Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a conjuntura de crise do capitalismo global e a resposta do Estado brasileiro para salvaguardar os interesses contraditórios do capital e do trabalho em tempos de pandemia. Está embasado teoricamente nas concepções de crise estrutural em Poulantzas (1977), sobre as crises do capitalismo em Harvey (2011), acerca da crise global em Farias (2015) em contraposição às teorias sobre a crise do neoliberalismo de Duménil e Lévy (2014); e na estratégia política de saída da crise a partir da biopolítica de Foucault (2010) e da necropolítica de Mbembe (2020). As medidas econômicas tomadas pelo governo Bolsonaro para minimizar o impacto do Coronavírus no cotidiano das empresas e na vida das pessoas mostrou a faceta mais sombria do neoliberalismo tupiniquim; isto é, do necroliberalismo verde-e-amarelo nessa pandemia: a de que a força de trabalho que não (mais) produzir valor será descartada. O necroliberalismo da política macroeconômica é a expressão prática da necropolítica genocida do governo Bolsonaro em tempos de pandemia.
Palavras-chave: Crise globalCrise global,NeoliberalismoNeoliberalismo,NecropolíticaNecropolítica.
Abstract: This article aims to analyze the crisis of global capitalism and the response of the Brazilian State to safeguard the contradictory interests of capital and labor in times of pandemic. It is theoretically based on the conceptions of structural crisis by Poulantzas (1977) on capitalism crisis by Harvey (2011), on the global crisis by Farias (2015) as opposed to crisis of neoliberalism by Duménil and Lévy (2014); and in the political strategy for overcome crisis based on concepts of biopolitics by Foucault (2010) and necropolitics by Mbembe (2020). The economic measures taken by the Bolsonaro government to minimize the impact of Coronavirus on the routine of companies and people lives showed the darkest facet of Brazilian neoliberalism, that is, of Brazilian necroliberalism in this pandemic: the workforce that no (more) produces value will be discarded. Necroliberalism on macroeconomic policy is the practical expression of Bolsonaro government’s genocidal necropolitics in times of pandemic.
Keywords: Global Crisis, Neoliberalism, Necropolitics.
Articles
Crise global e a necropolítica do governo Bolsonaro em tempos de pandemia
Global crisis and necropolicy of Bolsonaro government on pandemic
Recepção: 08 Julho 2020
Aprovação: 02 Novembro 2020
Doze anos depois do início da crise imobiliária norte-americana emergiu a crise sanitária chinesa, que, em poucos meses, irradiou-se globalmente e transformou-se em uma pandemia, afetando a saúde das populações e a economia dos países, provocando mais uma crise do capitalismo global e o acirramento das contradições entre capital e trabalho.
Este artigo tem como objetivo analisar a conjuntura de crise do capitalismo global e a resposta do Estado brasileiro para salvaguardar os interesses contraditórios do capital e do trabalho em tempos de pandemia e responder ao seguinte questionamento: quais medidas econômicas e políticas o governo federal apresentou ou vem apresentando frente às crises globais de 2007 e 2020?
Para realizar essa tarefa, recorro às concepções de crise em Poulantzas (1977) sobre crise estrutural, às dos teóricos do sistema-mundo sobre as crises de produção, realização e apropriação de mais-valia, sobre as crises do capitalismo em Harvey (2011) e acerca da crise global em Farias (2015). Esses autores se contrapõem à tese de Duménil e Lévy (2014), os quais sustentam que a crise é oriunda do neoliberalismo.
Em seguida, analiso aspectos da crise global de 2007 e a resposta econômica e política do Estado brasileiro para salvaguardar os interesses contraditórios do capital e trabalho nos governos do Lula-Dilma-Temer e, na sequência, abordo a crise econômico-política-sanitária brasileira e a necropolítica do governo Bolsonaro, em meio à pandemia do COVID-19, encerrando com as considerações finais.
O termo crise apresentado refere-se a “uma situação particular de condensação das contradições”, de forma que as contradições e as lutas de classes estão presentes (Poulantzas, 1977, p. 6), o qual diverge do empregado pela concepção clássica burguesa, que a coloca como um momento disfuncional que ocorre de forma abrupta e interrompe o funcionamento harmonioso do sistema até o restabelecimento do equilíbrio, ocultando as contradições e as lutas de classes.
Essa condensação de contradições, quando assume um caráter de crise econômica 2 associada a uma crise política – crise político-ideológica –, configura uma crise estrutural ou crise de hegemonia.
[...], só se designa precisamente por crise estrutural uma crise profunda que afeta o conjunto das relações sociais (crise econômica e crise política) e que se manifesta numa conjuntura, no sentido de uma situação de desvendamento e condensação das contradições inerentes à estrutura social. Isto significa que é preciso, neste sentido, relativizar a noção mesma de crise estrutural: se a crise econômica atual se distingue claramente das simples crises econômicas cíclicas do capitalismo, ela só constitui uma crise estrutural ou uma crise de hegemonia para certos países capitalistas onde ela se traduz em crise político-ideológica no sentido próprio do termo (Poulantzas, 1977, p. 10).
A crise econômica como sendo o resultado do funcionamento histórico da lei geral da queda tendencial da taxa de lucro, é, portanto, orgânica ao sistema capitalista, e necessária para a produção e reprodução do capital; enquanto a crise política se expressa em uma crise político-ideológica, na condensação das contradições no domínio político, que afeta tanto as relações de classe em sua luta política, como os aparelhos do Estado (Poulantzas, 1977).
A crise política tem na crise do Estado um dos seus elementos próprios, mas não se encerra nela; essa, por sua vez, busca modificar as relações de força da luta de classes e articula-se sempre a uma crise ideológica.
[...] toda crise política, tanto na modificação das relações de força da luta de classes e nas rupturas internas que ela provoca no seio dos aparelhos do Estado, se articula necessariamente a uma crise ideológica que, no que concerne ao Estado, se traduz em uma crise de legitimação. A crise política se articula notadamente a uma crise da ideologia dominante, tal como ela se materializa não apenas nos aparelhos ideológicos (Igreja, meios de informação de massa, aparelho cultural, aparelho escolar, etc.), mas igualmente no aparelho de intervenção econômica do Estado e nos seus aparelhos por excelência repressivos (exército, polícia, justiça) (Poulantzas, 1977, p. 14).
A crise ideológica é entendida como crise da ideologia dominante que se reflete nos aparelhos ideológicos e nos aparelhos repressivos de Estado, ao passo que a articulação entre a crise política e a crise ideológica origina uma crise de legitimação do Estado.
A crise estrutural, portanto, é uma situação de condensação de contradições econômicas e políticas em uma conjuntura, isto é, uma combinação de crise de acumulação associada à crise política (Estado) e ideológica.
No entanto, para os teóricos do moderno sistema mundial, a globalização, fruto da mundialização da revolução científico-técnica, conduziu a um acirramento da competição monopólica mundial, criando uma situação de crise estrutural. Contudo, trata-se de uma crise estrutural da economia política capitalista, cujas dimensões, interdependentes, são a crise de produção, de apropriação e de realização de mais-valia ( Martins, 2011).
A crise de produção de mais-valia baseia-se na redução do trabalho produtivo e do número de trabalhadores absorvidos pela produção em relação ao aumento de emprego destinado à produção de bens necessários à reprodução da força de trabalho, o que se traduz em altas taxas de desemprego e subemprego, em contraposição à pequena elevação dos empregos e na expansão da taxa de mais-valia, que apresenta incrementos cada vez menores em relação às quantidades decrescentes da porção do trabalho pago na jornada de trabalho ( Martins, 2011).
A combinação da redução do trabalho produtivo com a desaceleração da taxa de mais-valia levaria a uma queda tendencial da taxa de lucro e, para contê-la, o capital restringiria a demanda de força de trabalho e ampliaria a superexploração do trabalho no âmbito da economia mundial.
A crise de realização da mais-valia é o resultado da tendência à superprodução determinada pela expansão planetária dos monopólios. Para a mais-valia
produzida transformar-se em acumulação de capital, é necessário o consumo das mercadorias que a incorporam. [...] o capital busca em seu movimento a mais-valia extraordinária e o superlucro. A mais-valia extraordinária não representa, entretanto, um aumento de massa de mais-valia produzida, mas a alteração de sua repartição em favor dos monopólios a partir da introdução de uma inovação tecnológica que desvaloriza individualmente a mercadoria e mantém o seu valor social. Para transformar-se em superlucro, e ser efetivamente acumulada, a mais-valia extraordinária necessita realizar-se ( Martins, 2011, p. 130).
A demanda para a realização da mais-valia advém da economia relativa da força de trabalho garantida pela inovação tecnológica, que se converte em lucros ou rendas e vão financiar o consumo suntuário dos indivíduos de mais alta renda ( Marini, 2014).
No entanto, a redução cada vez maior do valor da força de trabalho na jornada de trabalho não incrementa a massa global de mais-valia produzida e ameaça as possibilidades de geração de superlucros, o que evidencia uma crise de transformação da mais-valia extraordinária em superlucros, motivada pela insuficiência de demanda ( Martins, 2011).
Para contê-la, são necessários dois mecanismos: a intervenção do Estado para a formação de capital fictício que lhe assegure superlucros e a expansão da circulação planetária de mercadorias e capitais em busca de novas fontes de demanda e realização.
A crise de apropriação de mais-valia é resultado do protagonismo da difusão tecnológica em relação à apropriação privada dos resultados econômicos da inovação. “Uma economia fundada na difusão significa um ambiente econômico em que o inovador sofre uma queda radical de sua taxa de lucro em proveito da concorrência e dos consumidores” ( Martins, 2011, p. 133).
Essa dificuldade de apropriação da mais-valia decorrente da difusão pode ser compensada pela intensificação da expansão monopólica via alianças estratégicas entre multinacionais, reduzindo a concorrência entre elas e aumentando as barreiras à entrada de novos competidores, bem como pela expansão dos gastos estatais no financiamento de pesquisa e desenvolvimento.
Em tempos de mundialização imperialista neoliberal, a saída econômica encontrada pelo capitalismo para superar a crise de acumulação foi, por um lado, a intensificação da expansão monopólica de mercadorias e capitais e a superexploração do trabalho em escala planetária; e por outro lado, a ampliação dos gastos estatais para o capital.
A alternativa político-ideológica foi transformar o Estado interventor em neoliberal, mediando os conflitos entre classes em favor do capital financeiro e da sua forma dominante de acumulação financeira, a partir de uma política econômica que visava privilegiar a liberdade dos mercados, na forma de desregulamentação e liberalização do comércio e das finanças internacionais; flexibilizar o trabalho, na forma de precarização e superexploração do trabalho, e reduzir o tamanho do Estado para o trabalho, na forma de concessões e/ou privatizações dos serviços públicos e de pagamento da dívida pública.
Essa estratégia econômica e político-ideológica do capital aumentou a riqueza do bloco no poder e reduziu as condições de vida das classes populares; porém, não conseguiu retomar os patamares de crescimento da economia mundial, muito menos as taxas de lucratividade anteriores à crise dos anos 1970.
Pelo contrário, acirrou as contradições internas do sistema, provocando erupções de crises econômicas cíclicas nos anos 1990 e no início de 2000, inclusive nos EUA, que tiveram repercussão nas Bolsas de Valores e na economia real de vários países capitalistas. Segundo Therborn (1995, p. 47), “no atual período o capitalismo não enfrenta uma contradição econômica estrutural, uma crise econômica estrutural”, mas sim crises cíclicas naturais deste “sistema social e histórico”.
Tais crises seriam o prenúncio de uma crise estrutural econômica no sistema capitalista mundial, que teria o epicentro no setor financeiro norte-americano em 2007 e, rapidamente, como uma bomba de nêutron, irradiaria seu poder de destruição para as finanças e a economia real dos países do centro, para depois, de forma retardatária, atingir a economia dos países da periferia.
Para Duménil e Lévy (2014), consistiria na crise do neoliberalismo, enquanto para Harvey (2011) e Farias (2015) configuraria mais uma crise do sistema capitalista, que se manifesta pelo decréscimo do processo de reprodução do capital.
O neoliberalismo consolidou-se na esteira da crise estrutural dos anos 1970 e expressa a estratégia da classe dominante de aumentar sua hegemonia e expandi-la planetariamente. Isto acirrou drasticamente as contradições na produção e acumulação capitalistas, colocando em risco os fundamentos da economia real e a capacidade dos países imperialistas – principalmente dos EUA – e da classe dominante de “crescer, manter a liderança das suas instituições financeiras em todo o mundo e assegurar a posição dominante de sua moeda –, uma estratégia imperial e de classe”, que resultou na crise gerencial do capitalismo na sua forma neoliberal em 2008 ( Duménil e Lévy, 2014, p. 11-12).
Para os referidos autores, a crise do neoliberalismo foi determinada por dois fenômenos distintos e interrelacionados: a dinâmica histórica do capitalismo e os mecanismos macroeconômicos e financeiros.
A dinâmica do capitalismo sob a hegemonia neoliberal foi determinada por objetivos de classe (relações de classe), que favoreceram as frações de classe superiores, as de mais alta renda, e por relações imperiais; no caso norte-americano, grande parte da renda nacional provinha do exterior, num claro exemplo da hierarquia imperial. Desse modo, o neoliberalismo reconfigurou a distribuição de renda em favor das classes de renda mais alta nos países centrais, a partir de uma série de tendências convergentes.
Forte pressão foi aplicada sobre a massa de trabalhadores assalariados, o que ajudou a reerguer as taxas de lucro dos baixos níveis atingidos nos anos 1970 – ou, no mínimo, a interromper a tendência de queda. A abertura das fronteiras do comércio e do capital inaugurou o caminho para grandes investimentos nas regiões do globo onde as condições sociais prevalentes permitiam altas taxas de retorno gerando fluxos de capital na direção das classes altas dos Estados Unidos [...]. O livre comércio aumentou a pressão sobre os trabalhadores, efeito da competição dos países onde os custos de mão de obra são mais baixos; o endividamento crescente das famílias e do governo também gerou grandes fluxos de renda de capital; graus extremos de sofisticação e expansão dos mecanismos de financiamento surgiram depois de 2000, possibilitando enormes fontes de renda para o setor e para as famílias mais ricas. [...] uma parcela significativa dos fluxos de renda se baseava em lucros duvidosos, devido a uma crescente supervalorização dos ativos de securitização (securities) ( Duménil e Lévy, 2014, p. 18).
Em relação aos mecanismos macroeconômicos e financeiros, dois conjuntos de tendências contribuíram para a crise do neoliberalismo: a macroestratégia insustentável dos EUA, baseada em taxas de acumulação lenta, déficit comercial e endividamento, aumento da demanda das famílias, queda dos investimentos e a busca por altas rendas (lucros, ganhos de capital e altas remunerações das faixas superiores de renda), a partir de mecanismos de financeirização e globalização.
A busca prolongada por altos níveis de renda, conduzida pelos capitalistas e pelos administradores e gerentes financeiros através dos mecanismos de financeirização e globalização neoliberal sob a hegemonia dos EUA, por um lado, alterou profundamente a estrutura e o funcionamento do setor financeiro a partir dos anos 2000 e, por outro lado, levou as corporações financeiras, as não financeiras e as empresas de private equity a produzir ganhos fictícios, como forma de esterilizar passivos financeiros existentes e apresentar resultados extremamente lucrativos e irreais aos seus patrocinadores.
Os ganhos fictícios eram falseados contabilmente de duas formas: a primeira, pela externalização de perdas ou ganhos das instituições financeiras com investimentos de alto risco, colocados fora do balanço das empresas, em paraísos fiscais, falsificando as contas e apresentando resultados lucrativos fictícios; e a segunda, pela contabilização a preços de mercado 3, apresentada nos balanços das corporações, que sobrevalorizava os preços das ações e alimentava os lucros das companhias financeiras e os índices de mercado. Os lucros superestimados elevavam o valor líquido das instituições financeiras e geravam uma onda de aquisições com grande potencial de desvalorização.
A produção de ganhos fictícios alimentou fluxos de renda pagos pelas empresas na forma de remuneração aos altos executivos ou na distribuição de dividendos, de tal forma que, quanto maior o resultado lucrativo forjado pelas empresas, maiores seriam as remunerações pagas aos capitalistas acionistas e aos administradores de alto escalão.
Esses pagamentos induziram os altos administradores a sobrevalorizarem os lucros e a camuflarem os prejuízos. Essa conduta estabeleceu no sistema financeiro mundial, além da fraude, uma “cegueira coletiva que resultou em enorme superestimativa de lucros e ganhos que levou ao pagamento de fluxos enormes de altos níveis de renda” e uma verdadeira drenagem dos recursos próprios das corporações ( Duménil e Lévy, 2014, p. 143).
Paralelamente à expansão da financeirização e da globalização, seguiu-se um movimento de desregulação da movimentação de capitais que foi decisivo para a desestabilização das economias periféricas e constituiu o estopim de crises na Ásia e na América Latina, nas décadas de 1990 e 2000.
Portanto, a busca por altas rendas imprimida pelas classes capitalistas através da financeirização e da globalização, aliada a mecanismos de geração de ganhos fictícios, a partir de fraudes contábeis, de pagamentos de rendas reais altíssimas por resultados falseados e de desregulação, criaram uma estrutura financeira frágil e inadequada capaz de reduzir o potencial estabilizador das macropolíticas dos Estados.
Essas tendências, ao se combinarem, foram determinantes para deflagrar a crise financeira em agosto de 2007 nos EUA, mas a faísca necessária para a explosão fora a expansão extraordinária do mercado hipotecário norte-americano e em seguida seu colapso, que levaram o mercado imobiliário a entrar em crise e as instituições financeiras relacionadas a quebrarem, contaminando a frágil estrutura financeira global.
A crise do neoliberalismo, na perspectiva de Duménil e Lévy (2014), foi contestada por Harvey (2011, p. 16), que questiona se a “confusão atual” significaria o fim do neoliberalismo. Para o autor, depende do que se entende pelo termo neoliberalismo.
Minha opinião é que se refere a um projeto de classe que surgiu na crise dos anos 1970. Mascarado por muita retórica sobre liberdade individual, autonomia, responsabilidade pessoal e as virtudes da privatização, livre-mercado e livre-comércio legitimou políticas draconianas destinadas a restaurar e consolidar o poder de classe capitalista.
Nesse sentido, Harvey corrobora a ideia desenvolvida por Duménil e Lévy (2014) de que o neoliberalismo consiste em um projeto da classe capitalista; porém, discorda que este esteja em crise. Para ele, é um projeto, até agora, bem sucedido, pois há forte concentração da riqueza e de poder nas “mãos” da classe capitalista, em todos os países que adotaram o projeto neoliberal; assim sendo, não há nenhuma evidência de seu definhamento ou morte.
Pelo contrário, em momentos de crise financeira, o projeto neoliberal prega que o poder do Estado proteja as instituições financeiras a todo custo, de modo a salvar os bancos e imputar sacrifícios às pessoas, ou seja, privatizando os lucros e socializando os riscos. São políticas que propõem sair da crise fortalecendo o poder da classe capitalista (Harvey, 2011), tais quais as políticas neoliberais implementadas pelos países centrais para debelar a crise financeira de 2007.
Essa prática de salvaguardar as instituições financeiras foi mais uma vez reafirmada na crise dos empréstimos subprime; no entanto, não impediu uma crise global associada à contração da produção mundial. A crise financeira tomou proporções globais, afetando a moeda e a economia de vários países do centro e da periferia do capital no final de 2008 e o início de 2009.
As perdas financeiras somadas dos EUA, da Zona do Euro e do Reino Unido chegaram a US$ 2,77 bilhões em outubro de 2008; assim, o caos financeiro instalou-se e foi globalizado.
A extensão global da crise se manifesta na queda simultânea das cotações de ações (27 de agosto a 27 de outubro queda em todos os países – Nikkei (Japão), Bolsa de NY, Euronext, Bovespa, Kospi (Coréia do Sul) – de 32% a 47% do valor das ações) e na queda repentina das taxas de câmbio (uma queda dramática das moedas em relação ao Yen entre setembro de 2008 e fevereiro de 2009 [...], quando se atingiu o mínimo, as várias moedas perderam: o real 49%, a libra 44%, o Euro 33% e o dólar 21%. Por consequência a taxa de câmbio entre os países foi dramaticamente afetada ( Duménil e Lévy, 2014, p. 270).
As taxas de crescimento do PIB dos países do centro caíram drasticamente, os déficits aumentaram, as dívidas explodiram e o Banco Central norte-americano reagiu aumentando a oferta de créditos, partindo de US$ 1 trilhão, no início de 2008, para US$ 2,4 trilhões no final do mesmo ano. Deu-se então o início da grande contração, segundo Duménil e Lévy (2014, p. 48-49):
Entre julho de 2007 e junho de 2009, a taxa de utilização da capacidade na indústria norte-americana caiu de 79,4% para 65,1%. Essa queda foi maior em outros países. Nos EUA a produção de aço se reduziu em 56% entre agosto de 2008 e maio de 2009. Tal queda na produção causou grande impacto sobre as situações respectivas do setor financeiro, de empresas não financeiras e de famílias. [...] A dívida de governos e países em todo o mundo explodiu.
A economia mundial foi abalada no final de 2008 com a contração da produção norte-americana e seus efeitos negativos sobre a produção de vários países do centro e alguns da periferia; consequentemente, houve um colapso das taxas de crescimento e do comércio internacional desses países.
A produção global total de aço no mundo aumentou até maio de 2008 e então caiu cerca de 30% até final de 2008. O colapso ocorreu simultaneamente com intensidades diferentes: EUA caiu 54%, China 15% e 37% no resto do mundo. [...]. A contração do comércio internacional começou no primeiro semestre de 2008. [...] A queda nas exportações nas cinco zonas (EUA, Japão, Coréia do Sul, Zona do Euro e China) do máximo ao mínimo foi de 32% a quase 42% ( Duménil e Lévy, 2014, p. 272-273).
Qual a saída encontrada pelo Estado neoliberal à crise financeira global e à grande contração? A solução, mais uma vez, foi socorrer as instituições financeiras, isto é, garantir a manutenção do poder e do fluxo de renda das classes mais altas. Sem reservas, estatizou a dívida privada e trouxe para o interior do Estado a crise financeira, a fim de assegurar, a todo custo, a reprodução do capital.
O Estado mínimo neoliberal transformou-se em Estado máximo para o capital, e novamente fortaleceu a classe capitalista, colocando nos ombros dos trabalhadores os custos da crise, o que não evidenciou uma crise do neoliberalismo, mas sua capacidade de adaptação às fraturas impostas pelas contradições do capitalismo. “Quando a crise se instala, todo o discurso e a defesa da eficiência do mercado, da privatização, da desregulamentação se ‘desmancham no ar’, chamem o Estado, ou melhor, o fundo público para socializar os prejuízos” ( Salvador, 2010, p. 50-51).
Sob a ameaça de enormes perdas e de interrupção de ganhos de capital, o capital financeiro pressionou o Estado para resolver os problemas de falta de liquidez e falência bancária decorrentes da crise. Em resposta, o governo dos EUA (George Bush) reagiu, comprando dívidas podres das instituições financeiras, ofertando novos empréstimos com garantia do Banco Central norte-americano ou agências federais e financiando ou estatizando capitais privados, através de aquisição pelo Tesouro de ações recém-emitidas pelas instituições financeiras.
A estratégia de ampliar o crédito no final de 2008 não funcionou e o governo norte-americano passou a atacar a crise pelo lado da demanda, aumentando os gastos governamentais, o que provocou um crescimento no déficit orçamentário de 3% do PIB em 2007 para quase 12% em 2009. O incremento do déficit impactou o volume da dívida pública federal: a dívida bruta do Tesouro em poder do público se expandiu em mais de US$ 2 trilhões entre o final de 2008 e o início de 2009, já no governo Obama ( Duménil e Lévy, 2014).
Portanto, a crise financeira que iniciou no setor privado dos bancos norte-americanos e contaminou o sistema financeiro internacional foi internalizada pelo Estado, através do socorro do fundo público ao capital financeiro por meio de um conjunto de medidas para socializar os prejuízos das instituições financeiras, utilizando o dinheiro público, sem a garantia da proteção às famílias endividadas.
Na mesma linha da crítica de Harvey (2011), Farias (2015) defende que a crise financeira de 2007 não consistiu em uma crise do neoliberalismo, mas uma crise do processo de reprodução do capital.
A crise é uma “mediação para as contradições inerentes à pluralidade dos capitais industriais. Como mediação complexa, especificamente capitalista, a crise decorre de causa imediata, causa fundamental [...] e causa última” (Farias, 2015, p. 73).
A razão imediata da crise está na superprodução de capitais (superprodução de meios de produção) e na superpopulação relativa mais ou menos ampla e decorrente da ineficácia das causas contrariantes da lei geral, o que provoca uma queda da taxa de lucro, retardando a formação de capitais autônomos e ameaçando o processo de produção capitalista (Farias, 2015).
Já a causa fundamental da crise reside na
concorrência entre – os capitais numerosos, cujas formas movimentam internamente valores (presentes e futuros, reais e fictícios) de modo autônomo e irregular (com leis e normas distintas) – combinada, simultaneamente, com a desproporção entre a reduzida demanda solvável das massas relativamente à capacidade produtiva global da sociedade” (Farias, 2015, p. 80).
A sua causa fundamental está, de um lado, na competição entre os capitais numerosos nas suas mais diversas formas, com leis e normas distintas; e, por outro, na desproporção entre a capacidade de consumo das massas e a capacidade de produção total da sociedade, o que conduz a uma desvalorização do capital e à formação de uma superpopulação relativa.
A causa última da crise é, sempre, a pobreza e a restrição ao consumo dos trabalhadores em relação à aceleração da produção capitalista em desenvolver forças produtivas, como se apenas a capacidade absoluta de consumo da sociedade fosse seu limite (Farias, 2015).
Portanto, a crise do capitalismo global (crise global), para Farias (2015), é o resultado da combinação da redução da taxa de lucro, que dificulta a formação de capitais autônomos e ameaça a produção capitalista; da competição entre os capitais numerosos e a desproporção entre a capacidade de consumo das massas e a capacidade de produção global da sociedade; e da pobreza e restrição ao consumo em relação ao crescimento acelerado da produção capitalista.
Nesse sentido, filio-me às teses de Harvey (2011) e Farias (2015), que não veem a crise de 2007 como a crise do neoliberalismo, muito menos que este esteja enfraquecido, haja vista as saídas neoliberais ortodoxas implementadas pelos países do centro para minimizá-la. Podem ser citados aqui os casos da Grécia e da Turquia que, ao transferirem os prejuízos do capital financeiro para a dívida soberana desses países, salvaguardaram a riqueza da burguesia financeira nacional e internacional e afundaram os países em uma dívida impagável e numa crise econômica e política sem precedentes nas suas histórias recentes.
A solução neoliberal repetidamente preservou a riqueza e o poder da classe capitalista e do bloco no poder com a hegemonia da burguesia financeira, e transferiu todo o ônus do ajuste para os trabalhadores, dando continuidade à sanha do capital por reprodução e acumulação incessantes.
Portanto, a crise de 2007 não constituiu uma crise estrutural, na medida em que a crise econômica não se combinou a uma crise política e ideológica; mas conformou uma crise conjuntural do capitalismo global.
O segundo governo Lula (2007-2010) começou a sentir os efeitos da crise financeira global na metade do seu mandato, no final de 2008 e início de 2009. A crise acarretou, do ponto de vista externo, uma recessão mundial com a queda da demanda global, redução nos preços dos principais produtos da pauta de exportações brasileiras, como também do ingresso de capitais estrangeiros no país. Internamente, diminuiu o crédito expandido no período de 2003-2006 e causou a contração do ritmo da produção nacional, aumentando o desemprego e retraindo a demanda interna.
Para conter os sinais de desaceleração da economia brasileira, o governo Lula implementou medidas anticíclicas, adotadas tanto no campo da política monetária como no da política fiscal, para reduzir os desajustes macroeconômicos e reverter a tendência de redução da atividade econômica.
Na política monetária, as medidas de combate à crise foram, principalmente: “as mudanças nas regras do depósito compulsório, leilões com o dólar e a linha de troca de moeda com o Federal Reserve (FED), que somaram R$ 284 bilhões” entre outubro de 2008 e abril de 2009 ( Salvador, 2010, p. 55). A flexibilização nas regras do depósito compulsório não significou a liberação de mais recursos para os cidadãos brasileiros afetados pela crise de crédito, mas oportunizou mais recursos financeiros no caixa das instituições financeiras, para que elas pudessem vender ativos para outras instituições maiores e minimizar os efeitos da crise ( Salvador, 2010).
Na política fiscal, as medidas adotadas foram mais modestas, e de acordo com Salvador (2010, p. 55), implicaram
[...] o menor gasto relativo, entre os países que integram o G-20, em medidas para reduzir o impacto da crise “financeira” global. [...] o Brasil gastou o equivalente a 0,2% do PIB em incentivos fiscais, ficando com o pior desempenho entre os 32 países que também anunciaram recursos. [...]. A OIT também destaca que 93% dos desempregados brasileiros não são beneficiados com os programas anticrise, sendo um dos países em que os desempregados têm a menor proteção social, apesar de os mais atingidos pela crise serem os trabalhadores.
Ainda segundo o autor, durante os meses de novembro de 2008 a dezembro de 2009 – o período de maior impacto da crise no Brasil – “foram eliminados 756 mil postos de trabalho, revelando a fragilidade das relações de trabalho, ou seja, a pouca durabilidade de ocupações no nosso mercado de trabalho” ( Salvador, 2010, p. 56).
No entanto, as medidas de política fiscal foram agravadas no Brasil porque as desonerações tributárias praticadas para combater a crise com vistas à garantia do emprego afetaram demasiadamente o financiamento do orçamento da seguridade social, enfraquecendo as políticas sociais de saúde, assistência social e previdência social.
De acordo com a Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB), ao longo do ano de 2009, o desempenho da arrecadação tributária em relação a esse ano encolheu 3,05%. Em termos reais, em valores deflacionados pelo IPCA, o equivalente a uma perda de R$ 21,5 bilhões. Os tributos que mais contribuíram para essa queda de arrecadação foram a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a Contribuição Social para o Pis/Pasep, que são fontes importantes no financiamento da seguridade social brasileira, respondendo por 49% do declínio da arrecadação tributária, em 2009 ( Salvador, 2010, p. 56).
Ainda segundo Alencar Jr e Salvador (2015, p. 246) os “gastos tributários advindos da desoneração da folha de pagamento alcançaram o montante de R$ 24 bilhões em 2014 representando mais da metade das desonerações alocadas na função trabalho”.
Além de todas as medidas de política monetária e de política fiscal de combate à crise que acabaram por beneficiar o capital em detrimento do trabalho, as transferências de recursos ao orçamento fiscal por meio da Desvinculação de Receitas da União (DRU) significaram mais uma medida que privilegiou o capital na disputa pelos recursos do fundo público no Brasil.
A DRU desvinculou recursos do orçamento da seguridade social para a composição do superávit primário necessário para o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública:desde sua introdução em 2000, até 2007, foram desviados mais de R$ 300 bilhões da seguridade social e, somente de janeiro a novembro de 2009, a transferência alcançou a cifra de R$ 35,5 bilhões ( Salvador, 2010).
As medidas de política macroeconômica do segundo governo Lula afetaram as finanças públicas dos Estados, que já estavam muito debilitadas desde os anos 1990, o que forçou o governo FHC a negociar um programa de rigoroso ajuste fiscal em 1997.
Tal programa, que era caracterizado pelo pagamento de altos encargos financeiros da dívida pública, por elevadas metas de superávit primário e de restrição para a contratação de novas dívidas, obteve certa melhora do ponto de vista do equilíbrio fiscal; porém, às custas do comprometimento da capacidade de investimento e da expansão dos gastos sociais.
Os Estados perderam sua capacidade de investimento com recursos próprios e sua situação fiscal não piorou na primeira metade da década de 2000 porque a economia nacional cresceu e ampliaram-se as receitas públicas, reduzindo timidamente o impacto do ajuste fiscal até 2007.
Entretanto, o desempenho foi limitado porque o esforço para reduzir o gasto primário em um cenário de crescimento da receita primária foi transferido para o pagamento do serviço da dívida dos Estados. O resultado primário (receitas primárias menos despesas primárias) partiu de um déficit de 0,4% do PIB em 1998, para um superávit de 1,1% do PIB em 2007, no conjunto dos Estados brasileiros ( Maciel, 2016).
Assim, o ajuste fiscal, que de certa forma equilibrou as contas públicas dos Estados, começou a ruir a partir do final de 2008, quando os efeitos da crise do capitalismo global e da redução do crescimento econômico mundial tiveram reflexo direto nas receitas públicas da União e dos Estados brasileiros.
Para combater a desaceleração do crescimento e manter os empregos, o governo federal lançou medidas de desoneração de tributos compartilhadas com os Estados, o que comprometeu mais ainda as receitas públicas dos governos federal e estadual nos anos subsequentes.
Em relação às despesas, que detêm caráter mais rígido à redução, estas seguiram sua trajetória de crescimento nos Estados, em especial nos da região Nordeste, ajudando a desequilibrar as contas públicas estaduais no período de 2007-2014.
Segundo Maciel (2016, p. 185), o processo de deterioração das finanças públicas dos Estados brasileiros foi ampliado a partir de 2012, com
[...] o menor dinamismo das receitas, o crescimento contínuo das despesas correntes e elevação dos investimentos para a construção de projetos relacionados aos grandes eventos. Os estados conseguiram manter essa expansão dos gastos em função do alívio financeiro provocado pela liberação das autorizações para endividamento dos entes, o que acelerou o processo de desajuste, que culminou com um déficit de 0,3% do PIB em dezembro de 2014.
Assim, a crise do capitalismo global afetou o crescimento econômico brasileiro. As medidas de política monetária e fiscal tomadas pelo governo federal para debelar a crise fiscal pioraram as finanças públicas dos governos estaduais e contribuíram significativamente para o enfraquecimento político do governo Dilma em seu primeiro mandato. No entanto, não foram suficientes para impedir Dilma Rousseff de ser reeleita, porém, com margem mínima sobre o segundo candidato, Aécio Neves.
O baixo crescimento econômico, a piora das finanças dos governos federal, estadual e municipal, o resultado apertado das eleições que fortaleceram a oposição, as denúncias de corrupção aos governos do PT e a guinada na política econômica com a nomeação de Joaquim Levy para Ministro da Fazenda, implementando um ajuste fiscal que reduziu drasticamente recursos públicos para as áreas sociais, criaram as condições necessárias para o aprofundamento da crise econômico-política que culminou no impeachment da Presidenta Dilma Rousseff.
Assumindo a presidência, Michel Temer, vice-presidente e mentor do golpe parlamentar, midiático e jurídico contra a presidente deposta, com uma agenda neoliberal, estabeleceu como objetivo econômico principal o equilíbrio fiscal a partir da redução dos gastos sociais e investimentos produtivos. Dessa forma, aprovou a Emenda Constitucional (EC) 95 (Novo Regime Fiscal – NRF), determinando um teto de gastos para as áreas sociais, da máquina pública e de investimentos por 20 anos, que iniciou em 2017. No entanto, excluiu da contenção das despesas, os gastos financeiros com os juros e amortização da dívida pública (Presidência da República do Brasil, 2020).
A aprovação da EC 95 levou o governo Temer a realizar a reforma trabalhista, que reduziu drasticamente os direitos dos trabalhadores, aprovando a terceirizaç ão das atividades-fim nos serviços públicos, bem como a prevalência do negociado sobre o legislado nas relações de trabalho, dentre outras. Tentou aprovar a contrarreforma da previdência e, mesmo não obtendo êxito, deixou as bases da “reforma” para ser aprovada no governo Bolsonaro.
Com a aprovação do NRF e da contrarreforma trabalhista, a responsabilidade da crise foi imposta aos trabalhadores, pois menos recursos públicos têm sido carreados para a classe que mais contribui com a arrecadação tributária brasileira; enquanto mais recursos serão despendidos com os capitalistas financeiros, industriais e comerciais, as frações de classe que menos contribuem.
Nesse sentido, a eleição de Bolsonaro em 2019 reafirmou os princípios econômicos neoliberais, para não dizer ultraneoliberais, do Estado mínimo: aprofundamento dos cortes nos gastos com a máquina pública, reafirmando a EC 95; venda dos imóveis da União, privatizações das empresas estatais e das universidades públicas; asfixiamento orçamentário e financeiro da ciência e tecnologia e da gestão ambiental e contrarreformas na previdência social, no SUS, no SUAS e no ensino médio.
A partir de então, o protagonismo econômico passou a ser do setor privado; isto é, dos empresários e, não do setor público. Com tal evidência, a redução do tamanho do Estado faz-se necessária; por isso, impôs-se o discurso de que a maioria das “reformas” beneficiaria as elites brasileira e estrangeira; como por exemplo, as anunciadas no plano de governo Bolsonaro pelo Ministro da Fazenda, Paulo Guedes: entrega das reservas nacionais de petróleo via privatização da Petrobras; reforma tributária regressiva, que onerará mais os trabalhadores de baixa renda do que os de alta renda e os empresários mais ricos; a contrarreforma previdenciária, que dificultará o acesso dos trabalhadores à aposentadoria e aos benefícios previdenciários, principalmente para as camadas mais vulneráveis da população brasileira.
A agenda econômica neoliberal foi implementada pelo governo Bolsonaro ao longo de 2019; porém, a agenda política sofreu muitos revezes com as constantes crises provocadas pelo Presidente Jair Bolsonaro e sua equipe ministerial com o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, instituições do Poder Executivo e com parte da população brasileira, no que diz respeito ao seu desprezo pela democracia e pela proteção à vida das populações mais vulneráveis do Brasil.
Recentemente, a crise política se agravou e, em 2020, se combinou à crise sanitária mundial, a pandemia do COVID-19, aprofundando a crise político-econômica brasileira e a negligência do governo Bolsonaro com a gestão da vida humana e com a “proteção” da sociedade brasileira.
Os conceitos de biopolítica e necropolítica tornaram-se cada vez mais relevantes nas ciências sociais, e até na mídia, para interpretar as contradições e violências da época em que vivemos, caracterizada por um sistema capitalista mundializado, neoliberal, financeirizado, cuja raiz é a superexploração do trabalho e a concepção do produto como riqueza de poucos e pobreza/miséria de muitos.
Para Foucault (2010), a biopolítica é uma forma de poder e gestão da vida humana, da população e da sociedade como parte da espécie, a partir de seus constituintes biológicos e existenciais; é também uma função “protetora” e, ao mesmo tempo, controladora e disciplinadora, sobre corpos e grupos humanos, exercida pelo Estado por meio de leis e políticas públicas.
Essa função protetora do Estado é exercida pelo biopoder, o poder estatal de regular a sociedade em vários aspectos da vida, desde o nascimento até a morte. Ganhou espaço na Europa Ocidental com o Welfare State e passou a decidir sobre quem proteger ou não na população, estabelecendo hierarquias étnicas, de classe ou de gênero contra aqueles que supostamente representavam uma “ameaça” para o resto da sociedade.
Por exemplo, expressa-se na criminalização da migração e negação de serviços de saúde para refugiados; na escolha sobre qual vida deve prevalecer, – se a de jovens ou de idosos – quando respiradores são escassos em um hospital lotado por centenas de pessoas infectadas pelo COVID-19; ou quando se estimula a população jovem a sair do isolamento social, em meio a uma pandemia, sob o pretexto de não afetar os mercados.
Diferentemente da biopolítica, a necropolítica, na perspectiva de Mbembe (2020), parte da suposição de que o biopoder global na periferia não funciona da mesma forma que no centro capitalista. Refere-se a outro tipo de poder, o de matar por meio de tecnologias e dispositivos, legais e ilegais, com efeitos muito mais radicais, como acontece com a guerra às drogas, o feminicídio, o desaparecimento forçado, a escravidão e o tráfico de pessoas, entre outras graves violações dos direitos humanos. Seu objetivo é administrar a morte, não mais a vida.
Na África, Ásia e América Latina, mas também, acrescentamos, nas periferias do sistema na Europa ou nos Estados Unidos, atinge seus extremos: populações inteiras sobrevivem como mortos-vivos ou caminhantes espectrais dentro de novos campos de concentração, micro-estados de exceção para os “sacrificáveis” ou “descartáveis” da sociedade, de acordo com Agambem (2004).
Regular a vida e a morte são dois lados do mesmo medalhão, os objetivos da bio e da necropolítica. Estes, na prática, são liderados cada vez menos pelo Estado-nação e mais por atores privados e paraestatais, oligopólios e poderes criminais ou legais (ou uma mistura de ambos), em plena harmonia com o modelo socioeconômico e ideológico dominante, do tipo privatizador e saqueador de bens comuns e direitos em todo o mundo.
No Brasil, a pandemia do COVID-19 tem evidenciado que a opção do governo Bolsonaro, expresso nas suas declarações e ações, é cada vez mais minimizar o espaço da biopolítica e maximizar o da necropolítica. A estratégia do governo de extrema direita neoliberal para garantir o processo de acumulação capitalista em tempos de crise do capitalismo global é adotar medidas que desprezem a vida das populações mais vulneráveis (idosos e trabalhadores de menor renda), em favor de uma pequena fração da burguesia (financeira, comercial e agroindustrial) que dá sustentação política ao governo.
Nesse sentido, desde o início do governo Bolsonaro, várias medidas foram tomadas para reduzir a proteção do Estado, principalmente para a classe trabalhadora de baixa renda e para os idosos: contrarreforma da previdência social, redução do fluxo de recursos orçamentários para a educação e saúde públicas – via desmonte das universidades públicas e do Sistema Único de Saúde –, cortes drásticos no orçamento de ciência e tecnologia e gestão ambiental e desestruturação do serviço público.
Todas essas medidas visam atender o cumprimento da EC 95, que congelou os gastos sociais e investimentos públicos por 20 anos e liberou os gastos financeiros, tais como juros e amortizações da dívida pública, com o objetivo de fazer superávits primários para honrar os compromissos para com a fração da burguesia financeira e rentista, independentemente da situação econômico-social do país. Eis uma clara sinalização de que na biopolítica do governo Bolsonaro, o cuidar ou a proteção do Estado está voltada para uma pequena fração da burguesia nacional e internacional.
Entretanto, o ano de 2020 iniciou-se com a pandemia do COVID-19 e, com isso, a necessidade de isolamento social da população e o aprofundamento da crise econômico-política mundial. Nesse cenário, os governos dos países, mesmo os mais neoliberais, como EUA e Inglaterra, adotaram medidas econômicas e sociais de cuidado com suas populações mais vulneráveis acometidas pelo Coronavírus, bem como em relação aos trabalhadores afetados pela redução drástica ou paralisação das atividades econômicas. Nessa perspectiva, os governos neoliberais têm buscado no Estado, na biopolítica, a saída para combater a pandemia e a consequente depressão econômica iminente no mundo.
Na contramão do uso da biopolítica como estratégia para minimizar os efeitos da pandemia na saúde e na economia, o governo Bolsonaro resolveu radicalizar politicamente e adotou a estratégia da necropolítica para inibir a crise de acumulação, aprofundada pelo isolamento social e pela redução das atividades produtivas não essenciais ao combate do Coronavírus.
Tal estratégia fundamentou-se na negação da pandemia no discurso do Presidente da República, tratando-a como uma “gripezinha”, de baixa letalidade, inferior a outros vírus, como, por exemplo, o da influenza, comum nos verões chuvosos do país; ou ainda, no menosprezo às vítimas, afirmando que ocorreria no máximo a morte de alguns idosos, que já estariam sujeitos à morte por outras doenças infectocontagiosas.
Portanto, para Bolsonaro, o isolamento social vertical da população seria a estratégia mais indicada para contenção do contágio, pois confinando os idosos acima de 60 anos em casa, os jovens – cuja mortalidade suposta baixíssima – poderiam voltar a trabalhar para garantir a normalidade do funcionamento dos mercados e da economia. Segundo ele, sem o retorno dos jovens às atividades econômicas, as consequências de uma paralisação da produção e circulação de mercadorias para a população seria pior que algumas mortes de idosos.
No governo Bolsonaro, a negação da pandemia tem sido acompanhada de medidas econômicas tímidas para os trabalhadores mais vulneráveis e de ações preventivas massivas para o capital. Enquanto, inicialmente, propôs a liberação de R$ 200,00 4 a título de auxílio emergencial para cada trabalhador informal por apenas três meses, a suspensão dos contratos de trabalhos sem o correspondente pagamento de salários pelos patrões e a redução de até 50% dos salários dos servidores públicos durante a pandemia; por outro lado, aprovou o socorro de R$ 2,4 trilhões para o sistema financeiro, sendo R$ 1,2 trilhão para a liquidez dos bancos e R$ 1,2 trilhão para garantir futuras perdas das empresas no mercado financeiro. Assim, mais uma vez reafirmou sua preferência pela proteção de uma pequena fração da burguesia, em detrimento da maioria da população brasileira ( Banco Central do Brasil, 2020).
A estratégia e as medidas econômicas adotadas pelo governo receberam duras críticas da sociedade brasileira, com muitos “panelaços” de insatisfação da população durante os pronunciamentos do Presidente Bolsonaro pela TV. Os governadores dos Estados criticaram a minimização da pandemia pelo governo federal e tomaram medidas diametralmente opostas: proibição de aglomeração de pessoas, isolamento horizontal da população, fechamento do comércio, dos aeroportos e das fronteiras para os Estados mais afetados pela pandemia, redução do funcionamento do transporte coletivo e interdição de praias. As ações dos governadores, em pouco tempo, surtiram o efeito esperado de isolamento e a grande maioria das pessoas passou a ficar confinada em suas moradias ou abrigos públicos.
O isolamento horizontal implementado pelos governos estaduais foi repudiado pelo presidente, que em pronunciamento em rede nacional de comunicação, criticou a alternativa adotada para conter o Coronavírus. Repetiu Bolsonaro que o controle da pandemia havia se tornado um caso de histeria coletiva, alegando que este surto não poderia interromper a economia do país. Portanto, conclamou toda a população, em especial os mais jovens, a voltar ao trabalho, bem como os pais a levarem seus filhos para a escola, contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde.
Ultrapassando os limites da razoabilidade, incentivou a realização de carreatas pró-Governo e pelo fim do confinamento horizontal da população, além de patrocinar com dinheiro público uma campanha publicitária orçada em R$ 4 milhões, sem licitação, para defender que o Brasil não podia parar e que as pessoas saíssem do isolamento horizontal. Felizmente, a Justiça Federal brasileira suspendeu a campanha, por ir de encontro às recomendações da OMS e à vida dos brasileiros.
As medidas sanitárias e econômicas do governo Bolsonaro privilegiam o mercado e a fração mais rica da população brasileira e vão na contramão das adotadas pelos países com população mais contaminada pelo Coronavírus – China, Itália, Espanha, Inglaterra e EUA –, que são: isolamento horizontal e gigantesca ajuda econômica do Estado aos trabalhadores e suas famílias.
Tais medidas do governo brasileiro parecem ter levado a um maior número de brasileiros a se contaminar e morrer, bem como condenaram muitos trabalhadores à fome. Nesse sentido, não visaram cuidar das vidas, mas administrar a morte dos mais vulneráveis, aqueles que supostamente menos contribuem e mais geram gastos para o Estado. Para os neoliberais do governo, quanto mais idosos e miseráveis falecerem durante a pandemia, menos recursos públicos serão destinados aos gastos com as políticas sociais, favorecendo o superávit fiscal e o repasse de mais recursos para o pagamento da dívida pública.
Os dados oficiais do Ministério da Saúde e das Secretarias Estaduais de Saúde sobre a pandemia no país registrados em 12 de maio de 2020 – após 76 dias do primeiro caso confirmado em 26/02/2020 – indicaram 177.589 casos confirmados e 12.400 óbitos, com uma taxa de letalidade nacional de 7%. A região sudeste possuía o maior número de casos confirmados, com 42,5% de todo o país, seguida pela região nordeste, com 33,2% e em terceiro lugar, a região norte, com 17,6% dos casos ( Ministério da Saúde, 2020a).
Em 04 de julho de 2020 já eram 1.577.004 casos confirmados e 64.265 óbitos, com uma letalidade de 4,1%, dentre os quais a região sudeste apresentava 34,35% dos casos, seguida da região nordeste, com 34,24% e, em terceiro lugar, a região norte com 18,18% dos casos ( Ministério da Saúde, 2020b). Portanto, 53 dias após 12/05/2020, os casos confirmados multiplicaram-se por 8,8 e os óbitos por 5,2, reafirmando a necropolítica como estratégia do governo Bolsonaro para sair da crise.
O que é pior nesse genocídio consensuado pela necropolítica do governo Bolsonaro, estabelecendo-se uma analogia em relação às premissas materiais do extermínio nazista, é a “serialização de mecanismos técnicos para conduzir as pessoas à morte”. Depois de “mecanizada, a execução em série transformou-se em um procedimento puramente técnico, impessoal, silencioso e rápido” (MBEMBE, 2018, p. 21).
Tal processo, segundo o autor, foi catapultado por estereótipos racistas e pelo crescimento do racismo de classe, que tratam a classe trabalhadora e os considerados “sem-pátria” como selvagens, que precisam ser exterminados.
Assim, o que no início foi considerado uma “gripezinha” despretensiosa para o governo federal, tornou-se uma pneumonia aguda que adoece e mata pessoas também das classes média e alta, levando os governos estaduais e municipais a reconhecerem a gravidade da pandemia e a adotar medidas mais radicais de isolamento horizontal, para depois flexibilizá-las no momento em que a doença passou a se alastrar nas comunidades mais populosas das metrópoles e nas pequenas cidades, os bolsões de moradia dos trabalhadores brasileiros.
A morte e o sepultamento em série dessa população mais vulnerável, em grande maioria idosa, negra e pobre, tornou-se para os governos federal, estadual e municipal, um procedimento técnico, impessoal, silencioso e rápido de extermínio, servindo de método de limpeza etária, étnica e social propício ao equilíbrio fiscal e à transferência de recursos públicos para o setor privado, com a finalidade de salvar os lucros da fração de classe dominante nacional e estrangeira, em queda neste momento de crise.
Portanto, a necropolítica do governo Bolsonaro é uma saída genocida e primordial para o fôlego do capital, uma vez que uma limpeza social em curso no país, nesse momento, destinará mais recursos públicos para uma pequena fração da burguesia nacional e internacional, conveniente em um cenário de queda nos lucros das empresas. Em contraposição, para barrá-la é necessária uma rebelião da classe trabalhadora brasileira: paralisar todas as atividades econômicas e os serviços não essenciais para o combate ao COVID-19. A prioridade é salvar vidas e não salvar o capital.
Em tempos de pandemia e de redução e paralisação das atividades econômicas não essenciais no combate ao COVID-19, o Estado mais uma vez é instado a salvar o mercado e as vidas da população mundial; o mesmo Estado achincalhado e demonizado pelos neoliberais, na crise dos anos 1970, dos anos 1980 e, recentemente, em 2007, com os argumentos mesquinhos de ineficiência, gigantismo e intervencionismo.
Até o Plano Marshall, implementado pelos EUA para reconstruir a Europa no final da segunda guerra mundial, tem sido invocado pelos mais ferrenhos representantes da doutrina neoliberal no mundo e no Brasil. Uma idiossincrasia na sacrossanta ideologia neoliberal, pois tudo o que não admitem, teoricamente, é a intervenção do Estado na economia, ainda mais para salvar a vida da classe trabalhadora, em especial daqueles que não (mais) produzem valor e oneram demasiadamente as receitas públicas.
Se considerarmos a prática como o critério da verdade, as políticas públicas neoliberais, sejam econômicas e/ou socioambientais, escamoteiam a realidade da intervenção do Estado por meio da falsa apologia à austeridade, de redução ao máximo dos gastos com as políticas sociais em nome da eficiência dogmática do equilíbrio fiscal, e da invisibilização da dívida pública, fazendo com que o crescimento dos gastos financeiros em progressão geométrica não seja percebidos e nem compreendido em sua natureza e destinação pela população.
Portanto, na essência, o neoliberalismo prega um Estado mínimo para a classe trabalhadora, com menos direitos e proteção social, e um Estado máximo para o capital, com mais recursos públicos e proteção à fração da burguesia financeira e rentista.
Esse projeto neoliberal saiu vitorioso no Brasil em 2018 e passou a ser implementado com toda a volúpia de um Chicago boy bolsonarista em 2019; no entanto, em meio à pandemia do COVID-19, a sanha destruidora do Estado brasileiro, sob o slogan do fanatismo distópico de “Deus acima tudo! Brasil acima de todos!”, ganhou sua feição mais cruel.
As medidas econômicas tomadas pelo governo Bolsonaro, até o presente momento, para minimizar o impacto do Coronavírus na vida das empresas e das pessoas mostrou a faceta mais sombria do neoliberalismo tupiniquim, isto é, do necroliberalismo verde-e-amarelo nessa pandemia: a de que a força de trabalho que não (mais) produz valor, é descartada.
Por isso, Bolsonaro, Guedes e sua equipe insistem que os trabalhadores jovens superexplorados retornem ao trabalho e que os demais morram por contaminação dos mais novos ou por fome, gerando uma limpeza etária e social que pavimentará o caminho para o falso equilíbrio fiscal neoliberal e os lucros futuros da Finança.
Por outro lado, protege os patrões – a fração da burguesia financeira e rentista nacional e internacional – tanto financeiramente pelo aporte de dinheiro às instituições bancárias e pela segurança de não ter prejuízos nas suas aplicações financeiras, como frente às questões trabalhistas, pela possibilidade de suspensão dos contratos de trabalho, sem o pagamento devido dos salários dos funcionários.
Assim, sinteticamente, o necroliberalismo da política econômica de Guedes é a expressão prática da necropolítica genocida do governo Bolsonaro em tempos de pandemia.
jrosmar@hotmail.com