Resenha
| SANTOS Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. 2020. São Paulo. Boitem-po |
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| . A cruel pedagogia do vírus. 2020. Coimbra. Almedina |
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A cruel pedagogia do vírus, pequena obra do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, publicada em abril de 2020 pela editora brasileira Boi-tempo, faz parte de uma coletânea denominada "Pandemia Capital" que visa aprofundar as problemáticas sociais que subjazem à pandemia do coronavírus. O livreto desnuda uma série de questões relacionadas ao Covid-19 e seus desdobramentos sociais, culturais e políticos em âmbito mundial, tendo como pano de fundo os aspectos políticos e econômicos correntes. Como o próprio título sugere, o adjetivo cruel demonstra que a pedagogia do coronavírus tem descortinado e nos ensinado, de maneira um tanto quanto dura, uma série de lições que, ou aprendemos para nos tornarmos seres menos danosos à vida na Terra, ou sucumbiremos mediante nossas más escolhas.
Destarte, o autor lança um amplo panorama sociológico no sentido de desvelar aspectos não visíveis dessa pandemia, pelo menos do ponto de vista social, mostrando, também, que ela é reflexo de todo um processo histórico, cultural e político anterior, referente ao modo de vida da humanidade sob os efeitos do capitalismo, bem como do aprofundamento do neoliberalismo enquanto modelo econômico.
O livro é lançado diante de um cenário repleto de inquietações e incertezas, no qual o coronavírus, enquanto um elemento não-humano, tem nos isolado e, ao mesmo tempo, mostrado que apesar de ser uma pandemia que atinge a imensa maioria do território mundial, as vidas mais afetadas ainda são aquelas localizadas no sul global3, em que raça, gênero ou classe social podem colocar pessoas em situação de vulnerabilidade. Ademais, o autor lança luz sobre a desigualdade da quarentena, que quando se atenta ao sul global, mostra-se significativamente discriminatória, uma vez que para uma série de trabalhadores e trabalhadoras, só lhes resta uma escolha de Sofia: sucumbir diante da fome por causa do desemprego ou sucumbir perante ao coronavírus devido à exposição, por exemplo, em transportes coletivos, muitas vezes precários e aglomerados.
Frente a isso, o livro encontra-se dividido em cinco capítulos os quais se caracterizam por apresentar e desenvolver um conteúdo crítico e consistente, argumentado com reflexões necessárias aos dias atuais, sobretudo no campo das ciências sociais. Ademais, cabe ressaltar que, apesar do conteúdo denso, o livro é marcado por fácil leitura e compreensão, pois está estruturado em uma linguagem acessível a quem já está inserido nas leituras no âmbito das ciências humanas e sociais.
No primeiro capítulo, "Vírus: tudo o que é sólido desmancha no ar", o autor argumenta que o momento vivido com a pandemia do coronavírus, dada sua característica de excep-cionalidade, é propício ao surgimento de novos conhecimentos acerca das instituições que compõem a nossa sociedade. São constatações que, em situação de 'normalidade', não se encontrariam tão visíveis aos olhos dos cidadãos, mas se tornam perceptíveis mediante a uma situação atípica, que acaba por afetar grande parte da população mundial. Frente a isso, o autor destaca, por exemplo, que a pandemia não se contrapõe a uma situação anterior de 'normalidade'. Em verdade, a pandemia surge agravando uma situação de crise permanente pela qual a sociedade tem estado sujeita há mais tempo, sobretudo em decorrência dos efeitos do aprofundamento da economia neoliberal e do capitalismo financeiro nos últimos 40 anos. Outro aspecto destacado, neste capítulo, é o desaparecimento da sensação de segurança mediante as incertezas que emergem com a pandemia.
O segundo capítulo, "A trágica transparência do vírus", elenca que os debates políticos, ideológicos e culturais têm se eximido da função de mediar sua relação com o cotidiano das pessoas, la gente de a pie, como dizem os latino-americanos. O autor atenta, especialmente, para a dimensão política, incapaz de promover essa comunicação, priorizando interesses alinhados às prerrogativas do mercado financeiro bem mais do que direcionados em solucionar os problemas de la gente de a pie. Assim, com a pandemia, diz o autor, emerge uma nova preocupação, e a forma como vamos interpretá-la e avaliá-la será primordial para o futuro da humanidade. Em resumo, entendemos que mais do que nunca, os Estados-Nação terão, cada vez mais, um papel central na reconstrução do tecido social pós-pandemia.
Ainda sobre o capítulo 2, é importante ressaltar a relação entre mercado e vírus, feita pelo autor, definindo a pandemia como uma alegoria. Diz ele que o invisível e todo poderoso pode ser infinitamente grande (os deuses religiosos), mas também infinitamente pequenos (vírus). Eis que hoje estamos diante de um ser todo poderoso, que não é grande, nem pequeno, pois é disforme: os mercados. "Tal como o vírus [o mercado] é insidioso e imprevisível em suas mutações, [...], é uno e múltiplo, exprimindo-se no plural, porém singular" (Santos, 2020, p.11). Esta discussão levantada por Boaventura é seminal para compreendermos que a gravidade da pandemia não substitui a gravidade dos efeitos do capitalismo contemporâneo à humanidade. Ela, na verdade, agudiza e expõe as fragilidades inerentes ao modelo econômico neoliberal.
"A sul da quarentena" é o título dado ao terceiro capítulo. O autor lança luz àqueles indivíduos que pertencem a grupos sociais historicamente marginalizados que, devido à quarentena, sofrem ainda mais com o peso da discriminação, dadas as mudanças sociais impostas durante o processo, bem como aquelas que virão após findar a quarentena. Dentre os coletivos citados pelo autor destacam-se as mulheres, os trabalhadores precários, informais, ditos autônomos, os trabalhadores da rua, os sem-te-to ou as populações de rua, os moradores de periferias pobres, os internados em campos para refugiados, os imigrantes indocumentados ou as populações deslocadas internamente, as pessoas com deficiência e os idosos. Ao elencar os grupos das minorias que mais são afetadas, Boaventura acaba por mostrar que a quarentena acentua ainda mais as diferenças entre classes sociais, as injustiças, a exclusão e o sofrimento de determinados grupos. Ocorre que, com o pânico que toma conta dos grupos mais privilegiados e desacostumados com situações de sofrimento, as assimetrias existentes acabam ficando mascaradas.
Mas o que a pandemia do coronavírus tem a nos ensinar? O quarto capítulo, "A intensa pedagogia do vírus: as primeiras lições", é justamente uma tentativa de fornecer respostas ao questionamento feito anteriormente. Respostas estas sintetizadas em seis lições que refletem uma acurada análise sociológica empreendida pelo autor acerca do mundo contemporâneo que englobam o antes, o durante e, sobretudo, o pós-pandemia e seus reflexos sociais. São elas: a) O tempo político e midiá-tico condiciona o modo como a sociedade contemporânea se apercebe dos riscos que corre; b) As pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga; c) Enquanto modelo social, o capitalismo não tem futuro; d) A extrema direita e a direita hiper-neoliberal ficam definitivamente descreditadas (espera-se); e) O colonialismo e o patriarcado estão vivos e reforçam-se nos momentos de crise aguda; e f) O regresso do Estado e da comunidade.
No quinto e último capítulo "O futuro pode começar hoje", Boaventura se dedica a elaboração de reflexões provisoriamente conclusivas, nas quais põe em evidencia a relação entre humanos e natureza no contexto capitalista atual. Na esteira desse pensamento, para o autor, com a separação entre os processos políticos e civilizatórios, ocorrida simbolicamente após a queda do muro de Berlim, a sociedade deixou de vislumbrar alternativas viáveis pós-capitalistas.
Alternativas essas que, potencialmente, avistam um mundo com mais respeito às demais vidas que coabitam o espaço com os humanos e que diminuem, por conseguinte, a probabilidade da ocorrência de desastres ambientais, da perda da biodiversidade, do aquecimento global e, como consequência desses fenômenos, das epidemias e pandemias. O que o autor põe no centro da discussão aqui é que, com o sistema capitalista vigente, deixamos de discutir e de pensar conjuntamente no plano político e civilizatório, em alternativas ao modo de vida que esse sistema nos impõe. Um modo de vida que se mostra depredatório às diferentes vidas que habitam o planeta, inclusive a humana.
A única maneira, para o autor, de fazer frente a todas as mazelas produzidas pelo capitalismo, enquanto modelo social, é através de uma nova articulação que se faz urgente entre processos políticos e civilizatórios. Ou seja, uma virada episte-mológica, cultural e ideológica que dê sustentação à criação de alternativas políticas, sociais e econômicas que garantam a continuidade de forma digna das diferentes vidas que habitam o planeta. Para Boaventura, essa virada tem implicações e a principal delas é que, nos últimos quarenta anos, estamos vivendo em uma quarentena, mas uma quarentena, "política, cultural e ideológica de um capitalismo fechado sobre si próprio e das discriminações raciais e sexuais sem as quais ele não pode subsistir" (Santos, 2020, p.32). É assim que o autor conclui que esta é, então, uma quarentena dentro de outra quarentena.
Em linhas gerais, o livro escrito por Boaventura de Sousa Santos põe em evidencia a necessidade de um olhar humano para essa pandemia, que transcenda a visão meramente econômica muito enfatizada por diferentes governos, inclusive o brasileiro, produzindo uma falsa dicotomia entre vida e economia. Tal perspectiva humanizada e sociológica faz-se urgente, posto que as vidas também importam, e as vidas que mais são afetadas são aquelas que vivem no sul global, mulheres, negros, trabalhadores precarizados e informais, moradores de rua, indígenas, imigrantes sem documentação, refugiados, etc.
Ademais, em suas reflexões, Boaventura propõe uma interessante e consistente correlação entre a emergência da pandemia e o modo de vida dos seres humanos no contexto do capitalismo contemporâneo. Assim, para além de uma análise do momento vivido e das mudanças sociais impostas pela pandemia do coronavírus, o autor empreende uma crítica profunda ao sistema capitalista neoliberal e suas implicações sociais, políticas, econômicas e culturais. Dito isso, a pandemia do novo coronavírus só vem a acentuar e tornar visíveis uma série de problemas sociais estruturais causados pelo capitalismo, o colonialismo e o patriarcado, dentre eles a divisão de classes, a devastação ambiental, a exclusão social, a discriminação e a extrema pobreza, entre tantos outros.
Notas
Autor notes
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