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“A luta dos movimentos sociais contra os despejos coletivos nas instituições judiciais: a Resolução 10 do CNDH e a promessa de mudança” 1
Maria Eugenia Trombini; Daisy Ribeiro
Maria Eugenia Trombini; Daisy Ribeiro
“A luta dos movimentos sociais contra os despejos coletivos nas instituições judiciais: a Resolução 10 do CNDH e a promessa de mudança” 1
“The struggle of social movements against collective evictions in judicial institutions: Resolution 10 of the National Human Rights Council and the promise of change”
Ciências Sociais Unisinos, vol. 56, núm. 3, pp. 391-403, 2020
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
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Resumo: A luta dos movimentos sociais pela posse da terra e o acesso à moradia tem uma interface constante com o sistema de justiça, acionado para a defesa da propriedade. Embora o sistema normativo possua diversos dispositivos para relativização do direito à propriedade, frente à sua função social, bem como para mediação de conflitos e ponderação de direitos, é certo que essas categorias não são de uso tão comum em ações de reintegração de posse quanto poderiam. O presente trabalho analisa, a partir de casos ocorridos no Brasil no período de 2018 a 2020, algumas das categorias acionadas para defesa da manutenção dos possuidores na área, contrapondo estas àquelas acionadas nas respectivas decisões judiciais. Nossos resultados sobre a resolução 10 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que trata de soluções garantidoras de direitos humanos e medidas preventivas em situações de conflitos fundiários coletivos rurais e urbanos, sugerem uma diferença entre os usos esperados pelos movimentos e seus representantes e a recepção da normativa pelo Judiciário.

Palavras chave: Conflito fundiárioConflito fundiário,JudiciárioJudiciário,reintegração de possereintegração de posse,direitos humanosdireitos humanos,despejos coletivosdespejos coletivos.

Abstract: The struggle of social movements for land tenure and access to housing has a constant interface with the judicial institutions, which are activated for the defense of property. In Brazil, the normative system has several devices asserting that private ownership is obliged by law to play a social role, as well as the pondering of rights and mediation of disputes over land. These categories, nonetheless, are not as commonly used in courts as they could be. Based on cases that occurred in Brazil from 2018 to 2020, the present work analyzes some of the categories used in legal proceedings to defend the right of land-dwellers to stay in the area against the corresponding interpretation yielded by judicial rulings. Our data selection leans on a new disposition with solutions guaranteeing human rights and preventive measures in situations of rural and urban collective land disputes from the National Human Rights Council (CNDH), Resolution 10. Results suggest a difference between the uses expected by the social movements and their representatives and the reception of the norms by the Judiciary.

Key-words: Land disputes, Judiciary, human rights, eviction actions, possession claims, social function of property.

Carátula del artículo

Articles

“A luta dos movimentos sociais contra os despejos coletivos nas instituições judiciais: a Resolução 10 do CNDH e a promessa de mudança” 1

“The struggle of social movements against collective evictions in judicial institutions: Resolution 10 of the National Human Rights Council and the promise of change”

Maria Eugenia Trombini
Faculdade de Direito de Curitiba, Brasil
Daisy Ribeiro
Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil
Ciências Sociais Unisinos, vol. 56, núm. 3, pp. 391-403, 2020
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Recepção: 28 Setembro 2020

Aprovação: 25 Novembro 2020

Introdução

A presente investigação visa contribuir ao campo de estudos da institucionalização de demandas da sociedade civil no Estado tomando como foco as disputas possessórias travadas pelos movimentos sociais em interface com o sistema de justiça. Para tanto, examinaremos casos concretos nos quais conflitos pela terra urbana ou rural foram levados ao Judiciário à procura de respostas para a pergunta de como as categorias mobilizadas pelos atores coletivos foram recepcionadas pelo Estado. Inicialmente, faremos um resgate histórico da luta contra os despejos no Brasil e da articulação dos movimentos sociais de moradia no interior e nos arredores das instituições públicas. Tal reconstrução terminará com a aprovação da Resolução n.10 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em 2018, a qual introduziu mudança normativa capaz de influenciar o resultado das ações de reintegrações de posse em favor dos ocupantes. O texto da RES10/2018 dispõe sobre soluções garantidoras de direitos humanos e medidas preventivas em situações de conflitos fundiários coletivos rurais e urbanos. Conforme veremos, uma pluralidade de atores contribuiu em sua elaboração dentro desse conselho de política pública que, embora formalmente criado no ordenamento jurídico nacional em 2014 4, é o herdeiro do Conselho dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), criado em 1964 enquanto o primeiro organismo com a função de zelar pela garantia dos direitos humanos no Brasil.

Para os campos de estudos de movimentos sociais, o período pós transição democrática e o clamor pelo aumento da participação no processo decisório governamental marcam a inclusão da sociedade na gestão de políticas públicas, viabilizada em colegiados como o CNDH. Porém a genealogia dos movimentos de luta pela terra no Brasil inicia antes, com as mobilizações populares da década de 1960, no contexto do debate em torno das “reformas de base” promovidas pelo governo João Goulart. O golpe do Estado de 1964 impôs o silêncio ao debate acumulado até então e os atores coletivos ganharam novo impulso na abertura política ( Gonçalves, 2019). Após a redemocratização e com o advento de uma Constituição brindada como cidadã, ocorre uma multiplicação dos movimentos em luta pela terra urbana e rural. O Movimento Nacional de Reforma Urbana se consolida depois do seminário sobre habitação e reforma urbana, realizado na cidade de Petrópolis, em 1963, mas ganha o nome e a estrutura atual de Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU) em 1987. Já o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi oficialmente fundado em 1984, embora sua gestação tenha iniciado a partir das primeiras reuniões que aconteceram nos anos 1978 em Cascavel, no Paraná.

Uma agenda de pesquisa empírica sobre conflitos possessórios como a nossa parte da ambivalência de medidas judiciais, que ora podem ser fundamentais para garantir o acesso ao direito, ora se desincumbem do dever de garantir esse direito, inclusive criminalizando os sujeitos coletivos que o reivindicam, servindo, nestes casos frequentes, como ferramenta de manutenção da desigualdade socioespacial existente no Brasil. O recorte elegido, nos permite por um lado enfatizar a agência dos movimentos e por outro acompanhar as respostas fornecidas pelas agências governamentais. Ainda, possibilita-nos observar as reivindicações levadas a esse Conselho de políticas públicas de direitos humanos, ali interiorizadas, e de lá emanadas na temática da luta contra os despejos. Um resgate da construção da normativa do CNDH em estudo ensina sobre o comportamento das representantes das instituições estatais e da sociedade civil, particularmente profissionais do sistema de justiça e defensoras do direito à terra e ao território, respectivamente, em três momentos distintos: antes, durante e após a Resolução. Como veremos a seguir, o conteúdo da RES10 é aplicável nos seguintes casos, consoante seu art. 1, caput:

casos de conflitos coletivos pelo uso, posse ou propriedade de imóvel, urbano ou rural, envolvendo grupos que demandam proteção especial do Estado, tais como trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra e sem teto, povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais, pessoas em situação de rua e atingidos e deslocados por empreendimentos, obras de infraestrutura ou congêneres. ( CNDH, 2018)

Tentaremos responder até que ponto as demandas de tais atores societais foram absorvidas pelo Estado na dimensão simbólica, olhando para a agência dos sujeitos coletivos, e material, olhando para as decisões judiciais.

No que se refere à judicialização das demandas por moradia, cumpre separar aquelas em que os movimentos sociais figuram no polo passivo – como réus, por alegadamente ferir direito alheio - e no polo ativo, no qual se afirmam como sujeitos que estão tendo seus direitos violados dada a ausência de uma política pública de acesso à terra urbanizada. Historicamente, os ocupantes de assentamentos informais localizam-se no primeiro, respondendo em demandas ajuizadas ora pelos se dizentes proprietários ora pelos entes públicos, como Municípios, Estados, União e também o Ministério Público. As ações judiciais que mais aparecem dentro dessa categoria são as ações possessórias, sobretudo as reintegrações de posse 5, embora também seja feito uso de outros tipos de ações judiciais, como ações reivindicatórias e ações civis públicas. Em que pese se discuta o problema habitacional, principalmente graças às assessorias jurídicas populares e a Defensoria Pública, que insistem no tema para evitar que a remoção resulte em famílias desalojadas, a incidência dos movimentos sociais por meio de recursos judiciais tem sido mais reativa do que propositiva. Advinda a nova normativa, pretendemos responder se, e em que medida, a situação concreta de luta contra os despejos foi alterada na arena do Judiciário.

Para tanto, dividimos o artigo da seguinte forma: na Segunda seção introduziremos o contexto da luta contra os despejos no Brasil enfatizando o papel dos movimentos sociais para situar o processo que resultou na Resolução 10 de 2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos; na Terceira apresentamos nossas prioridades teóricas e agenda de pesquisa; na Quarta traremos um apanhado descritivo com os dados sobre o uso da normativa em demandas judiciais de 2018 até aqui, seguidos de uma discussão dos resultados encontrados na Quinta seção. Apoiadas na amostra empírica, na última seção traçaremos perspectivas futuras partindo dos efeitos institucionais examinados.

A luta por moradia e dos conflitos possessórios coletivos no Brasil

Para situarmos a narrativa no tempo e no espaço é preciso dizer que a segregação socioespacial e a distribuição assimétrica do ônus e bônus da urbanização são traços persistentes na conjuntura brasileira que, se ignorados, impedem-nos de acercar o debate sobre os conflitos possessórios coletivos ( Maricato, 2011). A questão da terra é central na interação entre a sociedade e o Estado. Se resgatarmos da história, foi em torno de disputas fundiárias que o povo se organizou na Revolta de Canudos, a Guerra do Contestado, o Quilombo de Palmares, o Levante dos Tupinambás, a Guerrilha de Porecatu, a Guerra dos Manaus, a Revolta das Carrancas, a Cabanagem e a Balaiada. Assim, pesquisar a reivindicação do direito à terra no campo e na cidade convida-nos a percorrer os caminhos que os movimentos sociais traçaram, valendo-se de recursos extrajudiciais, como ação direta, via ocupações, até serem demandados em instituições judiciais e passarem a demandar não só defensiva como ativamente no interior delas.

Embora não haja mensuração específica sobre a quantidade de conflitos fundiários possessórios no país, alguns dados auxiliam a compreender este cenário e estimar suas grandezas. Um deles é o déficit habitacional, que é calculado pela identificação das deficiências do estoque de moradias ante a precariedade destas, bem como pela necessidade de incremento do estoque – em decorrência do ônus excessivo de aluguel, alta densidade e coabitação familiar forçada – além do déficit correspondente ao uso de imóveis e locais que, em verdade, não possuem finalidade residencial. No Brasil, consoante dados censitários coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) o déficit habitacional em 2015 era de 6,35 milhões de domicílios, dos quais 5,57 milhões são de moradias em áreas urbanas, de acordo com a análise da Fundação João Pinheiro ( Fundação João Pinheiro, 2018). Outra estimativa coloca este número já em 7,77 milhões de moradias para o ano de 2017. Quanto à falta de regularidade fundiária e consequente insegurança da posse, tem-se 1,871 milhão de domicílios particulares urbanos em terrenos não legalizados, o que constitui 3,2% do total de domicílios particulares permanentes urbanos do país. Quase a metade destes (47,1%) pertencem a famílias de baixa renda, de até 3 salários mínimos, as quais são mais dependentes de oportunidades de regularização fundiária e produção habitacional oferecidas pelo poder público e, por conseguinte, mais facilmente sujeitas à despossessão territorial (ABRAINC/FGV, 2018).

Entretanto, a falta de regularização fundiária não seria o resultado de uma ausência de instrumentos legais ( Magalhães, 2008) ou de uma carência de conteúdo normativo ao direito social à moradia, nem da falta de imóveis urbanos ociosos ou terrenos vagos. Neste último ponto, vale destacar que o Brasil possui 7,9 milhões de imóveis vagos, 80,3% dos quais localizados em áreas urbanas e 6,9 milhões deles em condições de serem ocupados com finalidade social (PNAD, 2015 in: FJP 2018, p. 37). No tocante à reforma agrária, principal política para desconcentração fundiária no campo e de prevenção e solução de conflitos fundiários rurais, o número de famílias assentadas caiu vertiginosamente nos últimos anos. Se, em 2014, foram assentadas 32.019 famílias, nos anos de 2018 e 2019 não houve sequer uma família assentada ( INCRA, 2020). Quanto à questão quilombola, um ritmo muito lento de titulações, que tem diminuído anualmente face aos cortes orçamentários e que gera insegurança na posse, expõe as comunidades às consequências dos avanços do agronegócio e da mineração. 6

Um pedaço substancial do problema das políticas fundiárias reside na interação vertical, entre os entes federativos, e horizontal, entre os poderes, particularmente o Executivo e o Judiciário, conforme iremos discutir a seguir, e a própria Resolução do CNDH aponta em seus 36 “considerandos”. Na esteira de outros trabalhos empíricos sobre conflitos fundiários em litígio, a atuação jurisdicional, em regra, orienta-se pela sobrevalorização proprietária como norte epistemológico (Milano, 2016). Nas demandas em conflitos pela posse da terra urbana movidas contra o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o sistema de justiça desconsidera o interesse social subjacente aos processos e protege a propriedade em seu formato liberal ( Acypreste e Costa, 2019) 7. Na maioria das vezes, o magistrado que dá ordem favorável à reintegração constata o esbulho possessório como questão principal da decisão e não se atine ao conflito de normas constitucionais, entre o direito à propriedade e o direito à moradia, ou o faz apenas tangencialmente para reiterar a responsabilidade, já formalmente atribuída, do Executivo.

Nos casos de processos judiciais movidos pelos ocupantes, como a de usucapião especial coletiva 8, a prática forense também dificulta a ação dos sujeitos que reivindicam o direito à moradia. Em casos nas jurisdições de São Paulo, Curitiba e Recife foi reportado que os magistrados resistem em conceder a titularização de terras em composse no âmbito urbano àqueles que a ocupam há mais de 05 (cinco) anos e sem oposição dos atuais proprietários, conforme exige a lei ( Trombini e Correa, 2019). Além de interpretarem as exigências legais sob as lentes do processo individual, não demonstram sensibilidade à importância de regularizar a situação jurídica dos assentamentos de baixa renda e adiam o julgamento final para assegurar que o proprietário tabular não seja prejudicado com a perda de sua propriedade (Rodrigues, 2015).

Ademais, diferentemente da recepção de casos versando sobre políticas públicas de educação, mesmo nos casos de sentença judicial reconhecendo a obrigação do ente responsável por garantir acesso à moradia, o Judiciário normalmente não determina que os cidadãos envolvidos em processos judiciais sejam postos no topo da lista de prioridades do Executivo municipal, como acontece na judicialização de vagas em creches municipais. As políticas setoriais de saúde levadas ao sistema de justiça também não se assemelham à de moradia em termos de resultado: as perspectivas de sucesso de demandante moradora de ocupação irregular são muito mais incertas do que as de demandante que ajuíza ação individual para recebimento de medicamentos ( Oliveira, 2019).

Uma promessa de mudança social: Resolução 10 de 2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos

Sobre o potencial da lei de promover mudança social, os trabalhos “Why the ‘Haves’ Come Out Ahead” (1974) de Marc Galanter e “The Politics of Rights” (1974) de Stuart Scheingold são seminais. Galanter analisou como diferentes atores – litigantes frequentes e litigantes não frequentes – jogam o jogo do litígio de forma distinta. Enfatizando o ponto de vista dos “despossuídos”, Scheingold (1974) indagou se a litigância poderia desempenhar um papel na mudança da política pública em benefício dos menos favorecidos. A sua resposta foi sim, mas somente se os operadores do Direito estivessem dispostos a “abandonar a perspectiva jurídica convencional e substituí-la por uma abordagem política do direito e da mudança” ( Scheingold, 2004, p. 4) Em defesa do potencial de uma “política de direitos”, sugeriu que “direitos reivindicados judicialmente” não deveriam ser pensados “como fatos sociais realizados ou imperativos morais” mas antes como “objetivos de política pública [que servem] como recursos políticos de valor indeterminado nas mãos daqueles que querem alterar o curso das políticas públicas”.

A expedição da normativa do CNDH trazendo soluções garantidoras de direitos humanos e medidas preventivas em situações de conflitos fundiários coletivos rurais e urbanos veio em resposta aos fatores históricos já apontados e em meio a um cenário de agudização dos conflitos fundiários coletivos. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 1985 e 2016 foram 1.387 casos em conflitos no campo, com 1.834 pessoas assassinadas. Deste total, apenas 112 casos foram julgados, e apenas 31 mandantes destes assassinatos foram condenados. A mesma fonte, citada na exposição de motivos da RES10, estima que apenas 6% das mortes por conflitos no campo são investigadas no Brasil (CPT, 2017). Em contrapartida, a criminalização de defensoras e defensores de direitos humanos tem crescido vertiginosamente, especialmente a violência contra a ocupação e a posse. 9 Ainda, pesquisa recente identificou aumento de violência contra lideranças quilombolas em 350% no período de 2016 e 2017 ( Terra de Direitos e Conaq, 2018).

Munido de tal conjunto de elementos e após realizar diversas missões 10 em casos de grande repercussão nacional para investigar contextos de violações de direitos humanos foi que o CNDH criou, em agosto de 2017, um “ Grupo de Trabalho para propor medidas que garantam os direitos humanos em conflitos coletivos possessórios rurais e urbanos11 . Após sua estruturação, o trabalho do grupo se desdobrou em diversas ações. Um dos pontos centrais foi a proposição de uma resolução capaz de conferir maior efetividade às soluções até então discutidas caso a caso pelo Conselho, adotadas só depois de advindos os conflitos, no intuito de passar a enfrentar as suas causas comuns ( CNDH, 2017). Para estruturar uma minuta, o grupo analisou documentos com força normativa nacionais e internacionais, além de recomendações e orientações internas de órgãos públicos e do sistema de justiça, muitas das quais aparecem no preâmbulo da resolução aprovada. Ainda, foram ouvidos os atores relevantes na temática, entre eles movimentos sociais, organizações da sociedade civil, a academia e associações profissionais, para que o conteúdo contemplasse a complexidade e diversidade de situações de conflitos fundiários no país. Além disso, pretendia-se que o texto final pudesse ser um instrumento útil à prevenção de situações de violações de direitos em despejos, que eram frequentemente relatadas ao Conselho. Neste sentido, o diálogo foi realizado tanto com atores do sistema de justiça quanto com movimentos sociais e organizações da sociedade civil que acompanham conflitos fundiários.

Desde sua publicação no final de 2018, levantamos as decisões judiciais que fizeram referência à RES10 do CNDH até o presente momento. Para formação da base de dados, inicialmente consultamos o portal de busca JusBrasil na modalidade “Jurisprudência” usando como critério “RES10/2018 CNDH” e “Resolução 10 Conselho Nacional de Direitos Humanos”. Após ler todas as entradas e excluir aquelas que não tinham conexão com o objeto, registramos os casos e nos asseguramos de não versarem sobre o mesmo conflito antes de prosseguir. Uma segunda base de dados foram as informações fornecidas pela assessoria jurídica popular em busca ativa. Graças a essa coleta, computamos dois casos nos quais a defesa dos ocupantes se valeu da normativa do CNDH para fazer frente ao despejo e que não apareceram na consulta online: a comunidade de Cajueiro (MA) e a ocupação na Ilha do Mel (PR).

Nossa base de dados finalizada resultou em 8 casos:

  1. 1. Acampamento Dalcídio Jurandir/ Fazenda Maria Bonita (PA)
  2. 2. Pau d’Arco/ Fazenda Santa Lúcia (PA)
  3. 3. Araguaia / Três Lagos (PA)
  4. 4. Vila do Arvoredo (SC)
  5. 5. Quilombo Coração Valente (SP)
  6. 6. Bairro Paulo VI, Conselheiro Lafaiete (MG)
  7. 7. Ilha do Mel (PR)
  8. 8. Cajueiro (MA)

Após consulta nas bases de acompanhamento processual dos tribunais competentes não foram encontradas decisões judiciais no caso de Cajueiro aplicando a Resolução 10, motivo pelo qual apesar de citado, este conflito ficará fora da análise do presente artigo, deixando-nos com apenas sete casos. Se tivéssemos utilizado bases de dados como portais de busca pública na internet, considerando notícias e manifestos de movimentos para reconstruir os usos da normativa do CNDH, por exemplo, possivelmente encontraríamos outros conflitos fundiários. Sobre o uso também extrajudicial da RES10 e efeitos dela decorrentes, há pesquisa em elaboração pela organização de direitos humanos Terra de Direitos. Aqui, porém, optamos por restringir-nos à interação entre os sujeitos coletivos de direito e as instituições judiciais.

Examinaremos os dados seguindo a perspectiva interacionista tendo em vista o caráter mutuamente constitutivo entre sujeitos coletivos organizados e o Estado ( Szwako e Lavalle, 2019). Tal tarefa já foi vastamente empreendida na literatura internacional ( Goldstone, 2003; Meyer, Jenness e Ingram 2005) e brasileira ( Moura de Oliveira e Dowbor, 2020), sendo que a relação constitutiva entre Estado e movimentos sociais já foi analisada na perspectiva do movimento de mulheres (Abers e Tatagiba 2014) e LGBT ( Pereira, 2020) em particular. Nós percorreremos a agenda de pesquisa da institucionalização de demandas vindas “de baixo para cima” deslocando o foco do CNDH, um espaço formatado para absorver demandas da sociedade civil, tematicamente familiarizado com conflitos fundiários, para as instituições de justiça, burocracias menos permeáveis à participação popular e tematicamente reativas ao tema.

Em razão da interação discursiva, significados, valores, compromissos e visões de mundo são criados no interior e ao redor dos ambientes organizacionais, sujeitando os indivíduos a referências múltiplas e, por vezes, forçando os membros de um grupo a enquadrar suas categorias de acordo ( Berger e Luckmann, 1967; Phillips e Hardy, 2011). Pelo convívio de lógicas conflitantes ao redor, as ações societais, organizacionais e individuais não apenas se reproduzem, podendo também ser transformadas. Sem a agência e a subjetividade dos indivíduos não há espaço para mudança, e se não estivessem disponíveis múltiplas lógicas institucionais para fornecer interpretações alternativas, tais sujeitos dificilmente encontrariam bases para a resistência ( Friedland e Alford 1991). Ainda, no interior dos “campos organizacionais”, no caso em exame as instituições de justiça, coexistem lógicas múltiplas ( DiMaggio e Powell 1991; Scott 1995), portanto não descartamos a possibilidade de encontrar nuances nas respostas fornecidas pelos julgadores. Identificar qual, entre todas as ações possíveis, um magistrado escolhe quando confrontado com um despejo coletivo, está entre os nossos objetivos. Fornecer exemplo empírico da agência de um grupo de movimentos sociais na transformação de uma política pública no Brasil é outra contribuição da presente pesquisa.

Convém circunscrevermos o otimismo dos movimentos sociais quanto ao potencial da RES10 para garantia do direito à moradia e a segurança na posse, pois ao mesmo tempo que novos regulamentos oferecem um potencial de mudança, a agência dos atores não pode ser subestimada na análise. Para examinarmos o impacto da RES10 do CNDH nas decisões judiciais, nosso referencial teórico empresta do neoinstitucionalismo sociológico a ideia de que instituições seriam sistemas simbólicos que, provendo esquemas cognitivos e modelos morais, fornecem ‘padrões de significação’ aos indivíduos ( Hall e Taylor, 2003). Assim, em uma perspectiva social construtivista da realidade, as práticas que estruturam a ação individual e ganham status de regra dentro de determinado agrupamento humano também configuram um tipo de institucionalização ( Meyer e Rowan, 1977; Di Maggio e Powell 1983). Os integrantes das carreiras do direito, advogados, magistrados e procuradores, por sua vez, partilham uma “visão profissional” que engloba práticas discursivas alojadas no interior dessa comunidade de praticantes, entre elas um conjunto de padrões socialmente organizados de enxergar e perceber os acontecimentos ( Goodwin, 1996). Algumas destas estruturas cognitivas seriam tão predominantes entre grupos profissionais que os indivíduos as tomariam como garantidas, independente de evidência objetiva. O entendimento do caso e a interpretação da lei pertinente por juízes, que detém o poder de aceitar, rejeitar ou modificar as evidências que lhes são apresentadas, seria afetado por essa perspectiva situacional ( Campbell, 2020). Graças a tal circunscrição da racionalidade, concordamos com Simon (1957) que a aprendizagem individual nas organizações, como aquelas a seguir estudadas, não é um fenômeno solitário, mas sim um acontecimento social. Passaremos à análise empírica da recepção normativa da RES10 pelo sistema de justiça e, quando possível, discorreremos sobre o uso da gramática judicial pelos sujeitos coletivos quando em litígio.

O uso da RES10 do CNDH em demandas judiciais

O caso (1), do Acampamento Dalcídio Jurandir, está localizado no município de Eldorado do Carajás (Pará), às margens da BR-155. Em meados de 2008 aproximadamente 200 pessoas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) ocuparam as áreas da Fazenda Maria Bonita e da Fazenda Três Lagoas do banqueiro, pecuarista, especulador de propriedades rurais e minerador Daniel Dantas ( Schmidt, 2017). Pouco tempo depois, uma ordem de reintegração de posse foi concedida pelo juiz competente em favor do proprietário tabular. O despejo, no entanto, não aconteceu. Iniciou-se uma tratativa com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) que sinalizou com a possibilidade de aquisição onerosa da área. Transcorridos anos, já após consolidado o assentamento, a Vara Agrária de Marabá deu decisão revigorando a liminar de desocupação da área. No final de 2019, o Ministério Público opinou pela conversão da ação em perdas e danos e pelo indeferimento do pleito de reintegração de posse ante o descumprimento da função social da propriedade. Mesmo assim, o pedido da Requerente de ser reintegrada na posse foi concedido pelo juiz em exercício em fevereiro de 2020.

Identificou-se que a RES10 foi mencionada pelo juiz do processo em três ocasiões: duas em decisões interlocutórias ( TJPA, 2019a e 2019b) e uma na sentença ( TJPA, 2020a). Todas as decisões foram favoráveis à reintegração de posse, ou seja, ao despejo dos ocupantes. Quanto à RES10, em todas as decisões o magistrado frisou sua independência funcional face à resolução, aduzindo ainda que a RES10 não seria norma cogente, ou seja, não obrigaria nem o magistrado – o qual pode decidir conforme o “livre convencimento motivado”, princípio estabelecido no Código de Processo Civil em seu artigo 371 12 – nem o Poder Público. Na sua primeira referência à RES10 o magistrado afirmou que alguns dispositivos excederiam o escopo possível do processo judicial e contrariariam regras constitucionais e infraconstitucionais. Em termos de rebatimentos práticos da resolução, rejeitou a imposição de obrigação ao Poder Público de prévia elaboração de plano de remoção e reassentamento.

No tocante ao conteúdo da RES10, o juiz afirmou que muito já era feito antes de sua edição, vez que previstas normativas a respeito de conflitos possessórios coletivos em outros documentos de uso comum pela jurisdição que integra, uma das Varas Agrárias do Pará. De toda forma, novamente utilizando o argumento do livre convencimento motivado - agora para justificar a liberalidade em acatar, ao menos em parte, conteúdos da RES10 - citou-a para requerer ao Poder Público Municipal que providenciasse adequada assistência social aos ocupantes por ocasião do despejo, bem como que elaborasse plano de realojamento, ainda que provisório, das famílias. Pelo que se infere em consulta ao sistema de acompanhamento processual em 01 de setembro de 2020, a remoção ainda não ocorreu. Os atores envolvidos, quando consultados, atribuíram a demora no despejo à falta do referido plano, e possivelmente em consequência da pandemia da COVID-19.

Decorridos 11 anos da ocupação e a despeito das manifestações de preocupação com o iminente despejo das mais de 2 mil pessoas ( Barbosa, 2019) vindas do CNDH, do reitor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará e do prefeito de Eldorado de Carajás, o magistrado da vara agrária afirmou: “Não se está a refutar a importância dos movimentos sociais, mas apenas reconhecendo que o princípio da função social não enseja a prática da auto-tutela”.

No caso (2), da Fazenda Santa Lúcia, localizada no município de Pau D’Arco (Pará), a RES10 também foi citada. Trata-se de disputa em trâmite na Vara Agrária de Redenção, desde 2013 movida pelo proprietário da fazenda, Honorato Babinski Filho. Em 2017 a área foi palco de um massacre no qual dez camponeses foram executados por policiais na maior chacina do campo desde o Massacre de Eldorado dos Carajás ( Tinoco, 2017). Desde então, os sobreviventes e as 150 famílias continuam vivendo sob ameaça de reintegração de posse. A remoção dos ocupantes estava prevista para acontecer no fim de janeiro de 2020. No entanto, diante de recurso da associação que representa os ocupantes sublinhando o conteúdo da Resolução 10 do CNDH, a medida foi suspensa pela juíza Elaine Neves de Oliveira durante as férias do titular da vara. Na decisão de 23/01/2020, pouco antes da data esperada para a retirada das famílias, o cumprimento da ordem de reintegração foi condicionado à realização de uma audiência pública com a participação dos órgãos municipais e responsáveis pela política de reforma agrária “para fins de colaboração com um plano de remanejamento das famílias”.

Na reunião ocorrida em fevereiro de 2020 para “discutir a forma, data e prazo para o cumprimento do mandado de liminar de reintegração de posse” a RES10 também foi citada pelo juiz titular, Haroldo Silva da Fonseca ( TJPA, 2020b). Na presença das partes e perante o juízo, o Ministério Público se disse favorável à suspensão do feito e concessão de prazo razoável para possibilitar uma negociação, conforme requerido pela defesa dos ocupantes. Inobstante, a referida “ Audiência Pública de Desocupação Voluntária e Elaboração de Plano de Remoção” foi concluída com o agendando da desocupação para junho de 2020. Embora tenha permitido que se aguardasse o resultado de nova negociação das partes com o INCRA, o magistrado manteve a realização do despejo. Ainda, determinou o envio de ofícios aos órgãos públicos no ínterim, para diversos objetivos, dentre eles a busca de outra área para reassentamento das famílias junto ao órgão agrário federal. O juiz desde logo estabeleceu o plano de remoção para o caso, a ser realizado na sequência, na eventualidade de não haver acordo entre as partes.

A RES10 foi mencionada pelo magistrado, citando seu artigo 16, incisos I a III, para fundamentar o modo como este estabeleceu o plano de remoção das famílias, e os detalhamentos quanto às obrigações do ente municipal. Também se referiu ao artigo 18 da Resolução nº 10/2018 vedando a realização do despejo durante mau tempo, à noite, nos finais de semana, dias festivos ou litúrgicos. Atualmente, conforme última decisão dada em fins de agosto de 2020, a liminar de desocupação encontra-se suspensa até a estabilização da pandemia do COVID-19 na região Sul do Pará.

No caso (3) da ocupação às margens do Rio Araguaia, no município de Conceição do Araguaia (Pará), o assunto é a irregularidade de casas construídas em área de preservação. O proprietário da área particular moveu em 2017 ação de reintegração de posse em face da Associação representativa dos ribeirinhos na Vara Agrária de Redenção. A reintegração foi concedida em desfavor dos ocupantes que residem e plantam suas culturas desde meados de 2015 no local. O magistrado, atendendo a pedido feito pelo Ministério Público apoiado na Resolução 10 do CNDH, determinou a realização de audiência pública e a intimação dos órgãos responsáveis para “propor meios pacíficos de solução do litígio”. Em 2018, na primeira decisão concedendo a reintegração, o magistrado deu liminar sem ouvir a parte contrária, ou inaudita altera parte ( TJPA, 2018). Porém, a magistrada que decide após provocação do Ministério Público sobre a RES10 vai além de deferir a mera designação de audiência prévia e determina intimação pessoal dos ocupantes para “primeiro identificar/qualificar os requeridos para compor a lide e contestar”, “facultar-lhes prazos para desocupação voluntária” ( TJPA, 2019c). A audiência não ocorreu, havendo certidão de setembro de 2019 que a reintegração foi suspensa pelo Tribunal de Justiça daquele estado.

Quanto ao caso (4), da Vila do Arvoredo (Santa Catarina), trata-se de ação civil pública ajuizada pela Defensoria Pública estadual em face da Fundação Municipal do Meio Ambiente – Floram e do Município de Florianópolis, a fim de impedir demolições de residências irregulares não apenas naquela Vila, mas nas demais ocupações irregulares da capital do estado. A prática de demolir moradias instaladas em áreas públicas e de preservação permanente deveria ser precedida de processo administrativo devidamente instruído, embora em vários casos não o seja, deixando em aberto a possibilidade dos moradores se encontrarem em suas residências. Ao invés dos entes responsáveis constatarem, via fiscalização anterior, estar desabitada, a execução da demolição é realizada no mesmo momento em que é lavrado o auto de infração ambiental, ou seja, atesta-se o “abandono” da moradia em um só ato, contrariando a legislação ambiental e permitindo a demolição do único abrigo de famílias pobres. Foi o que aconteceu com cerca de 40 edificações na Vila do Siri em 2017.

A Defensoria requereu diversas medidas do município de Florianópolis, tanto de estudo de regularização fundiária, quanto de, em caso de impossibilidade, elaboração de plano prévio de remoção e realocação das famílias vivendo em assentamentos irregulares. Ao longo da peça endereçada à Vara da Infância e Juventude de Florianópolis, a necessidade de garantias para não-violação dos direitos das crianças moradoras é ressaltada. O objetivo principal era a tutela dos direitos individuais e coletivos de “crianças, adolescentes, assim como de suas famílias, as quais tiveram suas moradias destruídas pelo Município de Florianópolis, bem como o direito difuso de todas aquelas que, por ilegalidade ou abuso de poder, poderão perder seu abrigo”. A Defensoria mobilizou a RES10 em duas oportunidades: (a) para uma concepção geral do tema, constituição do despejo enquanto violação de direitos humanos e necessidade de soluções garantidoras de direitos; quanto especificamente para (b) enfatizar necessidade de elaboração prévia de plano de remoção e reassentamento.

Todavia, a decisão judicial em seguida adentrou somente na discussão acerca da incompetência da vara judicial na qual a ação fora ajuizada, entendendo não haver provas concretas “de que crianças e adolescentes foram efetivamente ou se encontram ameaçados de serem retirados de suas residências por suposta ação ilegal dos réus.” ( TJSC, 2019). A magistrada ignorou o conteúdo da normativa do CNDH e se declarou incompetente com base em resolução definindo a distribuição de competência no interior da justiça estadual de Santa Catarina, remetendo o caso à Vara da Fazenda Pública. Não foi possível identificar no processo eletrônico outras decisões, nem mesmo de outras varas judiciais, tratando do caso.

Quanto ao caso (5), da ocupação urbana “ Quilombo Coração Valente”, em Jacareí (São Paulo), trata-se de ocupação em terreno particular que chegou a abrigar mais de 1.180 famílias sem-teto ( Leite, 2018). A provocação do Judiciário aconteceu via ação civil pública ajuizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em face dos entes públicos municipal e estadual. Em nome dos possuidores, a Defensoria, na condição de representante legal, postulou para: (a) impedir a remoção administrativa ou judicial dos ocupantes sem o devido processo legal e cumprimento das diretrizes da RES10, inclusive com Plano de Remoção e Reassentamento; (b) inscrição dos ocupantes em políticas habitacionais e/ou alternativas imediatas e definitivas; (c) se necessário, a remoção nos limites da Resolução 10, do CNDH, que seja disponibilizada locação social ou auxílio-moradia. Quando provocado, o Ministério Público opinou pela determinação de cadastro e inscrição dos ocupantes nos programas de desenvolvimento urbano do município, analisando casuisticamente a situação de cada família integrante da comunidade.

Os pedidos, no entanto, foram rejeitados liminarmente pelo magistrado da Vara da Fazenda Pública de Jacareí ( TJSP, 2019), que considerou não ser possível impor aos entes públicos tal obrigação de não remover as famílias, por ser particular a área ocupada, e não pública. Aduziu ainda que o cadastramento dos ocupantes estaria prejudicado pela desocupação voluntária da área. Não tratou do conteúdo da RES10. Como justificativa de seu posicionamento, afirmou:

não se está aqui a fechar os olhos para o problema social da falta de moradia. Entretanto, não será por decisões judiciais que, em detrimento do direito constitucional de propriedade, legitimem ou façam perdurar esbulhos possessórios evidenciados (reconhecidos em ação de reintegração de posse) que o problema poderá ser resolvido. Ademais, o atendimento ao princípio da função social da propriedade deve se conformar aos requisitos constitucionais e legais que o disciplinam e não servir de justificativa para comportamentos ilegais que se travestem de justiça social ( TJSP, 2019).

Em outra decisão, já na fase recursal, a RES10 foi suscitada. A procuradora dos ocupantes questionara, em seu recurso, não ter sido analisada a aplicabilidade da RES10 no caso, sobretudo quanto às orientações sobre a condução do processo, a compreensão do despejo como ultima ratio e a necessidade de elaboração de plano de remoção e reassentamento. No entanto, tal pedido foi rejeitado pelo magistrado ( TJSP, 2020), sob o argumento de que o caput do art. 7º da RES10 delimitaria o escopo da resolução aos casos onde estiverem presentes os “princípios da cooperação, boa-fé, busca da autocomposição e do atendimento aos fins sociais”. Em sua decisão, o juiz entendeu que estes não estariam presentes na conduta dos requeridos por haver suposta “ocorrência de comercialização de parcelas do terreno ocupado, evidenciando, em princípio, que a invasão não busca fins sociais”.

Trata-se de uma leitura objetivamente equivocada do conteúdo do referido texto legal, o qual menciona estes princípios como balizadores para a atuação do(a) juiz(a) nos casos em que se tratar de conflito fundiário coletivo. Como vimos anteriormente, o escopo de aplicabilidade da RES10 está delineado no seu art. 1, caput, e abrange explicitamente os conflitos envolvendo população de baixa renda e trabalhadores e trabalhadoras sem teto.

Quanto ao pedido de elaboração de plano de remoção e reassentamento, este também foi de pronto rejeitado pelo magistrado. Os ocupantes, em seu recurso, haviam pleiteado a suspensão do despejo ante, dentre outros motivos, a possibilidade de autocomposição e solução pacífica do conflito, comunicando que o prefeito local concordara com a possibilidade de permutar uma ou mais áreas públicas pela área ocupada. Contudo, o magistrado utilizou esta assertiva para afirmar que isto, ao contrário do argumento dos sujeitos coletivos, denotaria que o ente público forneceria algum amparo às famílias. Analisando o caso, vê-se que a Recorrente informara esta como uma possibilidade, porém ainda incerta e sem data para acontecer, de ganhar tempo, permanecer na área, e barganhar a política pública de moradia, mesmo se em outro local. Para o decisor, porém, a aparente existência de alternativa concreta de reassentamento das famílias fundamentou sua rejeição da proposta de plano de remoção e reassentamento. Sua decisão não só interpretou equivocadamente a defesa formulada pelos movimentos sem-teto como ignorou a normativa garantidora de soluções alternativas do CNDH, deixando as famílias em situação de vulnerabilidade ante o despejo.

No caso (6) do Bairro Paulo VI, no município de Conselheiro Lafaiete (Minas Gerais), o Ministério Público do Estado de Minas Gerais ajuizou ação civil pública contra ocupantes que se encontram desde 2012 em imóvel situado em área de preservação permanente, em terreno municipal. Foi determinada a desocupação da área e a demolição da “obra clandestina erguida no local” pelo juízo de primeiro grau. A parte Requerida recorreu da decisão ao Tribunal de Justiça argumentando ser injusto que apenas ela fosse obrigada a deixar o imóvel, já que além de possuir vários vizinhos, sempre recebeu os serviços prestados por concessionárias de serviço púbico, como energia elétrica, água e telefone fixo.

A RES10 não apareceu nem na petição nem na ementa vitoriosa, só em voto vencido de autoria da desembargadora Sandra Fonseca ( TJMG, 2019). A juíza, em voto dissidente, afirmou que a ocupação do imóvel não se deu de forma clandestina e de má-fé, exercendo a posse de forma pacífica no local, sem qualquer oposição do município, “inclusive tendo requerido a regularização da situação do imóvel junto à prefeitura, solicitando ligação de água e luz”. Votou em divergência ao relator do caso para condicionar a desocupação à indenização das benfeitorias edificadas no local pelo ente municipal. Citou a íntegra do Art. 14 da referida normativa do CNDH prevendo, em seus parágrafos, as circunstâncias nas quais as remoções não devem ser realizadas, bem como o Art. 15 a respeito da elaboração de plano prévio de remoção e reassentamento.

Em relação ao caso (7) da Ilha do Mel (Paraná), verifica-se que a decisão foi proferida em 2ª instância, no contexto de recurso ao Tribunal de Justiça do Paraná manejado pelos representantes dos possuidores para evitar despejo. Ou seja, a defesa recorreu contra decisão liminar de reintegração de posse oferecida pelo órgão ambiental estadual, o Instituto Água e Terra (IAT) contra ocupação recente de famílias em área de reserva técnica da Ilha do Mel, a qual é tipo de unidade de conservação “estação ecológica”. Conforme petição dos ocupantes, as famílias que residem na área são caiçaras e já eram residentes da ilha, porém estavam ou em coabitação forçada ou não conseguiam mais pagar aluguel face à crise econômica durante a pandemia do Covid-19. A liberação de lotes para moradia era uma demanda histórica dos nativos junto ao órgão ambiental, e a situação se agudizou com a revisão de lei estadual 13 sobre a ilha em meio à pandemia, sem possibilidade de participação popular efetiva.

No recurso em análise, a RES10 foi suscitada para que a decisão de reintegração de posse fosse reformada, com ampliação do prazo para desocupação e elaboração de plano de remoção e reassentamento. O magistrado rejeitou o pedido, sem adentrar no tópico da RES10 ( TJPR, 2020). Ressalvou posicionamento diverso em outros casos, mas apontou que, no caso em questão, havia “quadro forjado pelos próprios invasores”, por terem ocupado a área ambiental em meio à pandemia, para “coação do Poder Público” frente ao projeto de lei. Aduziu ainda que prorrogação do prazo de desocupação “inspiraria nos associados da agravante a indevida expectativa de direitos que eles de antemão sabem não ser detentores”.

Efeitos institucionais da nova normativa sobre despejos

Dos sete casos identificados, três eram casos referentes a conflitos fundiários urbanos e 4 de conflitos fundiários rurais. A maioria cita sujeitos coletivos, organizados em associações ou movimentos, sendo que apenas no caso (6) não foi possível identificar representação dos ocupantes. Observou-se que, majoritariamente, o conteúdo da RES10 foi trazido à discussão pela parte, seja por advogado ou pela Defensoria Pública, ou ainda pelo Ministério Público na função de fiscal da lei que exerce nos conflitos possessórios coletivos. Ou seja, a RES10 somente foi mencionada no âmbito da fundamentação judicial dos juízes quando suscitada, e não ainda de forma autônoma, impulsionada pelo próprio Juízo ao fundamentar a decisão. Por vezes, o Judiciário adota uma postura que desmerece a luta dos sujeitos coletivos, como ao colocar em dúvida a boa-fé dos ocupantes e os fins sociais das ocupações urbanas ou rurais (casos 5 e 7). Tal achado corrobora que as interpretações emanadas em decisões judiciais mobilizam categorias político-jurídicas estigmatizadoras como a do invasor, deslegitimando os ocupantes da condição de sujeito de direitos, impedindo o acesso à justiça de maneira igualitária ( Pereira et al., 2019). Este cenário ecoa a estratificação identificada por José Murilo de Carvalho dos tipos de cidadania e o respectivo desigual acesso à garantia de direitos no Brasil, que são os doutores, os cidadãos simples e, por último, os elementos, que ou ignoram seus direitos ou tem estes sistematicamente violados, sendo sempre tratados como “caso de polícia” ( Carvalho, 2002).

O exercício de investigar o contexto histórico nos quais as instituições foram forjadas é relevante para entendermos como as preferenciais dos atores e seu comportamento judicial estão estruturadas ( Gillman e Clayton, 1999). Desde o Império, a tradição das escolas de pensamento, a produção de doutrina e a legitimidade política para enunciar a justiça no Brasil estavam diretamente relacionadas com a posição ocupada no Estado e com os laços mantidos com as Escolas Europeias. No exercício de suas funções judiciárias, os desembargadores reproduziam na colônia todas as idiossincrasias corporativas alimentadas na metrópole. A partir dos anos da República, as capacidades técnicas surgem como um meio de legitimar um tipo ilustrado de “autoritarismo” nas profissões brasileiras, particularmente na Medicina e no Direito, com base na competência real ou presumida dos técnicos ( Carvalho, 2010).

Foi possível identificar um esprit de corps em certas decisões nas quais os magistrados destacam a separação entre os poderes e situam a tarefa de garantir acesso à política pública, de moradia ou reforma agrária, fora do escopo do Judiciário. O magistrado do caso (1), do Acampamento Dalcídio Jurandir, registra seu desacordo com a normativa vinda do Conselho Nacional de Direitos Humanos dizendo que a decisão quanto ao cabimento da reintegração da posse, tomada no bojo dos autos e embasada no livre convencimento motivado “não se vincula às ingerências de outros Poderes ou setores da sociedade”. Ele prossegue para elencar uma lista de imposições feitas pela RES10 ao magistrado que “carecem de assento legal”. Não por acaso o primeiro artigo da normativa elencando como seus destinatários os agentes e as instituições do Estado têm o aposto “inclusive do sistema de justiça”. O assunto foi objeto de discussão nas reuniões do CNDH e optou-se por manter o destaque.

Também no caso (5) do Quilombo Coração Valente a solução aos conflitos possessórios é posta fora do alcance das decisões judiciais que, se concessivas, seriam “em detrimento do direito constitucional de propriedade”. A postura da magistrada de Jacareí entra em choque com a visão da RES10, em particular com o Art. 4º, ao estabelecer que a função social da propriedade não deve “servir de justificativa para comportamentos ilegais que se travestem de justiça social”. Seguindo uma perspectiva crítica, as normas urbanísticas que costumam ter eficácia “são aquelas que viabilizam os negócios imobiliários e outros ramos afins” ( Carvalho et al., 2016). No caso (3) o magistrado afirma que por tratar-se de área de preservação permanente “a função social a ser observada é essencial e exclusivamente ecológica, relacionada a preservação do meio ambiente, concebido como direito fundamental de terceira dimensão, garantindo-o presente e futuras gerações”.

Nos conflitos coletivos judicializados, a RES10 recomenda verificar: a) se o autor da ação possessória demonstrou a função social da posse do imóvel; b) se comprovou o exercício da posse efetiva sobre o bem; e c) cumulativamente, em caso de posse decorrente de propriedade, se apresentou título válido (inciso V, art. 7º). Tal roteiro, bem como o direito à permanência dos ocupantes, não são levados em conta pelos decisores. Esse traço não é novo nos debates sobre a democratização da justiça. Há, no Brasil, uma cultura jurídica de distanciamento em relação à realidade socioeconômica da população marcada por “uma compreensão de que o Judiciário não tem o dever, ou sequer competência funcional, para dirimir conflitos que fujam dos binômios civil-contratual ou criminal-controle social” ( Escrivão Filho, 2015).

Na perspectiva dos ocupantes de assentamentos irregulares, as instituições do sistema de justiça são ainda mais distantes do que outras instituições estatais que foram, ao longo da trajetória democrática, tornando-se mais permeáveis à participação popular. As semelhanças sociodemográficas entre os atores que integram as instituições de justiça no Brasil permitem que se fale em uma elite judiciária. O grupo de profissionais das carreiras públicas – juízes, promotores e mais recentemente defensores públicos – é majoritariamente composto por homens brancos, provenientes de famílias das classes média ou alta ascendentes no Sudeste do Brasil. O recrutamento da elite judicial através de instituições de ensino é condicionado pelas admissões numa determinada faculdade; por conseguinte, a posição social da família do candidato é primordial para os ingressantes ( Vianna et al., 1997; Almeida, 2010).

Ainda no ponto das atribuições do Judiciário, para reconhecer o potencial da mudança social encontramos uma única decisão inclinada a substituir a perspectiva jurídica convencional por uma abordagem política do direito, portanto mais alinhada às demandas emanadas dos movimentos sociais. No caso (6), do Bairro Paulo VI, vê-se esta exceção, na qual a RES10 é usada, ao lado de outros diplomas internacionais como o Comentário Geral nº 07, do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais, e Culturais da ONU e o Pacto de San José da Costa Rica da OEA, para sustentar posição minoritária na 6ª Câmara Cível do TJMG e no nosso universo de decisões em exame. A desembargadora contraria a orientação normativa de que em se tratando de ocupação irregular em imóvel de propriedade do Município, a hipótese é de mera detenção, de natureza precária e insuscetível de indenização por acessões e benfeitorias. Convida os demais decisores a uma reflexão mais profunda, “abalizada não somente em princípios do Direito Civil e Administrativo, mas, principalmente, nos postulados constitucionais” sobre o direito à indenização por benfeitorias.

Em seu voto, a decisora se apoia em precedente da mesma Câmara a respeito da “Ocupação Izidoro”, na cidade de Belo Horizonte/MG para defender o resguardo da dignidade humana dos moradores de imóvel irregular no município de Conselheiro Lafaiete. Embora não o cite, a juíza concede operabilidade ao texto do Art. 8º, inciso VII da RES10: “Os procedimentos [de busca de soluções garantidoras de direitos humanos] devem buscar aplicação de instrumentos de acesso à terra e ao território estabelecidos nas legislações pertinentes, maximizando a implementação do direito à permanência”. A postura dessa decisora empresta sentido à retomada do significado social dos princípios de autonomia e independência do magistrado, associado a uma garantia à sociedade e não um meio de “auto-blindagem” da instituição ( Escrivão Filho, 2015).

Os três casos do Pará tramitaram em Vara Agrária, a qual adota o modelo existente em alguns Estados brasileiros de possuir uma jurisdição especializada para tratamento dos conflitos agrários, sobretudo conflitos fundiários coletivos 14 . Embora não haja consenso sobre a especialização de jurisdições em conflitos coletivos possessórios, certo é que se o representante do Judiciário encarregado de decidir os casos tiver uma visão reativa aos movimentos sociais e suas lutas o desenho institucional sozinho pouco ajudará. Alinhamo-nos aos críticos 15 às concepções do direito como um conjunto de regras e procedimentos objetivos que resultaria na aplicação mecânica da lei pelos julgadores por serem estes imunes a interesses políticos, econômicos ou sociais.

Certo jurista fez um relato hipotético supondo um juiz de direito atuando em região de agudo conflito agrário que se coloque, quer intencionalmente ou não, do lado dos proprietários rurais, e se empenhe em distribuir condenações criminais contra todos os que atuem pela reforma agrária, julgando improcedentes as ações intentadas por essas mesmas pessoas. Considerando que a existência de interesse pessoal do magistrado na solução das lides submetidas à sua decisão é de difícil comprovação, as regras processuais concernentes à suspeição do juiz não têm, em princípio, aplicação ( Comparato, 2004).

Esse cenário, que é menos hipotético do que se imagina, dificulta a atuação daqueles que reivindicam o direito à terra rural e urbana dentro das instituições judiciais e sua presumida imparcialidade. Ocorre que os constrangimentos legais aos quais os juízes estão sujeitos não os inibem de expressar suas preferências na decisão dos casos levados a sua apreciação ou do desejo de ver suas preferências políticas maximizadas ( Gillman e Clayton, 1999; Epstein e Knight 1998). Motivos pessoais, como percepção da justiça e orientações ideológicas, e profissionais, entre eles preocupações com a reputação, influenciam a tomada de decisões judiciais ( Harnay e Marciano 2003; Bar-Niv e Lachman 2010). Em um dos casos apresentados, o defensor dos sem-terra afirmou à imprensa que “a vara agrária atua como despachante de latifundiário” e arguiu a suspeição do magistrado no processo. Seu pleito não teve sucesso, apesar do histórico polêmico do referido decisor. A seccional paraense da Ordem dos Advogados requereu instauração de processo disciplinar em face do magistrado por suas “condutas incompatíveis com as atribuições do cargo de magistrado” e afirmando utilizar-se “de inúmeros termos que não se coadunam com a dignidade de sua função” ( Vasconcelos, 2013). Até onde se tem registro, o magistrado não foi punido pelos seus pares. Diferente de outros cargos sujeitos ao voto popular, os magistrados não precisam maximizar suas chances de serem reeleitos, deixando-os mais livres para perseguir seus objetivos do que representantes eleitos ( Segal e Spaeth, 1995). Há evidências de que os juízes tendem a decidir casos de forma a favorecer seu perfil demográfico (Rachlinski e Wistrich, 2017; Boyd, 2016); assim, uma composição mais diversa das carreiras jurídicas de Estado com indivíduos socializados em realidades mais próximas daquelas de pessoas vivendo em assentamentos informais poderia incorporar variações na produção judicial.

Diante do que vimos, para tornar as instituições judiciais mais permeáveis às demandas oriundas da sociedade civil, além de discutir a política pública setorial judicialmente, os movimentos dependem de uma agenda de democratização da justiça. O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) citado entre os “Considerandos” da resolução prevê “a promoção de um sistema de justiça mais acessível, ágil e efetivo, para o conhecimento, a garantia e a defesa dos direitos” e, elenca como um meio para tanto o uso da mediação nas demandas de conflitos coletivos agrários e urbanos “priorizando a oitiva do INCRA, institutos de terras estaduais, Ministério Público e outros órgãos públicos especializados, sem prejuízo de outros meios institucionais para solução de conflitos”. Além dessa disposição, outras demandam das instituições judiciais e de seus membros um compromisso com os direitos humanos, mas a determinação do § 3º do art. 1º da RES10 de que “os direitos humanos das coletividades devem preponderar em relação ao direito individual de propriedade” continua sendo uma promessa. O reconhecimento da assimetria entre as partes em litígio: sujeitos coletivos de um lado, e proprietários particulares ou o Estado omisso na política pública de moradia do outro, previsto no artigo 8º da Resolução em atendimento à reivindicação dos movimentos de luta pela terra, tampouco tem sido recepcionado pelas instituições judiciais.

Um ponto merece destaque na atual conjuntura, pois a situação de calamidade pública face à pandemia da COVID-19 tem ensejado, em diversos casos, a suspensão de despejos previamente agendados 16 . Contudo, muitas remoções – administrativas ou por ordem judicial - ainda estão sendo autorizadas e realizadas pelo Poder Público. Este é um grave cenário de violação de direitos, sobretudo porque as famílias de baixa renda, que já possuem acesso precário ao sistema de saúde, moradia, transporte público, acesso à água e saneamento – todos estes essenciais para adequado cumprimento das medidas de combate à pandemia – estão ainda mais vulnerabilizadas, pois duramente atingidas pela perda da fonte de renda em razão da crise econômica. A moradia está na “linha de frente da defesa contra o coronavírus”, em razão do estreitamento do vínculo entre direito à moradia e do direito à vida no atual contexto de pandemia, como dito pela Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Em mensagem ao Estado brasileiro, o Relator asseverou a necessidade de que seja estabelecida uma moratória de todas as formas de remoção no atual contexto, independentemente da situação legal ou fundiária da ocupação 17 .

Frente a isto, mais de 100 organizações da sociedade civil e movimentos sociais, do campo e da cidade, de níveis locais, regionais e nacionais, com apoio de parceiros internacionais, se juntaram para a criação da Campanha Despejo Zero – pela vida no campo e na cidade. Em levantamento importante, porém ainda preliminar, realizado até 31 de agosto deste ano, e certamente muito inferior aos números reais, a Campanha já mapeou que 6.373 famílias foram despejadas durante a pandemia no Brasil e 18.840 estão sob iminente ameaça de remoção 18 . A Campanha Despejo Zero tem denunciado este cenário e demandado uma suspensão geral dos despejos, seja pela aprovação do Projeto de Lei 1975/2020, seja por determinação do Conselho Nacional de Justiça ou dos Tribunais de Justiça.

Conclusão

Ainda que as mudanças legislativas não deem conta de alterar o comportamento daqueles que aplicam as leis, há margem para disputa tanto na construção como na aplicação delas. Partindo da premissa que a institucionalização das demandas da sociedade civil ocorre para além do conjunto de regulamentos formais, já esperávamos que o campo das instituições estatais (um conselho de política pública e também o Judiciário) seria composto de uma série de normas, não só leis, que influenciam o comportamento dos membros nele inseridos. O trabalho que envolveu a construção da RES10 e seu uso em recursos judiciais reflete a luta dos movimentos sociais por uma abordagem política do direito e da mudança. Até aqui, não podemos afirmar que, em consequência disso, tenha-se logrado substituir inteiramente a perspectiva jurídica convencional ( Scheingold, 2004). Porém, os usos que encontramos, dados pelos atores coletivos, representados por instituições públicas como o Ministério Público e a Defensoria Pública, ou por suas próprias assessorias jurídicas, são sinais de que o Judiciário vem sendo demandado a se pronunciar sobre soluções garantidoras de direitos humanos em conflitos possessórios.

Quanto ao conteúdo da RES10 mobilizado, em geral vê-se uma discrepância: de um lado, os litigantes reforçam o conteúdo considerado cerne da resolução, que é a prevenção de despejos, buscando, portanto, alternativas que garantam a manutenção dos ocupantes no local, vez que o despejo deve ser a ultima ratio; de outro, os magistrados, nos casos em que usam a RES10 para fundamentar sua decisão, o fazem para deferir medidas procedimentais de garantia mínima de direitos quando da realização do despejo. Não por acaso, o plano de remoção e reassentamento, uma das passagens mais citadas pelos juízes ao enfrentarem a nova normativa e reagirem aos pedidos formulados por quem dela se socorre, é previsto em capítulo próprio intitulado “Da excepcionalidade do despejo”.

Mais ainda, se observa que em certos casos sequer foi analisada a aplicação da RES10 ao conflito. A normativa foi apenas mencionada pelo magistrado na síntese do processo, mas sem que suas disposições fossem consideradas, como nas decisões no caso da Vila do Arvoredo (4) e da Ilha do Mel (7). Mesmo trazer a RES10 em sua fundamentação de defesa dos direitos dos ocupantes não garante que esta venha a ser analisada pelo Juízo. Aliás, nossa base de dados foi restrita às ocasiões em que decisões emanadas do Judiciário mencionaram a normativa, podendo-se estimar que desde a edição da RES10 no final de 2018 muitos outros movimentos sociais possam tê-la utilizado em recursos judiciais. Elaborar um repositório dos usos dados pelos sujeitos coletivos e seus representantes ao texto aqui estudado seria uma nova pesquisa, cujo resultado contribuiria ainda mais à compreensão da agência dos sujeitos coletivos nas instituições judiciais. Investigar mais a fundo quem são e como decidem os atores das instituições judiciais, bem como onde se concentram os votos dissidentes, que determinam que se efetue uma política pública de acesso à terra, e os potenciais e limites da especialização temática de jurisdições e promotorias também.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
4 A Lei n. 12.986, de 2 de junho de 2014 atribui ao órgão a finalidade de “promoção e defesa dos direitos hu-manos, mediante ações preventivas, protetivas, reparadoras e sancionadoras das condutas e situações de ameaça ou violação dos direitos humanos” (Brasil, 2014).
5 Na pesquisa realizada por Milano, 82% das decisões foram expedidas no bojo de ações possessórias, das quais 97% destas eram ações de reintegração de posse ( Milano 2016).
6 Segundo levantamento da organização Terra de Direitos em 2019, se todas as titulações pendentes fossem realizadas no mesmo tempo médio de duração dos casos já titulados, o Brasil levaria 1.170 anos para titular todas as 1.716 comunidades quilombolas com processos já abertos no INCRA.
7 Os dados da base de dados dos autores foram coletados em 32 processos de primeira instância que tiveram decisão de reintegração de posse concedida em desfavor do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.
8 Prevista no Art. 10 do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal
9 Segundo a CPT, Violência Contra a Ocupação e a Posse (VOP) são as ocorrências de expulsões, tentativas de expulsão, casas e roças destruídas, pertences destruídos, pistolagem. Nessas ocasiões, ocorrem violências contra a pessoa, como assassinatos, ameaças de morte, agressões, entre outras, inclusive ações do Estado como despejos, ameaças de despejos e prisões.
10 Destacam-se entre aquelas dizendo respeito a direitos de matriz econômica, como a disputa pela posse do território, da terra, e da moradia: a chacina de trabalhadores rurais em Conceição do Araguaia (1985); a demarcação das terras indígenas de Raposa Serra do Sol (1987); e o massacre de Eldorado dos Carajás (1996). No cenário mais recente, as missões a respeito do massacre de trabalhadores rurais em Pau D´Arco, no Pará (2017), conflitos envolvendo o agronegócio em Formosa do Rio Preto, na Bahia (2019) e conflitos socioambientais nas comunidades caiçaras da Juréia, em São Paulo (2019).
11 A reunião contou com a presença de representações da Plataforma Dhesca, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Defensoria Pública da União, Secretaria de Direitos Humanos, Justiça Global, Conselho Nacional de Procuradores Gerais, Conselho Nacional de Justiça, Conselho Federal de Psicologia, Conselho Nacional do Ministério Público, Terra de Direitos, Associação Brasileira de Reforma Agrária, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, Ministério Público do Paraná e ONU Brasil.
12 O artigo estabelece que “o juiz apreciará a prova constante dos autos independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”. A nova redação do Código de Processo Civil dada pela Lei 13.105/2015 não inclui a palavra “livremente” estabelecida no artigo 131 do CPC/73 e no art. 118 do CPC/39
13 Projeto de Lei no 262, de 27 de abril de 2020, que transforma o objeto das áreas de reserva técnica, que deixariam de ser áreas de possível assentamento das famílias e passariam a ser incorporadas às áreas de proteção integral. Com isso, desrespeitou-se o direito à alocação de terras para que as comunidades tradicionais pudessem enfrentar seu crescimento numérico, protegido na Convenção 169 da OIT.
14 A respeito do assunto a publicação “Diálogos sobre justiça e conflitos fundiários urbanos: caminhando da medição para a efetivação dos direitos humanos” esclarece e discute desenhos institucionais já postos em prática para tratar conflitos fundiários coletivos, com ênfase nos urbanos.
15 As explicações da tomada da decisão judicial sob a ótica de variáveis externas à lei tornaram-se populares entre os anos 1950 e 1960 nos Estados Unidos, onde o behaviorismo foi ganhando terreno principalmente entre trabalhos da ciência política ( Ethington e McDonagh, 1995). A pesquisa empírica em direito não se desenvolveu no mesmo ritmo que nos sistemas de tradição continental que naqueles de common law (Russell, 2010). No Brasil, graças aos bancos de dados públicos com jurisprudência, o número de estudos nos domínios do Direito e das Ciências Sociais está aumentando nos últimos anos ( Veçoso et al., 2014).
16 Para alguns exemplos, vide a Biblioteca de iniciativas: Direito Urbanístico e Covid-19 do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, disponível em http://www.ibdu.org.br/noticias/biblioteca-de-iniciativas-em-relacao-ao-direito-urbanistico-e-covid-19
18 Dados ainda não publicados, divulgados em evento virtual internacional com a presença do Relator da ONU. Vídeo disponível em: https://www.facebook.com/campanhadespejozero/
Autor notes
1 Agradecemos na pessoa de Benedito Roberto Barbosa aos movimentos sociais envolvidos nas lutas por mudança social e na pessoa de Deborah Duprat, então representante da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) no Conselho Nacional de Direitos Humanos, pela atuação na elaboração dessa normativa e de outras em favor dos sujeitos coletivos dentro das instituições judiciais.

maria.trombini@mwi.uni-heidelberg.deribeiro@terradedireitos.org.br

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