usina.
A Usina de Belo Monte é a maior hidrelétrica construída inteiramente em solo nacional. Sua história se alonga há 30 anos e seu projeto inicial foi reformulado duas vezes. Na década de 1970, Belo Monte havia sido projetada para ser um complexo com cinco hidrelétricas e, após alguns rearranjos, em 1988, os estudos de inventário no rio Xingu são aprovados (Portaria n°. 43 em 1988) pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE)20 e pela portaria MME n°. 1077. Na época, a Eletronorte foi autorizada a realizar os estudos de viabilidade de Ka-raraô (como era conhecida Belo Monte antigamente), mantendo em seu planejamento a construção da Usina Babaquara (uma Usina à montante) que formaria o Complexo Babaquara-Kararaô e seria construída logo após a conclusão da usina Kararaô. Àquela época o arranjo estava assim delimitado:
Na década de 1990 essa proposta foi alterada pela primeira vez, pelo engenheiro canadense John Cadman (Falcão, 2010). Segundo o arranjo proposto pelo engenheiro, a Usina aproveitaria o desnível de 90 metros por meio da construção de canais (na época, dois canais) que desviariam o rio e evitaria que as Terras Indígenas fossem alagadas. Esse arranjo não inundaria a Volta Grande do Xingu, mas a manteria sob o regime de vazão reduzida e dependente de um Hidrograma de Consenso21.
Contudo, o setor energético ainda planejava a construção da Usina Babaquara, opção à montante de Belo Monte, pois o inventário de bacias (primeiro passo, estipulado pelo setor elétrico para a construção ou alteração de empreendimentos hidrelétricos) não havia sido alterado para contemplar apenas a construção de Belo Monte. Somado a esse acontecimento a construção de Babaquara se fortalece por meio do planejamento feito para o período 1999-2008, no Plano Decenal de Energia (PDE), que previa a conclusão de Babaquara para 2013 (Eletro-brás, 1987).
Havendo um arranjo tecnocientífico possível de ser alterado, a Usina foi reformulada pelo setor elétrico e as alterações aceitas pelo Congresso Nacional. Essa reformulação adicionou à Usina o rótulo da "sustentabilidade", uma vez que conferiu a diminuição da quantidade de terra alagada para atender aos impeditivos sociais e ambientais, não sendo mais necessário o realocamento das populações indígenas de suas terras; por todas essas transformações o termo técnico adotado para a Usina foi "Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte". Entretanto, essa decisão, ao invés de mediar os conflitos já existentes, gerou mais desentendimentos.
Na visão de parte do setor elétrico (Tancredi; Abbud, 2013) o governo não deveria ter sucumbido à pressão de tornar Belo Monte um barramento de tipo fio d'água "em nome da sustentabilidade", porque, ao longo do tempo, essa decisão geraria "prejuízos ambientais das emissões de carbono, decorrentes da geração térmica necessária para suprir a energia que Belo Monte [geraria]" (Tancredi; Abbud, 2013, p. 18. Grifos acrescidos), dado que matriz energética brasileira é hídrica e térmica (Faria, 2012). Sendo que a rede do programa defende ainda que "quanto ao efeito estufa é preciso observar que ele é pequeno na hidroelétrica quando comparado com a termoelétrica" (ROSA, 2013, p.22).
A lógica "oito ou oitenta" manifestada pelas argumentações do setor elétrico (a primeira privilegia a construção de hidrelétricas limpas, renováveis e, por isso, "sustentáveis" com preços acessíveis ao consumidor; a segunda privilegia construção das térmicas poluentes e gerando custos elevados na conta de luz do consumidor) assume o que Leroy e Ascelrad (2011) chamam de "lógica das alternativas infernais"; ou seja, justifica-se uma opção ruim (construção de hidrelétricas) comparando com outra pior ainda (utilização de termelétricas), sendo que outras opções ficam fora do radar de possibilidades para justificar a construção de Belo Monte.
Em julho de 2005, após a promulgação pelo Congresso Nacional do Decreto Legislativo n°. 788/200522, o projeto Belo Monte foi retomado como o único empreendimento a ser construído no rio Xingu. Logo, a decisão política de construir Belo Monte encerra em uma "caixa-preta" a construção da usina Babaquara, à montante de Belo Monte. Contudo, a construção de Babaquara ainda é especulada por actantes como organizações não governamentais locais, estudos tecnocientíficos, "Painel dos Especialistas" (Magalhães; Hernandez, 2009) população local, pesquisadores diversos, como possibilidade eminente para o setor elétrico.
Pelas argumentações da rede do programa, Belo Monte não é uma Usina, mas sim um "Aproveitamento Hidrelétrico", visto que se trata de uma barragem operada por fio d'água23. Esse arranjo tecnocientífico foi realizado para que a Usina fosse construída dentro dos parâmetros estipulados pela legislação ambiental vigente. O empreendimento ocupa o potencial hidráulico do rio Xingu, está situado no Estado do Pará e tem seus dois barramentos construídos nos municípios de Altamira e Vitória do Xingu, respectivamente.
As redes de "programa de ação" e "antiprograma de ação" que trabalham sobre a controvérsia da energia limpa reaparecem no estudo de caso sobre a Hidrelétrica Belo Monte. A controvérsia sobre emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) durante a construção da obra é acionada por pesquisadores que compõem a rede do "antiprograma de ação". Contudo, trata-se de uma tentativa com poucos efeitos práticos, visto que no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Usina o enunciado "a energia proveniente de hidrelétricas de clima subtropical são limpas" aparece como fato (dado e não construído, como será visto) que se baseia em estudos de pesquisadores que compõem a rede do "programa de ação".
Cabe ressaltar que o EIA é o documento mais importante (mesmo não sendo o único) para diagnosticar sobre a viabilidade ambiental da Usina; ele tem o importante papel em decidir quais actantes sociais (ribeirinhos, pescadores) serão beneficiários das ações mitigatórias (realocamentos compulsórios, reassentamen-tos coletivos, entre outros), como contrapartida aos impactos negativos da obra.
Os autores [que fazem os estudos utilizados pelo EIA] calculam essas baixas emissões de metano das hidrelétricas por ignorar duas das principais rotas para emissão desse gás: a água que passa pelas turbinas e pelos vertedouros. Essa água é tirada de uma profundidade suficiente para ser isolada da camada superficial do reservatório, e tem uma alta concentração de metano dissolvido. (...) O EIA/RIMA considera apenas o metano emitido na superfície do próprio lago, e nem menciona as emissões das turbinas e vertedou-ros (Fearnside, 2009, p. 110).
O EIA de Belo Monte apresenta um posicionamento favorável à rede do programa quando se posiciona a favor das previsões sobre a emissão de GEE da Usina utilizando como fonte tecnocientífica o trabalho intitulado: "Primeiro Inventário Brasileiro de Emissões Antrópicas de Gases de Efeito Estufa - Emissões de Dióxido de Carbono e Metano pelos Reservatórios Hidrelétricos Brasileiros" (ROSA et al., 2006). Esse estudo foi elaborado sob a coordenação de Luiz Pinguelli Rosa, COPPE/UFRJ e o Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) (Eletrobrás, 2009, vol.1) e concluiu que:
O reservatório de uma hidrelétrica emite gases de origem biogênica, tais como o CO2 e CH4. Porém, os estudos comparados de emissão de gases da superfície do reservatório com as emissões de tecnologias de geração termelétrica mostram que, na maioria dos casos analisados, as hidrelétricas apresentaram resultados melhores, demonstrando que em termos comparativos são uma solução viável de abatimento das emissões na geração (Eletrobrás, 2009, vol. 1, p. 382. Grifos acrescidos).
Logo, a previsão da emissão de GEE, na Usina Belo Monte não traduz uma situação específica de uma projeção de emissão; ao contrário, justifica a construção de Belo Monte, utilizando-se de uma comparação - até certo ponto arbitrária - para justificar que qualquer valor de emissão de CO2 e de CH4, que possa ser encontrado nas hidrelétricas, será "mais baixo" quando comparado aos elevados valores das emissões de usinas termelétricas (que utilizam combustíveis fósseis como o gás natural, carvão, óleo diesel).
Historicamente, o setor elétrico brasileiro baseia-se na geração de energia em térmica e hídrica: de um lado, tem-se uma fonte considerada limpa: a usina hidrelétrica; de outro lado, a usina térmica, que utiliza a queima de combustíveis fósseis com considerável emissão de poluentes. Entende-se que a comparação de emissões feita pelo EIA e por Rosa et al., (2006) reforça o posicionamento de actantes políticos, econômicos e sociais favoráveis à construção de barragens no país, facilitando a construção de uma "verdade científica" pró-hidreléticas, visto que o EIA não avança em pontos conflitantes sobre a questão da emissão de poluentes na atmosfera. Assim, não ficam acrescentados, na análise de viabilidade ambiental da obra, os indicadores de mensuração (como os já mencionados: zona de deplecionamento, e nos vertedouros e turbinas), constantemente reivindicados em estudos (Fearnside, 2009; 2016); (Fearnside e Pueyo, 2015).
Portanto, a emissão de GEE em barragens não tem sido colocada em debate nos termos de Fearnside (2009), dado que há toda uma "rede de sustentação" que legitima o adjetivo "limpo", com base na alegação que a existência da controvérsia necessitaria de um esforço mais amplo de estudos tecnocientí-ficos, conforme já explicitado, e portanto, o enunciado válido é aquele advogado pela rede do programa. Para a viabilidade ambiental da Usina, trata-se o adjetivo "limpo" como um fato, uma verdade científica estabilizada, isto é, a Usina Hidrelétrica Belo Monte não irá emitir quantidades significativas de Gases de Efeito Estufa (GEE), gerando, assim, energia limpa porque sua rede de sustentação é mais estável, mais longa e forte do que a rede do antiprograma.
Essa "construção de verdades" é utilizada também pelas as agências reguladoras (ANEEL, ANA, MME) para fundamentar a desconsideração das projeções de emissões de GEE em usinas hidrelétricas. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) desconsiderou a emissão na projeção do setor elétrico por um período que se estende até o ano de 2023, com o argumento de que há falta de consenso sobre os métodos e os dados científicos disponíveis sobre a emissão de GEE. Alega, também, que certo nível de consenso deve ser atingido pelos cientistas para começar a contabilizar a geração de gases nas hidrelétricas.
A rede composta por pesquisadores do "antiprograma" busca transformar a alegação "Belo Monte gera energia limpa" em ficção, problematizada por meio dos estudos de Fearnside (2009, 2011, 2015), nesses estudos o autor verifica a emissão de GEE da Usina Belo Monte, considerando também os níveis de GEE da Usina de Babaquara, a usina "espectro" que estava planejada para ser construída a montante de Belo Monte, mas que, em 2005 foi "engavetada" pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). Para o autor supracitado, o que mantém a Usina de Babaquara "encaixapretada" é o conselho de política energética, um agente que está atrelado fortemente às políticas de governo, adotadas em cada novo governo eleito no país. Foi nesse contexto que o conselho, em 2005, decidiu politicamente (sem o aval da ANEEL) construir apenas Belo Monte no rio Xingu (Fearnside, 2015).
Para legitimar seus argumentos Fearnside (2009, 2011, 2015); Kemenes et. al (2008), buscaram transformar as alegações do grupo oposto (hidrelétricas geram energia limpa) em dados inexatos quanto ao cálculo da emissão de GEE. O setor elétrico tende a "privilegiar" a elaboração de indicadores em pontos de coletas que "diminuem" a emissão "real" de GEE nas hidrelétricas. Essa afirmação baseia-se também no fato de que o setor elétrico investe, de modo significativo, em estudos que não consideram o contraditório, isto é, não contemplam quaisquer outros indicadores construídos por estudos que se contrapõem aos seus. Portanto, a controvérsia, ao mesmo tempo em que segue aberta e em disputa, no âmbito de uma controvérsia mais ampla, que se apresenta exposta na rede (Figura 3), representa as construções que são feitas sobre a "energia limpa em Belo Monte".
A seguir está desenhada a rede do programa que advoga pelo enunciado: "Belo Monte gera energia limpa", em laranja claro; Também encontra-se a rede do antiprograma que argumenta: "Belo Monte gera energia suja", em preto. A rede está construída para evidenciar as conexões feitas para transformar um e outro posicionamento em "fato", sendo possível perceber que há uma regularidade dos atores que constituem o programa e antiprograma tanto da controvérsia sobre a geração de energia limpa (de forma mais ampla), quanto da forma que ela é desenhada na Usina:
Ambos os cenários expostos fazem a "natureza falar": clima subtropical como um emissor de GEE natural, de um lado, em preto; de outro lado, o clima subtropical como um forte emissor devido à sazonalidade dos seus rios, cuja dinâmica torna possível a existência de zonas de deplecionamento, configurando-a como um grande emissor de GEE. A rede da energia limpa gera interessamentos e aglutina mais actantes, expandindo-a e tornando-a mais estável em suas proposições, constituindo-se por ora a rede vencedora.
A controvérsia da energia limpa segue em "suspenso" até que o setor elétrico consiga dados mais específicos sobre os demais pontos de emissão de GEE (turbinas, zona de deplecionamento). Constata-se também que a controvérsia é ignorada no diagnóstico sobre a viabilidade ambiental de Belo Monte. Esse posicionamento político reforça a versão trabalhada pela rede do programa de que: "a energia hidrelétrica é um exemplo de energia limpa e renovável: não polui o ambiente e é produzida com um recurso natural que continua existindo após gerar energia".
Segundo a lente teórica latouriana a rede vencida foi aquela que não possuía ligações e relações amplas (com setores do governo, com centros de pesquisa) e fortes (cujos actantes se reforçam, utilizam os mesmos dados de pesquisadores que participam da controvérsia mais ampla, os mesmos argumentos, e não dão margem para o contraditório) para estabilizar o enunciado e encerrar (por ora) a controvérsia. Nesse caso, a rede do programa de ação construiu as condições de possibilidades para que seu enunciado se transformasse em um fato, ainda que o mesmo siga sendo disputado em situações específicas, acionadas pela rede do antiprograma. O diferencial para a estabilização da rede do programa são as relações com a presença de actantes do "setor do governo", como ANA, ANEEL, ELETROBRÁS, a Cepel, o Balcar que possibilitam o fluxo de interações para outros actantes como universidades e pesquisas financiadas pela ANEEL, que priorizam o "método furnas" que, pela associação com órgãos do estado, se transforma hegemônico.
A rede do antiprograma, por sua vez, não possui as mesmas condições (financeira, científica, técnica, política) que a ciência apoiada pela rede do programa. Tratam-se de estudos com uma rede diminuta, embora de alcance internacional, e com conexões restritas com actantes que possam alterar o curso da ação. A emissão de metano nas turbinas e vertedouros e a zona de deplecionamento são os actantes que sustentam os argumentos dessa rede. Contudo, para contrapor a esses argumentos a rede do programa diz ser necessário mais estudos (realizados com os seus pares) que considerem o grau de emissão natural do ambiente amazônico.
O ambiente ganha centralidade nessa disputa porque as redes se esforçam para dizer que possuem os indicadores que correspondem com a "realidade" ou com a "dinâmica" daquele ambiente. Contudo, ele é claramente entendido de formas distintas para os estudos científicos em embate; de um lado o ambiente é um emissor natural, de outro, um emissor de GEE na presença de barragens. Reforça-se que não se trata de discutir qual estudo é mais científico, mas como os enunciados e ac-tantes são convidados para mobilizar a natureza, a sociedade e quais as implicações disto. Esse embate certamente elucida um conflito ambiental nos termos de Fleury et. al (2014), mas situada dentro do embate científico, posto que há indicadores que resultam em conceitualizações e medidas energéticas bastantes distintas para aquele ambiente e para as previsões futuras da política brasileira adotada sobre o aquecimento global. Trata-se, portanto, de ampliar formas de ver o ambiente amazônico e suas dinâmicas, incluindo as dinâmicas sociais que dependem do fluxo dos rios amazônicos para sobreviver para além do embate científico tradicional, ou nos termos de Latour (2000), da ciência com "C maiúsculo".
O ganho social e político conquistado por intermédio da cartografia das controvérsias e da rede sociotécnica é que essa metodologia permite visualizar outros actantes, aqueles que "perderam" a disputa, pois ao desenhar associações é possibilitado ver a atuação de actantes (muitas vezes locais), sem expressões políticas e científicas de mesmo peso. A mobilização da controvérsia coloca em circulação actantes que muitas vezes são colocados como periféricos, como as emissões da zona de deplecionamento, em discussões estabilizadas por redes que se tornam fortes devido à participação de actantes com alto grau de influência no curso das ações, como a Eletrobrás, ANEEL, Método Furnas, Balcar por exemplo. A força do programa reside nesse aspecto: inserir ou excluir indicadores para dentro ou para fora de sua rede de interessamento. É nesse ponto também que está ancorada a "fraqueza" do antiprograma.
Nesse sentido, a possibilidade de manter a controvérsias em aberto e em disputa, visa, sobretudo, privilegiar a emergência de outros "mundos possíveis" para ampliar a compreensão sobre a viabilidade ambiental para além dos documentos e normati-zações impostas pela rede do programa, de forma a considerar actantes e modos de vida ainda pouco referenciados em suas equações e problematizações.
Constata-se que a controvérsia é ignorada no diagnóstico sobre a viabilidade ambiental da Usina. Esse posicionamento reforça a versão trabalhada pela rede do programa de que: "a energia hidrelétrica é um exemplo de energia limpa e renovável: não polui o ambiente e é produzida com um recurso natural que continua existindo após gerar energia." Actantes que fazem parte da rede do programa são órgãos do setor elétrico (ELETROBRÁS, ANEEL), a Agência Nacional das Águas (ANA) e, também, pelo empreendedor. A rede do programa, ao problematizar a emissão de GEE nos reservatórios tropicais, não trata das espe-cificidades da geração hidroenergética, possuem apenas dados parciais sobre a emissão de superfície e comparam as emissões desta com os impactos negativos e com as altas gerações de GEE da geração energética provenientes das termelétricas.
Evidencia-se que as controvérsias, ao serem ignoradas tanto pelo empreendedor quanto pelo órgão ambiental responsável por deliberar sobre a viabilidade do projeto, reforçam as disputas pela demonstração do contraditório, visto que impactos de toda sorte multiplicam na região e pressionam o sistema jurídico na busca por alternativas de assistência e mitigação desses impactos. Nesse sentido, problematiza-se que essas controvérsias não são capazes de tencionar a relação (já estanque) entre natureza e sociedade arranjadas pela escolha tecnocientífica (fio d'água). Ademais, a ideia de sustentabilidade vinculada à energia "limpa", politicamente aceita pela rede do programa da Usina, limita o espaço para o contraditório frente ao arranjo político de geração energética brasileira, pautada na dupla sustentação hídrica e térmica.
O trabalho demonstra que a viabilidade da obra possui um aparato administrativo, tecnocientífico robusto e bem articulado - pela rede do programa - seus agenciamentos inibem a participação de actantes que estão do lado de fora desse programa, como a aferição nas áreas contraditórias. Não à toa que as redes do programa e do antiprograma são reproduzidas na controvérsia e na controvérsia aplicada à viabilidade ambiental de Belo Monte. Nesse sentido, a demonstração dos actantes em disputa, apresentados pela cartografia e pela rede sociotécnica, reforça a prerrogativa de que espaços de atuação para o contraditório são amplamente demandados e disputados.
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