Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
A Cresol Vale Europeu e o crédito rural para a agricultura familiar na visão dos atores sociais 1
Marcos Catelli Rocha; Fábio Luiz Búrigo; Cristiano Desconsi
Marcos Catelli Rocha; Fábio Luiz Búrigo; Cristiano Desconsi
A Cresol Vale Europeu e o crédito rural para a agricultura familiar na visão dos atores sociais 1
Cresol Vale Europeu and rural credit for family farming in the view of social actors
Ciências Sociais Unisinos, vol. 56, núm. 3, pp. 303-315, 2020
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: A pesquisa teve como universo a cooperativa de crédito rural Cresol Vale Europeu, vinculada à Central Cresol Baser, pertencente ao Sistema Cresol. A Cooperativa nasceu no fim de 2018, por meio da união de cinco cooperativas singulares existentes nos municípios catarinenses de Águas Mornas, Botuverá, Ituporanga, São João do Itaperiú e Schröeder. As cooperativas de crédito do sistema financeiro solidário, foram criadas no fim do século XX para democratizar o acesso da população excluída aos serviços do sistema financeiro nacional. Historicamente, o crédito rural para a agricultura familiar foi o principal produto financeiro do Sistema Cresol. Esse quadro vem sofrendo mudanças nos últimos anos em decorrência de fatores externos à cooperativa e à outros internos. Esta pesquisa estudou como o crédito rural se insere nesse novo ambiente de atuação da Cresol, analisando seus resultados, potencialidades e limites em termos da governança cooperativa e do desenvolvimento rural. Esta investigação foi realizada a partir de pesquisa de campo junto aos atores sociais do território de atuação da Cooperativa, por meio de entrevistas semiestruturadas junto aos agricultores familiares cooperados, técnicos e gestores. Na visão destes, os resultados obtidos pela Cooperativa em suas políticas de crédito rural para agricultura familiar são frutos de um trabalho de proximidade, que vem conseguindo, ao longo do tempo aprimorar sua governança frente aos desafios impostos pelo mercado financeiro. No entanto, o desafio principal está no paradoxo entre garantir o crescimento e a expansão da Cooperativa e fortalecer os laços sociais que mantenham um bom relacionamento com o quadro social, sobretudo do meio rural que é a origem da Cooperativa.

Palavras-chave: Cooperativismo de créditoCooperativismo de crédito,Crédito ruralCrédito rural,Agricultura familiarAgricultura familiar.

Abstract: This research is about the rural credit cooperative Cresol Vale Europeu, linked to the Central Cresol Baser, belonging to the Cresol System. The Cooperative was born at the end of 2018, through the incorporation of five singular cooperative that exist in the cities of ÁguasMornas, Botuverá, Ituporanga, São João do Itaperiú and Schröeder. Credit cooperatives in the solidarity financial system were created in the end of twentieth century to democratize financial services to the excluded population. Historically, rural credit for family farming was the main financial product of the Cresol System. This situation has been changing in recent years due to external factors to the cooperative and others factors. This research has studied how rural credit fits into this new environment of Cresol’s performance, analyzing its results, potentialities and limits in terms of cooperative governance and rural development. This investigation was carried out based on field research with social actors in the territory of cooperative’s operation, through semi-structured interviews with cooperative family farmers, technicians and managers. In their view, the results obtained by the Cooperative in its policies of rural credit for family farming are the fruit of a close work, which has managed, over time, to improve its governance in the face of the challenges imposed by the financial market. However, the main challenge lies in the paradox between ensuring the growth and expansion of the Cooperative and strengthening social ties that maintain a good relationship with the membership, especially the rural environment that is the origin of the Cooperative.

Key words: Credit cooperatives, Rural credit, Family farming.

Carátula del artículo

Articles

A Cresol Vale Europeu e o crédito rural para a agricultura familiar na visão dos atores sociais 1

Cresol Vale Europeu and rural credit for family farming in the view of social actors

Marcos Catelli Rocha
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil
Fábio Luiz Búrigo
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil
Cristiano Desconsi
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil
Ciências Sociais Unisinos, vol. 56, núm. 3, pp. 303-315, 2020
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Recepção: 07 Agosto 2020

Aprovação: 25 Novembro 2020

INTRODUÇÃO

A principal motivação dos fundadores do Sistema de Cooperativas de Crédito Rural com Interação Solidária (Cresol) foi atender a demanda de crédito do público da agricultura familiar do Sul do Brasil. O Sistema Cresol surgiu em 1995, no mesmo período em que se observa o fortalecimento da agricultura familiar brasileira em termos políticos e institucionais. Visto na época como uns dos elementos estratégicos para o desenvolvimento do meio rural, experiências alternativas de criação de cooperativas de crédito surgem no início dos anos 1990 em Santa Catarina, a partir dos trabalhos das Organizações Não-Governamentais (ONGs) e de fundos de crédito rotativo, desenvolvidos com apoio da igreja católica e movimentos sociais do campo. Pouco tempo depois nascem na região sudoeste do Paraná as primeiras cooperativas do Sistema Cresol ( COLONIESE et al., 2010).

Uma das bases de atuação das cooperativas de crédito está calcada nas finanças de proximidade (SERVET e VALLAT, 2001). Os sistemas de proximidade buscam acomodar-se às necessidades e às capacidades de seus cooperados. São conhecidos pela proximidade geográfica, temporal e social com seu público, pela liberdade de utilização dos fundos com fins produtivos, pela simplicidade dos procedimentos para liberar crédito ( BÚRIGO, 2007).

Para Granovetter, as instituições econômicas, como as cooperativas, não surgem automaticamente no meio social. “São, antes, construídas por indivíduos cuja ação é, ambos, facilitada e limitada pela estrutura e pelos recursos disponíveis nas redes sociais onde se encontram embedded 5 ” (GRANOVETTER, 1991, p.9). Abramovay (2004 p. 22) argumenta que a sociologia econômica contemporânea trabalha na ideia “de que a vida econômica – e financeira – das famílias só pode ser compreendida a partir de sua inserção ( embeddedness) nos círculos sociais que lhe imprimem conteúdo e lhe dão sentido”. O argumento da imersão destaca o papel das relações pessoais e as estruturas (ou “redes”) dessas relações como fonte da confiança e no desestímulo à má-fé. A opção imperante em fazer transações com indivíduos ou instituições de reputação conhecidas significa que poucos se dispõem a confiar na moralidade generalizada ou nos meios institucionais para impedir problemas ( GRANOVETTER, 2007). Essa base de confiança motivou a criação e sustentou a Cresol ao longo de sua existência.

Tendo em conta esse contexto teórico e empírico de criação de organizações cooperativas de agricultores familiares e de geração de laços sociais na tentativa de reverter o processo de exclusão financeira no campo é que se situam as bases deste estudo, sobre a Cooperativa de Crédito Cresol Vale Europeu. Na perspectiva teórica, sendo o cooperativismo de crédito solidário, um locus privilegiado da imbricação do social no econômico, serão articulados alguns conceitos da Nova Sociologia Econômica (NSE) 6 . Tal disciplina possui um grande desafio, que é abrir a “caixa-preta do mercado”, contudo, ao abrir a caixa, o que se observa no interior são os laços sociais, é a sociedade e as interações, as quais “os indivíduos procuram permanentemente dotar de significado” ( ABRAMOVAY, 2009 p. 67). A NSE procura demonstrar como o funcionamento das organizações empresariais e dos mercados econômicos dependem de uma cadeia de (inter) dependências e das relações de confiança de que são feitas as redes ( GRANOVETTER; SWEDBERG, 1994; CAILLE, 1998).

Em face de suas características organizacionais, e tendo em conta o conceito da imersão, pode-se entender que as cooperativas conformam um mosaico de laços sociais fracos e fortes, que expressam um conjunto de interesses múltiplos que se estruturam em torno da organização 7 . Para tanto, formam-se redes internas e externas, envolvendo cooperados (como os agricultores familiares) e outros atores sociais e econômicos, entre os quais se estabelecem distintas conexões fortes e fracas. Várias dessas conexões se estabelecem a partir das diferentes atividades que a cooperativa desenvolve no seu dia-dia, entre as quais estão as relacionadas ao uso do crédito rural. Esse entendimento pode também ajudar a entender o papel do crédito rural disponibilizado pela cooperativa, bem como o papel que as políticas públicas a ele relacionadas podem desempenhar em termos de desenvolvimento rural.

Durante duas décadas, cooperativas do Sistema Cresol se multiplicaram no Sul, e expandiram-se para outros estados do país, tornando-se o exemplo mais expressivo da vertente solidária do cooperativismo nacional ( PINHO, 2004; BÚRIGO, 2010). Inicialmente esse Sistema cresceu e se consolidou nos três estados do Sul ( RISSON, 2010). A proposta inovadora das cooperativas de crédito solidárias era contrária aos arranjos centralizados, baseados em cooperativas de grande porte. Optava por estruturas horizontalizadas, em forma de rede, articuladas entre si e com a comunidade local, favorecendo a democratização do uso do crédito rural e o efetivo controle social ( COLONIESE et al., 2010).

Atualmente, o Sistema Cresol se estrutura numa confederação (cooperativa de 3° grau), quatro centrais (de 2° grau), em torno de uma centena de singulares, aproximadamente quinhentos mil cooperados, 528 agências, distribuídas em mais de 1.300 municípios em dezesseis estados da federação ( CRESOL, 2019). A Baser é a cooperativa central na qual a singular Cresol Vale Europeu está vinculada.

Historicamente, o crédito oriundo do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), foi o principal produto financeiro do Sistema Cresol. Desde os anos 1990, as cooperativas de crédito brasileiras passaram a ampliar as oportunidades de acesso ao crédito rural e outros serviços financeiros para os excluídos do sistema financeiro tradicional ( BÚRIGO, 2010). Para entender o funcionamento desses vínculos é fundamental destacar também o papel exercido pelo cooperativismo no Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), pois, além de favorecer o acesso ao crédito para agricultores familiares mais estabilizados, as cooperativas auxiliam na inclusão de atores sociais em locais que outras organizações financeiras não trabalham. “Dentro do cooperativismo de crédito, o caso específico da Cresol qualifica ainda mais esse repasse, pois esse Sistema trabalha com a base social composta em grande maioria por agricultores familiares. Isso permite conhecer melhor suas necessidades” ( NICOLUZZI, 2015 p. 65).

Contudo, nos últimos anos, esse perfil de atendimento prioritário da agricultura familiar vem sofrendo alterações estruturais. Entre as razões para essas mudanças destacam-se: ampliação do quadro social e dos serviços prestados pelas cooperativas singulares, que passaram a envolver cada vez mais o público urbano; expansão do Sistema para regiões com realidades rurais diferentes daquelas existentes no Sul do país; adequações inerentes às regras do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e do SNCR; e políticas internas visando ampliar a verticalização das estruturas e a centralização administrativa.

Cabe ressaltar que essa última questão vai de encontro à cultura de descentralização, que deu origem ao Sistema. Nota-se que o processo de centralização teve início com a criação e fortalecimento das centrais, cooperativas de segundo grau, em detrimento das bases de serviços regionais, uma inovação que o Sistema Cresol implantou nos primeiros anos. Essas bases eram cooperativas de segundo grau, do ramo de serviços – vem daí, inclusive, o nome Baser – que davam suporte gerencial, contábil e articulavam as ações das singulares próximas territorialmente 8 . As bases articulavam as ações, mas preservava-se boa parte do poder decisório do Sistema nas cooperativas de primeiro grau, visto serem estas as únicas reconhecidas pelo Banco Central, o órgão que autoriza o funcionamento das cooperativas de crédito no Brasil.

Mais recentemente, a política de centralização gerencial passou a incentivar a criação de cooperativas de atuação regionalizada por meio de processos de fusão ou de incorporação das cooperativas de menor porte, para a consequente instalação de mais agências (antigos Postos de Atendimento Cooperativo) nos diversos municípios de atuação.

Neste contexto, este artigo 9 tem como objetivo refletir sobre como o crédito rural se insere nesse novo ambiente de atuação da Cresol, que se intensificou com o referido processo de união das cooperativas. Procura analisar as especificidades da nova governança da Cresol Vale Europeu no relacionamento com os agricultores familiares cooperados.

Ressalte-se que para o Banco Central a governança cooperativa é um “conjunto de mecanismos e controles, internos e externos, que permite aos cooperados definir e assegurar a execução dos objetivos da cooperativa, garantindo sua continuidade e os princípios cooperativistas” ( BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2008).

A Cresol Vale Europeu nasceu no final de 2018, por meio da união de cinco cooperativas singulares existentes nos municípios catarinenses de Águas Mornas, Botuverá, Ituporanga, São João do Itaperiú e Schröeder 10 . A nova cooperativa herdou o Certificado Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) e a estrutura administrativa da cooperativa de Águas Mornas, mas resolveu empregar o nome fantasia da cooperativa singular de Botuverá (Vale Europeu). A “nova” Vale Europeu passou a atender 95 municípios, quase todos situados na faixa do Litoral Catarinense, Grande Florianópolis, Norte do Estado e Alto Vale do Itajaí. Sua área de atuação abrange ainda 1 município do Paraná e 7 municípios da região serrana do Rio de Janeiro (ver Figura 1).

A pesquisa é do tipo qualitativa descritiva. Para Minayo (2012, p. 626) a análise qualitativa de um objeto de investigação por meio de um processo analítico e sistemático, tem por fin alidade viabilizar a objetivação de um tipo de conhecimento, materializado por “opiniões, crenças, valores, representações, relações e ações humanas e sociais sob a perspectiva dos atores em intersubjetividade”. Objetivamente, os procedimentos empregados nesta pesquisa podem ser detalhados em três etapas. A primeira consistiu em dois eixos de ações: i) revisão de literatura sobre NSE, cooperativismo de crédito, agricultura familiar e crédito rural; ii) levantamento de informações exploratórias por meio de encontros e de observação participante em atividades cotidianas, para os quais foram realizadas visitas de reconhecimento à sede da cooperativa, contato pessoal com alguns colaboradores, dirigentes e cooperados, participação em reuniões e pré-assembleias.


Figura 1
Área de abrangência da Cresol Vale Europeu (2019).

Figure 1: Cresol Vale European coverage área (2019).

Fonte: Cresol Vale Europeu, adaptada pelos autores.

A segunda etapa compreendeu efetivamente a pesquisa de campo e foi efetuada por meio de entrevistas gravadas com os atores sociais, durante as quais foram aplicados questionários elaborados em roteiros semiestruturados – este material de campo é a base principal de informações que fundamenta as análises deste artigo 11 . O público das entrevistas foi circunscrito a um território amostral, o qual contemplou as sedes das antigas 05 cooperativas e 04 municípios do entorno 12, podendo ser caracterizada como amostra induzida. O critério inicial para definição dos atores sociais escolhidos para realização das entrevistas foi o envolvimento com o crédito rural intermediado pela Cresol Vale Europeu no intervalo de 2014 a 2018. Assim, foram realizadas 33 entrevistas, que contemplaram: 22 agricultores 13, 03 técnicos envolvidos com o trabalho de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater), 06 gestores e colaboradores e 02 agentes comunitários de desenvolvimento 14 .

Na terceira etapa realizou-se a tabulação e sistematização das entrevistas e dados dos questionários, para realização da análise de conteúdo convencional. Segundo Rossi; Serralvo; João (2014 p. 47) esse tipo de análise qualitativa “é usada quando o objetivo do estudo é a descrição do fenômeno”. Para Quivy e Campenhoudt (1988) a análise de conteúdo corresponde à análise temática, a qual almeja, sobretudo, revelar as representações sociais ou os juízos dos locutores, via um exame de certos elementos constitutivos do discurso.

O artigo está dividido em três seções, além desta introdução e das considerações finais. A primeira destaca o papel das políticas de crédito rural, segundo os atores sociais que integram a Cresol Vale Europeu. A segunda apresenta e analisa a percepção dos agricultores, gestores e técnicos de assistência técnica sobre as dinâmicas de acesso e uso do crédito pelos beneficiários. Por fim, a terceira, expõe as especificidades no âmbito do relacionamento estabelecido entre os tomadores de crédito e a governança da Cooperativa.

A visão dos atores sociais do território da Vale Europeu sobre as políticas de crédito rural

A criação das cooperativas de crédito Cresol remonta a disponibilização das verbas oficiais de crédito rural para agricultores familiares que surgiram a partir da segunda metade dos anos 1990 ( BÚRIGO, 2007). No depoimento abaixo, um dos fundadores de uma das cooperativas que deu origem à atual Cooperativa Vale Europeu faz uma avaliação desse histórico e como a ampliação do crédito fortaleceu a Cooperativa:

Foi o motivo de trazermos a cooperativa aqui. Porque [...] na época já existia o Pronaf, mas o agricultor não tinha acesso. Tinha acesso quem tinha dinheiro e podia calçar o Pronaf no Banco. [...] Hoje, quando vai pros municípios e, também a nível nacional, mudou essa visão do crédito rural, o povo teve acesso. De uns 15 anos pra cá, o crescimento da agricultura no Brasil, isso voga muito pelas políticas estimuladas pelo governo e as cooperativas que fizeram esse trabalho e deram acesso pro agricultor ao crédito rural. Outra coisa que mudou é que esse crédito no município, mais de 70,75% veio pra dentro da cooperativa. Criou uma dimensão muito grande na captação, no giro, no dia-dia do agricultor (GESTOR DA COOPERATIVA - ENTREVISTADO 29).

Todos os entrevistados afirmaram que o acesso aos recursos do financiamento tem efetivamente permitido ao agricultor familiar produzir mais, aumentando a escala de produção.

O segundo aspecto discutido não teve a mesma concordância, mas também recebeu forte aprovação entre os entrevistados. Dos 33 entrevistados, 27 acreditam que o recurso do crédito rural permitiu aos agricultores produzir melhor, com mais qualidade. Contudo, alguns depoentes relacionam o fato de produzir melhor com a presença de assistência técnica, além das pressões e exigências do mercado consumidor por produtos de qualidade.

A questão do crédito como um mecanismo que proporciona, tanto melhorias nas condições de trabalho, quanto um aumento de produtividade foi tratada nessa entrevista abaixo. O entrevistado também aborda as condições facilitadas do crédito para acesso dos agricultores, o qual proporciona um movimento financeiro que faz “girar a máquina”:

Mudou muito a vida do produtor no campo pelo acesso do crédito, se tu pegar uma foto aérea ou de satélite e ver 10 anos atrás. A quantidade de cultivo protegido que aumentou na região é absurdo. Tu tá dando uma condição de trabalho melhor para o produtor no morango, a nível de cintura, até por questão de mão-de-obra facilita. Aumentou a produtividade, tanto pessoal que trabalha com morango, que rentabiliza bastante por área, é algo que fez e faz diferença no meio rural. Falando das linhas, a gente opera na maioria das vezes Pronaf e é fantástico. [...]Estamos trabalhando com linhas de 3% ao ano, carência de 10 anos de prazo para pagamento, algo que faz viabilizar os investimentos (TÉCNICO DE ATER - ENTREVISTADO 31).

Noutro sentido, o depoimento abaixo destaca que o crédito, às vezes, funciona como um “tampão”, ajudando os agricultores a suportarem as oscilações do mercado e das safras:

A banana é assim, ela tem muitos altos e baixos, tem épocas que o preço está bom e épocas que não. E justo quando o preço é baixo você tem que estar investindo pra quando melhorar o preço você ter uma fruta de qualidade pra vender, pra suprir o que você teve que investir lá atrás (AGRICULTORA FAMILIAR - ENTREVISTADA 14).

Os estudos sobre o crédito rural demonstram que entre 2003 e 2014, com o governo federal sob gestão do Partido dos Trabalhadores, aconteceram uma elevação dos valores e algumas melhorias operacionais que ampliaram o acesso dos agricultores ao Pronaf. No entanto, apesar dessas modificações, a estrutura do programa sofreu poucas descontinuidades institucionais ( BÚRIGO; WESZ JUNIOR; CAPELLESSO; CAZELLA, no prelo).

Desde sua criação em 1995, o Pronaf sempre buscou fortalecer três objetivos: a capacidade produtiva; a elevação de renda monetária e a qualidade de vida dos agricultores familiares (SCHNEIDER et al., 2004). No entanto, Carneiro; Palm e Alvarenga, (2017) avaliam que para os dois primeiros objetivos, foram concebidos índices de avaliação, o que não aconteceu quanto ao terceiro objetivo do Programa. Para eles, existem lacunas de conhecimento no que se refere ao impacto da política na melhoria da qualidade de vida dos beneficiários.

Nas entrevistas, foi unânime a opinião que o acesso aos recursos do crédito proporciona um aumento de renda e qualidade de vida no meio rural: “não teríamos a renda, a qualidade de vida, a produção e produtividade que temos no país se não tivesse acesso ao crédito rural. Uma alavancada positiva com certeza” (TÉCNICO DE ATER - ENTREVISTADO 32). Pode-se notar que a importância do crédito cooperativo é infinitamente maior do que o simples auxílio a unidades familiares individuais em seu trabalho. À medida que o sistema de crédito cooperativo se desenvolve e fortalece, ele atrai, inevitavelmente, na forma de depósitos, o dinheiro disponível nas áreas rurais. Ao suplementá-los com recursos e capital do estado, obtidos via parcerias com bancos, o crédito se torna mais barato e acessível a todo o camponês, e amplamente disponível ( CHAYANOV, 2017).

A discussão do crédito rural na política agrícola brasileira traz embutida a ideia da profissionalização da atividade. Acontece que, muitas vezes, dependendo do perfil do produtor e do tipo de apoio dado pela Ater, dentre outros aspectos, nota-se o interesse em forjar o tomador do crédito num “agricultor empreendedor”, que desenvolve sua unidade produtiva como um negócio:

Hoje o crédito rural é além do trabalho que as Ematers [Ater] fazem, que é o primeiro lugar de programa do governo para o meio rural. E estando ali diariamente a gente vê que hoje é fundamental [...]é notório se tu pegar um histórico de 10 anos [...] o quanto a gente conseguiu que esse agricultor virasse empreendedor, trabalhar a propriedade como um negócio. Por causa dos investimentos, maquinário, muita agroindústria surgindo, agregação de valor, a produção. Pessoal fazendo polpa, vendendo produto minimamente processado (TÉCNICO DE ATER - ENTREVISTADO 31).

A questão do Programa de Garantia de Atividade Agropecuária (Proagro), conhecido como seguro agrícola, foi um tema que não teve acordo entre os entrevistados. Um gestor destaca como positivo o fato da política de crédito rural ter passado a englobar o Proagro, como forma de oferecer segurança frente às instabilidades climáticas vivenciada pelos agricultores em diversas regiões do país. No entanto, alguns agricultores citaram que o Proagro vem os prejudicando e criticaram o fato de ser obrigatório à contratação do crédito e na forma da cobrança em cima do valor do projeto, enfatizando que para projetos pequenos (até R$ 15 mil) o Proagro é quase inviável.

Apesar dos avanços, estudos e gestores apontam a insuficiência dos recursos disponibilizados pelo governo para o crédito, para atender a demanda dos agricultores, uma vez que: “o volume de crédito rural colocado à disposição dos produtores ainda é reduzido em relação às suas necessidades” ( BELIK, 2014 p. 368):

O que talvez precisaria seria aumentar o volume de recursos a ser disponibilizado pra população em geral acessar. Que apesar do governo ter aumentado os subsídios em relação ao ano anterior ainda não é suficiente para atender toda demanda de evolução do país em relação à agricultura (GESTOR DA COOPERATIVA - ENTREVISTADO 26).

Dentre os entrevistados, a grande maioria (23) acredita que os financiamentos do Pronaf têm priorizado a ampliação da escala de produção por meio da utilização de insumos modernos e de tecnologias. Essa visão dominante foi levantada, por parte de alguns entrevistados, como possibilidade de estar em curso um processo de eliminação dos agricultores familiares que não se adequem a esse modelo:

Produtor que não estiver atento à essa questão da tecnologia, mesmo na pequena propriedade, é fadado ao fracasso. O crédito só vem a consolidar a ligação intrínseca, uma adubação química com melhor qualidade, fertilização foliar com tecnologia, com nanotecnologia investida na formulação desses produtos. Tudo isso chega na propriedade de modo bem eficiente, é só um casamento das coisas (GESTOR DA COOPERATIVA - ENTREVISTADO 27).

Outro gestor reflete sobre os benefícios trazidos pela adoção de tecnologias, tanto no processo produtivo, como para despertar a confiança do agricultor ou ainda para superar barreiras na comercialização, a saber:

Têm agricultores que investiram em tecnologia, correção de solo, pegar uma análise solo, colocar uma tecnologia adequada. Produtor de leite fez uma pastagem, rotação, piquete. Tirava [leite] na mão, agora tira com ordenhadeira e vai direto para o resfriador. Agregou o valor na produção e fez com que desse mais confiança. Inclusive hoje, a gente tem alguns municípios que já regulamentaram e os produtores conseguem vender queijo nas feiras livres. O que antes não era possível em função da forma de produzir, então um pacote com toda tecnologia veio a somar e trazer maior lucratividade para o produtor (GESTOR DA CENTRAL BASER - ENTREVISTADO 30).

Mas a visão acima não é unânime entre os atores sociais entrevistados. Ao opinar sobre o uso dos insumos modernos em demasia na atualidade, um técnico lamenta o abandono de práticas tradicionais:

Positivo, foi ampliado essa escala. Por outro lado, quando se diz insumos modernos, estão sendo usados até de uma forma demasiada, sem critérios e sem conhecimento, nós temos insumos naturais que estão sendo deixados de lado, pela comodidade que os insumos modernos nos trazem. Insumos tradicionais e orgânicos não deveriam ser deixados de lado (TÉCNICO DE ATER - ENTREVISTADO 32).

Outro gestor da cooperativa relativiza o papel do crédito rural nesse contexto da demanda em relação aos insumos modernos, contextualiza a classificação do produtor familiar realizada pela Cooperativa quanto ao uso da tecnologia:

Aqui na Cresol, nós temos algumas classificações no cultivo do Pronaf, vai ser de alta tecnologia e de baixa tecnologia, na hora de fazer o custeio. A gente classifica ele conforme o que apresenta pra nós e o que se identifica na propriedade dele [...]. Pegando o tomate como exemplo: Não é porque a pessoa vai plantar 20 mil pés que vai ter o mesmo recurso que outra que vai plantar 20 mil pés também. [Insumos modernos] Vai depender da tecnologia que ele aplica, se é baixa tecnologia, o recurso que ele vai acessar vai ser bem menor do que aquele mais especializado, com alta tecnologia (GESTOR DA COOPERATIVA - ENTREVISTADO 26).

Após essa avaliação inicial dos atores sociais do território da Cresol Vale Europeu sobre a política de crédito rural, o tópico abaixo discute como se dá o acesso aos recursos financeiros e quais as implicações que essas operações geram na governança da Cooperativa.

Acesso ao crédito rural na visão dos tomadores e dos gestores

Como já mencionado, a Cresol Vale Europeu também viveu o processo de centralização das estruturas, alterando uma das premissas que fundamentaram a criação do Sistema Cresol, que era manter as cooperativas de pequeno porte como referência. Nas palavras de dirigentes e administradores atuais, essa transformação foi necessária, pois reflete uma “união importante e em busca do fortalecimento da Cooperativa, com objetivo de torná-la mais sólida, melhorar a competitividade e o ganho de escala” 15 .

O processo de união das cooperativas singulares que derivou na Cresol Vale Europeu, originou uma organização de grande expressão em termos econômicos e sociais dentro dos padrões do Sistema Cresol 16 . Mesmo com o novo cenário financeiro gerado com a união, o quadro social e os dirigentes da Cooperativa estão preocupados de que as mudanças não signifiquem o fortalecimento da “lógica bancária” em detrimento das necessidades e interesses primordiais dos cooperados. Conforme destaca Bittencourt (2010 p. 462): “o grande desafio para as Cooperativas de Crédito com Interação Solidária é tornarem-se viáveis economicamente, mantendo vivos seus princípios e valores”. O processo de união das cooperativas ampliou significativamente o número de cooperados da Vale Europeu, o que gera novos desafios em termos de governança. Por um lado, maiores são as possibilidades de continuidade e crescimento econômico (economia de escala e escopo), por outro lado, quanto maior o número de cooperados, mais difícil torna-se a participação direta ( CANÇADO et al., 2014).

Apesar dos resultados expressivos alcançados pelo crédito rural na antiga Cresol Águas Mornas e em praticamente todas cooperativas do Sistema Cresol, os quais confirmam sua vocação de atuar nos pequenos municípios rurais e com o público da agricultura familiar, nos últimos anos esse quadro passou a sofrer modificações. Pesquisadores e gestores da Cresol Baser apontam a relevância de se “compreender a dinâmica dos sistemas de produção dos agricultores e sua sociabilidade com os mercados, ou seja, analisar as diversas racionalidades presentes e a interface com a política de crédito rural e os mercados” ( BASSO et al, 2017 p. 68). Esses autores destacam que a Cresol está diminuindo o número de agricultores beneficiados pelo crédito rural do Pronaf e de outras linhas, sendo os mais capitalizados os que mais acessam. Além disso, entre 80% e 90% dos recursos acabam investidos em commodities, como milho e soja ( BASSO et al, 2017).

Portanto, em termos gerais, o que se observa em paralelo a esse processo de união das cooperativas Cresol são mudanças no número de tomadores e no volume de aplicação do crédito rural. Nos últimos anos, na maioria das cooperativas de crédito esses números também vêm se modificando rapidamente em termos relativos, fruto da redução da população rural e do aumento da inserção das cooperativas no público urbano. Apesar do número e do valor dos contratos estarem subindo nos últimos anos na Cooperativa, um levantamento realizado em dezembro de 2018 constatou-se que somente 43% do quadro social (10.073 cooperados) da Cresol Vale Europeu acessou o crédito de forma geral naquele ano, o que significa que atualmente um percentual ainda menor de associados faz uso da carteira de crédito rural.

Diante desse quadro de transformações no volume de uso do crédito rural, que podem estar refletindo alterações profundas da dinâmica do meio rural da região e do país, a Cresol Vale Europeu é particularmente importante para o Sistema Cresol devido a uma série de características, que a torna uma cooperativa um tanto diferente das demais que conformaram a origem do Sistema Cresol, marcado por atuação em regiões tipicamente rurais e relativamente longe dos grandes aglomerados urbanos.

Entre os 23 agricultores entrevistados que responderam esse questionamento, 17 afirmaram nunca ter enfrentado problema para acessar alguma linha de financiamento do Pronaf ou do crédito rural, em bancos ou em cooperativas de crédito. No entanto, quando consideramos o acesso ao crédito rural somente pelas cooperativas de crédito, o número dos que afirmaram nunca ter enfrentado problema em relação à essas instituições sobe para 20.

Nesta direção, a percepção dos agricultores tomadores de crédito rural contribui na compreensão das mudanças ocorridas:

O primeiro Pronaf veio do Banco do Brasil [dinheiro], mas pela Cresol. [...] nunca tive problemas, nunca atrasei pagamento, mas sempre que precisei me atenderam muito bem (AGRICULTOR FAMILIAR E AGENTE COMUNITÁRIO - ENTREVISTADO 23). Para financiamento do Pronaf e Pronamp [linha de crédito destinada ao médio agricultor] nunca tive problema, foi bem tranquilo. No começo tirei Pronaf pelo Banco do Brasil e depois que trouxe pra Cooperativa, aí ficou muito fácil (AGRICULTOR FAMILIAR - ENTREVISTADO 17).

Antes da Cresol, no Banco do Brasil era mais difícil de acessar, depois que a Cresol se instalou aqui no município, ficou mais fácil. Os bancos não se interessavam muito pelos pequenos agricultores, estavam mais focados nos grandes (AGRICULTOR FAMILIAR - ENTREVISTADO 1).

Com o surgimento da Cresol, os problemas no acesso ao crédito foram reduzidos significativamente. Os gestores ressaltam que um diálogo positivo entre a Cooperativa, a Central e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) – que repassa recursos de crédito às cooperativas – foi “construído ao longo do tempo”. Na visão de um entrevistado essa evolução também se refletiu no atendimento e na contratação do crédito. Entender bem a demanda do agricultor e disponibilizar um serviço financeiro adequado, torna a política pública do crédito eficiente e eficaz:

O acesso da cooperativa ao BNDES é muito bom, muito rápido, te liberam operação de custeio em dois, três dias. Em uma hora a gente gera o contrato e já está pronto para pegar assinatura. Isso foi construído ao longo do tempo, não era assim, demorava 90 dias para sair uma operação quando comecei a trabalhar [...] foi um avanço muito grande (GESTOR DA COOPERATIVA - ENTREVISTADO 25).

Para aumentar a oferta de crédito, a Cresol também estabelece convênios com bancos comerciais. O problema é que a resolução que autoriza o uso de recursos advindos da exigibilidade bancária 17, só serve para contratos de custeio. E quando acaba os recursos para investimento, por exemplo na modalidade Inovagro, não têm onde aplicar. Assim, os contratos de investimento, que tem subsídio do Tesouro Nacional, acabam prejudicados.

Segundo um gestor entrevistado, a Cresol possui muitas fontes de financiamentos: BNDES, Tesouro Nacional e bancos comerciais. Trabalham ainda com recursos próprios, que aplicam no crédito rural de custeio. Já estão autorizados a trabalhar com a poupança rural para crédito de custeio, mas que vai servir para investimento também. O mesmo gestor analisa outro tipo de crédito utilizado, os Depósitos Interfinanceiros Vinculados ao Crédito Rural (DIR), mas reclama da caução, garantia cobrada pelos bancos, um cenário que poderia mudar se houvesse intervenção do Banco Central. Porém, reconhece que seria uma ingerência na gestão do banco, ao mesmo tempo em que o repassador tem que se precaver, afinal uma “garantia é uma questão comercial”.

Existe o crédito e o governo divulga, pensando no que foi o ano passado projetando um percentual para o próximo ano, que vai ter tantos bilhões, que seria da exigibilidade bancária disponível. Essa informação que você tem, só que para mim tomar esse crédito e chegar até o produtor, a caminhada é longa. Aí é lucro, banco quer lucro, tá melhorando, consegui operar a DIR esse ano com reciprocidade zero (GESTOR DA CENTRAL BASER - ENTREVISTADO 30).

Quanto aos procedimentos para obtenção do crédito, dos 20 agricultores que responderam essa questão, 19 mencionaram que se trata de um processo simples, que parte da ideia, do projeto que eles têm para melhoria da sua produção, ou do estabelecimento.

Hoje é simples né? [Para acessar o crédito] Tem que apresentar documento da terra, tem a DAP 9, que tem que ter como produtor rural. Fazendo o projeto e vai embora (AGRICULTOR FAMILIAR - ENTREVISTADO 3).

Para conseguir, primeira coisa se não tiver terra própria, vai precisar de uma matrícula. Tem que ter uma área ou uma carta de arrendamento, com croqui indicando o que vai produzir ali [cultura], onde vai ser utilizado o financiamento. Outra parte é documentos pessoais que vai precisar, aí procura a cooperativa e organiza o projeto (AGRICULTOR FAMILIAR - ENTREVISTADO 17).

Vem na cooperativa, faz a solicitação para a funcionária, faz o levantamento do que precisa da terra, análise [de solo], essas coisas e deixa a documentação. Daí o técnico vai lá, avalia a cultura, faz o projeto pra que será utilizado o crédito (AGRICULTOR FAMILIAR - ENTREVISTADO 12).

Quanto às garantias solicitadas pela Cooperativa, dos 21 agricultores que responderam essa questão, 8 citaram ser necessário somente apresentar avalistas. Já 7 cooperados mencionaram a necessidade de avalistas junto com alguma garantia real (hipoteca ou alienação de bens/imóvel). Na sequência estão aqueles que afirmaram não precisar de garantias (4 agricultores) e apenas 2 citaram somente a garantia real.

De acordo com os gestores da Cresol, o relacionamento que o cooperado tem com a cooperativa é fator chave, também, na questão das garantias a serem exigidas. Assim, consideram que os critérios e garantias são bem negociáveis e, dependem: da renda do agricultor, do patrimônio dele, do valor solicitado, da experiência do cooperado com aquela cultura ou atividade que está solicitando recursos, conforme relato de um gestor:

O relacionamento [...] já mata uma série de outras dúvidas. Se o gerente, ou alguém da cooperativa conhece a atividade que o agricultor desenvolve, não tem porque ficar burocratizando. É claro que, por uma questão legal, aí é muito pautando pelo que os processos normativos dizem, que é preciso se cercar de garantias em determinados momentos. Mas hoje para ter uma ideia, tendo relacionamento, têm agricultores que pegam crédito de Pronaf Custeio sem necessariamente trazer o avalista, só ele. E aí tá muito aberto, cada região, cada gerente, cada superintendente local pode reunir com sua equipe e analisar. Aqui, eu cooperativa quero crédito assim: acima de R$ 60 mil quero garantia real, essa é uma questão local, de conhecimento, de prática (GESTOR DA CENTRAL BASER - ENTREVISTADO 30).

Observa-se que a questão do relacionamento, combinada com o uso dos recursos próprios, dá maior autonomia para cada cooperativa decidir sobre detalhes relacionados à exigência da garantia. Além do relacionamento, o mesmo gestor aponta que um projeto bem elaborado e o conhecimento técnico do cooperado também ajudam na análise do pedido de crédito.

Nota-se que as cooperativas de crédito têm sua base de atuação na oferta de serviços financeiros e na dinamização dos territórios e das economias locais, com participação social. Para tanto, a proposta de uma cooperativa é não “amarrar” o tomador de crédito exclusivamente ao reembolso do empréstimo, mas garantir que esse cooperado esteja incluído em uma rede de vínculos comunitários. É assim que as cooperativas vão se inserindo de forma inovadora na vida social das comunidades em que atuam. De um lado, a atuação das cooperativas, ao criar uma estrutura de incentivos para a concessão de linhas de crédito que utilizam as relações de confiança (como o aval solidário) pode estimular o revigoramento dos laços comunitários. De outro, os dirigentes das cooperativas, à medida que animam uma reflexão entre os agricultores sobre a aplicação do crédito para extrapolar a dimensão da propriedade individual e inseri-lo em um processo mais amplo de desenvolvimento comunitário, podem valorizar os atributos locais desse processo ( SCHRÖDER, 2004).

As finanças de proximidade numa cooperativa de crédito prevê ainda um agrupamento de operações financeiras de crédito (não subsidiado), poupança, depósitos bancários e seguros voltados àqueles que não conseguiam estes serviços com os bancos comerciais. É a partir da oferta desses serviços que o Sistema Cresol retira os ganhos que permitem sua reprodução ( ABRAMOVAY et al., 2010).

Outro gestor da Vale Europeu reforça a ideia de autonomia da Cooperativa poder decidir o financiamento de valores de até R$ 20 mil sem garantia. Afirma que a Organização também precisa obedecer a normatização do crédito rural, uma vez que existem riscos e insegurança nas operações financeiras e o próprio Banco Central tem faixas para classificação do risco. Assim, a Cooperativa precisa ter um instrumento que constranja o cooperado a quitar, para não perder o investimento. A ideia é funcionar como uma proteção para que o crédito realmente volte para a Cooperativa:

Hoje, os critérios de garantia vem pelo MCR [Manual do Crédito Rural], o próprio Banco Central, próprio modelo do Pronaf traz que ele tem que trazer as garantias. Mas a Cresol hoje, [...] aqui nessa cooperativa, nós emprestamos até R$ 20 mil sem garantia nenhuma, porque a gente conhece o agricultor, ele paga até 20 mil. Daí pra cima, o Sistema exige que tenha uma garantia, porque se você emprestar R$ 20 mil pra 200 pessoas dá R$ 4 milhões (GESTOR DA COOPERATIVA - ENTREVISTADO 29).

Ainda sobre garantias, um técnico de Ater acredita serem adequadas as exigências, por se tratar de um recurso subsidiado pelo governo. Outro gestor complementa que as operações de crédito tem que ter uma avaliação individualizada e que não dificulte o acesso do cooperado.

Quanto ao cumprimento das ações (normas, regulamentos, processos) exigidas pelos bancos oficiais (Banco Central e BNDES), os gestores afirmam que é importante fazer contatos extras com o cooperado, pois isso é um diferencial: “Tem que marcar agenda fora, com os sócios, é importante para não ser só um banco, ficar só na burocracia da agência, que toma muito tempo” (GESTOR DA COOPERATIVA - ENTREVISTADO 27). Ainda existem críticas direcionadas à burocracia excessiva do Banco Central, do BNDES e dos cartórios:

A única coisa que questiono no MCR [Manual do Crédito Rural] é que ele pede muito papel. Hoje, pra liberar um investimento de R$ 100 mil pelo BNDES é um calhamaço de assinaturas, que é uma loucura. E os cartórios exigem isso também, acho que podia ser mais simples, tu assina, o cartório tem que saber que isso aqui [contrato] se não pagou tem que ser executado, não precisa ter 100 folhas (GESTOR DA COOPERATIVA - ENTREVISTADO 29).

Outro gestor discorda dos colegas e qualifica o Banco Central como um apoiador da Cresol, que auxilia e orienta a Cooperativa a ir por bons caminhos: “O Banco Central é um grande apoiador da cooperativa na verdade. Quando a gente está tomando um rumo que não é o melhor, eles vêm e nos dão um puxão de orelha. Estão sempre nos orientando para seguir um caminho correto” (GESTOR DA COOPERATIVA - ENTREVISTADO 25).

Pelos relatos dos gestores, parece que a relação com o BNDES e com o Banco Central já foi pior, mas evoluiu a partir dos resultados que a Cresol conseguiu atingir.

No entanto, o trecho transcrito abaixo comenta sobre alguns pontos que poderiam melhorar:

As cooperativas são muito precavidas ainda na questão do check list de documentos, talvez por ter uma carteira não tão pujante que nem o Banco do Brasil, a gente acaba pecando muitas vezes pelo excesso. E às vezes, por querer desburocratizar, você acaba burocratizando, por questão de ser melhor pedir isso daqui, do que depois vir uma fiscalização e ser penalizado por não ter isso (GESTOR DA CENTRAL BASER - ENTREVISTADO 30).

Para alcançarem legitimidade junto a sua base social e manterem-se ativas no sistema econômico, as cooperativas de crédito necessitam constantemente qualificar seus sistemas de governança. Dagnese (2016) aponta que uma estrutura de governança ou arranjo institucional de uma cooperativa, é caracterizada por uma combinação de pressupostos organizacionais. São regras internas de funcionamento, formais ou informais, de metodologias de mobilização e de distribuição dos recursos financeiros e de variáveis de cunho organizativo, social e econômico, que orientam as operações cotidianas da organização, as interações entre seus membros, as relações com seu público e com outras instituições. Ou seja, a boa governança depende também dos tipos de laços sociais construídos pela organização

Laços sociais no uso do crédito rural na Cresol Vale Europeu

Para entender melhor como o crédito rural se insere nessa diversidade de atores, de laços sociais, de sistemas produtivos e arranjos socioeconômicos que convivem no espaço de uma organização cooperativa e solidária, a pesquisa recorre aos estudos da Nova Sociologia Econômica, visto que a NSE enxerga as relações econômicas como construções sociais. Isso pressupõe que a análise dos fenômenos econômicos relacionados ao uso do crédito precisam levar em conta as relações sociais presentes em torno desse processo.

Durante a fase de campo foi observada uma situação, relacionada ao tipo de atendimento prestado pela Cooperativa aos agricultores, denominada na pesquisa como “Jeito Cresol”. Em muitos relatos foram mencionadas situações do dia-dia, como nesse exemplo: “quando está faltando um documento, está faltando alguma questão, o pessoal da Cooperativa [colaboradores] vai atrás, quer resolver e às vezes se utiliza das redes sociais (Whatsapp) para facilitar a comunicação, algo que um banco não faria”. Tem o desejo de querer contribuir, ver desenrolar, como que um compromisso com o agricultor, uma marca, um diferencial com relação à outras organizações financeiras. Isso se traduz parcialmente na estratégia da Cresol, que nas palavras de um gestor, deseja: “oferecer tecnologia e atender com simplicidade”, talvez reconfigurando a noção de “finanças de proximidade” para o mundo atual, em que imperam as conexões digitais:

Oferecer tecnologia e atender com simplicidade, uma coisa não exclui a outra. Quando a gente fala assim: o Sistema Cresol, nós, somos referências no rural, mas o que é ser referência? Só fazer ágil? Só atender rápido? Não é, mas a gente avalia assim, que é um conjunto de coisas, mas principalmente é você estar perto, com o diretor, senão, com um técnico que é parceiro, se não, é com as empresas também, são os atores que envolvem o crédito nos municípios. É você estar próximo da Secretaria da Agricultura, estar próximo do padre da Paróquia. Porque eles estão em contato também com os agricultores, então você faz a diferença por aí, você vira referência justamente por essa relação de proximidade (GESTOR DA CENTRAL BASER - ENTREVISTADO 30).

A relação de proximidade pode se dar diferentes formas. Como na situação descrita por uma nova cooperada, a qual quis acessar um crédito e por isso recebeu a visita do gerente da Cooperativa, dando apoio para o desenvolvimento da atividade e do financiamento, fato que lhe causou uma grata surpresa.

Achei bem legal que eles vieram aqui, o gerente da Cresol esteve aqui, o do Banco do Brasil nem sabe que eu existo. O gerente, veio ver e porque, quando a gente começou com a produção, a gente começou pequeno, com a nossa renda, mas a gente precisava ampliar. Íamos fazer 2 financiamentos (...) Então ele veio aqui, ver o que nós pretendíamos fazer e em cima disso nos deu todo o apoio pra gente seguir em frente (AGRICULTORA FAMILIAR - ENTREVISTADA 16).

A disponibilização de um produto financeiro apropriado às necessidades dos usuários, contribui com o sucesso da atividade e diminui os riscos do crédito. Assim, um planejamento conduzido pela demanda pretende reconhecer e desenvolver sistemas de governança com objetivo de criar laços sociais entre as instituições financeiras e seus beneficiários ( MAGALHÃES, 2004). A finalidade é buscar estruturar um modelo organizacional que na literatura internacional é denominado de “instituições intermediárias: organizações que unam a capacidade gerencial desenvolvida na experiência bancária com a construção de laços sociais que reforcem a confiança e a cooperação, típicos do mercado financeiro informal” ( GENTIL e HUGON, 1996 in MAGALHÃES, 2004 p. 218).

Os caminhos da pesquisa, conectando exemplos empíricos com a teoria e fazendo ligações entre os conceitos chega agora à reflexão sobre o papel dos laços sociais, no fortalecimento desse tecido econômico e social cooperativo. As cooperativas de crédito fundamentam seus sistemas de governança em mecanismos de estímulo, caracterizados pelo que Mark Granovetter (1991) denomina de “força dos laços fracos”. O que possibilita à essas organizações a ampliação de horizontes, pelos quais a aprendizagem e a inovação orientam o processo e produzem comportamentos muito mais edificantes com relação aos processos localizados de desenvolvimento ( ABRAMOVAY et al., 2010). Nesse sentido, uma das principais atividades que a cooperativa desenvolve como agente de desenvolvimento é conectar o cooperado agricultor familiar às políticas públicas do governo federal de forma ativa.

Retomando a ideia-força: “oferecer tecnologia e atender com simplicidade”, também tem grande impacto em municípios pequenos, no trabalho com um público que é preterido pelos grandes bancos e, de certa forma, pelas redes digitais de informação. Em muitos municípios pequenos, impera outra lógica nas relações sociais, pois, diferentemente dos grandes centros urbanos, as pessoas se conhecem mais, têm círculos de amizade próximos, ou possuem relações de parentesco. Os laços fortes, verificados junto à família, são importantes para o desenvolvimento da confiança mútua, um elemento que pode atuar como propulsor da cooperação. Assim, outro conceito básico do cooperativismo, a confiança, pode ser conectado a essa trama de laços, pois “toda relação de confiança apoia-se na proximidade” ( LANCELIN, 1996 p. 20).

As cooperativas dispõem de sistemas internos de governança e reagem a estímulos que as obrigam, de forma constante, a unir os laços fortes de que se originam: os conhecimentos locais, a confiança decorrente de experiências comuns, o sentimento de pertencer à mesma trajetória histórica, à laços fracos dos quais depende sua existência e que se materializam no permanente contato com técnicos do Banco Central e de outras organizações, na necessidade de fechar as contas, lançar novos produtos financeiros e aprimorar, constantemente, seus sistemas de avaliação, a partir do compartilhamento de experiências externas. A consequência é que o círculo de relações sociais dos dirigentes cooperativistas é amplo e diversificado e um grande incentivo para que participem de instâncias locais de planejamento territorial ( ABRAMOVAY et al., 2010).

Esse novo cenário de expansão da Cresol gera uma reflexão, em torno de uma espécie de paradoxo que a Cooperativa enfrenta, entre o “jeito Cresol”, fundamentado na relação de proximidade versus os imperativos do crescimento econômico em que impera o interesse, às vezes, impessoal e competitivo. Isso resgata as reflexões dos cooperados na época da constituição da Vale Europeu, que aconteceu em 2018: “A Cooperativa vai crescer e como vai ficar o atendimento aos pequenos? Surgem então as questões, como: até que ponto o desenvolvimento do cooperado e o investimento nas soluções tecnológicas podem se configurar num processo de ruptura, de afastamento ou de abandono da questão da proximidade? Antes, o cooperado agricultor familiar que não tinha acesso ao crédito teve na Cresol a ajuda que necessitava para se desenvolver economicamente. E, com essa ajuda – certamente por outros motivos também – muitos são agora mais bem sucedidos em termos de renda familiar, outros se tornaram um “empresário rural”. A racionalidade econômica ( Homos economicus) agora dominante neste agricultor, deixará espaço para a proximidade e o relacionamento baseado no senso da solidariedade e cooperação?

Evidentemente que não se trata de um determinismo, uma vez que a cultura e a economia são dinâmicas, a própria existência da agricultura familiar comprova isso, sempre se adaptando aos contextos políticos e econômicos históricos. Nesse sentido, o diferencial da Cresol com relação ao relacionamento com o cooperado e a manutenção de um dos princípios do cooperativismo de crédito solidário vai perdurar? No depoimento abaixo, um gestor fala do retorno e do reconhecimento que os cooperados muitas vezes valorizam esse trabalho de proximidade: “Poxa, vocês estiveram aqui antes da liberação, depois, me atenderam na questão das minhas dúvidas, o técnico está aqui de modo muito mais efetivo quando eu fazia no Banco do Brasil”, mas também pondera:

Uma preocupação que chegou até nós, quando a gente criou o projeto da Vale Europeu, por exemplo, foi esse contexto, perguntas para mim, pra todos envolvidos como presidentes: Vai ficar gigante essa cooperativa, vocês ainda vão conseguir fazer esse trabalho de estar próximo à propriedade, de acompanhar os créditos, as liberações, enfim o processo? O nosso sócio já tem essa cultura imbuída nele, que nos cobra para isso (GESTOR DA COOPERATIVA - ENTREVISTADO 27).

Um ponto que chamou atenção nesse aspecto, ocorreu durante a fase de campo da pesquisa, quando um cooperado, recém-ingresso na Cooperativa – agricultor “pronampiano” em transição para “grande produtor” – ao ser perguntado sobre os aspectos que fazem com que ele se mantenha cooperado, prontamente respondeu: “falta de capital de giro”. Sem mesmo dar tempo para que lhe desse as opções disponíveis de resposta. Isso de certa forma evidenciou a falta de compromisso do cooperado com os ideais do cooperativismo, ou como denominou um gestor da Cresol: o “cooperativismo romântico”. Portanto, apesar de ser saudável que venham novos sócios, a entrada desse tipo de público que não se identifique com o cooperativismo é um ponto a ser acompanhado pelos gestores da Cooperativa, de forma a não deixar que o relacionamento com o cooperado agricultor familiar seja prejudicado pela questão da racionalidade econômica de alguns “agricultores empresários”.

Esse parece ser um exemplo de algo ainda pouco signifi- cativo na Vale Europeu, mas são sinais que precisam ser observados em estudos futuros.

O trecho abaixo coloca a questão da proximidade, exemplificando as facilidades na contratação do crédito, do atendimento e o papel dos técnicos e das visitas para estreitar os laços com os agricultores e finaliza enfatizando o crescimento das cooperativas e as “ramificações” que estão se desenvolvendo:

Eles tentam facilitar ao máximo, tem uma estrutura menor, cooperativa é mais concentrado, já os bancos tem um milhão de outras coisas/atendimentos, a cooperativa é mais humanizada, para o banco você é só um número. Outra coisa é que as cooperativas têm colocado pessoas que fazem visitas ao agricultor, pra ver como é que está e isso facilita bastante essa proximidade. Acredito que essas cooperativas, não é que vão esquecer os grandes, mas estão também focados nesses pequenos agricultores, que por um motivo ou outro não estavam conseguindo acessar nos bancos maiores. As cooperativas tem um potencial enorme pra crescer, tanto é que a gente vê que estão abrindo várias agências e estão ramificando, fazendo ramificações e isso é bom, mais pessoas que tem acesso ao crédito (TÉCNICO DE ATER -ENTREVISTADO 33).

A continuidade de uma cooperativa de crédito solidária não depende unicamente da qualidade de suas relações com seu quadro social, pois é bastante regulada por padrões de funcionamento estabelecidos por instituições externas. Ademais, é subordinada ao ambiente institucional e pelas estruturas de governança que orientam as transações, ligados diretamente à sua capacidade econômica e financeira ( FREITAS e FREITAS, 2013). Apesar dos laços fortes - da proximidade, do relacionamento – serem fundamentais, o sistema de governança e os incentivos a que se submetem afastam-nas, obrigatoriamente, do ambiente estritamente local e as colocam em contato com realidades dos quais seus integrantes, agricultores familiares, não faziam parte. Dentre estes, o controle do Banco Central é a base de um processo permanente de avaliação e auto avaliação, da procura de métodos mais eficientes na gestão e de sustentabilidade financeira nas transações. A assimilação de uma lógica de funcionamento que vai além dos preceitos da relação local constitui um fator determinante de abertura e que possibilita a estas organizações participarem de instâncias de debate acerca dos problemas regionais, em que buscam representar o posicionamento de suas bases, os agricultores familiares, numa disputa de espaços com outros segmentos sociais ( ABRAMOVAY et al., 2010).

A cooperativa de crédito é, efetivamente, uma organização econômica que além disponibilizar crédito para fins produtivos, pode provocar transformações significativas nos territórios e na vida dos agricultores. Para tanto é necessário que esse processo envolva um conjunto de organizações e entidades que tem compromisso e relação com o público que vive em seus territórios de atuação ( RISSON, 2010). Ou seja, a participação dos atores locais é base fundamental em processos de desenvolvimento territorial sustentável ( CAZELLA, 2006).

Considerações finais

Este trabalho buscou estudar o crédito rural acessado pelos agricultores cooperados da Cooperativa de Crédito Solidário Cresol Vale Europeu, avaliando suas implicações para a governança das políticas de financiamento da Cooperativa. O levantamento do uso do crédito rural na Cooperativa permitiu conhecer a política pública do Pronaf, a mais importante para a agricultura familiar no Brasil, pela ótica do gestor local e pelo usuário. Essa política, a despeito de vários problemas, possibilita que muitos agricultores familiares prossigam no meio rural, produzindo alimentos e vivendo com qualidade. A oportunidade de aprofundar em recortes as histórias de vida dos agricultores e ver como elas se conectam, os desejos, as aspirações, a batalha para se manter na agricultura, gera outra faceta do papel da política pública. Representa igualmente, uma grande experiência no âmbito do desenvolvimento rural, em um estado de forte presença da agricultura familiar.

De forma geral, foi possível constatar que a política de crédito rural atende as expectativas do quadro social, sobretudo os agricultores familiares da Cooperativa. Todos os depoimentos corroboram praticamente em unanimidade, com respostas de avaliação positiva nessa direção.

Do ponto de vista da governança da Cresol Vale Europeu com relação ao crédito rural, foi possível constatar que a Cooperativa conseguiu organizar um sólido processo, com a ênfase no relacionamento com o cooperado, que ainda orienta boa parte de sua gestão interna e se mantém como um eixo transversal à todas as suas frentes de atuação. O processo garante legitimidade, respaldo e pertencimento da Cooperativa frente aos cooperados. Esse relacionamento, que remonta a um processo de luta dos agricultores contra a exclusão financeira, materializado pela criação da cooperativa de crédito Cresol, ainda hoje é um exemplo de sucesso do cooperativismo em termos internacionais. Por meio da estratégia “oferecer tecnologia e atender com simplicidade” a Cooperativa Vale Europeu está conseguindo atualizar e revigorar a estratégia de relacionamento com o cooperado, em face ao processo de evolução tecnológica por que o mundo está passando. O desafio que está colocado é como dar continuidade a esse relacionamento com as novas gerações, pois a população do campo está envelhecendo rapidamente e com isso, os sócios fundadores também. Então, manter esse espírito do cooperativismo vivo entre os cooperados é uma questão que exige aprimoramento das estratégias de governança atrelada, em que a educação cooperativista pode contribuir sobremaneira.

Pelo que foi possível constatar, a recente união das cinco cooperativas não teve implicações significativas na governança da Cresol e tão menos afetou negativamente o acesso ao crédito rural. Pelo contrário, os depoimentos e o desempenho do crédito rural na Cooperativa nos últimos anos reforçam esse quadro favorável, até mesmo com a possibilidade de aumento da capacidade de atendimento aos agricultores em termos de número de contratos e montante financiado, face a ampliação da capacidade de endividamento gerada pelo aumento do patrimônio da organização e a mobilização de recursos para regiões demandantes de mais crédito, oriundas de outras nas quais as captações já superam as necessidades. Evidentemente que alguns processos internos podem ter sido alterados, mas nada que represente risco à uma governança já implantada e que vinha funcionando a contento. Todavia, por ter se passado pouco tempo desde a união das cooperativas singulares, será necessário acompanhar esse processo no médio e longo prazo. Além de averiguar, quais resultados e impactos que esse processo irá provocar no desenvolvimento da agricultura e dos territórios rurais em que a Cooperativa está presente.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
ABRAMOVAY, R. (Org.) 2004. Laços financeiros na luta contra a pobreza. São Paulo: Annablume; Fapesp; ADS-CUT; Sebrae, 246 p.
_____________, R. 2009. Anticapitalismo e inserção social dos mercados. Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, 21 (1), p. 65-87.
ABRAMOVAY, R.; MAGALHÃES, R.; SCHRÖDER, M. 2010. Representatividade e inovação na governança dos processos participativos: o caso das organizações brasileiras de agricultores familiares. Sociologias, 12 (24): p. 268-306.
BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2008. Governança cooperativa: diretrizes para boas práticas de governança em cooperativas de crédito. Brasília. Disponível em: http://www.bcb.gov.br/pre/microFinancas/coopcar/pdf/DiretrizesVersaoCompleta.pdf>. Acesso em: 12 de out. 2020.
BASSO, D.; SILVA, N. L. S. da; ZONIN, W. J.; PEREIRA, V. H. 2017. Agricultura familiar, cooperativismo de crédito solidário e crédito rural: um processo interinstitucional objetivando o desenvolvimento rural. In: ZAMBOM, M. A. et al (Org.). Ética do cuidado, legislação e tecnologia na agropecuária. Marechal Cândido Rondon, Unioeste. p. 54-73.
BELIK, W. 2014. O financiamento da agropecuária brasileira no período recente. In: BRASIL. Governo Federal. Presente e futuro do desenvolvimento brasileiro (Ed.). Brasília: Ipea, p. 329-374.
BITTENCOURT, G. A. 2010. Uma análise do cenário financeiro atual e as microfinanças das cooperativas de crédito solidário. In: VOLLES, A. et al (Org.). Ensaios sobre o cooperativismo solidário. Londrina: Midiograf. p. 459-464.
BÚRIGO, F. L. 2007. Cooperativa de crédito rural: agente de desenvolvimento local ou banco comercial de pequeno porte? Chapecó: Argos. 135p.
_______, F. L. 2010. Finanças e solidariedade: cooperativismo de crédito rural solidário no Brasil. Chapecó, Argos. 454 p.
BÚRIGO, F. L.; WESZ JUNIOR, V. J.; CAPELLESSO, A. J.; CAZELLA; A. A. O Sistema Nacional de Crédito Rural no Brasil: principais continuidades e descontinuidades no período 2003-2014, No prelo.
CAILLE, A. 1998. Nem holismo nem individualismo metodológicos: Marcel Mauss e o paradigma da dádiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 13 (38), p. 5-38. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69091998000300001. Acesso em 30 abr 2020.
CANÇADO, A. C.; SOUZA, M. de F. A.; PEREIRA, J. R. 2014. Os princípios cooperativistas e a identidade do movimento cooperativista em xeque. Revista Gestão e Organizações Cooperativas - RGC, 01 (2), p. 63–72. DOI: https://doi.org/10.5902/2359043216279.
CARNEIRO, M. J.; PALM, J. L.; ALVARENGA, A. C. 2017. Informando política pública: uma revisão bibliográfica sobre Pronaf e qualidade de vida (2006-2013). In: DELGADO, G. C.; BERGAMASCO, S. M. P. P. (orgs.). Agricultura familiar brasileira: desafios e perspectivas de futuro. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário. 108-130 p.
Cazella, A. A. 2006. Contribuições metodológicas da sócio-antropologia para o desenvolvimento territorial sustentável. Eisforia, 4 (4), p. 225-247.
CHAYANOV, A. 2017. A teoria das cooperativas camponesas. Porto Alegre: Universidade/UFRGS. 296 p.
COLONIESE, C; LOURENCI, A.; RODRIGUES, L. M. da S. 2010. Sistema Cresol: Uma família que cresce com você. In: VOLLES, A. et al (Org.). Ensaios sobre o cooperativismo solidário. Londrina: Midiograf, p. 12-18.
CRESOL, 2019. Cooperativa de crédito rural com interação solidária. Relatório de atividades e balanço social 2018. Cresol Vale Europeu.
DAGNESE, F. 2016. Ambiente institucional e governança em cooperativas de crédito: estudo de caso do território Meio Oeste Contestado. Florianópolis-SC. Dissertação (Mestrado) –Universidade Federal de Santa Catarina. 199 p.
FREITAS, A. F. de; FREITAS, A. F. de. 2013. Análise institucional de mudanças organizacionais em um sistema cooperativo de crédito solidário em Minas Gerais. Rev. Adm. Pública vol. 47(4): p. 999-1019.
GENTIL, D.; HUGON, P. 1996. Au-delà du dualisme financier. In: Tiers Monde. Vol. 37 (n°145), pp. 7-11. DOI : https://doi.org/10.3406/tiers.1996.5024.
GRANOVETTER, M. 1991. Economic institution as social construction: a framework for analysis. In: Conference on economics of conventions, Paris. p.1-21.
_______________, M. 2007. Ação econômica e estrutura social: o problema da imersão. RAE electron., São Paulo, v. 6 (n°1). Acesso: 23/04/2020. DOI. https://doi.org/10.1590/S1676-56482007000100006
LANCELIN, M. 1996. Elementos de reflexão para a Construção de um Sistema de Crédito Cooperativo. In: CAZELLA, A. A.; BÚRIGO, F. L. (Org). Crédito rural cooperativo. Perspectivas e desafios. Florianópolis: Cepagro, Sicredi – SC, CCA/UFSC.
MAGALHÃES, R. S. 2004. Planejamento de Serviços Financeiros para Famílias de Baixa Renda. In: ABRAMOVAY, R. (Org.). Laços financeiros na luta contra a pobreza. São Paulo: Annablume; Fapesp; ADS-CUT; Sebrae, 217-246 p.
MINAYO, M. C. de S. 2012. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciência e saúde coletiva [online], vol.17, n.3, pp.621-626. Acessado em: 15/11/2020. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-81232012000300007
NICOLUZZI, A. L. 2015. Crédito Rural: uma análise da evolução de suas normas baseadas nas aplicações na Cresol Águas Mornas. Trabalho de conclusão do curso de Agronomia, Centro de Ciências Agrárias, Universidade Federal de Santa Catarina, 79 p.
PINHO, D. B. 2004. O coperativismo: da vertente pioneira à vertente solidária. São Paulo: Saraiva, 357 p.
QUIVY, R.; CAMPENHOUDT, L. V. 1988. Manual de investigação em ciências sociais. Lisboa: Gradiva, 142 p.
RAUD-MATTEDI, C. 2005. Análise crítica da Sociologia Econômica de Mark Granovetter: os limites de uma leitura do mercado em termos de redes e imbricação. Revista Política e Sociedade (n°6), p.59-82.
RISSON, C. 2010. Boas práticas cooperativas. In: MAGRI, C. A. et al (Org.). Cooperativismo de crédito solidário: Reflexões e boas práticas. Passo Fundo: Ifibe, p. 15-28.
ROCHA, M. C. 2020. A agricultura familiar e o uso do crédito rural: Uma análise a partir dos associados da cooperativa Cresol Vale Europeu. Florianópolis-SC. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Santa Catarina. 178 p.
ROSSI,G. B.; SERRALVO, F. A.; JOÃO, B. N. 2014. Análise de Conteúdo. Brazilian Journal of Marketing – BJM Revista Brasileira de Marketing –ReMark. Edição Especial –Vol. 13(n. 4.) p. 39-48. DOI: 10.5585/remark. v13i4.2701.
SCHRÖDER, M. 2004. As organizações financeiras da agricultura familiar e a importância dos vínculos sociais: o caso do Sistema Cresol, no Sul do Brasil. In: XXVIII ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, Caxambu - MG. Anais do XXVIII Encontro anual da ANPOCS. Disponível em: https://www.portal.anpocs.org/index.php/papers-28-encontro/st-5/st02-4/3901-monica-schoreder/file, acessado em 03/02/2020.
SWEDBERG, R.; GRANOVETTER, M. 1994. La sociologie économique. La revue du MAUSS semestrielle, n.3, p.115-140.
Notas
Notas
5 Embedded: Segundo tradução literal do termo: embutido, incrustado, imbricado, imerso, enraizado ou inserção ( Embeddedness). Raud-Mattedi (2005, p. 63) afirma que: “Granovetter toma emprestada essa noção de Karl Polanyi (1957), segundo a qual a economia está inserida em instituições econômicas e não-econômicas”.
6 A Nova Sociologia Econômica consolida-se como disciplina científica nos Estados Unidos e na Europa em meados dos anos 1980, a partir de um conjunto de autores. Em síntese, ela examina o mercado como estrutura social e não como um espaço de atuação de atores anônimos, impessoais, destinados ao relacionamento efêmero ( ABRAMOVAY, 2009).
7 Granovetter (1990), propõe dois tipos de imbricação (imersão): relacional e estrutural. A imbricação relacional se refere à relações mais próximas do indivíduo (família, amigos, etc), já a estrutural diz respeito às relações mais afastadas, às quais o indivíduo tem acesso por meio de seus laços fortes – laços mantidos com parentes próximos e amigos – e especialmente, fracos – laços mantidos com conhecidos – que o colocam em contato com ambientes sociais distintos ( RAUD-MATTEDI, 2005).
8 Essa inovação foi a forma que a Cresol encontrou para montar uma organização de apoio e acompanhamento das singulares sem ter que constituir uma cooperativa central de crédito. Para ser autorizada pelo Banco Central, uma central de crédito precisa demonstrar competências que o Sistema não possuía na sua origem. Uma Central de crédito também levaria possivelmente a uma centralização de recursos e de poder, algo que as cooperativas singulares e seus associados não desejavam. Anos depois, por recomendação do Banco Central e muito debate interno, a Baser foi transformada numa central de crédito. Na sequencia, outras centrais também foram criadas, aumentando a verticalização do Sistema.
9 Os autores deste trabalho integram o Laboratório de Estudos da Multifuncionalidade Agrícola e do Território, da Universidade Federal de Santa Catarina (Lemate/UFSC). O Lemate vem executando um projeto aprovado na chamada pública CNPq/SESCOOP 007/2018. Este projeto tem como objetivo analisar os programas educacionais da Cresol Vale Europeu. Os primeiros resultados deste projeto ajudaram a subsidiar a elaboração deste artigo.
10 A literatura especializada trata do tema de forma conjunta, ou seja, como fusões/incorporações. O que ocorreu na Cresol Vale Europeu foi, juridicamente, uma incorporação, porém, ao longo da pesquisa descobriu-se que para facilitar o entendimento entre os cooperados o processo de incorporação foi tratado publicamente como sendo uma união ou fusão. Neste artigo, deu-se preferência ao uso do termo união para reportar o que ocorreu na Vale Europeu, pois, para os autores, ele representa melhor o desenrolar do processo em termos sociopolíticos.
11 As entrevistas foram realizadas em dezembro 2019 nas agências/sedes da Cooperativa e nos estabelecimentos dos agricultores (as) cooperados (as). Dados da pesquisa de campo serviram também para a elaboração da dissertação de um dos autores deste artigo (ver Rocha, 2020).
12 Os 09 municípios foram: Águas Mornas, Botuverá, Ituporanga, São João do Itaperiú, Schröeder, Aurora, Massaranduba, Santo Amaro da Imperatriz e São José.
13 Os agricultores participantes das entrevistas foram selecionados com apoio da Cooperativa a partir de informações socioeconômicas extraídas da carteira de crédito rural da Vale Europeu. A seleção procurou contemplar agricultores com diferentes perfis econômicos e produtivos.
14 Esses agentes atuaram no programa educativo da Cooperativa, denominado Programa Agentes. Desde 2019, o programa foi parcialmente substituído por outro, denominado Lideranças.
15 Anotações do autor na última assembleia do processo de união das cooperativas (Cresol Vale Europeu), realizada em Águas Mornas-SC, no dia 18 de outubro de 2018.
16 No final de 2018, documentos oficiais da Cresol Vale Europeu apresentavam os seguintes dados socieconômicos: 95 Municípios Atendidos; 32 Agências; 23.339 cooperados; 22.814 cooperados ativos; 9.401 aplicadores (depositantes); 10.073 tomadores de empréstimo. Em termos financeiros a Cooperativa detinha: R$ 101,4 milhões aplicados em crédito comercial; R$ 123,3 milhões aplicados em crédito rural (custeio e investimento); R$ 54,1 milhões de Patrimônio de Referência; R$ 220,9 milhões de Depósitos Totais; R$ 3,28 milhões de Resultado Financeiro e R$ 430 milhões de Recursos Administrados Totais ( CRESOL, 2019)
17 Aplicação de um percentual dos depósitos à vista, que os bancos arrecadam diariamente dos correntistas para aplicar no crédito rural.
Autor notes
1 Agradecemos ao CNPq pelo apoio financeiro ao projeto do qual resulta este artigo e também à CAPES pela bolsa do estudante de mestrado, bem como à Cooperativa Cresol Vale Europeu que contribuiu no levantamento de informações para realização da pesquisa.

marcos.catelli@gmail.comfabio.burigo@ufsc.brcristiano.desconsi@ufsc.br


Figura 1
Área de abrangência da Cresol Vale Europeu (2019).

Figure 1: Cresol Vale European coverage área (2019).

Fonte: Cresol Vale Europeu, adaptada pelos autores.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc