Articles
Recepção: 01 Agosto 2020
Aprovação: 10 Dezembro 2020
DOI: https://doi.org/10.4013/csu.2020.56.3.03
Resumo: O artigo apresenta duas frentes de análise. Uma é entender se, e de que maneira os movimentos sociais aparecem enquanto produtores de conhecimento. A outra é compreender de que maneira o gênero e a nacionalidade estão distribuídos entre autoria e referência bibliográfica dos objetos aqui analisados. Para entender como essas relações operam no circuito nacional o artigo conta com a análise de três revistas acadêmicas brasileiras sobre movimentos sociais. Esse recorte se justifica pelo fato de os periódicos serem meios legítimos de fácil acesso e publicização de conhecimentos. O objetivo é categorizar as/os autoras/es dos artigos, bem como as referências bibliográficas utilizadas, de acordo com seu gênero e nacionalidade e também o tipo de material utilizado como referência. Em termos de análise teórica baseio-me nas autoras feministas (e) decoloniais por propiciarem reflexões que consideram as dinâmicas de gênero e nacionalidade enquanto eixos centrais da análise sociológica. Como resultado identifiquei que, de maneira geral, as publicações de autoria de movimentos sociais são mínimas, contando com a maior participação de autores homens. No entanto, ao fazer uma análise em termos de gênero e nacionalidade, as dinâmicas são alteradas, de modo que mais mulheres brasileiras são referenciadas, evidenciando as nuances que são intrínsecas às relações de gênero e nacionalidade.
Palavras-chaves: Feminismo Decolonial, Movimentos Sociais, Produção e Circulação de conhecimento.
Abstract: The article presents two fronts of analysis. One is to understand if and in what way social movements appear as producers of knowledge. The other is to understand how gender and nationality are distributed between authorship and bibliographic reference of the objects analyzed here. To understand how these relations operate in the national circuit, the article relies on the analysis of three brazilian academic journals on social movements. This approach is justified by the fact that journals are a legitimate and easily accessible means of knowledge dissemination. The objective is to categorize the authors of the articles, as well as the bibliographic references used, according to their gender and nationality and also the type of material used as a reference. In terms of theoretical analysis, I am based on feminist (and) decolonial authors for providing reflections that consider the dynamics of gender and nationality as central axes of sociological analysis. As a result, I identified that, in general, publications by social movements are minimal, with the greatest participation of male authors. However, when making an analysis in terms of gender and nationality, the dynamics are altered, so that more Brazilian women are referenced, highlighting the nuances that are intrinsic to gender and nationality relations.
Keywords: Decolonial Feminism, Social Movements, Production and Circulation of Knowledge.
Introdução
As reflexões e as críticas elaboradas por autoras/es em torno do pensamento feminista e decolonial 3 para as ciências sociais têm sido inestimáveis. Para além de seus campos restritos de estudo, o gênero/feminismo e as consequências das dinâmicas geopolíticas, as/os pensadoras/es que atuam e produzem nessas áreas têm conseguido relacionar suas produções com quase todas as áreas de estudos das ciências sociais e humanas. Partindo do acúmulo dessas/es teóricas/os, hoje em dia uma análise sociológica ampla e complexa deve, ao menos, considerar elementos como gênero e/ou a influência da localização geográfica ao elaborar análises sobre as dinâmicas sociais.
Historicamente, as mulheres e as/os viventes 4 do Sul global têm sido consideradas/os enquanto objetos de análise de teorias elaboradas no Norte, de modo que suas vidas e experiências são reduzidas a serem analisadas, inibindo, em boa medida, a possibilidade em serem suas próprias analistas. Mohanty (1984), por exemplo, aponta essa tendência no modo de homogeneização das mulheres do terceiro mundo, inibindo assim a complexidade que permeia a vidas dessas mulheres e criando uma categoria única de análise que se opõe às mulheres do Norte Global.
Considerando que as relações de gênero, raça e geopolíticas constituem as relações sociais de modo geral, podemos estender seus efeitos para o modo de produção científica, uma vez que esse é realizado em ambientes sociais e, portanto, reverbera desigualdades e diferenças. Ou seja, o conhecimento científico é produzido de acordo com as relações sociais nas quais está inserindo, reproduzindo questões estruturais, sociais e culturais ( COLLINS, 2019; MERTON, 1973).
A partir desses apontamentos, minha intenção é refletir de que modo essas dinâmicas afetam na produção de conhecimento referente aos movimentos sociais. Aciono aqui duas frentes de análise. Por um lado, parto da ideia de que os movimentos sociais mais do que agentes políticos de transformação social, são também produtores de conhecimento. Por outro, busco analisar se, e, de que modo, as autorias de artigos científicos sobre movimentos sociais reproduzem as relações de desigualdade quanto a gênero e nacionalidade.
Minha proposta pretende juntar essas três temáticas – relações de gênero e geopolíticas, produção de conhecimento e movimentos sociais – buscando entender de que modo a circulação de conhecimento através de revistas no formato digital reitera e altera as dinâmicas de poder implícitas nessas relações. A escolha metodológica foi a análise de três revistas nacionais de temática exclusiva na área dos movimentos sociais. A justificativa, conforme melhor demonstrado no desenvolvimento do trabalho, se guia pela validade atribuída a publicações formais e institucionais de revistas no meio acadêmico.
Os estudos dos movimentos sociais no Brasil e na América Latina se constituem como um campo pelo menos desde os anos 1960. Desde então, muitas foram as referências utilizadas, que variaram desde uma suposta apropriação de análises europeias para os movimentos nacionais até o desenvolvimento de interpretações próprias ( GOHN, 1997). Vale destacar, para os propósitos do trabalho, que muitas vezes existe uma tênue diferenciação entre pesquisador e militante, uma vez que ambas as identidades podem coexistir. Apesar de reconhecer essa possibilidade, para ela ser seriamente debatida e considerada na análise aqui elaborada, seria necessária a realização de entrevistas em profundidade para sanar a possíveis dúvidas. Na impossibilidade desse tipo de dado, reitero que não apresentarei essa separação categórica entre “pesquisador” e “militante”, mas isso não prejudicará os resultados aqui encontrados.
Feminismo decolonial enquanto aporte teórico: quando as mulheres não são o objeto de estudo
No decorrer da história, nem todas as pessoas tiveram as mesmas oportunidades e possibilidades de se tornarem clássicas ou cânones de suas áreas, de modo que obras exemplares, importantes, ou ainda, pioneiras no seu tempo, tenham ficado de fora das listas consensuais ( FARA, 2014; ALATAS, SINHA, 20015). No entanto, ainda que o motivo para tal exclusão possa parecer meritocrático, há um recorte muito evidente no plano visível, como a ausência de mulheres, negras/os e residentes no Sul Global.
Se, por um lado um tipo de racionalidade tem sido hegemônica historicamente, por outro, não param de surgir sujeitos como as mulheres, de origem do Sul global, a comunidade negra, indígenas, entre outros, que têm se empenhado continuamente em pensar estratégias, teorias e metodologias para mudar a ciência, a fim de aproximá-la de suas realidades e de torna-la capaz de compreender e explicar os fenômenos sociais. A disputa pela ciência envolve a disputa pelo conhecimento, sobre quem pode produzi-lo, e, em um nível mais geral, disputa-se por um projeto de sociedade que seja mais igualitário e justo. No entanto, a ciência não é o único espaço de disputa, pois ela não possui o monopólio do feitio do conhecimento.
Os movimentos sociais, enquanto agentes de mudança e transformação social, também elaboram, ao seu modo, outros modos de saber e de conhecer. São diferentes movimentos que atuam nas mais variadas frentes, demandando direitos sociais, políticos e culturais através de uma vasta gama de repertórios disponíveis. Suas práticas e vivências, associadas às suas reflexões, modos de organização geram impacto na sociedade. Suas redes são, desde a institucionalização das ciências sociais, objetos de pesquisa e tema de congressos e livros ( GOHN, 1997). No entanto, minha hipótese é de que em decorrência do modo tradicional de fazer ciência, os movimentos têm sido muito estudados enquanto objetos de análise e pouco reconhecidos enquanto sujeitos da pesquisa sociológica.
Partindo do pressuposto androcêntrico e eurocêntrico da ciência, o propósito deste artigo é analisar três revistas acadêmicas brasileiras sobre movimentos sociais, buscando identificar quais tipos de referências são utilizadas, qual o perfil das autoras e dos autores e quem são as suas e seus interlocutoras/es. Ambos os elementos operam no sentido da existência de um sujeito masculino e europeu que funciona como centro da produção de conhecimento.
A sociologia do conhecimento, pelo viés da epistemologia feminista e decolonial, tem se debruçado e estudado de que modo o conhecimento científico tem sido realizado, desde a construção e sistematização de campos científicos até a circulação do conhecimento. Por um lado, as feministas do norte global (MARCH, 1982) se preocuparam em atentar para o caráter androcêntrico da ciência, exaltando a ausência de mulheres ou de pressupostos epistemológicos e ontológicos parciais e subjetivos, ao contrário da imparcialidade e objetividade defendidas pelos cientistas homens. Por outro, homens do sul global ( QUIJANO, 1992) se manifestavam quanto ao caráter colonial de territórios, corpos e saberes.
Artemis March (1982), em um ensaio acerca do lugar da mulher na teoria sociológica clássica, evidencia o caráter androcêntrico da ciência, que ela define como “o Ego implícito ou o centro a partir do qual as teorias são elaboradas, as experiências e interesses implícitos sobre os quais se baseiam, são do sexo masculino.” (MARCH, 1982, p. 99). Partindo da aceitação do caráter androcêntrico da ciência, as demais consequências ficarão mais evidentes, ou seja, de que modo essa estrutura prejudicou as mulheres durante o desenvolvimento da sociologia e de suas áreas de pesquisa e pensamentos. Aponta, de certo modo, como a ciência adquiriu um caráter universal e abstrato que contempla principalmente sujeitos homens, brancos e europeus 6 .
As feministas decoloniais são aquelas que conseguem sintetizar ambas as demandas, criando novas perspectivas que abarcam o sul global e outras minorias. Mulheres e moradoras/es do sul global sempre foram (e são) encaradas/os como “O Outro” 7 do saber científico, sendo identificadas/os como objeto ou como ser sentimental, bem distante de serem reconhecidas enquanto sujeitos racionais. Nesse sentido de compreensão dos saberes contra-hegemônicos, incluo também os movimentos sociais enquanto potenciais produtores de conhecimentos e de práticas, em diálogo com os conhecimentos acadêmicos, às vezes como colaboração, às vezes como rejeição ( ESCOBAR, 2004).
Lugones (2008) parte das análises de Quijano para propor o que ela chama de “sistema moderno-colonial de gênero”. Sua intenção é “gendrar” as reflexões até então realizadas pelo autor a fim de apontar como a relação entre colonialidade, gênero e raça são aspectos de um mesmo processo. Assim, para a autora, as relações de gênero devem ser compreendidas na chave da colonialidade. Lugones avança das concepções de colonialidade do poder e colonialidade do saber elaborados por Quijano e busca em reflexões de teóricas latino-americanas, africanas e mesmo norte americanas explicações para os impactos da colonização na própria organização racial e de gênero no nosso continente após a colonização.
Dentre os diversos aspectos explorados pela autora, enfatizo aqui aqueles no quais ela explicita a relação entre colonização, gênero e conhecimento. “Desse modo, aponta-nos na direção de reconhecer uma construção «engendrada» do conhecimento na modernidade.” (LUGONES, 2008, p. 86) e “[...] que as mulheres burguesas brancas sejam excluídas da esfera da autoridade coletiva, da produção de conhecimento e de quase todas as possibilidades de controle sobre os meios de produção.” (LUGONES, 2008, p. 98).
Para a autora impera o caráter generificado do conhecimento constituído pela colonialidade de gênero, além de todas as perversidades já apontadas anteriormente tais quais o eurocentrismo, a racionalidade moderna etc. Esse efeito se produz e reproduz tanto na ciência europeia quanto na ciência decolonial produzida por homens latino-americanos, de modo que a proposta analítica/epistemológica/militante das mulheres feministas decoloniais deve abarcar as questões relacionadas ao gênero, à raça, ao sistema-mundo, à distribuição geográfica e política tanto do conhecimento quanto do poder.
No mundo acadêmico, como observou Miñoso (2009), a consequência mais evidente é a “violência epistêmica” 8 na qual mulheres, principalmente as negras, indígenas e moradoras do terceiro mundo, quando mencionadas em textos acadêmicos, aparecem sempre como “a outra”, “exótica”, ou, em termos científicos, como objeto de pesquisa, nunca como sujeitas e produtoras de conhecimentos. Essa violência específica também é constatada tanto no que se refere à ciência eurocentrada quanto à ciência produzida na América Latina por teóricos homens.
A autora apresenta essa ideia no seu argumento referente à colonização discursiva. No artigo, o foco é compreender a relação entre feminismos e feministas do Norte Global e Sul Global, explicitando como relações de poder de gênero, de raça e geopolíticos impactaram no próprio desenvolvimento, dispersão e concepção da luta feminista. No entanto, a ideia pode ser também utilizada para pensarmos as produções acadêmicas e intelectuais de maneira geral.
Ambas as autoras estão preocupadas em refletir, cada uma vinculada ao seu escopo, em como os processos de colonização estão atrelados a processos de poder envolvendo as relações de gênero e raça. Sendo assim, pensar relações geopolíticas de produção de conhecimento envolve, portanto, necessariamente, pensar também sobre relações de gênero.
Tendo em mente esses pressupostos teóricos e epistemológicos, passo para a parte empírica deste trabalho, contribuindo, assim, para o alastramento dessas ideias para outras áreas da pesquisa sociológica. A análise de três revistas brasileiras, a identificação do padrão de quem produz esses conhecimentos e quais as referências utilizadas para legitimá-los.
Revistas brasileiras sobre movimentos sociais: uma análise do perfil de quem publica e suas referências
Após uma breve reflexão teórica acerca do entrelaçamento entre gênero, nacionalidade e produção acadêmica de conhecimento, gostaria de apresentar a reflexão empírica, baseada na escolha de revistas acadêmicas na área das ciências sociais, de modo geral, e sobre movimentos sociais de maneira específica. Nesse tópico, aprofundo nas escolhas metodológicas e nas implicações de cada decisão; apresento os resultados focando primeiro os dados quanto aos/às autores/as dos artigos; e, em seguida, quanto às/aos interlocutoras/es mobilizadas/os.
A escolha da revista se deu entre algumas outras alternativas passíveis de pesquisa em nível acadêmico, como i) panfletos, cartilhas e artigos; ii) congressos (de área, nacionais, regionais); iii) encontros (nacionais, estaduais, temáticos); iv) livros e artigos; v) trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado e teses de doutorado e, por fim, vi) revistas científicas. Cada um desses elementos coloca outra infinidade de questões referentes ao recorte do objeto, no entanto, por motivos de acesso e legitimidade, optei por analisar as revistas acadêmicas.
As revistas acadêmicas são a “formalização do processo de comunicação científica, tornando-se o canal formal de divulgação ao possibilitar que as pesquisas fiquem disponíveis por longos períodos de tempo para um público amplo” (MEADOWS in SOUZA et al, 2004, p. 73). As revistas acadêmicas, devido ao seu caráter formal e sua legitimidade perante a comunidade científica, baseados em critérios existentes para a publicação e circulação do conhecimento, são instrumentos teóricos importantes de consulta acerca do resultado de pesquisas recentes.
Além disso, SOUZA et al (2004) apontam como o processo de consolidação da revista está associado ao desenvolvimento, sistematização e divulgação de pesquisas em diversas áreas científicas. O formato da revista, como apontam, tem variado de acordo com as condições tecnológicas disponíveis socialmente. No início, por exemplo, era através do uso de cartas entre pesquisadores, a fim de divulgar suas descobertas, buscar opiniões e consultar seus pares.
O formato das revistas periódicas como concebemos atualmente conta com a “existência de conselho editorial, periodicidade, revisão por pares, padronização da língua de publicação, normas bibliográficas, existência de sumário, ISSN ( International Standard Serial Number), indexação em bases de dados, e abrangência da revista” ( SOUZA et al, 2004, p. 79) e foi se consolidando a partir de 1850 tendo como principais objetivos serem “veículos para contribuições originais que denotam a noção de rede na estrutura cumulativa da ciência” (ZIMAN in SOUZA et al, 2004, p. 78).
Fernanda Beigel (2013, 2016) aponta, por outro lado, como a normatização das revistas criou um padrão estadunidense de se conceber um tipo de formato bem específico de publicação, excluindo outros modelos não hegemônicos, tais como livros, por exemplo. As diferenças entre ciências naturais e humanas também existem, tanto no quesito produção quanto circulação que, por se configurar como um outro tema, não serão consideradas neste trabalho.
A partir da década de 1980 começaram a surgir os primeiros exemplares digitais e, a partir de 1994, com o surgimento da internet, surge o formato de revista online. As autoras, em diálogo com a bibliografia por elas usada, ressaltam que a alteração no formato não implica, necessariamente, em alteração substancial das revistas, de modo que elas ainda possuem reconhecimento e legitimidade pelos pares e continuam seguindo o modelo tradicional de estruturação e organização.
(Lancaster, 1985) ressalta que periódicos eletrônicos vêm servindo apenas para a distribuição do material gráfico, sem acrescentar qualquer tipo de característica específica de publicação eletrônica. O autor apresenta uma escala de seis estágios no processo “evolutivo” dessas revistas, até atingir a era totalmente digital. O primeiro estágio caracteriza-se apenas pela produção de uma publicação impressa; o segundo acrescenta a distribuição do periódico impresso no formato eletrônico; o terceiro surge com novas publicações criadas e distribuídas apenas no meio digital, mas mantendo características herdadas da revista tradicional. A partir do quarto estágio deve ocorrer um maior desenvolvimento desse tipo de publicação, incorporando recursos pertinentes ao meio eletrônico, tais como links entre autores e leitores, interação do usuário com o conteúdo, utilização de recursos multimídia, até alcançar no sexto e último estágio uma integração dos recursos de interação/colaboração com os recursos multimídia ( SOUZA et al, 2004, p. 82).
Considerando que não há nada aquém do formato digital de revistas, passo para o meu objeto de pesquisa: artigos publicados em revistas científicas digitais brasileiras sobre movimentos sociais. Partindo do tema proposto, a intenção é analisar quais tipos de referências são utilizadas, quem são as/os autoras/ es que publicam nessas revistas e quem são as suas e seus interlocutoras/es, ou seja, a referência bibliográfica utilizada. A fim de não pessoalizar, não irei expor os nomes das/os autoras/es e nem das/os interlocutores, me atendo apenas às categorias de gênero, nacionalidade e ocupação das/os autoras/es e no gênero e nacionalidade das/os interlocutoras/es.
Beigel (2016) em sua análise acerca da produção e circulação de conhecimento, embasada na Teoria da Dependência, defende o uso de “circuitos” como conceito analítico que permite uma maior complexificação do debate. Os circuitos de circulação de revistas, segundo a autora, podem ser categorizados como circuito local, circuito regional e um circuito transnacional, além do circuito mainstream, mais comum para as revistas de outras áreas. Sua pesquisa, bem como as referências utilizadas por ela, é centrada em análises em revistas com alto índice de circulação, podendo ser compreendidas no circuito regional (periférico) e transnacional. Minha pesquisa, no entanto, adotará um caráter local, portanto as revistas analisadas são publicadas no Brasil e majoritariamente em português, partindo da compreensão que é necessário entender a lógica de circulação nacional para então expandir para as relações regionais e transnacionais.
Os critérios em relação à escolha das revistas foram, portanto: i) ser nacional; ii) ser no formato digital; iii) estar ligada a grupos de pesquisas de pós graduação; iv) ser exclusivamente sobre movimentos sociais/ter o tema no título, v) ser de acesso aberto. O recorte temporal se deu devido à disponibilidade das revistas e ficou centrado nos anos de 2015 e 2016, a fim de criar um ambiente de contemporaneidade entre as edições. Além disso, busquei equiparar a quantidade de edições, a fim de não prejudicar a análise comparativa. Não foram consideradas a nota Qualis ou ser indexada, nem uma quantidade mínima ou máxima de edições disponíveis. Por ser tratar de revistas em formato digital, a pesquisa é baseada, exclusivamente, através de sites de busca na internet.
Os próximos sub tópicos se referem a dois tipos de categorias diferentes: o primeiro se refere ao perfil da revista, levando em conta o tipo de suas publicações e quem nelas publica. Esse tópico possibilitará compreender a relação entre os diferentes tipos de conhecimentos, acadêmico ou de movimentos. O segundo se refere a quem são as/os interlocutoras e interlocutores utilizados pelas autoras e autores dos artigos. Ou seja, quem são suas referências bibliográficas.
Para tais análises foram usadas as seguintes metodologias: i) tipificação dos artigos das edições das revistas que serão apresentadas; ii) identificação das autoras e autores, considerando o gênero e a nacionalidade de todas e todos. Para identificar as referências, foram aglutinadas as referências bibliográficas de todos os artigos publicados nas revistas já indicadas, as separando por: i) tipo de referência (acadêmica, movimentos, documentos e reportagens e referências online) e, ii) a identificação do gênero e da nacionalidade de todas as autoras e autores. Todas as categorizações foram realizadas a partir dos dados disponíveis na internet e aglutinados por mim, portanto, podem não coincidir com a auto indicação das/dos autoras/autores; tal escolha se deu devido a impossibilidade em contatar a todas/os.
Perfil das revistas, suas autoras e autores.
Três revistas serão analisadas: Revista Movimentos Sociais e dinâmicas espaciais, a InSURgência: Revista de Direitos e Movimentos Sociais e a Revista Movimentos Sociais. A metodologia se deu da seguinte maneira: a partir das edições disponíveis e contemporâneas entre si, cada edição foi analisada como um todo, a fim de não expor nenhuma autora ou autor. A definição do gênero, nacionalidade, ocupação seguiu os seguintes critérios: i) auto identificação (mais comum quando autor/a do artigo faz uma breve auto biografia); ii) pesquisa em sites de procura na plataforma Google e no site Wikipedia 9 ; iii) busca em portais de universidades e sites acadêmicos.
Conforme está no sítio a Revista InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais (ISSN: 2447-6684), localizada na Universidade de Brasília “tem por objetivo difundir produção teórica inédita concernente à temática de movimentos sociais e direito. “Com a perspectiva de impulsionar a atividade de pesquisa desenvolvida com, por e para os movimentos sociais, mobilizando pesquisadores de todo o Brasil em diversas áreas temáticas”. A revista, até 2016, contava com duas edições publicadas, sendo elas v.1 n.1 (2015) e v.1 n.2 (2016), possuindo sete subtópicos que organizam seu sumário, além do editorial. São eles: Diálogos insurgentes, que conta com entrevistas; Dossiê, composto por artigos temáticos, propostos em conferências; Em defesa da pesquisa, com artigos livres; Temas geradores, com verbetes; Práxis de libertação, espaço reservado aos movimentos sociais, com textos, cartas e programas próprios; Poéticas políticas, espaço reservado para poemas, fotografias e demais manifestações artísticas visuais; e Caderno de retorno, com resenhas de obras da América latina ( COSTA, RAMPIN, PAZELLO, 2015, p. 3). A revista, dentre as três analisadas, é a única com espaço reservado exclusivamente para os movimentos sociais, propiciando um espaço para os movimentos enquanto sujeitos de seus próprios conhecimentos e não enquanto apenas objetos de análise. Nela, os movimentos aparecem também enquanto interlocutores, ainda que em pequenas proporções, mas na média da Revista Movimentos Sociais, conforme os dados da Tabela 2.

A Revista Movimentos Sociais e Dinâmicas Espaciais (ISSN: 2238-8052) possui, entre seus objetivos, “reunir artigos que buscam compreender a atuação dos diferentes atores socioespaciais e os conteúdos de suas ações na produção do espaço (…) e o papel de algumas políticas públicas na promoção da cidadania”, conforme consta no sítio da revista. Ela está ligada ao Departamento de Ciências Geográficas da Universidade Federal de Pernambuco (DCG/UFPE) e possuía nove edições disponíveis, sendo lançada periodicamente duas edições por ano desde 2012, exceto 2016 que possuía uma edição até o momento de conclusão da pesquisa 10. Devido ao maior número de edições disponíveis e para evitar uma análise desproporcional, foram escolhidos os dois primeiros números de 2015 e de 2016 a fim de centralizar nos anos de 2015 e 2016, em consonância às outras revistas. A revista possui um perfil exclusivamente acadêmico e, além disso, é a que possui maior número proporcional de autores de outras nacionalidades, majoritariamente europeus ( Tabela 1).
A Revista Movimentos Sociais 10 (ISSN 2526-7906) é uma publicação do NEMOS - Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Movimentos Sociais, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás-UFG. “O seu objetivo é contribuir com a produção de reflexão crítica e socialização do saber sobre os movimentos sociais.”, segundo consta na apresentação da revista em seu sítio. Conforme observamos na Tabela 1, conta com um perfil majoritariamente acadêmico.
De acordo com a
Tabela 1, podemos inferir que nas revistas analisadas, predomina autoria de acadêmicas/os sobre movimentos sociais, ainda que a InSURgências informe a intenção em abrir espaço para produzir com os movimentos sociais. Analisando os dados relativos à quantidade de autores/as e sua ocupação, é possível fazer as seguintes afirmações:
A Revista MS&DE e a Revista Movimentos Sociais apa-recem como o modelo típico de revista acadêmica. Sua produção, nas edições analisadas, é composta por autoras e autores pertencentes à academia, sendo a grande maioria professores/ as universitários/as. Além disso, como demonstrado, a revista conta com a contribuição de autores homens europeus e um latino-americano, reafirmando um circuito entre “Sul-Norte” em detrimento de um circuito periférico, fenômeno encontrado nas revistas indexadas analisadas por Beigel (2016). Em termos de gênero, há menos mulheres como autoras.
A Revista Insurgências pode ser tida como um mode-lo híbrido que concilia o conhecimento acadêmico ao conhecimento militante. É a revista com maior quantidade de artigos, o que também permite uma maior variabilidade no perfil de suas/ seus autoras/es. Há ainda uma presença considerável de autores da América latina, o que não costuma ser padrão; no entanto, todos são homens.
De modo geral, e em consonância com a literatura até aqui apresentada, é possível perceber como existe uma ten Tabela 2. Referências separadas por tipos de publicação dência (compreensível, por se tratar de revistas acadêmicas) em priorizar artigos escritos pessoas acadêmicas, maioria homens e brasileiros, reafirmando laços do circuito local. Segundo Beigel (2016) um dos fatores mais enfáticos em relação a nacionalidade dos autores coincidirem com a nacionalidade da revista é o idioma de publicação, fator concreto que pode criar uma barreira entre países com idiomas diferentes.
Há um dado interessante que diz respeito ao perfil de profissionais, pessoas (pós) graduadas que já não estão mais na academia, enquanto estudantes, mas continuam publicando o resultado de suas pesquisas e reflexões. Além disso, se tratando de uma revista acadêmica sobre movimentos sociais pode-se deduzir que essas pessoas sejam militantes de movimentos e permanecem inseridas nesse espaço de saber. No entanto, seria necessária uma pesquisa qualitativa para afirmar qual o perfil dessas pessoas e os motivos pelas quais elas continuam optando por essa forma de circulação de ideias. E, num plano mais analítico-epistemológico, comparar com o tipo de conhecimento produzido por autoras/es acadêmicos.
A Tabela 2, nos apresenta, de maneira pormenorizada, de que maneira estão distribuídas as referências utilizadas pelas/ os autoras/os. Dos 5 volumes analisados foram contabilizadas, no total, 1245 referências, somando as referências bibliográficas utilizadas em todos os artigos acadêmicos. A quantidade de referências varia de acordo com a quantidade de artigos publicados na revista, como é de se esperar. A grande maioria das obras utilizadas são obras acadêmicas, que serão melhor analisadas no próximo subtópico.

Ficaram fora da análise os editoriais, entrevistas, resenhas, manifestações artísticas e também a seção Movimentos Sociais da Revista Insurgências. Tal decisão se deu em decorrência do fato de os movimentos não utilizarem a “Referência Bibliográfica” tal qual são usadas em artigos acadêmicos, apesar de reconhecer, evi- dentemente, que aquele material possui formas de racionalidades, ora idênticas à da academia e ora diferentes.
Por ora, gostaria de chamar a atenção para dois dados interessantes: i) o pequeno número de movimentos enquanto referências e ii) a quantidade expressiva de documentos e reportagens.
Mesmo se tratando de revistas específicas sobre movimentos sociais, nas quais esses são seus temas principais, acaba se reproduzindo a lógica da ciência hegemônica e excluindo a possibilidade de reconhecer movimentos enquanto sujeitos de conhecimentos e não apenas enquanto objetos. A porcentagem, em relação à quantidade total de referências de cada edição não chega, no geral, a 5% em nenhuma edição e chega a ser inexistente em duas. Seria interessante fazer uma análise sobre o teor de cada publicação buscando identificar se há alguma relação entre a perspectiva teórica-política, metodológica e epistemológica, ou seja, se o caráter dos artigos é majoritariamente teórico o que poderia dificultar o diálogo com os movimentos, de maneira geral; para descobrir, por exemplo, se quando é feito trabalho de campo há maior reciprocidade entre referências acadêmicas e não acadêmicas; se, quando referências, surgem enquanto sujeitos ou como excertos que possibilitem reiterar argumentos científicos. Enfim, respostas que apenas uma pesquisa em profundidade e relacional seria capaz responder.
No entanto, sem essa análise mais profunda, volto a reiterar o ponto central deste trabalho que é, de certa maneira, argumentar em prol dos movimentos sociais enquanto sujeitos de seus próprios saberes em artigos que dialogam diretamente com esses sujeitos. Além disso, também atentar para de que maneira o conhecimento produzido tem circulado nacional, regional e internacionalmente.
Quanto ao seguinte fator, acredito que o uso de documentos federais, estaduais e locais, o uso de leis e reportagens sejam importantes para situar, no plano burocrático-normativo-informativo, algumas das questões com as quais os movimentos lidam e criam suas demandas. Além disso, a análise histórica de documentos (a fim de perceber sua mutabilidade), bem como a análise que busca estabelecer critérios de relação entre o que está no papel e o que está na sociedade, são fundamentais para a compreensão do modo sobre como temos mudado, enquanto sociedade, no trato em relação a temas como o Estado, leis, educação, código ambiental, criminalização de preconceitos (homofobia, racismo, transfobia), demarcação de terras indígenas. Ou seja, movimentos que demandam por direitos sociais e que dialogam com as instituições que os podem prover.
Essas são algumas das constatações sobre o perfil das revistas, de suas autoras e autores e o modo como estão dispersas as suas fontes. No próximo sub tópico aprofundo na análise das referências acadêmicas. O item “obras com autoria compartilhada” é importante para criar um parâmetro da quantidade de autoras e autores que foram encontrados. Ou seja, na Tabela 2, a quantidade de referências acadêmicas conta com o número total de obras utilizadas, isso significa que obras diferentes escritas por mesmas autoras e autores foram contabilizadas uma vez. No próximo tópico, entretanto, cada autora e autor foi contada/o como uma pessoa, independente de quantas obras tenha escrito e se a autoria foi individual ou coletiva.
Perfil das interlocutoras e dos interlocutores
Em relação as/aos interlocutores, foram organizadas/os segundo seu gênero e nacionalidade. Quanto ao gênero optei por empregar o sistema binário usual de homem e mulher 12 . Em relação à nacionalidade, as/os autoras/es foram consideradas/os de acordo com o continente ao qual nasceram, sendo, América, Ásia, África, Oceania e Europa. As/os autores/as brasileiras/os foram identificadas/os enquanto “brasileiras/os”. Demais autoras/ es da América, seguindo a perspectiva decolonial, foram identificadas/os enquanto América Latina, independentes se nascente nas/os Américas do Sul, Central e do Norte, exceto estadunidenses e canadenses, que foram categorizadas/os à parte. Há, entretanto, biografias de pessoas que transitam facilmente entre diferentes continentes, de modo que foram consideradas como percursos pertinentes de serem categorizados, como Américas – Europa e Europa - EUA.
A concepção decolonial que perpassa ao dividir e categorizar autoras/es e autores quanto aos seus continentes/países e gênero está no fato de buscar entender de que maneira as relações de poder e de gênero podem ser compreendidas quanto a constatação de quem e de onde estão localizadas/os as pessoas que são utilizadas como referências. Ou seja, qual o gênero e a nacionalidade das/os produtoras/es de conhecimento reconhecidas/os nessa área.
Como podemos observar na Tabela 3, há muitos dados interessantes e, em certa medida, contra-intuitivos em relação a uma parte da teoria exposta. A princípio, em termos de gênero, percebe-se que homens são sempre mais citados, chegando a ser mais de 80% em uma revista e não menos que 59% nas demais. No quesito nacionalidade, somando brasileiros e brasileiras são quase 50% das referências locais, ficando atrás a Europa com 29,33% e EUA e Canadá com 9, 74% das citações.
Assim, como já apontado no subtópico anterior, pode-se dizer que a predominância de brasileiros/as ocorre pelo fato de se fortalecer o circuito local, bem como uma maior valorização do circuito Norte-Sul ao invés de circuitos periféricos, esse segundo fator sendo encontrado também em outras revistas. A diferença entre Europeus e Norte Americanos também é uma exceção em relação as revistas indexadas, uma vez que há uma maior publicação de artigos de cientistas dos Estados Unidos, enquanto nessa pesquisa foram citados Europeus em maior quantidade. Esse fator pode ser explicado, principalmente, pela presença de autores dos artigos cuja nacionalidade é europeia e haja, também por lá, uma valorização de seu circuito interno.
Além disso, a publicação das ciências sociais em revistas indexadas segue um padrão de publicação no qual os Estados Unidos e Europa foram responsáveis por mais de 80% da produção total entre 1998 e 2007 (Yves Gingras y Sébastien Mosbah-Natanso in BEIGEL 2010). Assim, a publicação e a interlocução com esses autores e autoras, em detrimento de autoras/os da própria região, por exemplo, acaba sendo mais recorrente e
contribui em segmentar ainda mais a estrutura hierárquica do sistema acadêmico mundial por disciplinas, que é percebido claramente em estudos recentes sobre pesquisa colaborativa em ciências sociais, cujos laços mais fortes permanecem Norte-Norte e verticalmente, Sul-Norte enquanto as relações são muito fracas entre circuitos periféricos ( BEIGEL, 2013, p. 119)
O circuito periférico, podendo ser compreendido como a relação entre Brasil – América do Sul e Central – Ásia – África alcança a marca de 7% do total das citações em minha pesquisa, evidenciando, assim, o curto alcance do circuito regional nessas revistas, o que pode ser um reflexo do que acontece em outros tipos de publicações, como temos visto. A autora chama atenção, de acordo com esse diagnóstico, para um novo tipo de dependência intelectual, no qual dependência e autonomia são partes de um mesmo processo e defende o uso da categoria dependência acadêmica como explicação de “situações histórica-concretas de subalternidade no mundo da produção e circulação da produção científica” (BEIGEL, 2016, p. 13). Isso não significa, no entanto, nem que as/os cientistas sociais estejam reproduzindo de maneira acrítica essas teorias, nem que não sejam capazes de pensar em termos próprios, ou que não sejam capazes de refletir a partir da experiência Latino Americana e brasileira. Essa inferência só é possível se analisar qualitativamente cada artigo buscando evidenciar de que maneira as teorias estrangeiras são utilizadas.
Mais uma vez salta aos olhos as dinâmicas desiguais que estão implícitas no modo como o conhecimento circula pensando em termos geopolíticos e gendrados. O fato de tantos homens europeus e norte americanos ainda serem a maioria das referências em artigos produzidos e publicados no Brasil pode ser entendido nos termos apresentados pelas autoras Lugones (2008) e Miñoso (2009), ou seja, da colonização do saber e da colonização discursiva.
Há ainda um parêntese no que diz respeito a essa pesquisa. Ainda que de maneira intuitiva, é possível supor que os autores europeus tendem a utilizar uma bibliografia majoritariamente europeia e norte americana. Desse modo, seria interessante analisar se há relação significativa entre quem escreve e quem é utilizada/o enquanto referência. Ou seja, se a colonização se daria no sentido de que mesmo autoras/es do Brasil ainda utilizam majoritariamente referências europeias ou se autores europeus tendem a referenciar apenas conterrâneos.
Para além da constatação feita no início desse tópico acerca da proporção entre homens e mulheres gostaria de aprofundar nesse tema, agora fazendo uma análise relacionando gênero e nacionalidade. Embora, em termos gerais, a análise de Beigel faça sentido, ao analisar a relação entre gênero e nacionalidade essa teoria não explica o motivo de, entre as mulheres, a maioria citada ser brasileira. Além disso, ainda que outras nacionalidades tenham quantidades ínfimas de citações homens – somando autores da Ásia, África e América Latina chegamos em 5,94% das referências –, essa porcentagem não chega a 1% do total ao atribuir o gênero feminino. Além disso, do total de autoras/es europeus, as mulheres representam 12,73% enquanto dentre as autorias nacionais esse número sobe significativamente para 44,49%. Ou seja, dentre as mulheres, cita-se muito mais autoras brasileiras do que das outras nacionalidades. Já entre os homens a porcentagem, em relação à quantidade total de autores, é basicamente a mesma, sendo homens brasileiros 25,53% e europeus 26,02%.
Até que ponto os circuitos, apresentados por Beigel, são capazes de explicar as citações generificadas? A colonização do saber e discursiva nos ajudam a compreender, principalmente, quando olhamos para os aspectos geopolíticos, ou seja, as relações desiguais quanto aos países das/os autoras/es. No entanto, quanto a relação de gênero a partir do recorte da nacionalidade, penso ser necessário buscar outras interpretações.
Minha proposta interpretativa-analítica é de que os circuitos, quando atentando à questão de gênero, reproduzem a dicotomia público/privado, considerando que em nível local, privado, as mulheres tendem a ser mais valorizadas, enquanto aos homens prevalece ainda o internacional ou público. Ou seja, o acesso comunicativo para homens e mulheres é diferenciado e, se homens brasileiros e latino-americanos têm dificuldade de se inserirem em circuitos do Norte, para mulheres essa barreira é dupla.
A clássica dicotomia entre público e privado, no qual associa-se a razão, a universalidade, a abstração/ideia e o masculino ao primeiro e o sentimento, o específico, o empírico/corpo e o feminino ao segundo pode ser aplicada a essa realidade. Iris Young (2013) apresenta argumentos em defesa de uma democracia participativa que conta, a priori, com a ideia de um público heterogêneo propiciado por estruturas de participação verdadeira. Pensando a vida acadêmica como um espaço de participação e, condizente com os dados até então apresentados, é possível dizer que “o tradicional domínio público da cidadania universal tem operado para excluir pessoas associadas ao corpo e ao sentimento – principalmente mulheres, negros” (YOUNG, 2013, p. 306).
Trazendo essa ideia para o contexto de participação de mulheres e movimentos em revistas, enquanto sujeitas e interlocutoras, é necessário compreender o caráter de uma esfera pública e uma comunicação que são constituídas por uma racionalidade que não é compartilhada igualmente entre todas as pessoas; as desigualdades de oportunidade de fala, de intervenção no mundo público, de participação no Estado, de publicação e circulação ficam evidentes e passíveis de serem constatadas.
Ao limitar a mudança estrutural da sociedade na qual o novo modo de produção e consumo de livros aparecem como elementos da infraestrutura que afeta de maneira profunda a estrutura de comunicação na sociedade, é fundamental compreender quem são as pessoas que têm a chance de serem publicadas ou de conseguirem divulgar suas ideias através desse meio. O aumento no volume de informações trocadas e o seu modo de distribuição, através dos meios de comunicação, passou a compor a arena de disputa por poder sem oferecer meios equivalentes para homens e mulheres. Ou, conforme Pateman afirma “A participação na esfera pública é regida por critérios universais, impessoais e convencionais de êxitos, interesses, direitos, igualdade e propriedade – critérios liberais, aplicados apenas aos homens” ( PATEMAN, 2013, p. 59).
Ao contrário de um discurso imparcial da esfera pública política e da comunicação de massas, a consolidação de uma democracia participativa depende de “estruturas de participação verdadeiras, nas quais pessoas reais, com suas diferenças geográficas, de gênero, étnicas e profissionais, afirmam suas perspectivas sobre questões dentro das instituições que incentivam a representação de suas distintas vozes” (YOUNG, 2013, p. 329). Assim deve ser também no campo acadêmico, um espaço que propicie, de fato, espaço para diversas vozes, facilitando o debate e a participação democrática.
Voltando ao argumento dos circuitos, mas extrapolando para a questão do gênero, é possível dizer que o circuito local entre as mulheres é mais forte uma vez que pode ser associado ao âmbito privado (nacional) do campo geral da ciência, enquanto homens, pertencentes ao espaço público transitam com maior facilidade entre sua “casa” e outros espaços de publicação, o internacional, a “rua”, digamos assim. Além disso, não há como inferir sobre o circuito regional e internacional entre mulheres, principalmente por haver apenas uma mulher estrangeira enquanto autora dos artigos.
Desse modo as autoras nacionais contribuem de maneira fundamental para o alto índice de referências nacionais, mas ao fazer uma análise sem o destaque de gênero essa realidade não é evidenciada. Apesar do índice de autoras/os europeus ser o segundo maior, as mulheres europeias são ainda menos citadas. Quanto à América Latina impõe-se a dupla situação de opressão, tanto enquanto mulheres quanto ao Sul global. A colonização do saber e dos corpos, como apontado na introdução, também carecem de recorte de gênero para que possamos compreender esses fenômenos em sua complexidade.
A minha intenção com esses dados não é reforçar o argumento de que o conhecimento produzido na Europa seja universal e, portanto, possui um alcance e um enraizamento maior em outras localidades e, assim, uma legitimidade quase que automática por parte das outras e outros cientistas. Essa relação de desigualdade deve ser compreendida, como tenho mostrado, através de um longo processo histórico que é reiterado a partir de diversas ferramentas. O idioma, a circulação e um certo status de autoridade são fatores fundamentais para compreender esse fenômeno.
Isso não significa que seja uma apropriação ou cópias sem resistências, oposições ou uma criação inventiva sobre o que vem de fora. As epistemologias feministas e do sul, o pensamento decolonial, as mulheres que são feministas e decoloniais, os grupos oprimidos da sociedade e os movimentos sociais, de maneira geral, têm transformado esses processos de exclusão e violência epistêmica em novas teorias, novos métodos e novos circuitos de trocas de informação, de experiência e de referências. (Re)existir, no contexto acadêmico, muitas vezes é criar saídas analíticas que não subjuguem o/a(s) sujeito/a(s) ausentes, que não sejam desprovidas/os de suas racionalidades, ainda que essas não sejam concebíveis no nosso modo dicotômico e linear de compreensão dos corpos, das ideias, das culturas, das naturezas, de nós e do mundo.
Ou seja, ainda que as dinâmicas coloniais estejam presentes e sejam capazes de explicar muitas das hierarquias prevalecentes, também é possível dizer que em alguns pontos temos avançado e temos rompido com esses efeitos. O fato de ter mais mulheres sendo citadas no circuito nacional pode ser entendido, inclusive, como um legado de teóricas feministas latino-americanas que têm atuado no mundo acadêmico, e fora dele, em prol do reconhecimento do conhecimento produzido por mulheres.
Considerações finais
Não faço aqui uma ode contra a ciência e nem acredito que a rejeição total de tudo que já foi feito seja o melhor caminho para avançarmos em termos de conhecimento sobre o mundo, mas acredito que as ciências sociais precisam se repensar se não quiserem continuar falando sempre as mesmas coisas, para as mesmas pessoas e com as mesmas referências. Se repensar, avaliar onde estão os principais pontos críticos e propor alternativas ou abrir caminhos se faz fundamental, principalmente por parte de quem acredita que o conhecimento acadêmico e científico, enquanto reflexão sobre o mundo, também possui potência de transformação.
Para além das constatações já apresentadas e reiteradas aqui, principalmente no que se refere ao caráter eurocêntrico e androcentrado da ciência, não posso deixar de comentar que essas características não são exclusivas desse meio, pelo contrário, é um espectro que ronda os mais diversificados aspectos da nossa vida em sociedade. A ciência existe em conexão com o Estado, com o mercado, com a política, com a natureza e com a sociedade, com a religião e com outros tipos de instituições e grupos. Portanto, pensar alternativas na ciência é pensar que podemos produzir resultados diferentes que irão se estabelecer através desses vínculos.
A partir da análise empírica refletida teoricamente, é possível dizer que em boa medida os conhecimentos acadêmicos e dos movimentos sociais possuem diferentes status e circulam em espaços específicos. Bem como, ser mulher, o lugar onde se nasce ou se vive influenciam na possibilidade de circular por outros espaços acadêmicos. Desse modo, utilizar as epistemologias e teorias propostas por esses sujeitos, suas análises, diagnósticos e propostas para pensar a inserção e a relação dos movimentos na e com as ciências sociais foi uma escolha metodológica, ainda incipiente, acredito, de pensar outros âmbitos da sociologia através de uma perspectiva feminista e decolonial. Ou seja, mesmo que os dados referentes às mulheres enquanto autoras e interlocutoras não estejam distribuídos de maneira igualitária, já percebemos um avanço em relação a outros tempos, o que não significa que a ciência já possa ser considerada um espaço democrático tal qual aponta Young.

Pensar a ciência enquanto um espaço democrático participativo com público heterogêneo deve ir além do recorte de gênero e incluir outros corpos e saberes. Os movimentos sociais, enquanto “profetas do presente” ( MELUCCI, 2001), enquanto atores coletivos que pautam projetos de sociedades mais igualitárias e justas têm muito a contribuir para o modo de saber científico.
Se, por um lado, os movimentos podem usar dos conhecimentos científicos como base para elaborar suas demandas, considerando a legitimidade que esse possui, é também legítimo que os movimentos possam rejeitar a ciência enquanto modo de conhecimento e buscar outras alternativas na vida de seus e suas militantes, como em suas ancestralidades e na sabedoria popular. Os movimentos, podem ainda considerar a coexistência aprazível entre os diversos tipos de conhecimentos. Ou seja, é necessário reconhecer a autonomia dos movimentos e levar em conta suas opções de interlocução, ou não, com a ciência produzida na academia. Diferente do que a ciência europeia propõe originalmente, existem outras formas de conhecimento que não necessitam dialogar ou seguir os cânones científicos para serem consideradas enquanto “conhecimento”.
Na mesma linha, os movimentos, ainda que não aprofundados aqui, devem ser compreendidos na sua diversidade temporal, espacial e ideológica. Isso pode colocar outras questões ao modo que eles vão se relacionar com atores da academia e com a universidade enquanto instituição. Essas nuances só são passíveis de serem entendidas em diálogos com os movimentos, ou seja, em diálogos e parceria em suas lutas e vendo como eles se concebem e como pensam em relação aos outros conhecimentos.
Por fim, o balanço da produção localizada em uma determinada área de estudos num determinado país, ainda que possa parecer muito localista e específica, me parece trazer questões sociológicas importantes para a compreensão das ciências sociais como um todo. Se, a partir dessa a análise, fica evidente que as mulheres já têm ocupado importantes posições no que se refere ao conhecimento nacional, penso que o mundo público da sociologia internacional também deve estar abrindo suas portas.
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Notas
Autor notes
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