Resumo: O artigo se situa no cruzamento do debate sobre o papel dos movimentos na institucionalização de políticas públicas com os avanços da agenda brasileira sobre judicialização da política e das políticas públicas, sobretudo. Argumenta-se que a noção de autoridade prática (Abers e Keck 2016) joga dupla luz quer sobre as dinâmicas de correção de injustiças sofridas no contexto do crime-desastre da Samarco (Mariana, MG, 2015), quer sobre a ambivalência dos representantes tanto das Defensorias estaduais como, sobretudo, dos Ministérios Públicos estaduais e federal. No seu todo, o texto sugere que a observação de ambos, tanto dos Termos de Ajustamento de Conduta qua instrumento de política pública, bem como das coalizões interinstitucionais e socioestatais encarnadas em Grupos de Trabalho, é salutar, não só à agenda crítica do voluntarismo institucional, mas, sobretudo, às pesquisas sobre movimentos sociais, suas interações e efeitos sobre políticas públicas.
Palavras-chave: movimentos sociaismovimentos sociais,interaçõesinterações,políticas públicaspolíticas públicas,judicializaçãojudicialização.
Abstract: The article interects social movements research agenda and the Brazilian agenda on the judicialization of politics and public policies, above all. We argue that the concept of practical authority (Abers & Keck 2016) sheds light on both the dynamics of correcting injustices suffered in the context of Samarco’s crime-disaster (Mariana, MG, 2015), and on the ambivalence of institutional representatives. As a whole, the text asserts that the critique of institutional voluntarism is heuristically salutary to the research agenda on social movements’ their interactions and their effects on public policies.
Key words: social movements, public policy, judicialization, State/Society interactions.
Articles
Autoridade prática e ambivalência das instituições de justiça no crime-desastre da Barragem de Fundão 1
Practical authority and ambivalence of justice institutions in the Rio Doce mining disaster
Recepção: 20 Agosto 2020
Aprovação: 10 Dezembro 2020
Ao longo das duas últimas décadas, o debate sobre movimentos sociais no Brasil avançou e se complexificou de forma a ampliar seu alcance empírico ao mesmo tempo em que multiplicou seu arco heurístico. A análise dos então chamados movimentos urbanos (Boschi, 1988) desembocou, de fins dos 1990 em diante, numa miríade de agendas que, dentre outras tarefas, contestou a oposição participação versus representação, bem como mostrou os efeitos das interações de partes do Estado com movimentos e organizações da sociedade civil sobre as políticas públicas, incorporando, mais recentemente, as dinâmicas altamente conflituosas dos protestos nas análises. Como visto alhures ( Szwako et al., 2020 ), a produção bibliográfica nacional sobre movimentos não se desenvolveu descolada do debate internacional; foi, ao contrário, pródiga em estabelecer com os autores de ambas as escolas, tanto do processo político como do institucionalismo histórico, interlocução fértil e crítica, e fértil porque crítica (cf. inter alia, respectivamente, Abers et al., 2014; Gurza Lavalle et al., 2019).
No entanto, o interesse analítico desse leque de investigações passou por um bom tempo relativamente distante de uma parte nada desprezível do conjunto de organizações e instituições que também compõem o Estado, a saber: (distante) das instituições do sistema de justiça ( Sadek, 2010 [1999]) que, no Brasil, compreendem, além do Poder Judiciário, os Ministérios Públicos, defensorias públicas e Polícia Federal. Poucas análises, porém, encurtaram tal distância ao tomar como objeto de reflexão as relações dos movimentos sociais com magistrados e tribunais, trazendo, como veremos, pioneiras e valiosas contribuições (Maciel, 2011; Losekann, 2013; Losekann e Bissoli, 2017).
Inspirado por trabalhos como os dessas autoras e na esteira delas, este texto coloca as interações movimentos sociais-sistema de justiça no centro da análise. O caso em tela trata do protagonismo do Ministério Público e das Defensorias Públicas estaduais de Minas Gerais e do Espírito Santo 4 nas modificações ocorridas no ‘Termo de Ajustamento de Conduta – Governança’, instrumento ao redor do qual se deu parte da mobilização de organizações e movimentos sociais contra os efeitos decorrentes do crime-desastre da Samarco, ocorrido em novembro de 2015. De um ponto de vista mais amplo, temos como objetivo contribuir para o adensamento do diálogo e a aproximação entre dois campos de pesquisa que, apesar das exceções mencionadas, seguem não raro apartados: de um lado, o debate sobre movimentos sociais delineado grosso modo mais acima e, de outro, o debate sobre judicialização das políticas públicas (cf. Oliveira, 2019a).
Para tanto, o texto se divide em três partes, além desta introdução e das considerações metodológicas que a seguem. Reconstrói, primeiramente, a discussão desenvolvida sobre judicialização das políticas públicas entendida como fenômeno disparado, em nosso país, pela constitucionalização das políticas ( Arantes e Couto, 2010), e vertebrado pela ampliação das chances de acesso ao sistema de justiça 5 ( Oliveira, 2019b), e pelo convergente fortalecimento de instituições como os Ministérios Públicos, tanto Federal como os Estaduais, com destaque especial para suas dinâmicas de afirmação institucional (Arantes, 2015). Neste subitem, como aparte, reconstruímos também a lógica de análise que, desde a perspectiva da mobilização do direito, isto é, dos seus ‘usuários’ ( Mccan, 2010), atravessou os estudos sobre relações entre Poder Judiciário e atores da sociedade civil, em especial, aqueles de veia ambientalista. Esta dupla reconstrução, esperamos, pode contribuir para o alargamento da agenda sobre movimentos sociais-sistema de justiça, ao propor e deslocar as lentes de análise para casos situados além do Poder Judiciário, ou seja, interações que, a exemplo do crime-desastre da Samarco, se dão “por fora dos tribunais”.
Em seguida apresentamos e analisamos o protagonismo conquistado por parte dos representantes do Ministério Público, implicados nas tentativas de correção das injustiças, como é o caso do ‘Termo de Ajustamento de Conduta Governança’ (doravante TAC GOV), vis a vis a quebra da Barragem de Fundão em Mariana. Nesta segunda parte, na esteira da senda aberta por Abers e Keck (2013), a ênfase recai sobre a autoridade prática dos procuradores do MP. Por fim, na última parte, destacamos a alta dose de ambiguidade dos resultados característicos de dinâmicas de judicialização que, nos alerta Oliveira (2019b), não precisam ser lidas a priori como carregando em si sentidos e efeitos negativos ou positivos; a natureza ambígua dos efeitos dessas dinâmicas, no caso analisado, poderá ser notada seja nas mudança conquistadas e cristalizadas no redesenho do instrumento do TAC GOV, seja ainda, e quiçá mais principalmente, no protagonismo dos representantes do Ministério Público, isto é, no seu voluntarismo.
No seu todo, o texto não tem a pretensão de determinar quais atores e fatores têm sido condicionantes e limitantes das respostas institucionais àquele crime-desastre. Mais modestamente, trata-se de se inspirar e se valer dos achados e avanços das pesquisas sobre judicialização da política e das políticas 6, para, a partir de uma análise exploratória do papel do MP no caso em tela, iluminar pontos e – em certa medida, admitindo – lacunas na agenda propriamente da institucionalização de políticas, deslocando o foco de análise agora para as interações movimentos sociais-sistema de justiça.
Antes de adentrarmos no debate teórico, cabe explicitar a metodologia empregada no trabalho empírico que sustenta nossa argumentação. A primeira etapa do campo envolveu a coleta dos documentos e a realização das entrevistas. A seleção dos entrevistados considerou a posição de protagonismo que ocupavam (e ocupam) nas negociações e outras estratégias de solução do caso em tela.
Dentre os diversos procedimentos administrativos coletados, selecionamos três para análise, tendo como critério a centralidade da discussão em torno da participação civil na solução do caso 7 . O conteúdo desses arquivos foi sistematizado e catalogado de acordo com: a) os atores civis, estatais, e de outras instituições envolvidos; b) as pautas abordadas; c) os encaminhamentos propostos. Já as entrevistas em profundidade, realizadas entre julho e outubro de 2019 8, foram conduzidas a partir de um roteiro semiestruturado com questões que abordavam, em linhas gerais, as estruturas e estratégias desenvolvidas pelas instituições de justiça, e a avaliação do trabalho a partir da perspectiva dos entrevistados.
Com base nesta pesquisa de campo, queremos iluminar não só como opera na prática a autoridade dos procuradores e defensores públicos (e qual o papel aí desempenhado por suas conexões e seus engajamentos), mas perguntar também pelo caráter – ao menos, em hipótese – ambivalente de suas ações e representações sobre tais dinâmicas judicializantes. Como os entrevistados se veem em meio à judicialização? Como eles veem os atores da sociedade civil e os outros poderes de Estado? Essas representações carregam ambivalências? Quais? Inspirado nos trabalhos de Kerche (2007), McAllister (2008) e nas críticas mais recentes ao projeto de autoafirmação do MPF ( Arantes e Moreira, 2019), este texto soma àquele diapasão crítico a noção mertoniana de ambivalência 9, de modo a enfatizar eventuais descompassos entre autoimagem, imagem institucional e efeitos advindos da ação judicializante.
Esperamos, assim, tratando-se de uma abordagem microexploratória do caso das mudanças observadas no Termo de Ajustamento de Conduta do crime-desastre, levantar questões que permanecem impensadas assim como desafios futuros, sobretudo, para a agenda de pesquisa sobre movimentos sociais e, em menor medida, para a agenda da judicialização.
O debate sobre judicialização das políticas públicas pode ser considerado, em boa medida, herdeiro do debate mais amplo da judicialização da política no Brasil. Opondo um ‘grupo carioca e outro no IDESP’ (Sadek, 2002), uma tensão interpretativa marcou a primeira geração pós-1988 dos estudos que, desde as Ciências Sociais, examinaram as relações dos Poderes Legislativo e Executivo com o Judiciário, bem como entre instituições do sistema de justiça e organizações, movimentos e associações da sociedade civil. Nossa seguinte e breve remissão a tal oposição interessa particularmente pois que alguns de seus termos e críticas-chave irão permear o caso em análise neste artigo. O então ‘controverso universo conceitual e normativo’ ( Maciel e Koerner, 2002) no qual, de início, se instalaram a noção e o debate brasileiro da judicialização vai, porém, paulatinamente perder boas doses de normativismo e também sua razão ‘binária’ ( Da Ros, 2017). Quer dizer, os desdobramentos das gerações posteriores de pesquisa, tendo multiplicado seu leque de fontes e interlocuções, abandonaram a lógica inicial de formulação do problema ao redor da judicialização – se ela em si era positiva ou negativa e se seus efeitos eram, normativamente, bons ou ruins. É, então, em meio a esses avanços e na esteira dessas gerações do debate que adiante situamos e aderimos à noção (mais estável e menos normativa) de judicialização das políticas públicas (cf. Oliveira, 2019a).
Voltando àquela primeira geração de estudos, há, de um lado, as pesquisas lideradas por W. Vianna ao longo de dezessete anos de judicialização da política (Vianna, Burgos e Salles, 2007). Na interlocução entre o antigo IUPERJ e a Associação de Magistrados Brasileiros, e escorada uma complexa aproximação entre Gramsci e Rosanvalon, a judicialização aí é compreendida como revolução processual do Direito, possibilitada pela Carta de 1988, por sua abertura, no artigo 103, à interpelação da ‘comunidade de intérpretes’. Nesta chave, não seria adequado falar em um ‘pretenso ativismo do Poder Judiciário’ (Vianna e Burgos, 2002, p. 782). A seus olhos, ao contrário, há um “ boom da litigação” e é ela, provocadora externa de raiz civil ou outra, que faz do juiz “protagonista direto da questão social” (Vianna et al., 2007, p. 41), ampliando via Direito a representação democrática. Aí, o papel do Ministério Público é virtuoso, complementar ao do Judiciário, como antessala do processo judicial ou instância de resolução extrajudicial de conflitos (Vianna e Burgos, 2002).
De outro lado, a primeira geração desse campo de estudos foi marcada por um conjunto de pesquisas desenvolvidas na ponte entre USP e o IDESP. Em especial quanto ao MP, as lentes de análise aqui se voltam justamente àquilo que W. Vianna e seus colaboradores iuperjianos deixavam na penumbra: o investimento institucional de fortalecimento por parte de promotores e procuradores do Ministério Público. Nesta chave, a concepção de judicialização no país passa pela compreensão tanto do voluntarismo e da politização dos membros do MP ( Arantes, 1999), como dos seus esforços para manter e ampliar as condições de autonomia cristalizadas em 1988 10, de forma a tornar-se uma instituição com alto grau de discricionariedade (Kerche, 2007), numa palavra, tornar-se virtualmente uma instituição unaccountable ( Arantes, 2012).
Entre esses dois grupos, uma versão de meio-termo da judicialização foi oferecida por Maciel e Koerner (2002), críticos, em especial, do normativismo que atravessava paulistas e cariocas. Para eles, as críticas e elogios ao Ministério Público seriam generalizantes e perdiam de vista o papel de mediação e coordenação do MP (2002, p. 126). No entanto, para nossos fins, a reconstrução dessas vertentes não deságua na solução proposta por Maciel e Koerner, embora se valha da sua crítica ao normativismo inerente aos a priori daquela tensão interpretativa: “ao invés de serem tratadas necessariamente como [vertentes] rivais, [elas talvez] possam ser encaradas (...) como parcialmente corretas e em certa medida complementares” ( Da Ros, 2019, p. 44-45). Sem uma noção presumida (virtuosa) de representação, o próprio Da Ros sugere uma questão de pesquisa que considere as funções de medição do MP e, ao mesmo tempo, pense nele “(…) e em seus agentes menoscomo representantes judiciais de interesses da sociedade civil, mas também como atores políticos que atuam de acordo com suas próprias vontades e visões de mundo” (2009, p. 49) (Grifo nosso). Neste mesmo sentido, não é outra a senda ulteriormente explorada por Arantes (2015) e Arantes e Moreira (2019), ao enfatizarem as tendências de afirmação institucional seja do MP, das defensorias ou da Polícia Federal.
Em certa medida, a agenda especificamente sobre judicialização das políticas públicas se inscreve como continuidade desse debate mais amplo sobre judicialização da política, porém, imprimindo nele – para dizer de algum modo – uma espécie de desnormatização; herda tal debate e nele coloca questões ou novas questões cujas raízes e expectativas não pressupõem, nem recaem sobre, um comportamento (idealizado) de tribunais e magistrados ou de procuradores e promotores, e cujas respostas passam, via interações, necessariamente pelo escrutínio empírico daquele comportamento. Se, de um lado, as pesquisas no país ganharam, na última década, em complexidade e refinamento quer em função do crescimento de seus problemas e métodos de pesquisa (cf. inter aliaDa Ros, 2017), quer em razão da emergência de outras chaves teóricas (Engelman, 2017), de outro lado, essa importante inflexão se impôs em parte da agenda que rumou da judicialização da política à judicialização das políticas públicas 11 . Neste registro, a inspiração, por exemplo, na ideia de ‘protagonismo do juiz ao redor da questão social’ não carrega, não necessariamente, as altas doses de normativismo caras a um dos lados da geração pioneira. Na análise da judicialização da política de educação infantil em São Paulo ( Ximenes et al., 2019 ), tal inspiração opera, antes, como bússola para a investigação concreta (i.e. positiva 12) dos efeitos produzidos pela interação entre Administração, Ministério Público e atores da sociedade civil.
Sutil, o deslocamento operado pela senda da judicialização das políticas públicas se pergunta pelos efeitos e sentidos produzidos pelas interações sistema de justiça-instituições políticas e sistema de justiça-movimentos sociais. Trata-se, então, de responder se, em que medida e como o Judiciário (cf. Taylor, 2007) e, mais amplamente, as instituições do sistema de justiça afetam diferentes etapas de formulação, implementação, avaliação e controle das políticas ( Oliveira 2019b).
Nos limites deste artigo, não nos é possível fazer uma revisão totalizante da recente produção sobre judicialização de política públicas no Brasil. No entanto, finalizando este tópico inicial, cabe destacar como essa inflexão da agenda da judicialização da política rumo às políticas encontrou, recentemente, forma exemplar na análise da educação infantil em São Paulo ( Ximenes et al., 2019 ). Ao invés de se perguntarem pelas causas e conteúdos da judicialização, esses autores colocam, como dizíamos, os efeitos no centro de sua análise. E, diretos ou indiretos, seus efeitos seguem uma ‘via de mão dupla’ ( Ximenes et al., 2019 ,p. 157), recaindo não apenas sobre a política pública, mas também sobre o próprio sistema de justiça. Quanto aos efeitos indiretos, e para o que nos interessa mais de perto, achado de monta está na composição de um ‘Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre Educação Infantil’ (GTIEI). Criado em 2012, este ‘grupo de trabalho’ operou como uma sorte de coalizão socioestatal a partir da qual redes e atores da sociedade civil empreenderam ‘diálogo interinstitucional’ (2019, p. 170) com a Defensoria estadual e uma subdivisão organizacional especializada em educação no âmbito do Ministério Público paulista 13 .
Dessa forma, análises como as de Ximenes et al. (2019) destacam interações e atores para além dos limites do sistema político e se dedicam aos efeitos sobre as diferentes etapas de política. Tais análises têm, a nosso ver, afinidade potencialmente construtiva relativamente a pesquisas que também vêm enfatizando a relevância dos movimentos sociais e da sociedade civil face à institucionalização (Gurza Lavalle et al., 2019). O limite, porém, é que raras vezes estas últimas pesquisas se voltaram propriamente à judicialização – é o que veremos no tópico que segue.
Na seara dos estudos de movimentos sociais no Brasil, as análises de Maciel (2011) e Losekann (2013) foram pioneiras em aproximar a análise das mobilizações de redes e atores da sociedade civil às pesquisas sobre Poder Judiciário e judicialização 14 . Interessantemente, junto de colaboradores 15, ambas as autoras dedicaram parte de suas trajetórias de pesquisa ao tema dos ambientalismos brasileiros vis a vis instituições de justiça. Isso não significa, por certo, que elas foram as únicas dedicadas aos conflitos ambientais. Significa apenas que, à diferença delas, outros analistas, mesmo se chegaram a falar de ‘justiça ambiental’ ( Acserald, 2010), referiam-se à nomeação de um movimento da sociedade civil, bem como à ambientalização dos conflitos ( Lopes, 2004; Acserald, 2004), e não ao sistema de justiça.
As análises de Maciel (2011) e Losekann (2013) são inspiradas na chamada teoria da mobilização do direito desenvolvida sobretudo, mas não exclusivamente, por Mccan ( inter alia 1994; 2010). Grosso modo a perspectiva de análise aqui se desloca das instituições jurídicas para cidadãos e ativistas de movimentos sociais, tomando as instituições de justiça e o acesso a elas, não como sistema ou dogma, mas como oportunidades; “desloca o foco dos tribunais para os usuários e utiliza o direito como um recurso de interação política e social” ( Mccan, 2010, p. 182). Deslocamento analiticamente rico que, em chave bottom-up ( Fanti, 2017, p. 250), permite visualizar oportunidades legais, repertórios e estratégias jurídicas em conexão com ação coletiva e seus variados padrões de acionamento da justiça. Losekann (2013), por sua vez, argumentou que, no caso dos ambientalismos fluminense e capixaba, o acionamento de ações civis públicas como repertório de mobilização legal é mediado e deve ser entendido dentro de um leque estratégico mais amplo, no qual a presença de aliados influentes – dentre os quais se destacam promotores públicos e suas mediações – possui grande importância. Menos conhecida no debate brasileiro, outra obra que se dedicou às relações entre ambientalismo e judicialização foi Making Law Matter de L. McAllister (2008). Consoante com os achados de Losekann, McAllister afirma que o Ministério Público foi central no enforcement da legislação ambiental no país, desempenhando, especialmente por vias extrajudiciais, o papel de ‘mediador’ de demandas de movimentos e organizações ambientalistas.
No rol das análises sobre ambientalismo e Estado brasileiro, embora não preocupadas com o debate da judicialização, está Practical Authority de Abers e Keck (2013). Em sua análise dos comitês gestores de bacias hidrográficas por todas as regiões do Brasil, estas autoras se perguntam como a agência dos atores e redes de atores opera nas dinâmicas de mudança institucional. Para dar conta deste problema, lançam mão da noção de ‘autoridade prática’, na qual lógicas de engajamento e de experimentação se reforçam mutuamente, implicando ideias, informações, recursos e relações, de modo a ampliar a questão sobre se e em que medida as instituições importam, perguntando, antes, como elas operam. Para nós, é de particular relevância a dimensão do engajamento, que “ocorre quando os atores começam a se conectar com outros atores em suas redes de relações, usando aquelas conexões para mobilizar [ move around] recursos e ideias” (Abers e Keck, 2013, p. 17).
É, então, com essa noção de autoridade prática em mente que vamos observar as interações e conexões concretas de representantes das instituições do sistema de justiça, especialmente os MP e as DP, com militantes e organizações de movimentos de atingidos pelo crime-desastre da Samarco, ocorrido em novembro de 2015. No entanto, mais que tais interações, nos importam também seus efeitos e percepções: quais os sentidos assumidos pelo efeito das relações movimentos sociais-sistema justiça no desenho do TAC GOV 16, e qual é a opinião de parte das autoridades engajadas no caso. A partir de uma pesquisa exploratória, nossa análise atenta para uma lacuna no conjunto dos estudos já desenvolvidos sobre o desastre da Samarco, analisado à luz das interações Estado/sociedade 17, deslocando o foco das interações com Legislativo e Executivo, foco privilegiado da institucionalização (Gurza Lavalle et al., 2019) para as interações com o sistema de justiça 18 .
Certamente, o universo das análises sobre o crime-desastre da Samarco ultrapassa em muito a parcela das análises centradas nas interações socioestatais. Na interseção entre sociologia e antropologia do neoextrativismo, parte delas vem mostrando, em múltiplas escalas, as condições (político-econômicas) prévias e as faces societais dos impactos do crime-desastre ( cf.Zhouri, 2018). Dentre inúmeras outras análises, cabe destacar a tensão entre reparação e a política das afetações e dos ‘atingidos’ engendrada pelas tecnologias de gestão e subjetivação do desastre ( Zhouri et al., 2017 ), bem como as críticas ao deficit de capacidade ambiental do Estado brasileiro para monitorar e sancionar as empresas, afinal, responsáveis pelo evento trágico ( Santos e Milanes, 2017; Acselrad, 2017).
Por fim, mais recentemente, Losekann e seus colaboradores desenvolveram análise de fôlego e em chave quantitativa sobre o impacto do crime-desastre no sistema de justiça brasileiro (Losekann et al., 2020). Ampliando a agenda sobre mobilização do direito, as autoras se perguntam pelos enquadramentos legais acionados por atores – mobilizados ou não em movimentos sociais – ao redor do episódio da Samarco. Seus achados são duplamente interessantes. De um lado, falam de uma disputa jurídica e, em certa medida, inovação judicial sobre os sentidos ao redor dos “danos”, visto que há níveis de experiência sofrida por parte das comunidades legalmente não previstos pelos instrumentos de reparo. Seus dados mostram, de outro lado, a liderança dos Ministérios Públicos mineiro e capixaba e do MPF no topo da lista dos entes que mais perpetram recursos relativos ao crime-desastre, sendo responsáveis por quase 40% do total analisado. No entanto, apesar de tal liderança, sua análise conclui que não é unívoco o sentido assumido pelo uso de instrumentos como acordos, termos de ajustamento e ações civis públicas, que
“have clearly failed, as they do not present themselves as effective ways of replacing litigation with a mediated resolution. On the contrary, the agreements themselves encourage new lawsuits and contribute to making reparation even more time-consuming (...). Overall, the analysis points to new tendencies of mediation that, in practice, do not generate the desired effects of avoiding judicialization” (Losekan et al., 2020, p. 208).
Se, como vimos na parte introdutória do texto, os avanços da literatura sobre judicialização nos inspiram a perguntar pelos efeitos das interações com o sistema de justiça nas políticas públicas, esta análise liderada por Losekann nos inspira a perguntar pelas altas doses de ambivalência que atravessam o fenômeno.
A complexidade dos danos experienciados pela população atingida pelo rompimento da Barragem de Fundão, ocorrido em 05 de novembro de 2015, apresentou a diferentes instâncias estatais o desafio e a urgência de formular soluções que dessem conta de todas as camadas de impacto daquele crime-desastre. Um dos caminhos tomados para isso foi a adoção de procedimentos judiciais e extrajudiciais para tentar chegar a medidas de reparação e mitigação eficazes – ou, ao menos, o mais próximo disso. Seguindo a tendência de outros casos de conflito ambiental (Losekann, 2013), houve neste caso um imperativo das Ações Civis Públicas, acompanhado de um movimento simultâneo de transferência das demandas coletivas para os Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) 19, como é possível verificar na figura 1.

Uma série de medidas emergenciais e ações foram ajuizadas até que, em março de 2016, fosse assinado o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) 22 entre a União, os governos de Minas Gerais e Espírito Santo — além de outras autarquias 23 — e as três empresas envolvidas (Samarco Mineraç ão S.A., BHP Billinton Brasil Ltda e Vale S.A). A falta de participação civil na produção deste acordo, não apenas levantou dúvidas sobre a validade dos termos estabelecidos, como também evidenciou a assimetria entre as partes envolvidas, negligenciando as demandas da população em favor das empresas responsáveis pelo crime-desastre. Se em nada a população atingida foi consultada para formulação do TTAC, menor ainda era a previsão de sua participação no processo de implementação do acordo. E, ainda que entre os arranjos institucionais criados no bojo das respostas oficiais houvesse uma força-tarefa do MPF 24, o TTAC também não teve participação da instituição na negociação de seus termos. Isso fomentou uma articulação paralela: o Grupo de Trabalho Interinstitucional Rio Doce (GTIRD), composto, principalmente, por membros do MPF e das Defensorias Públicas da União e dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo 25 . Contando com membros daquela força-tarefa do MPF 26, o grupo passou a atuar nos territórios atingidos, realizando reuniões periódicas com populações locais com o objetivo de construir um novo acordo que incluísse a participação social.
Neste sentido, questionando a competência sobre o caso, em maio de 2016, o Ministério Público Federal propôs uma nova Ação Civil Pública, desta vez, em face das empresas responsáveis pelo rompimento - também da União, assim como de todas as autarquias estatais que assinaram o TTAC. Essa ACP tinha como finalidade a anulação do acordo anterior e a formulação de um novo 27 . O descontentamento dos representantes do MP pode ser notado em diferentes trechos da ACP, que frisam que o acordo em questão fora desenvolvido de “forma alheia a qualquer participação do Ministério Público e da sociedade afetada” e que, mesmo diante da “insistência do Ministério Público Federal em participar dos debates”, “as intervenções do MPF foram desconsideradas pelas partes negociantes” ( Ministério Público Federal, 2016, p. 14).
Embora a ACP do Ministério Público tivesse como objetivo primeiro a responsabilização dos réus através de medidas que, somadas, ultrapassavam 155 bilhões de reais, ela também carregava um outro objetivo: transpor a liderança das negociações, especialmente aquelas extrajudiciais, para o MPF:
Quando o MPF consegue anular judicialmente a homologação do acordo pelo juízo, o acordo – o TTAC – fica valendo entre as partes, entre as empresas e os governos. (...) Com a anulação da homologação, o acordo ficou valendo só entre eles e aí surgiu a possibilidade, já com ação proposta pelo Ministério Público Federal... Aí sim as empresas aceitaram conversar com o Ministério Público. (informação verbal) 28
Assim, ainda em 2016, o Ministério Público torna-se instituição central nas negociações e disputas relacionadas ao caso do crime-desastre da Samarco. Tal protagonismo não se configura, entretanto, como uma falta de agência dos atingidos e da sociedade civil 29 . Isto porque espera-se – constitucionalmente – que o MP desempenhe o papel de defensor desse tipo de direitos em casos análogos a este. Além disso, nos foi possível reconhecer pelas atas e entrevistas que, tal como na análise de Losekann e Bissoli (2017), os atingidos endereçam, em diferentes momentos e espaços, suas pautas e insatisfações aos burocratas do Ministério Público e das Defensorias. Como veremos em seguida, a atuação dessas instituições, ao ser orientada pelo diálogo com as pessoas e grupos atingidos, pode ser compreendida também como ferramenta de atuação civil.
Cabe destacar que, no caso das defensorias públicas, o trabalho de oitiva nos territórios se desdobrou no que consideramos um dos movimentos de engajamento da instituição: a construção de uma rede entre as DP de Minas Gerais, do Espírito Santo e da União, que formaram o Grupo Interdefensorial do Rio Doce (GIRD). De acordo com um dos defensores entrevistados 30, tal articulação permitiu a construção de uma “unidade e coesão nos posicionamentos institucionais” e de negociações “uniformes e alinhadas” diante das empresas rés e da Fundação Renova. Isto era potencialmente interessante visto que, recorrentemente, as empresas apresentavam informações fragmentadas e, não raro, falsas ou, “quando muito, parcialmente verdadeiras” 31 .
Em janeiro de 2017, foi assinado o Termo de Ajustamento Preliminar (TAP), que tinha como objetivo a organização dos contratos para peritos e assistentes técnicos que trabalhariam em conjunto com o MPF no diagnóstico dos danos socioeconômicos e socioambientais. Se, por um lado, a estratégia adotada pelo MPF buscava reverter, em menor tempo, as partes mais problemáticas do TTAC e, paralelamente, tentava atender às demandas dos movimentos de pessoas atingidas ( Losekann e Milanez, 2018), não é descartável a hipótese já mencionada de que buscavam retomar o papel de “mediadores” ou “negociadores” atribuído à instituição e obliterado com a ACP da União e pelo TTAC. Em diferentes momentos, os atores do Ministério Público reivindicam, em entrevista, a “morosidade” e o “despreparo” quer do sistema de justiça quer, mais amplamente, do Estado brasileiro para lidar com casos como o que estava em questão, justificando assim sua intervenção e a retomada do uso de acordos:
Nós conseguimos inúmeras vitórias. A gente não conseguiu cem por cento, porque numa negociação pressupõe-se ceder. E a gente enxerga que o judiciário não vai nos dar a resposta de maneira adequada. Não que não nos dê o que a gente quer, ou o que a gente entende é de direito. Não é “querer” no sentido individual, é no sentido do que o direito determina. Mas é uma questão de tempo, de modo. E a gente precisa acelerar esse processo. (…) o Estado brasileiro não está preparado para questões desse tipo. Ponto. O Estado brasileiro de maneira geral, na minha humilde opinião. Os órgãos ambientais não conseguiram nem licenciar direito e fiscalizar, a ponto do rompimento acontecer. Depois que acontece, não tem estrutura para fazer os estudos necessários. A gente não pode contar com IBAMA, IEMA, IGA (que é o de Minas Gerais), para trabalhar com a gente, para fazer análise de água, de peixe, e medidas estruturantes. Por isso que nós fizemos um dos acordos [TAP] que é o dos experts que a gente contratou, que as empresas [responsáveis] pagam para fazer esses estudos. Instituições de justiça também não estão estruturadas. (Informação verbal) 32.
O TAP trataria, então, de preencher em alguma medida a “lacuna” atribuída a diferentes instituições no processo de acompanhamento do caso, formando um corpo técnico de apoio ao MPF, que seria responsável inclusive por avaliar os resultados da Fundação Renova. As empresas contratadas seriam remuneradas pela Renova e escolhidas em conjunto pelas partes que assinaram o acordo — Samarco Mineração S.A., Vale S.A., BHP Billiton Brasil Ltda. e o MPF. Exemplo do que Abers e Keck (2016) definem como experimentação de soluções, tal arranjo proposto no TAP foi criticado pelos movimentos sociais ( Losekann e Milanez, 2018), principalmente em relação às empresas indicadas para contratação e que apresentariam conflito de interesse. Na tentativa de corrigir este problema – e experimentando outros modos de trabalho – foi formado um Grupo de Trabalhos (GT) composto pelo MPF, os MP dos estados atingidos, movimentos sociais e grupos acadêmicos, visando discutir maneiras de contornar os limites do TAP. Constituído em Minas Gerais 33, o GT elaborou uma proposta de parâmetros e do desenho institucional a serem utilizados nas ações de mobilização e assistência das pessoas atingidas, assim como dos diagnósticos dos danos socioeconômicos do rompimento da barragem.
Vislumbrando a construção de um acordo que substituísse o TTAC, a principal estratégia adotada pelo MP para recolhimento das demandas dos atingidos foi a realização, entre fevereiro de 2017 e agosto de 2018, de uma série de reuniões com representantes de movimentos sociais e indivíduos atingidos, direta ou indiretamente, pelo rompimento da barragem. A análise das atas das 27 reuniões realizadas neste período demonstra que as principais pautas desses encontros estavam relacionadas à implementação de assessorias técnicas nas comunidades atingidas, bem como à definição dos termos e critérios de participação das pessoas atingidas no sistema de governança (Portela, 2020).
Ao focarmos na atuação do Grupo de Trabalho Interinstitucional Rio Doce (GTIRD), vemos que a implementação das Assessorias Técnicas é posta como condição sine qua non para efetivar a participação dos atingidos, assim como para realizar a reparação integral dos danos causados, ou mesmo para estabelecer qualquer negociação no âmbito do caso. No entanto, se a instalação das assessorias técnicas significou ganho às pessoas atingidas, o início dos seus trabalhos foi postergado diversas vezes, ora por entraves criados pela Fundação Renova 34, ora pela falta de manifestação da União, do Departamento Nacional de Produção Mineral, da Agência Nacional de Águas e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade sobre o termo de contratação da empresa escolhida.
Diante deste cenário, não é raro, nas páginas das atas analisadas, o registro de que os atingidos se dizem “cansados”, tanto das manobras feitas pela Fundação Renova para postergar qualquer que seja a etapa do processo (o reconhecimento, o cadastro, o pagamento, etc.), quanto das reuniões com as comissões auto-organizadas e as instituições de justiça, questionando “qual motivo de tanta reunião, de tanta burocracia para que os direitos dos atingidos sejam efetivados” ( Ministério Público Federal, 2017b, p. 78). E, vencidos pelo cansaço e pela demora, muitos acabaram aquiescendo às negociações com a Renova, o que gerou uma preocupação entre as lideranças dos movimentos sociais de que “todas as providências devem ser tomadas o quanto antes, pois a empresa tem tomado diversas ações para enganar a população” ( Ministério Público Federal, 2017b, p. 5).
Em outubro de 2017, uma primeira versão do Termo de Ajustamento de Conduta - Governança (TAC GOV), acordo proposto pelo Grupo de Trabalho como substituto ao TTAC, foi encaminhada à coordenação da Força-Tarefa do MP. Esse encaminhamento veiculava e reforçava a motivação à raiz do Grupo de Trabalho: “ineficiência e morosidade do sistema de governança instituído pelo TTAC” ( Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo, 2018, p. 67). Note-se como imagem e autoimagem estão aí empiricamente sobrepostas: à imagem negativa feita do TTAC como ‘ineficiente’ corresponde uma autoimagem positiva: os proponentes do GTIRD enxergavam sua proposta (ao mesmo tempo em que se viam) como ‘ponte’ e uma ‘necessidade’, i. e., uma “necessária ponte entre as instituições de justiça, poderes públicos e empresas envolvidas, de modo a consolidar um sistema de governança participativo, democrático e equilibrado” ( Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo, 2018, p. 67).
Pelo contraste entre o texto da minuta com o documento final do Termo de Ajustamento de Conduta Governança (TAC GOV), o sentido assumido pela institucionalização dos mecanismos de defesa e reparo aos atingidos pelo crime-desastre parece ser de crescente (embora parcial) incorporação da perspectiva dos grupos e sujeitos locais. Neste sentido, ao forjar as reuniões nos territórios, o engajamento de procuradores e defensores do Grupo de Trabalho encontrou nas interações com atingidos as condições facilitadoras para o exercício de sua autoridade prática à la Abers e Keck (2013). Reforçando um achado que também percorre a análise de Losekann e Milanez (2018), tais reuniões desempenham uma função primordialmente informacional, através da qual procuradores e defensores se alimentaram da troca de conhecimento e informações 35 .
Na perspectiva dos movimentos de atingidos, as reparações deveriam, por exemplo, ser capazes de dar “conta das diferentes comunidades no território” e levar em consideração a “preservação das identidades quilombola e indígena”, reconhecendo “assimetrias na distribuição das indenizações” ( Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo, 2018, p. 79; 182 e seg.). Mais ainda: empresas e autoridades estatais, aos olhos dos movimentos, deveriam ser capazes de falar a língua dos atingidos, de modo a se abrirem a eles ( Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo, 2018, p. 122; 135 e seg.).
Por seu turno, ainda que vistas como aliadas, as instituições de justiça também são alvo de duras críticas nessas reuniões, por exemplo, sobre as dificuldades de acesso e de linguagem que as pessoas atingidas têm de encarar. A própria abertura de figu ras individuais advindas do MP e das Defensorias é colocada em questão por alguns atores civis, porquanto uma abertura individual não seria sinônimo de uma abertura institucional para aqueles atores. Vista de outra perspectiva, na voz mesma das autoridades estatais, essa disponibilidade e a abertura para a sociedade civil e para o crime-desastre são, não raro, retratadas positivamente. Os próprios defensores e promotores usam categorias típicas de um ideário participativo, tais como “a devida participação social” para “consolidar um sistema de governança, participativo, democrático e equilibrado”. Do outro lado desta mesma moeda, o “voluntarismo” autoatribuído de um entrevistado pode ser pista sintomática de uma espécie de autoelogio, como se ele fosse um suposto “herói” da causa em questão:
(…) as empresas têm dezenas de advogados atuando no caso. E advogados que têm curso de mediação em Harvard, são professores de negociação. Nós não temos essa formação assim. (…) mas, a gente tem que se virar. Eu preciso saber do direito ambiental para lidar com eles. As questões sociais, previdenciárias... porque tem envolvimento previdenciário, então o povo vem para cá... e eu vou ter que lidar com o crime, com direito à saúde... aqui eu sou sozinho, eu pego todas as matérias. É isso que o Estado brasileiro está exigindo da minha pessoa hoje. Que eu lide com a procuradoria que abrange seis municípios... que já tem um trabalho intenso... a produtividade aqui (…), historicamente, é bem superior à média nacional. Não que eu trabalhe mais não, que eu seja melhor... é demanda que vem, é distribuição mesmo. E, ao mesmo tempo, tem a capacidade de atuar no maior desastre ambiental da história do país, o maior desastre minerário do mundo. Com complexidades mil. Será que é isso que tem que ser? Será que precisa de um cara que seja... não sou eu, tá? Mas, que venha um sujeito super inteligente, capaz, que abrange, que absorva informação em um tempo acima da média, para conseguir dar conta. Aí, se tivesse, ao mesmo tempo, um cara que não fosse dedicado, ia ficar por isso mesmo. Porque a gente não sabe punir membro do Ministério Público Federal que não queira trabalhar. (informação verbal) 36

As entrevistas revelaram, ainda, que os procuradores do MP desenvolveram um senso de comprometimento com as pautas reivindicadas pelos atingidos, às quais alguns deles vêm se dedicando desde o início do caso. Em determinados momentos, colocar em ação as demandas dos atingidos aparentava ser uma questão de honra, de expressão da sua vocação. Sob uma perspectiva de “voluntarismo” autoevocado, os membros do Ministério Público afirmam seu papel politizado – normalmente a partir de falas institucionalizadas 37 – conjugando este elemento à imagem de ineficiência das próprias instituições de justiça:
É um trabalho de voluntarismo. Eu estou aqui trabalhando neste caso e os meus outros processos estão correndo normalmente. A gente tem que se virar nos trinta. O judiciário também não tem estrutura para isso. O juiz lá também tem os processos dele correndo. E não tem estrutura técnica para discutir isso. As empresas, por outro lado, têm. Elas, em dois dias, contratam a empresa que elas quiserem para fazer estudo técnico. E, muitas vezes, com resultados duvidosos. Então, é uma disputa muito desleal, no final das contas. (informação verbal) 38.
Como se pode notar, a trajetória da mudança institucional desde a primeira versão do “Termo de Transação e Ajustamento de Conduta” até o “Termo de Ajustamento de Conduta Governança” nos mostra uma incremental e maior participação e incorporação das perspectivas e demandas dos atingidos. Nesse processo, o protagonismo do Ministério Público não se deu por inércia; foi, ao contrário, ativamente buscado por seus procuradores. Mais ainda: analogamente ao caso do direito à educação em São Paulo ( Ximenes et al., 2019), a presença de uma espécie de coalizão interinstitucional foi fundamental à autoridade prática dos membros do MP. Na aliança com defensores e lançados aos territórios, o Grupo de Trabalho tanto encarnou performances engajadas do MP, como possibilitou também a experimentação, com avanços e recuos, ao redor do TAP.
Todo esse voluntarismo teve efeitos institucionais notórios. Uma vez transformado o desenho institucional do Termo de Aditivo através e depois da incorporação das Assessorias Técnicas no conjunto do CIF, foram transformadas também as chances de acesso à reparação por parte dos grupos e indivíduos atingidos. Tal efeito, contudo, não deixa de ser ambíguo per se. A democratização do desenho institucional e, sobretudo, dos canais de reparação àqueles atingidos, traduziu-se, não em reparações, mas em um sistema altamente inacessível e burocratizado, e inacessível porque burocratizado. Isso é especialmente observável na ampliação das chances de participação, por parte dos grupos e movimentos de atingidos, no âmbito do CIF: embora não seja nada desprezível que eles tenham, sob o redesenho da governança, conquistado o direito à representação em duas cadeiras no CIF, as condições impostas para sua participação lhes são altamente custosas e incompatíveis com seus recursos, sobretudo, de tempo disponível para reuniões tanto dentro como fora do CIF 39 . Neste mesmo sentido, alguns depoimentos explicitam a forte tensão ao redor das “conquistas” de todo esse processo:
Eu tenho muita tristeza com o processo Rio Doce, para ser muito honesta. (…) O TAC GOV, o aditivo ao TAP são documentos que, dentro das possibilidades, trouxeram melhorias para o processo. Acho que, hoje, o que tem de positivo veio muito desses documentos. Porque esses foram os documentos que trouxeram a participação das pessoas. (…) uma coisa que eu aprendi também é que não é só participar, ouvir as pessoas, mas a participação qualificada. (…) E esses dois documentos tentaram fazer isso. Mas tentaram dentro de um sistema que já estava funcionando muito mal. (…) Eu acho que, se não fosse o trabalho da força tarefa, um trabalho integrado – unido com falhas, com sucessos –, se não fosse esse trabalho conjunto, a situação estaria muito pior. (…) hoje eu não acho que a gente dá respostas suficiente para isso, mas acho que, dentro das possibilidades, se não houvesse essa integração, a gente não ia dar resposta nenhuma. Eu fico muito triste de dizer que eu acho que o que mais foi benéfico foi o aprendizado institucional de todos os envolvidos. (informação verbal) 40
Também pelas entrevistas, nota-se que o domínio elementar quer de linguagem jurídica ou administrativo-burocrática, tal como em tantos outros casos, é outro elemento que dificulta, se não impede, a participação de ativistas da sociedade civil de maneira a afastar-lhes daquelas “conquistas”. Assim, uma profunda ambivalência recai sobre aquela autoimagem voluntarista. Na contraface dessa autoimagem positiva vivem as inúmeras referências, em especial, aos poderes Executivo e Judiciário como sendo, supostamente, exemplos de “morosidade” e “ineficácia”. Do ponto de vista de seus efeitos, porém, não se nota qualquer celeridade distintiva face ao protagonismo conquistado, através do GTIRD, pelo MP no caso em tela. A ação concatenada e articulada por partes e membros do MP não tem, a nosso ver, como contornar o fato de que sua autoridade prática assume também, tal qual para outros poderes detratados, sentidos burocratizantes – que são, para seus interessados (literalmente) mais vitais, sentidos excludentes. Quer dizer, a espada da ambivalência sobre a autoimagem desse ethos institucional salvacionista nos mostra como a ação e o protagonismo judicializantes produzem efeitos democratizantes, porém burocratizantes; produzem, enfim, sentidos quase que simultaneamente inclusivos e excludentes. Parafraseando algumas das entrevistadas, se as respostas “não vêm na velocidade que elas [as pessoas atingidas] querem, não vêm na intensidade que elas precisam” 41; “para que serve isso tudo? Para que serve tanta discussão?” 42.
A pesquisa de campo no microuniverso das relações e instituições que, desde o ponto de vista do sistema de justiça brasileiro, estiveram (e seguem) ao redor da crise e do crime-desastre da Samarco sugere um rol de questões e desafios prementes àquelas pesquisas interessadas na aproximação entre as agendas da judicialização e dos movimentos sociais e, mais amplamente, da sociedade civil. Se a agenda de pesquisa da institucionalização pensada a partir dos movimentos já vinha em inflexão rumo às interações com o Estado, a agenda da judicialização lhes amplia escopo e foco de análise: oferece as interações com o sistema de justiça como questão empírica, ao mesmo tempo em que rebaixa as expectativas normativas oferecendo-nos uma perspectiva analítica centrada em efeitos da judicialização sobre as políticas.
Junto dessa desnormatização, Abers e Keck (2013) lançam nuances na observação das interações entre sociedade civil e instituições do sistema de justiça. Nossa contribuição neste texto foi, levando a sério a ênfase nos efeitos, colocar em questão o aspecto da ambivalência desses efeitos. Feitas as contas e diante do nosso caso empírico explorado em suas mudanças e protagonismos, tudo isso junto nos sugere as seguintes questões.
Primeiramente, é notória a presença de uma coalizão interinstitucional. A experimentação observada no Grupo Interdefensorial do Rio Doce (GIRD) não ficou restrita ao âmbito das defensorias, mas se desdobrou e abarcou a atuação de representantes do Ministério Público, já ligados a outro esforço de articulação institucional que foi a Força-Tarefa do MPF. Neste sentido, o Grupo de Trabalho Interinstitucional Rio Doce (GTIRD) reproduz lógica semelhante àquele GT também observado no caso da luta pela educação no caso paulista. Interessantemente, enquanto este último caso era expressamente uma coalizão socio-estatal incluindo organizações não-governamentais e redes da sociedade civil, o GTIRD poderia ser lido como uma coalizão apenas intraestatal. No entanto, como vimos, suas atividades lhes levaram aos territórios e populações de modo a fornecer conhecimentos informações sobre as realidades localmente vividas aos membros do Grupo de Trabalho. Não por acaso, foi através desses contatos e reuniões que se deu uma das fontes de experimentação e engajamento da autoridade prática dos procuradores do MP, que delas se nutriram. Fica, então, sugerida a outras análises de institucionalização e mudança institucional a preocupação com esforços e articulações de instâncias oficiais que, embora pareçam apenas institucionais, estão em interação e interlocução com atores não-estatais.
Com respeito à relação entre atingidos e instituições implicadas, vale notar que as imagens de hipossuficiência e desorganização dos atores da sociedade civil não encontram eco nos dados analisados. Apesar de todo o drama imposto pelos dejetos rio abaixo, eles não apenas escolhem ativamente o MP como seu aliado, interlocutor e intermediador, no que ressoam as noções de Maciel e Koerner (2002), como também colocam críticas aos limites dessas mesmas instituições e representações aliadas, fazendo delas sua ferramenta de mobilização. Neste quesito, o caso em tela tende a reproduzir um padrão de interação socioestatal a um só tempo cooperativo e conflitivo (Portela, 2020).
Quanto à disposição do “voluntarismo” apregoado pelos membros do MP, o caso do Rio Doce nos parece exemplar de sua autoestima institucional. Como vimos, não foi nada discreto o volume de investimento inicialmente empenhado para fazer do MPF e dos MP estaduais atores centrais nas negociações e disputas ao redor do crime-desastre. Essa disposição é congruente com as críticas de Kerche (2005) e Arantes e Moreira (2019), pois que se trata de uma forma não só de incrementar sua autonomia, mas também de manter relativamente (e apenas relativamente) monopolizados seus domínios de atuação previstos. No entanto, no que concerne a futuras pesquisas, o que nos parece valioso é observar a discrepância entre aquela autoimagem salvacionista e os efeitos institucionais produzidos por sua ação coordenada. Essa ambivalência à raiz da ação é pouco acessível a outras análises se elas não indagam a autorrepresentação dos agentes do sistema de justiça. Como estes veem os atores da sociedade civil e os outros poderes oficiais? Como defensores e procuradores veem a si próprios? E em que medida essa opinião que nutrem de si próprios e dos outros está articulada à missão (corporativa e corporativista, dirá R. Arantes) institucionalmente atribuída? São três questões, a nosso ver, da maior relevância e que gostaríamos de deixar sugeridas a outras pesquisas sobre institucionalização e judicialização.
Em tempo, não podemos deixar de notar que, nesta seara, o instrumento de política pública privilegiado pelas análises tem sido a ação civil pública. Sem pretender deslocar ou questionar a centralidade das ACP no sentido da afirmação institucional do MP (Arantes, 2015) e de sua discricionariedade (Kerche, 2007), a questão que nossa análise pode sugerir é: qual o papel dos Termos de Ajustamento de Conduta no fortalecimento institucional dos Ministérios Públicos? Dirigimos esta questão não só à agenda de movimentos sociais, mas também ao debate dos estudos sócio-jurídicos, pois a atuação, através dos TACs e ao redor deles, empurrou, no caso em tela, os embates e conflitos ao redor do crime-desastre para longe dos tribunais e, portanto, da responsabilização penal. Certamente, uma das razões evocadas para tal deslocamento foi a crítica de supostas “morosidade” e “ineficiências” do próprio Judiciário. No entanto, como também vimos, a ação pretensamente salvadora e “voluntarista” do MP não desaguou em algo muito distinto dos poderes concorrentes.
No seu todo, nosso texto tentou mostrar que uma análise quali e exploratória das interações entre atores da sociedade civil e partes do sistema de justiça pode contribuir com as discussões e avanços teórico-analíticos dessas duas grandes áreas de pesquisa. Sem se entregar um normativismo hipercrítico, nossa tentativa foi fazer com que o olhar microssociológico atento às ambivalências dos efeitos da ação coordenada pudesse iluminar êxitos e limites, destacando as incoerências de um conjunto institucional relativamente impermeável à crítica e a controles externos.

