Resumo: A discussão proposta neste artigo é fruto de uma pesquisa qualitativa feita a partir de uma revisão bibliográfica com objetivo de traçar um perfil histórico do processo de medicalização do parto, verificar a sua influência na apropriação dos processos reprodutivos femininos e a consequente redução da autonomia da mulher sobre seu corpo, e constatar as violações de direitos humanos das mulheres ocorridas nesse processo que devem ser reconhecidas como violência obstétrica. O parto, até meados do século XVI, conduzido na sociedade ocidental exclusivamente por parteiras tornou-se medicalizado e institucionalizado a partir da segunda metade do século XX. A medicalização do parto, fruto da medicalização social que atribui caráter médico e patológico a aspectos naturais da vida, foi marcada pelo afastamento das parteiras do manejo do trabalho de parto, constituindo-se em saber predominantemente masculino, dada a proibição do ensino formal às mulheres. O machismo e os aspectos morais e religiosos determinantes na sociedade ocasionaram a objetificação do corpo feminino como artifício de aprendizado médico e meio de exercício do controle populacional. O processo medicalizante deu margem a uma forma de violência decorrente da apropriação dos processos reprodutivos femininos pelas equipes de saúde, nominada violência obstétrica que se caracteriza pelo uso de práticas obstetrícias danosas e desprovidas de evidência científica acerca de sua eficácia, mas permeia-se por fatores de discriminação por gênero, classe social e pelo racismo estrutural. Esses aspectos estão entre os principais obstáculos ao enfrentamento à violência obstétrica, que precisa ser analisada de maneira interseccional, com vistas a resgatar a autonomia das mulheres quanto à decisão sobre seus corpos, levando-se em conta as diferentes formas de opressão a que estão submetidas.
Palavras-chave: Medicalização do PartoMedicalização do Parto,Apropriação dos Processos ReprodutivosApropriação dos Processos Reprodutivos,Violência ObstétricaViolência Obstétrica,Direitos Humanos das MulheresDireitos Humanos das Mulheres.
Abstract: The discussion proposed in this article is the result of a qualitative research based on a bibliographic review, with the objective of uncovering the historical outline of the process of medicalization of childbirth, verifying its influence in the appropriation of female reproductive systems and the consequent reduction of women’s autonomy over their own bodies, and of pointing out women’s humans rights violations that have occurred since then that must be recognized as obstetric violence. Childbirth, conducted in western societies exclusively by midwives until mid-16th century, became medicalized and institutionalized in the second half of the 20th century. The medicalization of childbirth, as a result of social medicalization that attributes medical and pathological characteristics to natural aspects of life, was marked by the removal of midwives from the management of labor, which then became a predominantly male knowledge, given the prohibition of formal education for women. Misoginy and the determinant moral and religious aspects in society led to the objectification of the female body as an artifice of medical learning and a means of practicing population control. The medicalization process gave rise to a form of violence resulting from the appropriation of female reproductive processes by health teams called obstetric violence, characterized by the use of harmful obstetric practices that lack scientific evidence of its effectiveness, which are permeated gender and social class prejudices and institutional racism. These aspects are among the main obstacles to dealing with obstetric violence, which needs to be looked at in an intersectional manner, with a focus on women’s autonomy regarding their bodies, taking into account the different forms of oppression to which they are subjected.
Key-words: medicalization of childbirth, appropriation of female reproductive processes, obstetric violence; human rights of women.
Articles
Medicalização do parto: a apropriação dos processos reprodutivos femininos como causa da violência obstétrica
The medicalization of childbirth: the appropriation of female reproductive process as a cause of obstetric violence
Recepção: 31 Maio 2020
Aprovação: 20 Setembro 2020
Na sociedade ocidental, há pouco mais de um século, o parto era um evento domiciliar no qual as mulheres, atendendo à fisiologia de seus corpos, auxiliadas por outras mulheres, as parteiras, davam vazão ao seu traço reprodutivo. Todavia, o processo de medicalização da vida humana, instituído nos últimos séculos, afetou especialmente o corpo feminino, tanto no que diz respeito ao seu aspecto orgânico, como em relação a sua condição social de gênero ( Vieira, 1999).
A medicalização do parto proporcionou um afastamento das mulheres da condução da parturição e dos cuidados com a saúde feminina, havendo um verdadeiro deslocamento de gênero quanto ao protagonismo inicial desse campo, vez que quando do estabelecimento da medicina, mulheres eram impedidas de frequentar o ensino médico formal ( Palharini e Fiquerôa, 2018). A evolução da ciência médica tomou para si, numa postura patologizante, aspectos naturais da vida humana, dentre os quais os processos reprodutivos. O corpo feminino, cujos cuidados advinham dos conhecimentos empíricos de parteiras e curandeiras, era agora de interesse médico acadêmico e, uma vez que eram proibidas de frequentar as universidades, as mulheres ficaram excluídas desse processo. O fenômeno resultou ainda na quase que completa alienação das mulheres acerca da fisiologia de seus corpos, abrindo espaço para práticas violadoras de sua integridade e de seus direitos humanos, em especial os sexuais e reprodutivos ( Ehrenreich e English, 1976; Vieira, 2009; Sena, 2016).
No presente estudo, pretende-se demonstrar como a medicalização do parto influenciou na submissão das mulheres a uma forma de violência de gênero que, em que pese praticada desde que o parto saiu da esfera domiciliar, apenas neste início de século XXI foi nominada como violência obstétrica.
A nomeação violência obstétrica é fruto da luta dos movimentos sociais de mulheres em prol do reconhecimento de seus direitos sexuais e reprodutivos e das violações sofridas nos processos de gestar, parir e abortar. Pode ser conceituada como o ato de violação à integridade física e psíquica da mulher gestante durante a assistência ao pré-natal, parto, pós-parto e situações de abortamento e está diretamente associada à apropriação dos processos reprodutivos da mulher pelas equipes médicas e de saúde ( Ferreira, 2019).
Os movimentos sociais de mulheres ensejaram também a busca por práticas que humanizem a assistência à saúde feminina no Brasil. Foram responsáveis por influenciar as mudanças nas políticas públicas deste setor. Estiveram ligados à luta pelas liberdades democráticas e pela democratização da saúde, que culminaram na aprovação do Sistema Único de Saúde – SUS – nos moldes atuais e que impulsionaram a adoção pelo Ministério da Saúde do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, ainda em 1984, o qual pela primeira vez ampliou o horizonte da saúde da mulher para além do seu papel social da maternidade e já incorporou princípios e diretrizes que só seriam adotados no sistema de saúde brasileiro mais tarde, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde - SUS ( Fonseca, 1999).
Os movimentos de mulheres também colaboraram para as recentes políticas públicas adotadas no sentido de tentar prevenir a violência obstétrica e humanizar a prática de assistência ao parto, estando entre elas a Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM) no âmbito do SUS em 2004, atualizada em 2011, ano no qual também foi lançado o Programa Rede Cegonha, estratégia do Ministério da Saúde para implementar uma rede de cuidados que assegure às mulheres a efetividade de seus direitos sexuais e reprodutivos e atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério ( Brasil, 2011).
A discussão aqui proposta é fruto de uma pesquisa qualitativa feita a partir de uma revisão bibliográfica com objetivos de traçar um perfil histórico do processo de medicalização do parto, verificar a sua influência na apropriação dos processos reprodutivos femininos e a consequente redução da autonomia da mulher, e constatar as violações de direitos humanos das mulheres ocorridas nesse processo, reconhecidas como violência obstétrica. Ao fim se busca, a partir do reconhecimento dos casos dessa forma de violência produzidos pela medicalização do parto, apontar para o conteúdo de violência de gênero dessas práticas e para a necessidade de se analisar a violência obstétrica de modo interseccional, visto que permeada por fatores de discriminação por classe social e pelo racismo estrutural, com vistas a resgatar a autonomia das mulheres quanto à decisão sobre seus corpos, levando-se em conta as diferentes formas de opressão a que estão submetidas.
A medicalização da sociedade tem sido objeto de estudo de vários autores, os quais a descrevem como o processo que transforma situações até então vistas como da vida cotidiana e antes solucionadas por meio de práticas compartilhadas nas relações sociais, em problemas médicos agora tratados como patologias ( Sena, 2016).
A evolução da ciência médica trouxe ao mundo diversos benefícios, dentre os quais o desenvolvimento dos medicamentos e de procedimentos cirúrgicos que permitiram a cura de doenças que eram causa da mortalidade precoce de grande parte da população, além da descoberta de vacinas para moléstias que assolavam a humanidade e reduziam em muito a expectativa de vida das pessoas.
Por outro lado, ao longo do tempo, a medicina também evoluiu para uma das formas de controle da sociedade e dos corpos. Ivan Illich (1975), um dos autores que mais se destacam na área da sociologia da saúde, utiliza-se da expressão “imperialismo médico” para referir-se à medicalização dos vários aspectos da vida. Para o autor a medicalização dos espectros naturais da vida humana está diretamente relacionada à industrialização, que culminou com a profissionalização da medicina ( Illich, 1975).
A sociedade medicalizada, adaptada à constante prescrição e uso de medicamentos, desacostumou-se e até se aterroriza não apenas com a dor, mas com qualquer tipo de alteração comportamental, ainda que própria da fisiologia humana e busca a todo custo (e por meio da medicina) voltar à condição de normalidade.
O corpo feminino tomou parte dessa nova forma de conduzir os aspectos naturais do ser, sobretudo no que diz respeito à condição reprodutiva. Eventos como menstruação, gestação, parto e menopausa, antes conduzidos à base da experiência em conhecimentos transmitidos a cada geração, passaram a ser de interesse médico. As mulheres que antes dirigiam e dominavam os saberes empíricos relacionados aos atos de gestar, parir e abortar foram quase completamente retiradas de cena para dar lugar ao saber dogmático da medicina preponderantemente masculina, vez que inicialmente apenas homens tinham acesso à formação acadêmica ( Ehrenreich e English, 1976; Palharini e Fiquerôa, 2018).
As sociedades ocidentais mantiveram como hábito, até ao menos a metade do Século XVI, a realização do parto domiciliar sob a condução de parteiras, mulheres que dominavam o conhecimento relacionado à fisiologia feminina e aos seus processos reprodutivos. Além de conhecerem as manobras adequadas ao parto, as parteiras também exerciam um papel de apoio afetivo e de cuidado das parturientes até que estivessem prontas para cuidar dos bebês. O parto era assim, um evento íntimo e familiar, homens, quase sempre, eram banidos do local da parturição ( Sena, 2016).
A partir de então, em várias cidades europeias passou-se a exigir das parteiras a submissão a exames aplicados por convenções municipais ou eclesiásticas. As novas exigências eram uma forma de controle, uma vez que as parteiras também conheciam práticas anticonceptivas e abortivas. Estado e Igreja, que atendiam aos interesses da emergente sociedade capitalista, desejavam o crescimento populacional com a finalidade de aumentar as forças de trabalho e de defesa (Vieira, 2009). Grande parte das legislações punitivas contra o aborto surgiu nessa época, fato pelo qual, aponta Sena (2016) “desconstrói-se a ideia de controle do abortamento apenas por doutrinação moral ou regulamentação de cunho espiritual e escancara-se a sua clara finalidade utilitarista: controle populacional” ( Sena, 2016, p. 35).
A prática inquisidora da Igreja teve forte colaboração no processo de medicalização da vida e do parto e do fortalecimento da medicina dogmática. A Inquisição eliminou milhares de pessoas, consideradas bruxas por deterem conhecimentos relacionados à cura, sendo a grande maioria de mulheres. Ehrenreich e English (1976) asseveram que o movimento de caça às bruxas, ocorrido entre os séculos XIV e XVII, teve forte contribuição para o afastamento das parteiras da cena do parto e para a exclusão feminina da prática médica formal então nascente. Instaurou-se a partir daí um cenário de monopólio do conhecimento médico formal, exigindo-se a formação pela educação nas universidades recém-criadas nas quais mulheres não eram admitidas, transformando a medicina em atividade reservada apenas aos homens. As autoras apontam ainda que o cenário da medicalização do parto revelou-se em verdadeira competição, instaurada entre parteiras e médicos, sendo que estes últimos alçaram muito maior apoio nas estruturas de poder do Estado e da Igreja. A Inquisição, apesar de não ter exterminado por completo as parteiras e curandeiras, que resistiram e permaneceram no auxílio ao partejar, marcou para sempre a sua atividade como sendo suspeita ( Ehrenreich e English, 1976).
O uso do fórceps, instrumento controlado apenas pelos médicos, também contribuiu para o cerceamento das mulheres da condução do parto. Quando não eram proibidas de fazer uso do instrumento, as parteiras não tinham dinheiro para adquiri-lo, sendo por uma razão ou por outra, consideradas incapazes para as novas tecnologias do nascimento (Vieira, 2009; Sena, 2016).
Todavia, a apropriação dos processos reprodutivos femininos não se deu de forma tão rápida. Mantinha-se forte a tradição de parir com a assistência das parteiras. Boa parte das mulheres recusava o amparo médico, por considerarem as parteiras mais confiáveis ou por razões morais que dificultavam a aceitação da figura masculina no parto ( Palharini e Fiquerôa, 2018).
A adesão ao parto médico operou-se a partir da infusão na sociedade do discurso medicalizante do risco ( Sena, 2016), de forma a definitivamente atribuir um caráter patológico ao parto como situação para a qual é indispensável assistência de um médico. As mulheres foram convencidas de que o amparo ao parto pelas parteiras representava perigo a sua vida e a de seus bebês, sendo essencial a atuação de profissional médico com estudo formal. O aparecimento desse discurso pode ser visto como parte do processo de medicalização da sociedade e teve como objetivo a retirada do parto da esfera dos processos naturais, transformando-o em circunstância anormal, que necessariamente requer intervenção da medicina ( Sena, 2016).
Na metade do século XVIII, a assistência ao parto por um médico estava mais difundida em alguns países da Europa. Não obstante, a medicina da época não tinha conhecimentos suficientes acerca da prática obstétrica, sendo alto o índice de mortalidade materna nesses partos. Apesar disso, mantinha-se o afastamento das parteiras como forma de propiciar aos médicos o treino quanto ao manejo do trabalho de parto (Vieira, 2009).
A apropriação pela medicina da atividade de partejar, afastando-se o saber empírico das parteiras sem um conhecimento científico obstétrico consolidado foi extremamente árdua para médicos e mulheres.
A etimologia da palavra Obstetrícia’ - originada do latim obstetricum, significa “estar diante de” (obs); “mórbido, tétrico” (tetricum) - expressa, em si mesma, um dos aspectos que a apropriação dessa área do saber trouxe para os médicos da época, diante de situações que tecnicamente não dominavam. Até o século XVIII, o parto foi vivido como um perigo de morte real, sendo a mortalidade materna bastante elevada na Europa Ocidental (Vieira, 2009, p. 70).
Além do desconhecimento da fisiologia do parto, os instrumentos com os quais os médicos o manejavam, tais como o fórceps, eram responsáveis pela propagação de febres puerperais e outras formas de infecção diretamente relacionadas à morte puerperal ( Sena, 2016). A mortalidade materna provocada pela inserção médica no parto foi, dessa forma, causa propulsora do discurso medicalizante do risco, na medida em propagava ainda mais o parto como algo além de um processo natural e que não poderia em qualquer hipótese ser conduzido sem assistência médica.
As mortes maternas contribuíram também para o deslocamento do parto da esfera domiciliar para o ambiente institucional, representado pelas recém criadas maternidades em diversos países da Europa a partir da segunda metade do século XIX. O parto agora era visto como algo que submetia a mulher a risco de morte e que necessariamente deveria receber a atenção médica especializada. O atendimento institucional permitiu aos médicos um melhor exercício das práticas obstétricas (Vieira, 2009).
A crença na necessidade de intervenção médica fortalecida pelas consequências advindas da própria intervenção vai de encontro ao que Ivan Illich (1975) define como iatrogênese, o processo pelo qual a própria medicina a partir de suas ações, em vez de preservar a saúde dos corpos, produz processos patológicos para em seguida interferir sobre eles. A atual realização de intervenções desnecessárias, a exemplo das cirurgias cesarianas eletivas e por conveniência médica, sem indicação baseada em evidências científicas e ainda das episiotomias de rotina, também pode ser inserida no que o autor conceituou como iatrogênese clínica que contribui para perda da autonomia dos seres ( Illich, 1975).
No Brasil, o início do processo de medicalização firmou-se nas mesmas premissas da Europa Ocidental: a desqualificação e o afastamento das parteiras e a institucionalização em hospitais. Aqui, até o século XIX, a tradição de assistência ao parto por meio de parteiras prevaleceu. A institucionalização iniciou-se, sobretudo, a partir dos centros urbanos, mantendo-se em áreas rurais ainda por muito tempo e em algumas delas até os dias atuais permanece o hábito da parição por parteiras.
A despeito de no início do século tenha se iniciado o ensino das artes obstétricas em Escolas de Medicina no Rio de Janeiro e em Salvador, o estudo do partejar permaneceu por décadas em sua forma teórica, sendo utilizados bonecos para simulação das práticas. Além disso, era forte a resistência das mulheres em serem atendidas em hospitais sob os cuidados masculinos, havendo relatos de que preferiam morrer a serem curadas por médicos (Vieira, 2009).
Contribuiu para maior resistência das mulheres ao atendimento médico o fato de até o século XX não haver maternidades no Brasil e os partos serem realizados em ambiente hospitalar comum, muitas vezes sem enfermarias obstétricas isoladas. Assim, o início do atendimento medicalizado do parto era direcionado, sobretudo ao atendimento de escravas, mães solteiras, prostitutas e mulheres pobres que não contavam com outra forma de assistência. Vieira (2009) relata a existência, antes mesmo da primeira maternidade pública, de pequenas maternidades privadas, destinadas principalmente para o atendimento de escravas parturientes.
Tanto na Europa como no Brasil a consolidação do processo de medicalização e institucionalização do parto aconteceu já no século XX. Na Europa, no período entre as guerras mundiais, com a maior difusão do atendimento em hospitais e maternidades ( Thébaud, 2002) e no Brasil a partir das décadas de 1960 e 1970 ( Palharini e Fiquerôa, 2018).
A medicalização do parto está intrinsecamente ligada ao processo de medicalização da vida ocorrido na sociedade ocidental. Reflete a modificação nas estruturas sociais então vigentes nas quais se transferiu a explicação dos fatos da vida, da perspectiva religiosa para o ponto de vista da ciência. O controle social que antes era moral e religioso, agora se transformava em médico e científico.
Nesse contexto houve uma verdadeira apropriação médica do corpo feminino e de seus processos reprodutivos que revelou uma dupla finalidade: a objetificação do corpo feminino para torná-lo instrumento da medicina e a reserva de mercado em atendimento claro aos interesses capitalistas ( Ehrenreich e English, 1976; Sena, 2016).
Silvia Federici (2004) em “o Calibã e a Bruxa”, obra que investiga o que ocorreu com as mulheres durante a transição entre o sistema político-econômico feudal para o capitalismo, denuncia o processo de caça às bruxas responsável pela eliminação de milhares de mulheres parteiras, inicialmente instaurado pela Inquisição da Igreja Católica e posteriormente assumido como política estatal em diversos países, estendendo-se por mais de dois séculos. A autora alerta para o fato de que a eliminação de grande parcela da população feminina da época coincide com o surgimento do capitalismo, explicando que “a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua função reprodutiva e serviu para preparar o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor” (Federici, 2004, p. 30-31). Nesse novo regime “o corpo feminino foi apropriado pelo Estado e pelos homens, forçado a funcionar como um meio para a reprodução e a acumulação de trabalho” (Federici, 2004, p. 31).
Ehrenreich e English (1976), analisando o contexto estadunidense já no início do século XX, quando o parto medicalizado e institucionalizado firmou-se naquele país, alertam para a edição de leis que garantiam aos médicos o monopólio para o exercício da medicina, quando ainda era popular a atuação de parteiras tradicionais que atendiam, sobretudo mulheres pobres, as quais, todavia, gastavam com os serviços de assistência ao parto cerca de cinco milhões de dólares por ano ( Ehrenreich e English, 1976).
A medicalização do modo de nascer, reflexo da medicalização social, possui dessa forma, clara relação com a apropriação dos processos reprodutivos femininos com vistas à objetificação do corpo da mulher como artifício de aprendizado e meio de exercício do controle populacional. Tal apropriação pode ser vista como causa da redução da autonomia das mulheres sobre seus processos reprodutivos e do poder feminino de decisão sobre o próprio corpo, o que diminui o seu aspecto humano e tem clara relação com o discurso do risco que aterroriza as mulheres e as faz desejosas de intervenção ( Sena, 2016).
O processo de medicalização do parto também é fonte da violência atualmente cometida contra as mulheres durante a assistência aos processos de gestar parir e abortar, e que representa violação aos seus direitos humanos. Não é acaso que ainda hoje uma das grandes bandeiras levantadas pelo movimento feminista no mundo inteiro diz respeito à reivindicação pelos direitos humanos sexuais e reprodutivos, uma vez que, como afirma a teórica feminista Bell Hooks ao tratar do tema, se as mulheres não podem escolher o que acontece com o próprio corpo, arriscam a renunciar direitos em outras áreas da vida ( Hooks, 2018).
A partir da metade do século XX o atendimento ao parto tornou-se institucional na quase totalidade dos casos. A medicalização contribuiu para o avanço da medicina obstétrica que tem um papel essencial na redução da mortalidade materna e infantil, uma vez que o desenvolvimento da assepsia, da analgesia e da possibilidade da retirada do bebê por meio de procedimento cirúrgico em muito colaboraram para o atendimento a complicações que não são resolvidas apenas com o atendimento por parteiras.
Não obstante, uma vez desenvolvida num contexto de apropriação dos processos reprodutivos femininos, a medicalização também contribui para forma de violência atualmente vivenciada por muitas mulheres durante a assistência ao parto: a violência obstétrica. Essa forma de violência deve ser entendida no campo mais amplo da violência de gênero. Aqui, adota-se o termo gênero para além da distinção binária homem e mulher, mas como uma categoria analítica social baseada na percepção das diferenças entre os sexos e na qual se articulam relações de poder ( Scott, 1995). Nessa perspectiva o gênero é espaço de construção das relações de poder, que vem sendo utilizado como forma de oprimir e desvalorizar as mulheres, transformando-as em objeto de exploração e domínio ( Saffioti, 2001). No entanto, o gênero representa apenas uma das categorias de análise das desigualdades de poder, que devem ser consideradas para melhor entendimento das opressões sociais dos eixos raça e classe ( Scott, 1995).
Assim, se o gênero representa espaço de construção de relações de poder nas quais se constroem papéis sociais pelos quais as mulheres estão frequentemente submetidas à opressão, a violência de gênero é a manifestação desse domínio presente tanto nas relações domésticas e familiares, quanto nas relações institucionais nas quais se inserem as ações e serviços de saúde referentes ao ciclo gravídico-puerperal ( Diniz, 2001).
Ao longo do processo de medicalização do parto foram inseridas na assistência médica de parturientes práticas que depois seriam consideradas prejudiciais, decorrentes da ausência de uma avaliação periódica de sua eficácia. A inexistência da apreciação dessas rotinas, associada a fatores de discriminação por gênero, raça e classe social, levou à perpetuação de hábitos no manejo do trabalho de parto que são causa da violência obstétrica.
Os movimentos sociais de mulheres pelo parto humanizado, assim como vários pesquisadores da temática da violência obstétrica ( Diniz, 2009; Aguiar, D’oliveira e Schraiber 2013; Faneite, 2012; García, Diaz e Acosta 2013; Terán et al., 2013 ), têm definido essa forma de violência de gênero como uma violação ao direito das mulheres gestantes durante o trabalho de parto, parto e pós-parto, significando “a apropriação dos processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde por meio de uma atenção mecanizada, tecnicista, impessoal e massificada do parto” ( Ferreira, 2019, p. 35). A violência obstétrica caracteriza-se dessa forma por uma presença interventiva desnecessária das equipes de saúde na assistência ao parto e ao abortamento, por meio de posturas e práticas não autorizadas pelas mulheres, muitas vezes desagradáveis e dolorosas, sem fundamento em evidências científicas e que podem ser causa de violência física, psíquica e sexual ( Ferreira, 2019).
Também é necessário que se compreenda a violência obstétrica enquanto violação aos direitos humanos sexuais e reprodutivos das mulheres. Esses direitos relacionam-se à autonomia que as pessoas devem ter acerca dos seus corpos. Os direitos sexuais devem garantir a possibilidade de viver e expressar livremente a sexualidade sem violência, discriminações e imposições sociais, com respeito pelo corpo do parceiro, o qual também tem direito de livre escolha. Os direitos reprodutivos, não obstante ligados aos direitos sexuais - visto que a forma de reprodução humana mais usual ainda se dá a partir do relacionamento sexual - devem ser considerados de maneira independente daqueles e dizem respeito à possibilidade das pessoas decidirem de forma livre e com responsabilidade se desejam ou não ter filhos, quantos filhos desejam ter e o momento de suas vidas mais apropriado para viver esse direito ( Brasil, 2009).
Apesar de serem direitos humanos integrados àqueles reconhecidos por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, os direitos sexuais e reprodutivos apenas foram reconhecidos enquanto direitos humanos das mulheres, a partir das conferências internacionais realizadas no Cairo em 1994 e em Pequim em 1995, as quais aconteceram num contexto de reorganização do movimento feminista, ocorrido a partir da década de 1970 na busca da consolidação desses direitos ( Corrêa et al., 2015 ).
O debate instaurado na luta pela consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres trouxe à baila também a questão das práticas violadoras cometidas na assistência médica ao parto, fato que fez com que a Organização Mundial da Saúde (OMS) apoiasse em 1979 a criação de um Comitê Europeu de profissionais e pesquisadores para estudar as intervenções obstétricas e investigar maneiras de reduzir a morbimortalidade perinatal e materna no continente ( Ferreira, 2019).
As conclusões desse estudo propiciaram a publicação, em 1996, pela OMS de um manual de práticas comuns na condução do parto, orientando sobre o que deve e o que não deve ser realizado no processo de parto e nascimento ( OMS, 1996). Foram consideradas rotinas danosas que deveriam ser abolidas, a partir de então, da assistência ao parto, a tricotomia 3, a lavagem intestinal, o jejum 4, a utilização de ocitocina 5, a imposição da posição litotômica 6 para a mulher durante o trabalho de parto e a Manobra de Kristeller 7 ou similar. A episiotomia ou “pique”, que se trata de uma cirurgia realizada na vulva cortando a entrada da vagina com uma tesoura ou bisturi, foi declarada rotina sem qualquer evidência científica de eficácia ( Parto do Princípio, 2012).
Por outro lado, entre as boas práticas recomendadas no manual apresentado pela OMS ainda em 1996, estão:
O monitoramento de bem- estar físico e emocional da mulher, a oferta oral de fluidos durante o trabalho de parto e parto, as técnicas não-invasivas e não farmacológicas de alívio da dor (como a massagem, o banho e o relaxamento), a liberdade de posição no trabalho de parto e parto, o encorajamento a posturas verticais, dentre outras ( Diniz, 2001).
A publicação da OMS trouxe uma nova visão para a assistência ao parto no sentido de se reconhecer o corpo feminino como capaz de, por meio de seu processo fisiológico próprio promover o nascimento do bebê sem a necessidade de maiores intervenções. Reconheceu-se o parto não mais como uma situação de perigo, mas como uma experiência pessoal e também familiar da mulher e do bebê (Diniz, 2005). As novas recomendações tornaram-se referência para os movimentos pela humanização do parto, os quais apesar de não uníssonos, dada a sua diversidade de abordagens, ora fundamentadas em evidências científicas, sobretudo as resultantes do manual da OMS, ora baseadas em garantia de direitos às mulheres, buscam novos caminhos para o parto e a para a vivência da maternidade na atual condição institucional e medicalizada do parto (Diniz, 2005).
Todavia, as recomendações da OMS, datadas de 1996, ainda não são uma realidade na assistência ao parto, sendo comum ignorar as boas práticas e utilizar rotinas consideradas danosas que representam violência obstétrica. A violação consiste não apenas na adoção de prática não baseada em evidência científica, mas na redução da autonomia e poder de decisão da mulher em relação ao próprio corpo. A adoção de rotinas sem que se dê conhecimento à parturiente acerca de por que e para que se está realizando aquele procedimento ou se é o mais adequado e menos danoso à sua saúde, viola direito sexual e reprodutivo da mulher.
A redução da autonomia das mulheres sobre os seus processos reprodutivos e a fisiologia de seus corpos pode até mesmo prejudicar a compreensão por tais mulheres de eventual violência sofrida durante a assistência ao parto. As rotinas inadequadas, possivelmente dolorosas e desconfortáveis, podem ser vistas enquanto parte do processo de nascer, no qual o fato mais importante seja entendido como a vida e a saúde do bebê. A própria OMS emitiu recentes diretrizes para assistência do ciclo gravídico-puerperal nas quais expõe ser preciso que os partos ocorram com um mínimo de intervenções possível, porém ressalta a importância de que haja uma experiência positiva de parto (OMS, 2018).
A mulher que não reconheça na prática inadequada uma forma de violência, ainda que lhe cause dor ou desconforto, pode relatar uma experiência positiva de parto. Porém pode ser que em momento posterior, se devidamente informada da fisiologia de seu corpo e do seu processo reprodutivo, não reconheça na experiência vivida a mesma positividade. A autonomia relaciona-se, assim, ao direito a uma decisão informada, que apenas acontece se são fornecidas à mulher informações suficientes a respeito da fisiologia de seu corpo e das práticas adequadas à assistência do ciclo gravídico-puerperal.
A mesma OMS havia emitido em 2014, diante da denúncia das práticas violadoras em diferentes países, declaração na qual reconhece a violência obstétrica como um problema global:
No mundo inteiro, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde. Tal tratamento não apenas viola os direitos das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça o direito à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação. Esta declaração convoca maior ação, diálogo, pesquisa e mobilização sobre este importante tema de saúde pública e direitos humanos ( OMS, 2014, p. 1).
Dados estatísticos revelam uma grande incidência de violência obstétrica nas maternidades brasileiras. O estudo “Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado”, realizado pelo SESC e a Fundação Perseu Abramo em 2010, indicou que 01 em cada 04 mulheres é vítima de violência obstétrica no Brasil. Em 2012, a Parto do Princípio – Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa, movimento social de mulheres no Brasil, por meio do documento intitulado “Violência Obstétrica: ‘Parirás com Dor’”, denunciou o grave cenário de violência obstétrica vivido no Brasil. O documento chamou a atenção para a permanência, nas maternidades brasileiras, de práticas há muito declaradas como danosas pela OMS (episiotomia, intervenção para aceleração do parto, manobra de Kristeller, ausência de esclarecimento e consentimento da paciente), denunciou o alto índice na prática de cesáreas e sua realização em caráter eletivo e, muitas vezes, por conveniência médica, dissuasão e até mesmo coação da mulher ( Parto do Princípio, 2012).
O dossiê alertou também para o descumprimento de garantias legais asseguradas às gestantes, tais como a lei do acompanhante e para a influência de fatores de discriminação relacionados à raça, orientação sexual e classe nas práticas obstétricas das maternidades brasileiras. As intervenções com finalidades “didáticas”, a exemplo da realização por várias pessoas juntas ou de forma sequenciada do exame de toque vaginal, sem qualquer indicação de efetiva necessidade, provocando verdadeira objetificação do corpo feminino, também está relatada no documento.
Senti meu corpo totalmente exposto, me sentia um rato de laboratório, com aquele entra e sai de pessoas explicando procedimentos, me usando para demonstração. O médico mal falou conosco, abriu minhas pernas e enfiou os dedos, assim, como quem enfia o dedo num pote ou abre uma torneira. A.F.G.G. atendida na rede pública de Belo Horizonte-MG ( Parto do Princípio, 2012).
A Pesquisa “Nascer no Brasil”, realizada pela Fundação Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), durante os anos de 2011 e 2012 com puérperas e seus recém-nascidos, e que se propôs a efetuar um inquérito nacional sobre parto e nascimento identificou que o número de cesáreas realizadas no Brasil encontra-se em torno de 52% (cinquenta e dois por cento) no sistema público de saúde, podendo chegar a 88% (oitenta e oito por cento) nas instituições privadas. O estudo demonstra a utilização da cesárea por conveniência, fato que também caracteriza a violência obstétrica, uma vez que ainda em 1975 a OMS estabeleceu como aceitável um índice de até 15% de partos abdominais.
Dados publicados no jornal científico The Lancet, a partir de pesquisa mundial realizada entre 2000 e 2015, mostraram que em 15 anos o número de cesáreas no planeta praticamente dobrou, passando de 12% para 21%. O Brasil é o segundo país do mundo com o maior índice de cesarianas, 55,5%, e a América Latina a região que mais faz cesariana, presente em 44,3% dos partos. Na América do Norte o parto cesáreo representa 32% dos nascimentos e na Europa Ocidental, 26,9% ( Boerma et al., 2018 ). A pesquisa mostrou também que mais de 60% países do mundo possuem índices acima do teto de 15% preconizado pela OMS ( Boerma et al., 2018 ). Os dados de monitoramento do Sistema Único de Saúde a respeito da das taxas de cesárea no Brasil indicam que em 2018 esse índice chegou a 56,32%, sendo a região sul do país responsável pela maior incidência de partos por cirurgia com uma taxa de 61,30% e região norte com o menor, porém não menos alarmante, percentual de 47,78% (DATASUS, 2020).
Entre os anos de 2010 e 2013, foi realizado estudo em 14 maternidades públicas das 08 regiões de saúde do Estado do Tocantins, no qual foram entrevistadas 56 puérperas acerca da sua “percepção sobre violência obstétrica no processo de parto” ( Guimarães et al., 2018 ). A pesquisa apontou para a existência de violações que vão desde a falta de qualidade na assistência até a ausência de informação, a negativa na prestação de esclarecimentos, a restrição de acompanhante de livre escolha, destacando-se entre aquelas que tiveram esse direito garantido a necessidade de intervenção do acompanhante para um melhor acolhimento; a descontinuidade da assistência, evidenciando-se a divergência entre o atendimento recebido durante a gestação e o efetuado na assistência ao parto. As pesquisadoras verificaram também os sentimentos vivenciados por essas mulheres, estando presentes os sentimentos de tristeza, medo da própria morte e da de seus bebês, não escuta pelos profissionais de saúde, a desvalorização da fala da mulher, a banalização da dor e da violência e, ainda, a invisibilidade que se manifesta pela ausência de “reconhecimento da mulher como sujeito nessa relação entre os profissionais de saúde, no momento do parto, mas como objeto de intervenção para chegar a um produto, que é o nascimento” ( Guimarães et al., 2018 ).
A mesma pesquisa também qualifica as formas de violência sofridas nas maternidades públicas do Estado do Tocantins em negligência, violência verbal, violência física, violência psicológica e má qualidade no atendimento. Evidencia que a violência verbal é constantemente utilizada para disciplinar as parturientes, a violência física consiste no uso de práticas danosas abolidas pela OMS e nas intervenções com finalidade didática e a violência psicológica, em manifestações de culpabilização, no uso de frases estigmatizantes, na falta de acolhimento e desrespeito à autonomia e aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres ( Guimarães et al., 2018 ).
Outro fator que revela ausência na qualidade do atendimento à saúde da mulher gestante é o índice de mortalidade materna, assim considerada a morte ocorrida até o 42º dia após o parto, decorrente de complicações dele advindas. Em 2017 a taxa de mortalidade materna no Brasil apresentou um índice 64,5/1000 nascidos vivos, sendo que 60% dessas mortes ocorreram por causas evitáveis ( IPEA, 2019).
O contexto da violência obstétrica apresenta, portanto, clara relação com o processo de medicalização do parto desenvolvido sob o discurso do risco e voltado a intervenções desnecessárias. O momento do parto é esperado com sentimento de medo e angústia, tanto em razão das dores inerentes à fisiologia feminina quanto dos relatos das más experiências vividas por outras mulheres, fato que faz as mulheres desejarem a intervenção médica no sentido de aliviar a dor, de passar mais serenamente por esse processo ( Sena, 2016).
Porém a intervenção pode representar dor ainda maior, sobretudo quando ocorrem práticas danosas e atos discriminatórios no momento do trabalho de parto motivo que, aliado ao discurso do risco propulsor da medicalização, é responsável também pela absurda proliferação de cirurgias cesarianas. O parto cesáreo representa uma intervenção médica necessária e efetiva quando indicado por motivos baseados em evidências científicas. Todavia, pesquisas como a “Nascer no Brasil” mostram que tem se tornado rotina a cesárea de eleição ou por conveniência médica ( Nascer no Brasil, 2013).
Não se pretende aqui contrapor-se à escolha pela intervenção cirúrgica cesariana realizada diariamente por diversas mulheres, as quais não sentem qualquer violação de direitos decorrentes da prática. Porém é importante considerar a necessidade de que se trate de opção esclarecida e informada acerca das consequências do nascer por intervenção cirúrgica. O parto normal, se conduzido de acordo com as práticas recomendadas pela OMS, reduz o risco de hemorragias e infecções e permite o contato imediato e pele a pele com o bebê. A cesariana, sobretudo se realizada fora do trabalho de parto, além de impor risco cirúrgico à mulher, deixa-a sonolenta em decorrência da analgesia e dificulta o contato imediato mãe-bebê, ato importante para o sucesso de processos fisiológicos como a dequitação da placenta, a diminuição do sangramento da mãe, a estimulação da produção de leite e o estabelecimento da amamentação ( Salgado et al., 2013 ). O parto cirúrgico representa, ainda, maiores riscos de riscos de complicações tais como infecção pós-parto, morte materna e fetal, admissão materna e fetal em UTI ( Mascarello et al., 2017 ).
A redução da autonomia feminina nesse processo, das quais decorre a violação de direitos, residem dessa forma, não no procedimento cirúrgico em si, mas na sua realização sem um consentimento esclarecido da mulher, o qual pressupõe informação adequada sobre riscos e consequências para ela e para o bebê de uma intervenção desnecessária, o que de fato nem sempre ocorre.
Em pesquisa realizada por Valadão e Pegoraro (2020), na qual entrevistaram oito puérperas vinculadas a uma Unidade Básica de Saúde de Uberlândia (MG), vinculada ao SUS, as mulheres relataram que apesar de informadas pelos médicos da preferência pelo parto normal no sistema público, decorrentes das recentes políticas de humanização, não foram esclarecidas dos benefícios desse tipo de parto e, ainda que prefiram parto normal, a escolha da forma de parir estaria mais relacionada a fatores como a postura da equipe de saúde responsável pelo atendimento do que à sua manifestação de vontade ( Valadão e Pegoraro, 2020).
A situação verificada na pesquisa, aliada ao fato de que a maior incidência de cirurgias cesarianas ocorre no sistema privado, revela uma faceta da violência presente mesmo nas tentativas de humanização da assistência ao parto e decorrente de discriminação por classe social. As mulheres que têm acesso ao atendimento nas redes privadas, atendendo ao discurso do risco e temerosas das dores do ato de parir, não apenas as fisiológicas, mas as interventivas, não informadas acerca dos riscos e consequências da cirurgia para si e seus bebês, decidem por partos cesáreos, enquanto àquelas atendidas no SUS experienciam o parto normal, porém sem esclarecimento acerca de seus benefícios e mantendo a crença de um melhor atendimento proporcionado pela intervenção cirúrgica ( Valadão e Pegoraro, 2020).
Percebe-se assim que para além do uso de práticas não recomendadas e da objetificação do corpo feminino, a violência obstétrica também decorre de outros fatores estruturais que determinam as relações sociais, dentre eles classe e raça. Esses fatores, assim como gênero, devem ser utilizados enquanto categorias de análise da sociedade e das relações de poder nela presentes. A classe e a raça são indutoras de discriminação na medida em que as pessoas mais pobres e pertencentes a determinados grupos étnico/raciais não ocupam posições sociais e institucionais que revelam poder de decisão e influência sobre a ordem social, fato que torna muito mais difícil que se tenham assegurados os seus direitos fundamentais. A raça, aqui considerada como “fator político utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a segregação”, é indutora do racismo enquanto forma de discriminação manifestada por meio de “práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”, presente na ordem social e reproduzido pelas instituições ( Almeida, 2019, p. 22).
A pesquisa realizada pela FIOCRUZ em 2011 e 2012 identificou importantes diferenças na assistência médica ao parto entre mulheres negras e mulheres brancas. As disparidades estão presentes tanto nas condições econômicas mais precárias quanto no acesso e qualidade da assistência em saúde a elas prestada. Os resultados evidenciaram que mulheres pretas possuem maior risco de ter um pré-natal inadequado, de não terem o direito ao acompanhante respeitado, que recebem menos orientações no pré-natal sobre os riscos de complicação do parto e que recebem menos anestesia local para a realização de episiotomia (Nascer no Brasil, 2013).
O avanço das denúncias das diversas formas de violência obstétrica no Brasil e a recente explosão de pesquisas acadêmicas a respeito do tema vem, aos poucos, produzindo reflexos sobre as políticas institucionais de acolhimento a mulheres no período gestacional e puerperal. A Rede Cegonha, programa do governo federal instituído em 2011, busca a humanização da assistência à saúde da mulher com ações que integram o período gestacional, parto, puerpério e se estendem a cuidados com a saúde do bebê. É concomitante à instituição do programa a aprovação da Lei n.º 11.108/2005 que tornou obrigatória a garantia às parturientes de um acompanhante de sua escolha durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato ( Brasil, 2005).
Nada obstante, os dados indicam que estas iniciativas ainda não fizeram arrefecer as práticas de violência obstétrica que encontram graves obstáculos. A falta de informação adequada sobre a fisiologia do parto reduz a autonomia das mulheres sobre seus processos reprodutivos. Essa questão, aliada a outros fatores estruturais condicionantes de desigualdade social, a exemplo do machismo e do racismo, responsáveis pela minimização ou mesmo o aniquilamento de ações que visem o conhecimento do corpo feminino e pela discriminação por cor da pele presente no atendimento de pior qualidade assegurado às mulheres negras (Nascer no Brasil, 2013), representa forte entrave ao enfrentamento dessa forma de violência de gênero.
A ausência de responsabilização e de reparação efetiva aos danos ocasionados pela violência obstétrica é também um obstáculo à diminuição dessas práticas. No Brasil ainda não existe legislação nacional que defina, reconheça e sancione a prática de violência obstétrica. O Projeto de Lei n.º 878/2019, em trâmite no Congresso Nacional com o objetivo de identificar e tipificar condutas de violência obstétrica, ainda não tem qualquer previsão de aprovação. Alguns entes federativos, dentre eles o estado do Tocantins (Lei 3.385/2018), já aprovaram legislações que definem e indicam situações que caracterizam a violência obstétrica. Todavia, as legislações aprovadas no Brasil não definem qualquer caráter sancionatório.
A inexistência de sanção definida em lei tem sido utilizada para, em situações de crise social e política, como a atualmente vivenciada na saúde pública mundial em razão da decretação pela OMS da pandemia por coronavírus (Sars-Cov-2), relativizar os direitos humanos sexuais e reprodutivos das mulheres, a exemplo do que vem acontecendo nas maternidades públicas do Estado do Tocantins, nas quais, desde o início da pandemia, as grávidas têm violado o seu direito ao acompanhante ( TV Anhanguera, 2020).
Não obstante o ordenamento jurídico brasileiro já disponha de institutos suficientes para responsabilização civil seja do Estado, seja de instituições privadas, acerca das práticas de violência obstétrica, a maior parte das decisões judiciais deixa de definir tais situações como violência obstétrica, tampouco reconhece a existência de violência de gênero. Se fixarem reparações, é por entender se tratarem de situações de erro médico ( Nogueira e Severi, 2017).
Tal fato pode revelar a ausência de um efetivo controle de convencionalidade em tais decisões, visto que os dois principais tratados internacionais de direitos humanos das mulheres adotados pelo Brasil, quais sejam: a Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women (CEDAW) – Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres – de dezembro de 1979, pertencente ao Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ( Convenção de Belém do Pará), de 1994, do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, fixam disposições nas quais podem ser inseridas as condutas de violência obstétrica.
A definição de violência contra a mulher da Convenção de Belém do Pará abrange o aspecto da violência obstétrica ao estabelecer como violência, em seu artigo 1º, “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (CIDH, 1979), dispondo ainda que tal violência se revela nas formas física, sexual e psicológica perpetradas no âmbito doméstico, da comunidade e pelo estado e seus agentes.
As disposições da CEDAW são no sentido de eliminar quaisquer formas de discriminação contra a mulher e criam um Comitê de Fiscalização vinculado às Nações Unidas (Comitê CEDAW) para o qual os países são obrigados a enviar relatórios periódicos acerca do cumprimento da convenção. Esse comitê foi o responsável pela primeira responsabilização do Estado Brasileiro no Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos, no caso Alyne da Silva Pimentel Teixeira, em 2011. Alyne, mulher negra, de 27 anos, gestante de 06 meses, veio a óbito numa maternidade de Belford Roxo-RJ em 2003, em razão da ausência de assistência médica adequada. O Comitê da CEDAW concluiu que o Estado brasileiro atuou de forma insuficiente na proteção dos direitos humanos à vida, saúde, à igualdade e não discriminação no acesso à saúde, e também considerou que o Brasil falhou ao não garantir a família de Alyne o acesso efetivo à justiça ( Paiva e Heemann, 2017). Apesar de não utilizar a nominação violência obstétrica, a decisão do comitê CEDAW foi ainda de extrema relevância por reconhecer no caso Alyne Pimentel forma de violência contra as mulheres e no sentido de fortalecer o entendimento de que essa violência “é um tipo de discriminação e de que a discriminação contra as mulheres negras, pobres e periféricas tem sido sistêmica nos serviços de saúde no país” ( De Cássia Catoia et al., 2020 ).
Nesse contexto, para um melhor enfrentamento às situações de violência obstétrica vivenciadas na assistência à saúde das mulheres é necessário considerar como fontes responsáveis pela opressão e manutenção das condições de desigualdade o gênero, a raça, a classe social, além de outros fatores como religião, orientação sexual, deficiência, origem nacional. Essas estruturas que influenciam todas as relações sociais e estão presentes nas relações de poder, inclusive poder médico, não aparecem de forma separada, porém simultaneamente e constantemente, contribuindo para manutenção do poder e da ordem social imutável ( De Cássia Catoia et al., 2020 ).
O enfrentamento às situações de violência obstétrica pressupõe, dessa maneira, a compreensão de um conceito já há muito trazido pelo movimento feminista negro, qual seja, o da interseccionalidade, o qual rejeita a existência de uma opressão única sobre todas as mulheres, mas ressalta as diferentes opressões por elas enfrentadas a depender do lugar social em que estejam inseridas.
Assim, mulheres diferentes enfrentam diferentes formas de opressão. Todas as estão suscetíveis à violência obstétrica enquanto violência de gênero, porém as diferentes categorias sociais indutoras de diversos modos de discriminação interagem entre si, o que para muitas mulheres representa sofrer tratamento discriminatório que tem como origem, além do gênero, outra(s) categoria social (raça, classe social, orientação sexual, deficiência, origem e religião) enquanto fonte de opressão que permeia as relações de poder interagindo de maneira interseccional ( De Cássia Catoia et al., 2020 ). A análise dos dados estatísticos trazidos neste trabalho acerca da violência obstétrica permite concluir que quando cometida em face de uma mulher que além de inserida na categoria social de gênero, seja negra e classe social pobre, a violência também se fundamentará nesses fatores.
Carla Akotirene (2019), ao afirmar que o conceito de interseccionalidade foi trazido à teoria feminista negra ainda em 1991 por Kimberlé Crenshaw, afirma que a sobreposição das condições estruturais do racismo, do sexismo e vivências correlatas discriminam e criam encargos singulares às mulheres negras (Akotirene, 2019), sendo crucial a análise dessas interseccionalidades para a criação de políticas públicas que visem minimizar todas as formas de discriminação.
Da análise do perfil histórico da medicalização do parto é possível afirmar que o desenvolvimento da medicina se balizou na violência de gênero, sendo o conhecimento médico firmado e validado socialmente como um saber masculino. Tal desigualdade revelou-se no afastamento e desqualificação dos conhecimentos empíricos das parteiras e na proibição de acesso das mulheres às universidades.
O fato de o parto ter se tornado um ato médico foi decisivo para o desenvolvimento da medicina obstetrícia, essencial para a redução da mortalidade materna e infantil no ato de nascer. Todavia, marginalização das mulheres nesse processo - inicialmente provocada pelo afastamento das parteiras da cena do parto e posteriormente pelo impedimento da presença feminina no ambiente acadêmico, que se manteve minorada ao menos até meados do século XX - permitiu a redução, se não a anulação da autonomia feminina sobre seus corpos e seus processos reprodutivos, o que tem sido causa de diversas violações de direitos que configuram a prática da violência obstétrica.
A violência obstétrica atualmente presente na assistência à saúde da mulher também é fruto de outros fatores estruturantes da sociedade e das relações de poder nelas imbricadas, quais sejam, o racismo, o machismo e a desigualdade de classe.
É relativamente comum que mulheres que passam pela experiência do parto, imersas nessas estruturas sociais que desigualam e que perversamente naturalizam a desigualdade, não percebam a ocorrência de atos de violência contra si e contra o nascituro ou que, ainda que a percebam, são silenciadas pelas opressões a que estão submetidas. A visibilização e a problematização da questão entre as próprias mulheres, que precisam conhecer seus corpos, seus processos fisiológicos e se reconhecer vítimas das práticas violentas atualmente presentes no sistema de saúde, educar-se sobre seus direitos reprodutivos e sexuais, pode ser essencial à modificação desse cenário.
Conhecer as práticas médicas, refletir sobre a necessidade destas, a partir da avaliação de cada gestação, sobretudo com a discussão da intervenção com a parturiente, ofertando informações claras sobre o processo, permitindo que conheça seu corpo e possa contribuir com suas percepções, é um dos caminhos para a adoção de formas mais humanizadas e não violentas de conduzir o parto.
Não obstante a OMS tenha indicado, ainda em 1996, as boas práticas para a condução do parto, muitas delas ainda são ignoradas, sobretudo aquelas que permitem às mulheres maior participação e discussão sobre seus processos reprodutivos. Uma dessas boas práticas firmadas pela OMS é a elaboração de um plano individual de parto feito pela mulher, ainda no pré-natal, acerca dos diversos aspectos do momento do trabalho de parto, parto e pós-parto. No plano podem ser inseridas disposições sobre as opções metodológicas e tecnológicas disponíveis, estabelecendo-se a forma de comunicação entre os envolvidos ( Diniz, 2001). O plano, que não possui aspecto contratual e deve ter suas disposições submetidas à avaliação médica no momento do parto, é uma forma de preservar um mínimo da autonomia feminina, porém ainda é uma realidade distante para a maioria das mulheres.
Um dos caminhos para o enfrentamento à violência obstétrica pode ser o reconhecimento estatal acerca da existência do problema e das estruturas fundantes da desigualdade social (racismo e sexismo) que também o perpassam. A modificação do ensino da prática em saúde firmando-a em bases éticas, anti-misóginas e antirracistas e a devolução às mulheres da autonomia sobre seus corpos, seus processos sexuais e reprodutivos, também podem influir no combate a essa violação de direitos.
Desenvolver ações que despertem as mulheres para conhecerem seus corpos e a fisiologia de seus processos reprodutivos, ações de educação acerca de seus direitos humanos e das possíveis consequências da violação de tais direitos também podem contribuir para a retomada da autonomia feminina. Cientes de que são sujeitas de direitos humanos, as mulheres podem reconhecer violações, exigir reparações e ajudar a definir novos modelos de abordagem nas unidades de saúde.
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