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A Velha Novidade da Pandemia: Neoliberalismo, Meio Ambiente e Covid-191
The Old Novelty of the Pandemic: Neoliberalism, Environment and Covid-19
Ciências Sociais Unisinos, vol. 56, núm. 2, pp. 131-142, 2020
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Articles


Recepção: 12 Junho 2020

Aprovação: 15 Outubro 2020

DOI: https://doi.org/10.4013/csu.2020.56.2.02

Resumo: O objetivo deste artigo é problematizar as expectativas em torno do futuro brasileiro no contexto pós-pandemia de Covid-19. Enquanto várias análises apontam o novo coronavírus como produtor de uma ruptura histórica, capaz de promover consideráveis transformações econômicas, políticas e sociais, argumentamos que os efeitos da pandemia tendem a reforçar as estruturas da ordem estabelecida. A fim de fundamentar empiricamente nossa investigação, adotamos como estratégia de pesquisa a etnografia multi-situada, através da qual justapomos (1) a progressiva adoção de medidas neoliberais no Brasil e no exterior; (2) o processo intimamente relacionado de desregulação ambiental no Brasil; e (3) as medidas tomadas pelo atual governo brasileiro diante da pandemia de Covid-19. Para tanto, tomamos documentos jornalísticos como relatos narrativos de “trechos de realidade” de cenários sociais contemporâneos. Identificamos, assim, um processo de universalização da lógica econômica, que confere ao mercado a responsabilidade institucional de controlar e superar não só a degradação ambiental, como também crises econômicas e a própria propagação e tratamento de Covid-19. Nossas conclusões indicam que, ao invés de fomentarem um “novo mundo”, tais crises, como a degradação ambiental e a pandemia, em si mesmas, podem fortalecer o ordenamento hegemônico vigente.

Palavras-chave: Neoliberalismo, Antropoceno, Covid-19.

Abstract: The aim of this paper is to problematize current expectations around the future of Brazil in a context of post-pandemic of Covid-19. Whereas several analyses point out the novel coronavirus as a generator of historical ruptures, capable of fostering considerable economic, political and social change, we argue that the effects of the pandemic are prone to reinforce the established structures. In order to substantiate empirically our investigation, we adopt as a research strategy multi-sited ethnography contributions, through which we juxtapose: (1) the progressive adoption of neoliberal measures, in Brazil and overseas; (2) the intimately related process of environmental deregulamentation in Brazil; and (3) measures taken by the Brazilian government in face of the pandemic of Covid-19. Hence, we identify a process of universalization of economics logic, granting the market the institutional responsibility to control and overcome not only environmental degradation, but also economic crisis and Covid-19 propagation and treatment. Our conclusions indicate that, instead of triggering the process of building a “new world”, crisis such as the current environmental degradation and pandemics might actually sustain the present hegemonic order.

Key-words: Neoliberalism, Anthropocene, Covid-19.

A História “É trem riscando trilhos/Abrindo novos espaços/ Acenando muitos braços/Balançando nossos filhos” Canción por la un idad de latinoamérica - Pablo Milanés (versão de Chico Buarque e Milton Nascimento)

Existem determinados processos e acontecimentos que, por sua magnitude, por seu potencial de comoção e de reorganização de relações, não só concentram esforços investigativos em Ciências Sociais e Humanas, como também suscitam o exercício imaginativo voltado para o futuro. Com efeito, somente na última década, no Brasil, inúmeros foram os acontecimentos que levaram algumas análises a supor que estaríamos diante de pontos de inflexão histórica, a começar pela posse da ex-presidenta Dilma, primeira mulher a ser eleita autoridade máxima da República brasileira, passando pelas Jornadas de Junho de 2013 até os crimes ambientais cometidos pela Samarco (Vale SA/ BHP Billiton) em Mariana, entre outros acontecimentos. Todos esses casos alimentaram previsões de que o País estaria, enfim, próximo do amadurecimento e da radicalização da democracia participativa (Ricci e Arley, 2014), ou da revisão de uma condição econômica secularmente baseada em severa desigualdade social e numa economia extrativista4 e dependente, com possibilidades de enfim recusar uma série de políticas de desregulação do exercício das atividades primário-exportadoras. Contudo, os anos que sucederam cada um desses episódios foram marcados não só pela ascensão de candidaturas reacionárias, tanto para os cargos executivos e legislativos (Queiroz, 2018), como também pela flexibilização dos processos de legislação e fiscalização ambientais.

Por outro lado, ainda que sem a intensidade desses eventos disruptivos, desastres “lentos” (Liboiron et al., 2018), ou “invisíveis”, por séculos se arrastam no Brasil. Para citar apenas alguns exemplos, no plano ambiental, há décadas assistimos à expansão das fronteiras agrícolas (intimamente associada à destruição de biomas como o Cerrado e a Amazônia, bem como à disseminação de agrotóxicos e à conservação do latifúndio) e à consolidação do agronegócio como solução hegemônica para uma economia baseada na exportação de commodities (Svampa, 2012). No plano social, vivenciamos a consolidação de milícias, do crime organizado e os números elevadíssimos de homicídios (65,6 mil apenas em 2017), sobretudo de jovens negros (Carvalho, 2019). Seja por sua temporalidade estendida, ou pelo fato de não se tornarem tão evidentes quanto os desastres mais evidentemente “disruptivos”, esses fenômenos, embora tenham mobilizado inúmeras e combatentes militâncias, tampouco foram capazes de redirecionar o curso da história brasileira, profundamente marcada pela ideologia do progresso e do desenvolvimento (Escobar, 2007)5 .

Cada um desses momentos e experiências nos colocaram a vislumbrar alternativas à posição de dependência econômica e ao autoritarismo do estado brasileiro, e, de modo mais amplo, levaram-nos a repensar aspectos estruturais de nossa sociedade, como o colonialismo, o latifúndio e o racismo. Não é diferente com a pandemia contemporânea de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), a qual, não só no Brasil, abre a possibilidade de outros futuros, menos alinhados ao fundamentalismo neoliberal ou com maior probabilidade de contornar a catástrofe ambiental atrelada ao que se convencionou chamar de “Antropoceno”, isto é, uma nova época geológica marcada por processos antropogênicos com efeitos ambientais de escala planetária (Delanty e Mota, 2017; Dalby, 2017). De fato, aspectos centrais do cotidiano foram tensionados com a generalização das medidas de contenção da pandemia de Covid-19, desde as relações sociais, passando pela experiência com o trabalho até os recentes arranjos políticos e econômicos adotados pelos mais variados governos. Tais mudanças levaram à consideração do novo coronavírus como um “acelerador de futuros”, dadas as várias especulações que projetam o que seria um “novo normal” pós-pandemia, o que envolveria, entre outras novidades, o receio em participar de aglomerações, a banalização do trabalho remoto e da educação a distância, a atenção aos efeitos ambientais das escolhas de consumo e até a disseminação de iniciativas solidárias e a revalorização de serviços públicos (Melo, 2020). Na mesma linha, diversos intelectuais chegaram a antever mudanças estruturais em nossas sociedades. É o caso de Antonio Negri, que, embora admita que o atual momento pode servir para acender propostas extremistas de salvação do capitalismo, assinala que “ficou claro que o neoliberalismo chegou num ponto de crise, que deriva dessa coisa estranha que é um vírus mortal” (2020, sem página). Impressões semelhantes podem ser identificadas em Jean-Luc Nancy, para quem, é certo que também com precauções e ressalvas, “o vírus nos comuniza”, “nos coloca em pé de igualdade” e faz com que “hoje, de todo modo, a copertinência, a interdependência, a solidariedade nos convoca a todos” (Nancy 2020, sem página). Argumentos que seguem mais ou menos a mesma toada são, de fato, compartilhados por pensadores de áreas distintas. O psicanalista Christian Dunker, por exemplo, enxerga na pandemia uma oportunidade de “repactuação social após crise do coronavírus”, com efeitos sobre natureza e sociedade (Rodrigues, 2020). O filósofo Slavoj Žižek (2020), por sua vez, vislumbra uma reconstituição de imaginários de igualdade e justiça a partir da forja de novos laços de solidariedade ensejados pela pandemia.

No entanto, cabe indagar, a partir da posicionalidade histórica brasileira, notadamente marcada por desigualdades estruturais e opressões crônicas, o que há de “novo” no futuro que se ensaia diante das impressões conjunturais derivadas do enfrentamento à Covid-19. Nesse sentido, voltamos nossa atenção para o corrente e progressivo processo de aplicação do que poderíamos chamar de “cartilha neoliberal” às formas de governo brasileiras, sobretudo no âmbito das instituições jurídicas e políticas, e para seus efeitos sobre o campo ambiental. Mais especificamente, comparamos as respostas aos problemas engendrados pelo novo coronavírus no Brasil com as políticas anteriores à pandemia implementadas pelo governo de Jair Bolsonaro; além disso, aproximamos tal abordagem com o processo de “adaptação” e “modernização ecológica” que, sob a rubrica da noção de “desenvolvimento sustentável”, é levado a cabo já há décadas em territórios tanto brasileiros quanto latino-americanos, em geral (Zhouri et al., 2005; Zhouri, 2008; Gudynas, 2015). A hipótese que subjaz a nossa investigação é que a “crise” suscitada pela pandemia de Covid-19, compreendida junto ao avanço neoliberal no Brasil, apresenta-se antes como uma janela de oportunidades para a consolidação do neoliberalismo enquanto formação discursiva, subjetiva, epistêmica e político-econômica do que para sua superação. Em outras palavras, questionamo-nos, sobretudo no contexto brasileiro, sobre a potencialidade de transformação histórica decorrente da pandemia de Covid-19, tanto em seus efeitos da ordem de macrofenômenos estruturais quanto de acontecimentos contingentes, motivacionais, subjetivos.

Ao definirmos nosso fenômeno de interesse como a operacionalização “indigenizada” (Appadurai, 1990) do neoliberalismo e do Antropoceno no Brasil, admitimos que nos ocupamos de um processo de escala global, mas que se manifesta numa “pluralidade de devires humanos ou formas de conexão” (Bihel e McKay, 2012:1211), territorializadas e socialmente localizadas (Bourdieu, 2003). O desafio que se nos apresenta é o de articular conceitos gerais e abstratos, utilizados para designar processos de larga escala, às relações e efeitos concretos do cotidiano (Das, 2007). Para isso, adotamos como estratégia de investigação a justaposição entre nossas orientações analíticas e a circulação de “signos, símbolos e metáforas” (Marcus, 1995:108), com o fim de traçar associações multiescalares sobre o fenômeno de nosso interesse, ao mesmo tempo global e, por se manifestar em espaços e territórios distintos, local e heterogêneo. Dentre tais “metáforas”, interessa-nos em especial aquelas formadas por reportagens jornalísticas, aqui tomadas enquanto sintomas e retratos de nosso tempo na medida em que elas consistem em relatos narrativos e imagéticos sobre “trechos de realidade” (Appadurai, 1990:299). Nem por isso tais reportagens são trabalhadas em si mesmas e como valor documental incontestável. Pelo contrário, são constantemente cotejadas com referências teórico-conceituais canônicas das Ciências Sociais, as quais, por sua vez, fundamentam nosso esforço analítico.

Trata-se, portanto, de estabelecer ligações entre diferentes escalas e lugares6 . Assim, buscamos identificar como uma pandemia global ou colapso ambiental sintetizado pela noção de Antropoceno manifestam-se localmente, junto à singularidade histórica e geopolítica brasileira. Semelhantemente, a tendência de generalização da racionalidade neoliberal é tratada não apenas em termos de seus efeitos sobre a reestruturação dos Estados Nacionais, mas também como matriz discursiva, que faz surtir efeitos na esfera da subjetividade. É certo que nossa escolha metodológica de empreender uma investigação multi-situada e multiescalar nos coloca diante de pelo menos duas limitações analíticas. A primeira delas refere-se à impossibilidade de estabelecer elos causais claros e lineares entre os fenômenos considerados. Reconhecemos a importância da identificação de relações de causa e efeito. No entanto, priorizamos, neste artigo, uma análise multidimensional e relacional, ou seja, que se volta a uma série de fenômenos (neoliberalismo, pandemia, colapso ambiental, entre outros) cujas (possíveis) correspondências são por nós debatidas. Adotamos, nesse sentido, uma perspectiva “imanente”, que busca nos próprios acontecimentos, e nas relações entre eles (e não em forças que lhes são externas), caminhos interpretativos. Uma segunda limitação decorrente da escolha de nossa estratégia de pesquisa diz respeito ao trânsito entre distintas unidades e escalas de análise. Convocamos para a discussão acontecimentos locais e globais, contemporâneos e extemporâneos7 . Reiteramos, diante disso, que nossa pretensão não é dispor num arranjo rígido e hierárquico essas variáveis, mas trabalhá-las enquanto nós que, de modo contingente e relacional, conformam configurações sócio-históricas. Desse modo, nossas proposições que daí derivam não apontam, de modo teleológico, para um dado futuro, embora busquem cartografar os contornos de nosso tempo.

Este artigo está organizado em torno da análise da manifestação de enunciados e práticas orientados por uma racionalidade neoliberal de livre-mercado em dois campos distintos, embora relacionados: o da “gestão” do quadro de saúde pública imposto pela Covid-19 e o da “gestão” ambiental. Na primeira seção, dedicamo-nos à discussão sobre a noção de neoliberalismo como atualização político-econômica capitalista, mas também como razão de governo que extrapola a economia e atravessa processos políticos de tomada de decisão no âmbito da crise sanitária decorrente da pandemia de Covid-19. Na segunda seção, analisamos a implementação continuada de políticas neoliberais ao campo ambiental, e argumentamos que os mesmos princípios basilares do corrente processo de “flexibilização ambiental” são aplicados à administração da saúde pública em contexto da atual pandemia. Tanto num caso como noutro identificamos uma banalização das mazelas e dos desastres que constituem a experiência sócio-histórica brasileira, o que, do nosso ponto de vista, dificulta que momentos disruptivos conduzam a transformações estruturais no Brasil. Encerramos o texto com comentários finais.

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Sob a Hegemonia Neoliberal: A Imolação de Vidas pela “Saúde dos Mercados”

É possível definir “neoliberalismo” em duas chaves interpretativas. Numa primeira, por “neoliberalismo” entende-se sobretudo uma teoria sobre práticas político-econômicas de administração do modo de produção capitalista. Nesse sentido, não há nada que oponha políticas neoliberais à intervenção estatal, pelo contrário. Há de se notar que, de acordo com uma percepção neoliberal de mundo, o bem-estar individual decorre da promoção das liberdades empreendedoras dos sujeitos (individuais ou não), “no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos à propriedade privada, livres mercados e livre comércio” (Harvey, 2013:12). Então,

O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas. O Estado tem que garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. Deve também estabelecer as estruturas e funções militares, de defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados. Além disso, se não existirem mercados [...], estes devem ser criados, se necessário pela ação do Estado. Mas o Estado não deve se aventurar para além dessas tarefas (Harvey, 2013:12).

Portanto, ao contrário do que sugere a noção do “Estado Mínimo”, é possível identificar uma intervenção estatal máxima, mas direcionada ao “funcionamento apropriado” (desregulado) dos mercados e da “liberdade” (lei do mais forte) do empreendedor individual. Logo, Estado Máximo no que diz respeito à garantia – inclusive compulsoriamente, através da força – da expansão e do funcionamento autônomo da economia de mercado.

Nesta esteira, diante dos danos causados pelo novo coronavírus, há de se pontuar que o pacote de “auxílio” trilionário apresentado pelo governo dos EUA segue um fio lógico muito mais próximo da manutenção do “funcionamento apropriado” dos mercados do que da súbita guinada à política keynesiana de Estado de Bem-Estar, como apontaram algumas interpretações (Mars, 2020). Em âmbito nacional, opera na mesma linha a defesa, por economistas das mais variadas escolas econômicas, da concessão de auxílio emergencial a trabalhadores informais e da revisão da Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que impõe drásticas limitações aos gastos públicos. Se, de forma mais radical, algumas dessas medidas, como o auxílio emergencial, chegaram a ser tratadas como “socialistas” por bolsonaristas e suas milícias digitais (Putti, 2020), outras interpretações apontaram que elas estariam a nos conduzir para um contexto de ressignificação do neoliberalismo, agora redirecionado conforme preceitos de maior participação estatal na economia. Parece-nos, todavia, que trata-se, uma vez mais, de uma iniciativa interessada de “salvar” os mercados, seja através da injeção de liquidez na economia, do estímulo ao consumo ou da tentativa de prevenção de um possível levante popular em reação à queda da renda e do poder de compra.

A segunda chave interpretativa diz respeito a uma dimensão subjetiva e epistêmica do neoliberalismo, e supõe a aplicação de uma “grade econômica” a fenômenos sociais que extrapolam a economia e o mercado. Esse tipo de prática de saber e governar está atrelado ao que Foucault denomina “governamentalidade neoliberal”, e suscita

[...] análises características da economia de mercado para decifrar as relações não-mercantis, para decifrar fenômenos que não são fenômenos estrita e propriamente econômicos, mas são [...] fenômenos sociais. Ou seja, em outras palavras, a aplicação da grade econômica a um campo que, no fundo, desde o século XIX e, podemos sem dúvida dizer, já desde o fim do século XVIII, havia sido definido em oposição à economia, em todo caso em complemento à economia, como aquilo que em si, por suas próprias estruturas e por seus próprios processos, não pertence à economia, apesar de a economia se situar no interior desse campo (Foucault 2008:329–330).

Na medida em que há a universalização da racionalidade econômica para várias outras esferas, inúmeros procedimentos, das escolhas individuais do homo oeconomicus (Foucault, 2008:311) à elaboração de políticas públicas, são reduzidos a cálculos de custos e benefícios. É emblemático, a esse respeito, que inclusive a defesa de preceitos médico-sanitários durante a pandemia opera menos na lógica propriamente científica e do “cuidado” do que econômica: conforme argumentação corrente, é necessário controlar a demanda do sistema de saúde a fim de que ele não colapse e demande mais investimentos (resultando em desordem fiscal) ou, na mesma linha, o isolamento, embora danoso no curto prazo, é a alternativa mais viável para a recuperação econômica em longo prazo (Almeida, 2020). Nesse sentido, a dicotomia entre a saúde das pessoas e a “saúde da economia”, instaurada por governos e interesses privados negacionistas ou mal intencionados, revela-se falaciosa diante de um olhar mais atento. Frente à hegemonia neoliberal, a saúde das pessoas, reduzida a um negócio ou a cálculo econômico e orçamentário, nunca deixou de ser mais que uma condição para a “saúde da economia”. Dito de outro modo, mais do que a gestão eficiente da vida, trata-se de fazer, simultaneamente, o manejo estratégico da morte, que é igualmente capitalizado em meio aos cálculos neoliberais.

Nesse sentido, identificamos uma convergência entre bio e necropolítica8 . Não só no contexto de pandemia, mas recorrentemente na experiência brasileira, a produção sistemática de vidas descartáveis (Butler, 2017) e de “sobreviventes” (Pelbart, 2008) pode ser compreendida não como uma externalidade anti-econômica ou contrária ao bom funcionamento do neoliberalismo, mas como elementos integrados à lógica de geração de lucros. Afinal, a massa trabalhadora que, durante a pandemia, deve morrer para que “sobrevivam as empresas”, ou as centenas de corpos e modos de vida soterrados e envenenados pelos crimes ambientais cometidos pela Samarco (Vale/BHP Billiton) e pela Vale em Minas Gerais, funcionam como um estágio, senão como condição, no processo de produção de ganhos econômicos (Reuters, 2020; Guimarães, 2020). Em suma, ambas as dimensões do neoliberalismo – tanto seus preceitos político-econômicos de condução e reprodução do capitalismo quanto seus aspectos epistêmicos associados à ubiquidade dos cálculos econômicos – não são, evidentemente, contraditórias entre si, mas funcionam em relação de retroalimentação positiva.

No bojo desse processo, o recém-criado Ministério da Economia, na figura do Chicago Boy9 e “superministro” Paulo Guedes, ganha proeminência midiática por seu suposto papel de “organizador” de um cenário econômico doméstico frágil, herdado de seus antecessores. Ao assumir o cargo, em janeiro de 2019, Guedes revelou as principais diretrizes da pasta: “o primeiro pilar é a reforma da previdência, o segundo são as privatizações aceleradas, e o terceiro pilar é a simplificação, redução e eliminação de impostos” (Martello, 2019). Num discurso em que incluiu a defesa da economia de mercado como meio de se combater a desigualdade social, do “empreendedorismo” através da suspensão de direitos trabalhistas, e o ataque aos gastos públicos, considerados fonte da miséria nacional, o novo ministro da economia deixava claro o tipo de solução proposta para “recuperar a economia” e elevar o país a uma taxa de crescimento significativa. Como efeito, em contexto de pandemia de Covid-19 e do esperado colapso do sistema público de saúde, Guedes buscou fixar, de antemão, valores destinados à superação da crise; em seguida encaminhou proposta de acordo ao Congresso, propondo um auxílio de R$ 40 bilhões para estados e municípios, com a contrapartida da admissão de um congelamento salarial de servidores públicos por dois anos, numa clara exigência de sacrifício dos trabalhadores pelo país – dando ensejo, desta maneira, à redução de algo em torno de R$ 100 bilhões em gastos públicos (Fernandes, 2020a; Hessel, 2020). Ao mesmo tempo, enquanto corriam as disputas referentes a auxílios emergenciais a estados, municípios e parcelas mais vulneráveis da população, como trabalhadores informais, negociações eram travadas entre governo e empresários, a fim de ampliar e “perenizar” o processo de redução de direitos trabalhistas, desencadeado pela reforma do governo Temer, em 2017 (Wiziack et al., 2020). Do mesmo modo, depois do “mau humor dos mercados”, que levou a perdas históricas na bolsa brasileira em março de 2020 (Cavalcanti, 2020), analistas apostam na retomada da agenda de reformas e privatizações como caminho para a recuperação das atividades econômicas e dos danos financeiros. De fato, a sinalização de permanência de Paulo Guedes no governo, depois das incertezas trazidas pela saída do então ministro da justiça, Sérgio Moro, serviram para “acalmar o mercado” (Mazui e Martello, 2020). Ainda na esteira da negociação de “pacotes anti-crise” e das manobras orçamentárias suscitadas e avançadas pela pandemia, o Ministério da Economia condicionou a liberação de R$ 600 para trabalhadores informais e de baixa renda à aprovação da chamada “PEC do Orçamento de Guerra” (Fernandes, 2020b), que, por um lado, permite a realocação de recursos de áreas sociais para a contenção da pandemia e, por outro, permite a “emissão de títulos da dívida pública para pagar as despesas correntes com juros dessa dívida, o que burla o art. 167, III, da própria Constituição”, beneficiando rentistas, conforme se lê em nota técnica redigida por Lucia Fattorelli (2020), da Auditoria Cidadã da Dívida.

Com efeito, o avanço de políticas de caráter neoliberal, embora acentuado sob o governo Bolsonaro, mostra-se como um processo que ultrapassa e antecede esse mesmo governo. Dessa forma, para além das medidas de reação à pandemia de Covid-19 no Brasil e do conjunto de políticas adotadas pelo atual governo, propomos examinar o processo de avanço neoliberal também a partir de um campo de relações específico, que há décadas mobiliza atenção em âmbito nacional e estrangeiro: o campo ambiental. Com efeito, argumentamos que, não obstante as significativas diferenças e descontinuidades entre governos, há um fio condutor comum entre neodesenvolvimentismo e a explícita campanha de livre-mercado e “Estado mínimo”, passível de ser observado na medida em que acionamos a categoria “governança ambiental”, marcada por práticas de gestão da vida e da morte submetidas à grade econômica. Dedicamo-nos a essa análise na seção que segue.

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O Desastre de Sempre: Desenvolvimento e a Produção do Colapso Ambiental

Já na primeira etapa de disseminação da Covid-19, quando a doença era ainda categorizada como um surto restrito à cidade de Wuhan e seu entorno, foram divulgados dados relativos à diminuição da poluição na localidade em razão da interrupção das atividades econômicas. Imagens de satélite evidenciaram redução da emissão de dióxido de nitrogênio, proveniente de indústrias e da utilização de automóveis (BBC, 2020). Não foi diferente em outras regiões do globo na medida em que a doença se disseminava até ser tratada como uma pandemia (Larnaud, 2020). Diante desses dados, surgiram análises e reivindicações de que a pandemia e seus efeitos (como a restrição à circulação de pessoas e a diminuição da atividade industrial) poderiam servir para a reflexão em torno de estratégias para conter as mudanças climáticas. Do mesmo modo como estaríamos, na esfera econômica, diante de uma possível ruptura com o neoliberalismo, experimentaríamos, no plano ambiental, uma potencial superação do colapso ecológico.

Uma ampla teorização tem sido produzida para dar conta dos efeitos da atividade humana sobre o ambiente. Esses trabalhos podem ser sintetizados na noção de Antropoceno (Delanty e Mota, 2017; Dalby, 2017; Franklin, 2017), que refere-se à nova época geológica, sucessora do Holoceno, caracterizada não apenas por condições naturais, mas sobretudo pela centralidade da agência humana como força geológica produtora de transformações em escala planetária – o que, conforme algumas análises, estaria a nos conduzir para uma “nova era de toxicidade” ou para um “mundo permanentemente poluído” (Liboiron et al., 2018). As mudanças climáticas, por exemplo, apresentam um caráter fortemente ambivalente, posto que envolvem efeitos que são, de uma só vez, “artificiais” e “naturais”, como a elevação do nível dos mares, das mudanças nos padrões de chuvas e das migrações de várias espécies de animais. Todos esses fenômenos podem ser considerados “geossociais” – pois questões ambientais, assim como outros desastres contemporâneos, dificilmente podem ser tomados como estritamente “naturais”, sem levar em consideração, também, a ação humana através da tecnociência (Dalby, 2017). Embora a interferência antrópica tenha efeitos sobre o ambiente há milhares de anos – através da supressão vegetal destinada à formação de áreas agricultáveis ou da caça que extinguiu várias espécies – parte considerável da literatura localiza como marcos do Antropoceno a Revolução Industrial e a utilização de combustíveis fósseis a ela associada, bem como a intensificação desses processos na segunda metade do século XX (Delanty e Mota, 2017:12–14). Por essa razão, que evidencia uma coincidência entre a escalada dos efeitos antropogênicos e o capitalismo, a noção de “Antropoceno” tem sido ressignificada enquanto “Capitaloceno” (Franklin, 2017; Delanty e Mota, 2017). Essa virada conceitual tem como objetivo localizar histórica e geograficamente (na Modernidade euro-norte-americana) a emergência do Antropoceno, ao invés de tratar esses fenômenos por meio de uma universalidade vaga e abstrata que imputa ao “humano”, de forma indistinta, a causa do colapso socioambiental. É certo, da mesma forma, que há certa oposição à enunciação do Capitaloceno, dada sua gramática marxista facilmente capturada pelas “armadilhas de Modernidade, Progresso e História” (Haraway, 2016:50) que, aliás, levaram inúmeras nações periféricas a performar a tragédia do “desenvolvimento” (Escobar, 2007) na tentativa de transformar estrutural e radicalmente amplos territórios e, consequentemente, os modos de produção, de reprodução e de relações circunscritos a esses territórios, numa suposta corrida em direção aos países do centro do capitalismo mundial. De todo modo, fato é que existe um campo de conhecimento consolidado, hoje, que reúne esforços mais ou menos articulados para se dar conta de uma temporalidade construída, composta por redes de seres humanos e para-além-de-humanos, co-dependentes e espalhadas de maneiras distintas sobre a Terra (Haraway, 2016; Moore et al., 2016).

Por essas razões, o Antropoceno apresentar-se-ia, por excelência, como o momento de inflexão final para as diversas formas de socialidade humanas – da mesma forma como a atual pandemia supostamente transfiguraria, ou refundaria, nossas bases civilizatórias. Tal desafio não é mais colocado por militantes, ideólogos ou escatologias religiosas, mas, antes, por dinâmicas geofísicas objetivamente observáveis há quarenta anos ou mais (Haraway, 2016). Contudo, ao invés de suscitar uma ruptura histórica ou ao menos um redirecionamento das percepções e ações de atores sociais relevantes, assistimos, de fato, à radicalização do potencial (auto)destrutivo do Antropoceno. Isso pode ser observado nas maneiras através das quais instituições políticas (nacionais, mas também organizações multilaterais, como o Banco Mundial) têm suprimido, gerido, suscitado formas de ser, fazer e viver.

Como já sugerido, essas perspectivas e práticas institucionais, para além de contar com um amplo apoio de base, inserem-se num processo mais longo e abrangente alavancado pela matriz de pensamento hegemônica do “desenvolvimento”, agora repaginado sob a rubrica do neoliberalismo como episteme e, portanto, como conjunto de práticas subjetivas, bem como de conhecimento, interferência e organização político-administrativa do mundo (Foucault, 2008). Conforme assinalam Raquel Oliveira e colegas, o fomento a grandes projetos de infraestrutura, extrativas e industriais, objeto de interesse de elites políticas e econômicas brasileiras desde pelo menos os anos 1950, é “justificado [...] por meio da retórica do desenvolvimento, categoria que produz efeitos de sentidos que atribuem aos projetos uma inexorabilidade frente às “exigências” de mercado” (Oliveira et al., 2020:1). Dessa forma, continuam as autoras,

[...] as consequências sociais e ambientais dessas intervenções são consideradas externalidades, ou seja, efeitos colaterais dos projetos que podem, nesta concepção, ser identificados, mensurados e eficientemente administrados por meio de programas de mitigação e de compensação (Oliveira et al., 2020:1).

Esse tipo de gestão ambiental, evidentemente de caráter econômico, vem sendo promovido por diversas instituições financeiras (do Banco Nacional de Desenvolvimento ao Banco Interamericano de Desenvolvimento e ao Banco Mundial) no sentido de agilizar a operação de estratégias de desenvolvimento sustentável, vistas como ineficientes se deixadas simplesmente a cargo do poder público (Acselrad, 2005; Laschefski, 2014) desde pelo menos os anos 1980 (Furtado e Strautman, 2014). De acordo com esse pretenso consenso em torno da categoria de desenvolvimento, seria possível conciliar, no âmbito do avanço de grandes projetos neoextrativistas e de infraestrutura – prioridades na história política recente do Brasil e da América do Sul –, interesses econômicos, ecológicos e sociais, abstraindo dessas dimensões as relações de poder que, de fato, permeiam a dinâmica dos processos sociais” (Zhouri, 2008:97, ênfase nossa).10 Nessa gradativa mas constante guinada neoliberal no campo ambiental, a noção de “governança ambiental” ganha destaque, supondo a minimização do papel do Estado na observância de direitos conquistados e na mediação de conflitos que, cada vez mais, são subsumidos à lógica da célere resolução de litígios sob o signo do “custo-benefício” extra-judicial entre as “partes interessadas” (Leroy, 2014; Acselrad e Bezerra, 2017). Estamos diante, uma vez mais, da prevalência da lógica econômica sobre todas as outras esferas. O conjunto de expedientes sociotécnicos acionados a fim de gerir – para utilizarmos o jargão nativo da economia de mercado – sujeitos, populações e territórios resulta numa série de “efeitos derrame”11 que envolvem Estado e empresas numa explícita política de produção e administração da vida e da morte.

A promoção do “desenvolvimento sustentável”, tal como colocado sobretudo por instituições financeiras, traduz-se, em parte, no que Marcos Zucarelli (2018) denominou “tecnologias sociais de gestão da crise e da crítica”. “Exemplos destas tecnologias”, diz o autor, “são: flexibilização de leis, reestruturação de organismos deliberativos, proposições de espaços democráticos consensualistas, disciplinamento da participação social e fragmentação de categorias administrativas” (Zucarelli, 2018:179). É possível identificar alguns exemplos em experiências recentes principalmente no estado de Minas Gerais, embora a ele não se limitem. Zucarelli (2018) divide essas tecnologias sociais de gestão em dois eixos. Em torno do primeiro deles, denominado “eixo estrutural”, organizam-se “mudanças estruturais significativas de organização e gestão burocrática” (Zucarelli, 2018:179). Dentre essas mudanças, podemos mencionar o Projeto de Lei (PL) 2.945/2015 apresentado à Assembleia Legislativa de Minas Gerais (transformado em norma jurídica em janeiro de 2016, dois meses após o rompimento da barragem de Fundão, sob responsabilidade da Samarco/Vale/BHP Billiton), que reestrutura o SISEMA (Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos) para facilitar o licenciamento ambiental e esvaziando, ao mesmo tempo, as competências do COPAM (Conselho de Política Ambiental do Estado de Minas Gerais); em nível nacional, no Senado, o PL 654/2012 seleciona determinados empreendimentos considerados “estratégicos” para contar com processos “flexibilizados” de licenciamento e prazos reduzidos para aprovação (Zucarelli, 2018:182–183). Ainda no bojo da promoção da resolução negociada de conflitos, é possível trazer à tona a Lei 13.140/2015, que “dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de conflitos no âmbito da administração pública” (Zucarelli, 2018:183), e o novo Código de Processo Civil de 2016, que suscita a resolução de litígios através da conciliação mediada por centros ou câmaras jurídicas especificamente criadas para esse fim. Nesse mesmo diapasão, Jair Bolsonaro, através do decreto nº 9.806/2019, reestrutura o Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), reduzindo a participação de atores da sociedade civil no colegiado de vinte e três assentos para quatro. Em nota, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) argumenta que, a partir do decreto, “o processo decisório será mais objetivo e com foco na eficiência e qualidade das decisões acerca das políticas públicas na área de meio ambiente” (MMA, 2019, sem página), acentuando um cenário já marcado por relações “coercivamente harmoniosas” (Nader, 1994).

No segundo dos eixos descritos por Zucarelli, chamado “processual”, encontramos a proposição de espaços de mediação e conciliação, o disciplinamento das formas de participação admitidas nos sistemas de gestão ambiental instituídos, o controle do tempo em que se inscrevem conflitos socioambientais e desastres, a (re)definição das categorias utilizadas para se compreender problemas e suas respectivas soluções. O desenvolvimento do já mencionado caso do rompimento da barragem de Fundão, de responsabilidade da Samarco SA, é um deles, e abordaremos aqui somente uma pequena faceta do processo. Com o objetivo declarado de acelerar o processo de reparação ambiental, uma série de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC – um dos principais instrumentos da resolução negociadas de conflitos) foram assinados entre órgãos do Estado e mineradoras, dando ensejo à criação de uma pluralidade de modalidades dirigidas de participação nos processos de tomada de decisão (Fernandes et al., 2019): seja através de debates em Câmaras Técnicas ou Grupos de Trabalho mediados pelo Ministério Público, uma “narrativa linear evento-impacto-medidas reparadoras” (Oliveira, 2018:86) é emulada, num movimento que a um só tempo prescinde da vivência e saberes das populações atingidas e “instaura a experiência de um espaço e de uma temporalidade alheios, dirigidos e organizados por outrem a partir da desterritorialização” (Oliveira, 2018:86). A etnografia dos encontros propiciados por um desses espaços de participação, instituído especificamente em Mariana, com efeito, confirma as observações de Oliveira (2018). Conforme observamos, sob a retórica da participação, os atingidos pelo desastre da Samarco encontram-se em numerosas e longas reuniões, enredados em gramáticas técnicas que lhe são estranhas, embora, concomitantemente, as mesmas sejam exigidas em vista da do exercício da “boa cidadania” (Lee e Roth, 2003), livre de “rompantes pulsionais” (Cass e Walker, 2009). “A gente se reúne demais, e perde a esperança”, um desabafo proferido por um atingindo do distrito de Paracatu, durante um GT Moradia12, em Mariana, sintetiza os efeitos perniciosos do quadro de gestão neoliberal imposto às populações localizadas ao longo da bacia hidrográfica do Rio Doce: as reivindicações das vítimas, nesse sentido, são silenciadas na medida em que forçadas à tradução para as “racionalidades e técnicas do gerir corporativo” (Zhouri et al., 2018:30).

Os exemplos de governança ambiental que trazemos à baila revelam-nos exatamente a zona de interseção, cara ao neoliberalismo, entre bio e necropolítica a que aludimos: em escalas distintas, a partir de um conjunto de enunciados e expedientes burocráticos, tecnocientíficos, retóricos e, sob o princípio de “realismo” do mercado (Boltanski, 2013), populações governáveis são engendradas e submetidas a estruturas controladas de “pacificação”; por outro lado, determinados sujeitos sociais são invisibilizados por esses mesmos expedientes e dispositivos, fadados a arcar com o ônus dos padrões de vulnerabilidade, risco e incerteza previstos nos grandes empreendimentos, orientados pelos receituários de instituições financeiras internacionais (Zhouri et al., 2018:42). Com efeito, os desastres recentes do neoextrativismo em Minas Gerais não só não se mostraram como pontos de inflexão para reorientação política e econômica, como serviram, sobretudo sob a justificativa da recessão imposta pela pandemia de Covid-19, para sedimentar e aguçar o processo mais longo e generalizado de flexibilização da política ambiental (Durão, 2020; Azevedo, 2020).

Observa-se, portanto, uma mesma matriz prático-discursiva que legitima a proposição de ações e sanciona práticas em campos distintos, embora relacionados. Seja no campo ambiental, seja na administração da pandemia de Covid-19, dirime-se o dissenso e o debate público através de uma racionalidade importada da esfera econômica e das relações de produção e que é universalizada em vários outros âmbitos. Trata-se, afinal, de um conjunto de ações alinhadas à lógica econômica, que conferem ao mercado a responsabilidade institucional de controlar e superar não só a degradação ambiental, como também crises econômicas e a própria propagação e tratamento de Covid-19. Esteio da “Teoria da Modernização Ecológica” – que pode ser sintetizada na consideração da “economia de mercado como o modo mais efetivo de garantir a flexibilidade, a inovação e a capacidade de resposta necessárias à adaptação ecológica da indústria” (Blowers, 1997:853) – o tripé “soluções de mercado, avanço tecnocientífico e consenso político” (Acselrad, 2002:50) aparece como fórmula estruturante também nos campos da economia e da saúde pública.

Esses mesmos processos e procedimentos, de fato, são constatados em territorialidades variadas: em meio à pandemia, o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, exonerou o diretor de proteção ambiental do Ibama após ação contra invasão a terras indígenas (G1, 2020); em seguida, em acordo com setores do agronegócio do sul do Brasil, sancionou a produção agropecuária em Áreas de Proteção Permanente da Mata Atlântica (Uol, 2020); cabe apontar, por fim, como mais um elemento catalisador da derrocada ambiental e fundiária no Brasil, a tramitação da Medida Provisória 910, apelidada de “MP da Grilagem”, que, ao estabelecer novos critérios para a regularização fundiária de terras da União, legitima a prática de grileiros e estimula o desmatamento ilegal (Deutsche Welle, 2020). Tais posturas chegam ao paroxismo e podem ser sintetizadas na fala de Salles na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, cujo conteúdo foi publicado a partir de autorização do Supremo Tribunal Federal: de acordo com o ministro, é preciso aproveitar a oportunidade aberta pela pandemia, que atrai fortemente a atenção da imprensa, para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas [ambientais] (...) de baciada” (Alessi, 2020).

Vale lembrar, neste ponto, os versos que nos servem de epígrafe a este texto: “A História é trem riscando trilhos/Abrindo novos espaços/Acenando muitos braços/Balançando nossos filhos”. De fato, a experiência histórica nos mostra que processos sociais de ampla escala como o que abordamos não mudam de sentido ao sabor do voluntarismo de elites salvacionistas ou de eventos percebidos como “passageiros” (na gramática corrente, como “externalidades”), não obstante quão catastróficos pareçam ser. No campo socioambiental, com efeito, se, por um lado, séculos de Progresso e Desenvolvimento nos conduzem à temporalidade do Antropoceno, as soluções hegemônicas imediatamente imaginadas perpassam, uma vez mais, os ajustes de geoengenharia “tecnoteocráticos” (Haraway, 2016:56), isto é, alinhados à crença de que ajustes técnicos, e pretensamente neutros politicamente, seriam capazes de, como uma força deífica, dar conta dos desafios produzidos pela Modernidade, permitindo o desenrolar da vida como “business as usual”. Por outro lado, como manifestação localizada de tal matriz de pensamento, em vista de uma trajetória de ao menos quarenta anos no Brasil e na América do Sul como um todo, observamos, ao invés da reorientação de atitudes e práticas como solução para os problemas percebidos, a intensificação e espraiamento da racionalidade de economia de livre-mercado como saída para a “provação” pela qual passamos. Diante disso, a interpelação de Ailton Krenak (2020, sem página) quanto aos “novos” rumos civilizatórios pelos quais estaríamos enveredando é precisa: “agora eu vejo as pessoas com um paninho branco na cara. Ao invés de colocarem a bandeira dos zapatistas, colocam um paninho branco; vai ver eles querem viver em paz com o vírus”.

3

Considerações Finais: Mutações Além e Aquém do Vírus

Estamos diante, uma vez mais, de uma experiência inédita. A todos desastres que se arrastam na história brasileira soma-se, agora, a pandemia de Covid-19. De modo avassalador e radical, o novo coronavírus perturbou cotidianos e redesenhou expectativas. Diante disso, enquanto algumas interpretações apontam um futuro distinto, talvez mais consciente, solidário e sustentável, argumentamos que a experiência presente, por si só, embora singular, tende a nos enraizar ainda mais profundamente no ordenamento econômico, político, jurídico e moral vigente e bem conhecido. Os casos aqui evocados revelam que, paralelamente às mortes provocadas pelos desastres que se repetem e persistem, práticas e entendimentos neoliberais se reinventam e espalham raízes em novas searas (Acselrad, 2005; Zhouri, 2008; Laschefski, 2014). Do mesmo modo como a flexibilização, a desregulação e a supressão do embate entre projetos de mundo distintos se mostraram como respostas aos crimes cometidos por mineradoras em Minas Gerais (Zhouri et al., 2018), parece-nos que não só “gestão” da pandemia, como também a presumida “recuperação econômica”, estão condicionadas aos mesmos princípios. Assim, superada a pandemia, perdurarão as ameaças do Antropoceno e a produção contínua de vidas precárias (Butler, 2017) pela “saúde da economia”.

Para a populações marginalizadas ou caracterizadas por modos de ser e de fazer alheios às relações urbano-industriais das classes médias e altas, não é de hoje que a exceção é instituída como regra: modos de produção, moradia e territórios são objeto de disputas contínuas; a uberização não é novidade; a restrição às liberdades de circulação e o deslocamento forçado são condições permanentes; e mesmo a experiência com epidemias constitui experiência recorrente, a exemplo da dengue e da recente explosão de zika no Brasil (Diniz, 2020). Em suma, como argumentamos, populações e regiões periféricas estão sujeitas a um duplo fardo: o dos desastres crônicos e lentos (Liboiron et al., 2018), e o dos desastres deflagrados por eventos extraordinários, cujos efeitos são mais imediatos e devastadores, embora também façam-se sentir ao longo de um tempo mais ou menos indefinido (Zhouri et al., 2018; Oliver-Smith, 2002). Ao contrário do que se supõe, essas condições, independentemente de seus efeitos e temporalidades, não parecem servir como oportunidade de guinada histórica. Pelo contrário, produzem, e reforçam, a estrutura de estados que operam em regime de exceção permanente (Agamben, 2002), submetidos incondicionalmente aos interesses dos mercados. Mais do que a gestão estratégica da vida, emergem nesses contextos de “sobrevivencialismo” (Pelbart, 2008) sujeitos reduzidos à “morte-na-vida” (Mbembe, 2017:124). Trata-se, nos termos de Judith Butler (2017:53), de vidas “não passíveis de luto”, cujas destruições são racionalmente concebidas como forma de conservar a vida dos “vivos”.

É verdade, contudo, que tal cenário só se faz possível na medida em que são depositadas sobre o novo coronavírus as esperanças e possibilidades do porvir, da construção de resistências às seculares violências impostas a sujeitos sociais e da construção de modos outros de (co-)existência. Nesse sentido, as lutas e conquistas dos movimentos de trabalhadores, movimentos anti-racistas, feministas, indígenas, entre outros, demonstram que direitos, liberdades e justiça não são concessões de elites políticas e econômicas conscienciosas, nem mesmo fruto de acontecimentos aparentemente exógenos a configurações sócio-culturais específicas, mas são, antes, resultado de jogos de força orientados por um horizonte ético-político bem definido. Com efeito, aos desafios da contemporaneidade de que aqui tratamos opõem-se um conjunto de práticas direcionado para o entretecer de alteridades, afinidades, diferenças, compostos de humanidades e para-além-de-humanos que, assim como o vírus, fazem-se ecoar para além de fronteiras territoriais e do dogma econômico13 .

É certo que há muito ainda por ser investigado sobre os efeitos da pandemia pela qual passamos, bem como sobre o cenário mais amplo na qual ela se inscreve. Neste trabalho, através de contribuições provenientes da pesquisa multi-situada, buscamos relacionar o avanço da matriz discursiva e política de livre-mercado à administração da pandemia de Covid-19 e à crise ambiental no Brasil. O avanço da investigação empírica das relações entre os “estratos” de nível “macro” e “meso” – em que se inscrevem estruturas e organizações sociais, tais como “mercados, leis e outras instituições translocais” (Fortun, 2009:78) – e “micro”, das práticas, dos sentidos atribuídos ao atual cenário, pode vir a corroborar nossos apontamentos ou impor-nos reajustes analíticos. Da mesma maneira, as ações e reações ao avanço neoliberal em tempos de colapso ambiental observadas e colocadas em curso pelos diversos sujeitos sociais no atual contexto podem se apresentar de forma mais ou menos incipiente, dado o caráter imanente e contingente de trajetórias históricas, mas oferecem, não obstante, um campo aberto à construção de conhecimento no Brasil.

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Notas

4 Entendemos “extrativismo” como “um conjunto particular de apropriação de recursos naturais caracterizado pelos grandes volumes removidos e/ou pela alta intensidade, no qual a metade ou mais é exportada como matéria prima, sem processamento industrial ou com processamento limitado”. Portanto, sob esta definição, “os extrativismos são plurais, incluindo empreendimentos tais como a mega-mineração a céu aberto, [...] as explorações de petróleo ou gás natural, os distintos monocultivos de exportação [...]” (Gudynas, 2015:14). Neste artigo, assumimos a responsabilidade pela tradução de textos em língua estrangeira.
5 Em congruência com o trabalho de Arturo Escobar, entendemos o termo “desenvolvimento” como herdeiro da concepção eurocentrada de Progresso, isto é, como um espaço de representação, um espaço cultural envolvente e dominante, que “dá forma indelével aos modos de se imaginar a realidade e de se interagir com ela” (Escobar, 2007:23).
6 Inspiramo-nos na chamada pesquisa “multi-situada”. Conforme indica George Marcus (1995:108), “quando o objeto a ser rastreado faz parte do reino do discurso e dos modos de pensamento, então a circulação de signos, símbolos e metáforas guia o desenho da etnografia. Esse trabalho envolve a tentativa de traçar os fundamentos e correlatos sociais de associações que são mais claramente avivadas no uso da linguagem e na mídia impressa ou visual”. É nesse sentido que a pesquisa é conduzida através de “uma série de justaposições de dados” (Falzon, 2009:2).
7 O exame multi-situado de um mesmo fenômeno, através de escalas diferentes, tem o potencial de jogar luz sobre relações entre processos distintos que, de outra forma, permaneceriam desconectados. Conforme pontua Kim Fortun (2009), noções variantes de “escala” são mobilizadas nas Ciências Sociais como recursos heurísticos – guardando, cada uma delas, suas próprias limitações. A pesquisa multi-situada, via de regra, supõe a profusão de “estratos”, ou diferentes escalas, na composição e análise de dado objeto de interesse: “escalas acompanham a diversidade de forças que animam dado sistema – seja esse ‘sistema’ um sujeito, uma organização, um discurso ou um mercado” (Fortun, 2009:76). Dessa forma, o material coletado “provê múltiplos ângulos de um mesmo objeto; o ‘objeto’ é visto através de diferentes quadros de referência” (Fortun, 2009:82).
8 É amplamente conhecida a argumentação foucaultiana que aponta a reorganização de uma racionalidade fundamentada na produção da morte – sintetizada pela máxima “fazer morrer e deixar viver” – para outra, assentada na gestão da vida – cuja operatoriedade pode ser compreendida através do princípio “fazer viver e deixar morrer” (Pelbart, 2008). Daí emerge o conceito de biopolítica, voltado às formas de condução da vida de homens e mulheres enquanto indivíduos e espécie (Foucault, 2008; Rabinow e Rose, 2006). Mais recentemente, a construção teórica foucaultiana é problematizada por Achille Mbembe (2017), para quem não faz sentido pensar a partir da mecânica do biopoder, mas sim do “necropoder”, os contextos distintos daquele do ordenamento político e jurídico dos Estados europeus. Isso porque, enquanto a Europa experimentava a modernidade, o mundo colonial-escravagista padecia com a barbárie levada a cabo pela destruição de corpos e populações inteiras. Nesses lugares, a violência, assim como o regime de exceção, constitui a regra que submete à condição precária (Butler, 2017) os “selvagens” colonizados, sobretudo os negros escravizados.
9 The Chicago Boys é um termo utilizado para designar um grupo de economistas formados na Universidade de Chicago e adeptos às teorias neoliberais de Milton Friedman, que influenciaram, por exemplo, as reformas impostas ao Chile durante a ditadura de Pinochet (Harvey, 2013).
10 Cabe notar que, enquanto a noção de “conflito ambiental” supõe a disputa entre atores ocupantes de posições diferentes e assimétricas no espaço social em torno de formas distintas de apropriação de um território (bem como da legitimidade de determinadas formas de relação entre humanos e para-além-de-humanos) (Zhouri e Laschefski, 2017), a resolução negociada de conflitos se baseia na ideia de que partes igualmente interessadas num montante limitado de recursos podem, através do uso da razão crítica, chegar a um consenso pacífico, desde que os “stakeholders” em questão sejam “realistas”. Como pontua Luc Boltanski (2013:450), “ser realista, [... implica em] aceitar as restrições, notadamente econômicas, tais como elas são, não porque sejam boas ou justas “em si”, mas porque não podem ser diferentes do que são”. O contexto engendrado, portanto, é um de “harmonia coerciva” (Nader, 1994), no qual a pretensa aversão à guerra e ao confronto dão lugar ao presumido diálogo e negociação pacíficos entre, digamos, indígenas e latifundiários do agronegócio; quilombolas e mineradoras multinacionais; pescadores artesanais e petroleiras, entre outros exemplos bem conhecidos.
11 “Efeito derrame” é um conceito mobilizado por Eduardo Gudynas para designar a afetação da “estrutura, dinâmica e institucionalidade das estratégias de desenvolvimento, das políticas setoriais (como a econômica ou comercial) e inclusive os modos de se entender a Natureza, a Justiça e a Democracia” (2015:14), sobretudo a partir do consenso das commodities (Svampa, 2012) e da economia pautada pelo neoextrativismo contemporâneo, baseado na premência da mega-mineração, monocultura e fratura hidráulica (fracking).
12 O GT Moradia consiste num grupo de trabalho interdisciplinar, mediado pelo Ministério Público de Minas Gerais, do qual participam sobretudo atingidos pelo desastre da Samarco e sua assessoria técnica, Fundação Renova (fundação privada, criada a partir da assinatura de um TAC, que tem por função gerir fundos provenientes das mineradoras rés no caso do rompimento de Fundão e executar medidas de reparação) e empresas, tendo por objetivo discutir e resolver questões relacionadas ao processo de reassentamento de comunidades atingidas.
13 Se, controlada a pandemia, permaneceremos na iminência do colapso, é preciso pensar nas afinidades e conexões capazes de resistir à barbárie. Para além das citações presentes no corpo deste artigo e sem incorrer, evidentemente, numa lista exaustiva de trabalhos, podemos mencionar, a título de exemplo, Kilomba (2019); Kopenawa e Albert (2010); Krenak (2019); Marcos (2020); Dilger et al. (2017) e Acosta (2016).

Autor notes

1 Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – código 001 – e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Este artigo consiste numa versão modificada e ampliada do texto “Um mundo de ponta-cabeça? O ‘novo normal’ pós-pandemia”, publicado em 08 de julho de 2020 no n. 79 do Boletim “Ciências Sociais e coronavírus”, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS).

victorfernandes@ufmg.brbruno.saliba@unimontes.br



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