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Recepción: 26 Noviembre 2019
Aprobación: 20 Enero 2020
Resumo: Este artigo discute questões relativas a gênero na ciência, tecnologia e inovação presentes nas trajetórias das oito mulheres cientistas que ocupavam cargos de chefia em um instituto de pesquisa brasileiro, nas áreas espacial e do ambiente terrestre. Com o objetivo de conhecer os incidentes críticos que definiram os percursos profissionais, foi realizada pesquisa de abordagem qualitativa, orientada pelo método biográfico-narrativo e mediante 16 entrevistas em profundidade. As narrativas, transcritas e organizadas em biogramas, permitiram identificar os aspectos singulares e os paradigmáticos presentes em suas trajetórias. Com formação em ciências exatas e da terra, e em engenharias, ambas áreas predominantemente masculinas, as narrativas das cientistas mostraram que sabiam, desde crianças, de suas habilidades e gosto pelas ciências exatas; mantiveram essas habilidades graças à influência dos pais ou outras figuras masculinas; enfrentaram as limitações referentes à conciliação do trabalho, estudo e maternidade; realizaram-se profissionalmente com a conquista de cargos de chefia, sempre permeada por questões de gênero. Considera-se que a ampliação das discussões sobre a temática pode contribuir para estimular as jovens a optarem pela atuação nas áreas espacial e do ambiente terrestre.
Palavras-chave: ciência, tecnologia, gênero, trajetórias profissionais, mulheres cientistas.
Resumen: Este artículo aborda cuestiones de género en ciencia, tecnología e innovación presentes en las trayectorias de las ocho mujeres científicas que ocuparon puestos de liderazgo en un instituto de investigación brasileño, en las áreas del espacio y del medioambiente terrestre. Para conocer los incidentes críticos que definieron sus trayectorias profesionales, se realizó una investigación cualitativa, guiada por el método biográfico-narrativo a través de 16 entrevistas en profundidad. Las narraciones, transcritas y organizadas en biogramas, permitieron identificar aspectos singulares y paradigmáticos de sus trayectorias. Formadas en ciencias exactas y de la tierra y en ingenierías, áreas predominantemente masculinas, las científicas declararon que conocieron a una edad temprana sus habilidades y su gusto por las ciencias exactas; que preservaron estas habilidades gracias a la influencia de sus padres o de otras figuras masculinas; que enfrentaron las limitaciones con respecto a la conciliación del trabajo, los estudios y la maternidad; y que se realizaron profesionalmente al alcanzar puestos de liderazgo, pero su conquista estuvo marcada por cuestiones de género. Se considera que la expansión de las discusiones sobre el tema puede contribuir a que más mujeres jóvenes elijan desarrollarse en las áreas del espacio y el medioambiente terrestre.
Palabras clave: ciencia, tecnología, género, trayectorias profesionales, mujeres científicas.
Abstract: This article addresses gender issues in science, technology and innovation that were present in the careers of eight female scientists who held leadership positions at a Brazilian research institute in fields related to the Earth’s environment and space. In order to know the critical incidents that defined their professional journeys, a qualitative research was conducted, guided through biographical-narrative methods and 16 in-depth interviews. The accounts were transcribed and organized in biograms that allowed the identification of singular and paradigmatic aspects present in their careers. The scientists’ (who were graduates in engineering and exact and Earth sciences, predominantly male fields) accounts showed that they were aware of their skills and tendencies for these disciplines at an early age, and that they started to hone their skills through the influence of parents or other male figures. As for the balance between jobs, studies and maternity, they faced limitations. Although they achieved professional satisfaction by gaining leadership positions, their journeys were marked by gender issues. The authors of this article conclude that an expanded discussion on this subject could contribute to encouraging young women to study and work in fields related to the Earth’s environment and space.
Keywords: science, women scientists Introdução .
Introdução
A discussão circunscreve-se no campo da ciência, tecnologia e sociedade (CTS), uma área interdisciplinar que “procura compreender os fenômenos científico-tecnológicos em sua relação com o contexto social” e entre eles, a relação entre ciência e gênero, ou seja, a participação das mulheres nas atividades científicas. Um recente informe sobre o enfoque de gênero na liderança científica ressalta a importância dessa condição para o alcance dos objetivos para o desenvolvimento sustentável, se constituindo, portanto, em questão central para os desafios que se colocam para o século XXI (Waldman, 2019).
Nesse sentido, o Observatório Ibero-americano da Ciência, Tecnologia e Sociedade (OCTS), ao analisar as lacunas de gênero na educação superior, na produção científica e nas redes de colaboração da Ibero-América, já apontava que, apesar dos avanços, as desigualdades permanecem, em especial quando se trata do acesso a postos de direção pelas mulheres pesquisadoras (Santos e Ichikawa, 2004; Albornoz, Barrere, Matas, Osorio e Sokil, 2018). Assim, se já vai longe o tempo em que a presença das mulheres nas universidades (e mesmo nos cursos de engenharia) causava estranhamento, sua presença segue aquém do desejável no trabalho nas engenharias. E mais ainda quando se trata do acesso a cargos diretivos. Há que se ressaltar, porém, que essa ausência na gestão ainda é realidade mesmo em áreas consideradas femininas, como a educação ou a enfermagem.
O Serviço de Informação e Notícias Científicas (SINC) — uma agência pública estatal espanhola especializada em informação sobre ciência, tecnologia e inovação — chama a atenção para a baixa presença de mulheres cientistas ocupando cargos de direção. Um dos exemplos apresentados são os dados do Conselho Superior de Investigações Científica (CSIC), a maior organização pública de pesquisa da Espanha, que apesar de contar com 35,7% de pesquisadoras, quando se trata do acesso à hierarquia do poder, os cargos de diretoria representam não mais que 18,4% de mulheres cientistas (Ferrer, 2018).
No Brasil, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), por exemplo, em 2019 era integrado por 16 (dezesseis) unidades de pesquisa, incluindo a instituição objeto deste estudo. Nessas unidades, os cargos de direção (maior nível hierárquico) eram compostos por 68,75% de homens e 31,25% de mulheres. A discussão sobre a presença das mulheres na ciência acontece ao longo do tempo por autoras como Bruschini (2000), Leta (2003), Velho (2006), Hayashi (2007) e Lombardi (2017), por exemplo.
Para Lombardi (2017), a função pública parece ser mais atrativa às mulheres, pois sua forma de seleção e planos de carreira são similares para ambos os sexos. Contudo, segundo a autora, a função pública não fornece as mesmas oportunidades a homens e mulheres no que diz respeito à hierarquia profissional. As publicações ressaltam que as mulheres ainda precisam provar suas capacidades e demonstrá-las com mais afinco que os homens para conquistar postos mais elevados e de confiança.
Assim, apesar do crescente interesse da sociedade pela participação das mulheres na ciência, tecnologia e inovação, ainda há muito que conhecer e fazer em relação à igualdade de gênero. Além disso, é importante evidenciar que a gestão da ciência, assim como as lacunas de gênero nas teorias científicas, tem consequências sobre os produtos delas derivados.
Buscou-se, portanto, conhecer as trajetórias profissionais das cientistas que ocupavam ou haviam ocupado postos elevados na hierarquia institucional de um instituto público de pesquisa com foco de atuação nas áreas espacial e do ambiente terrestre. Em outras palavras, conhecer suas trajetórias, significava ouvir as narrativas de suas experiências enquanto mulheres atuando na ciência e tecnologia. Significava, ainda, identificar os acontecimentos marcantes, principalmente os que influenciaram em seu acesso aos cargos diretivos. Perguntava-se: que acontecimentos definiram a opção por cursos das ciências exatas, da terra e engenharias? Quais incidentes críticos definiriam suas escolhas ao longo do percurso profissional? Questões de gênero seriam impeditivas para sua ascensão a postos de direção?
1. Trajetórias, experiência e acontecimentos marcantes: os incidentes críticos
Conhecer a trajetória de uma pessoa implica em considerar os caminhos trilhados e os acontecimentos vividos ao longo do tempo nas dimensões pessoal e profissional, que não se separam, mas se complementam. Implica, ainda, compreender o processo identitário do sujeito numa perspectiva relacional (Nóvoa, 2000).
A perspectiva relacional reconhece a influência combinada do contexto (denominada trajetória objetiva) e das características pessoais do indivíduo (trajetória subjetiva) na construção das identidades profissionais e de gênero. Assim, a trajetória objetiva é definida como uma sequência de posições ocupadas em um ou mais campos da vida social, como por exemplo os diferentes cargos e funções vivenciados ao longo do percurso profissional. A trajetória subjetiva, por sua vez, refere-se à história dos profissionais, à forma como eles vivenciam suas experiências profissionais e de vida. Referem-se, ainda, aos sentidos e significados atribuídos às escolhas realizadas. Assim, a trajetória é compreendida não como a sequência de acontecimentos que se sucedem de forma linear, com um começo, meio e fim, mas como “uma narrativa que constrói e ressignifica percursos, acontecimentos, experiências, representações de si e dos outros, que se desviam e se deslocam a todo momento a partir dos lugares sociais e culturais ocupados pelos sujeitos” (Silva e Ribeiro, 2014, p. 451).
A ressignificação do vivido, que acontece por meio do ato de narrar (a narrativa) definiria, para Sá e Almeida (2004, p. 5), trajetórias profissionais enquanto um processo que envolve a compreensão dos incidentes críticos, considerados como “aqueles acontecimentos cruciais ou sucessos chave que determinam decisões e rumos nas trajetórias profissionais ou na própria vida”. Ao narrar um acontecimento vivido os sujeitos atribuem a eles um sentido e/ou significado que expressa a sua influência nos rumos das trajetórias pessoais/profissionais.
São os sentidos/significados atribuídos que constituem a experiência propriamente dita, definida por Larrosa (2002) como a transformação que nos acontece por meio da reflexão sobre o que vivemos. Assim, somente aqueles que experenciaram um acontecimento, podem identificá-lo como incidente crítico. São, portanto, a reflexão e análise, decorrentes do ato de narrar uma experiência ou acontecimento, que permitem identificar as situações consideradas como incidentes críticos, aquelas que, positiva ou negativamente, marcaram as trajetórias.
A experiência estaria, então, inserida na atividade biográfica, pois o sujeito se apossa do que vive, sente e experimenta, em um contexto histórico e social, em um determinado tempo e em espaços coletivos (Delory-Momberger, 2016). Assim, experiência e trajetória tangenciam, podendo desencadear, como afirma Bolívar (2002a), processos de mudança e transformação.
O processo de identificação dos incidentes críticos se dá através da memória e decorre daí a afirmação de Sá e Almeida (2004) de que a identificação dos incidentes críticos só pode acontecer após os fatos terem ocorrido e sua relevância só pode ser atribuída por aqueles ou aquelas que os vivenciaram. Assim, as autoras, tomando por base as discussões de Bolívar, Domingo e Fernández (2001) ressaltam que os incidentes críticos permitem:
“a) delimitar as fases críticas para o sujeito, que são pessoais e temporais; b) identificar as pessoas que foram significativas, marcantes, na trajetória profissional relatada; c) explicar as mudanças causadas pelos impactos que levaram às tomadas de decisão, cuja responsabilidade não é apenas pessoal, mas também social e histórica” (Sá e Almeida, 2015, pp. 64-65).
Os incidentes críticos podem, também, ser singulares ou comuns. Essa característica ressalta a interface entre o individual e o social, o singular e o coletivo. As narrativas das trajetórias permitem ao sujeito (que narra) e ao pesquisador (que escuta) a percepção do singular, daquilo que é particular e único (Alves e Sá, 2015). Permitem também o conhecimento do que é comum e coletivo na experiência dos sujeitos que integram um determinado grupo profissional. E as relações entre o singular e o coletivo expressam o mundo histórico e social de um grupo social específico (Villas Boas, 2018).
A busca pelo conhecimento do coletivo caracteriza-se como um “modo paradigmático de análise de dados narrativos que consiste em buscar temas comuns no conjunto das narrativas registradas” durante a pesquisa de campo. Por outro lado, a análise dos dados narrativos estaria voltada para a singularidade das trajetórias, importante para pesquisas que buscam conhecer os sentidos atribuídos pelos sujeitos aos eventos por eles vivenciados (Bolívar, 2002b, pp. 9-12).
Nessa perspectiva, o método biográfico-narrativo, proposto por Bolívar (2002a) e Bolívar, Domingo e Fernandez (2001), ao possibilitar a compreensão dos sentidos que os indivíduos atribuem às próprias experiências (em especial aos incidentes críticos) e ao permitir conhecer os aspectos comuns, próprios de um coletivo profissional, mostrou-se adequada opção metodológica para o conhecimento das trajetórias profissionais de cientistas em cargos de chefia.
2. O método biográfico-narrativo
O método biográfico-narrativo, de abordagem qualitativa, fornece então, a partir das narrativas, “o quadro conceitual e metodológico apropriado para analisar aspectos de uma profissão e, em consequência, do desenvolvimento do grupo ou coletivo profissional.” (Bolívar, 2002a; Bolívar e Domingo, 2006, p. 35).
A história narrada por uma pessoa sobre sua própria vida revela as possibilidades e expectativas de crescimento, fornecendo o quadro biográfico que torna inteligível a complexidade da vida e da ação humana na sociedade. “A vida pode ser interpretada como uma história, sendo fundamental para compreender a ação e o conhecimento humano” (Oliveira, 2016, p. 88).
Isso significa afirmar que tal opção metodológica permitiu a compreensão dos modos como as cientistas atribuíam sentido ao seu trabalho e decorrentes competências, explicitando como “as dimensões do passado interferiram nas situações atuais”. Permitiu, também, conhecer a projeção que faziam de suas ações futuras. Assim, trabalha-se com a dimensão do tempo, mais especificamente a temporalidade biográfica, constitutiva da experiência humana, por meio da qual os homens dão forma ao que vivem. “Essa temporalidade biográfica tem sua gramática ou sua sintaxe fundamentada na sequência narrativa matricial que representa a trama da vida entre o nascimento e a morte” (Delory-Momberger, 2016, p. 136).
Entretanto, as narrativas dos sujeitos retratam não apenas a sequência e cronologia dos fatos, mas os sentimentos que permeiam as diferentes fases de seu trajeto, possibilitando ao pesquisador uma imersão na história do sujeito. À medida que um sujeito passa a narrar sua trajetória, passa também a refletir sobre ela (Alves, 2015). Nessa perspectiva, o uso da narrativa pode ser entendido como um paradigma para a pesquisa de trajetórias, que demanda a identificação de padrões e sínteses, só possível pela compreensão do “narrar”, que consiste na organização e encadeamento simbólico de elementos, fatos, episódios, acontecimentos etc. (Cochran-Smith, 2013).
2.1. Instrumentos para o registro e tratamento das narrativas
O registro da narrativa acontece num modelo dialógico, pois exige uma responsabilidade e envolvimento entre pesquisador e sujeito da pesquisa na elaboração de um relato compartilhado (Bolívar, 2002a). Nessa perspectiva, o registro dos dados biográficos foi realizado por meio de entrevistas abertas e em profundidade, que permitem “a exploração e o aprofundamento do objeto da pesquisa, seja pela ausência de um roteiro fechado de questões, seja pela possibilidade de um diálogo livre entre entrevistador e entrevistado” (Alves, 2015, pp. 59-60).
Duas entrevistas foram realizadas com cada uma das oito cientistas, ambas inspiradas no modelo de entrevista reflexiva (um tipo de entrevista em profundidade, proposta por Szymanski (2004). A primeira entrevista teve início por meio de uma pergunta desencadeadora e foi orientada por um roteiro norteador, Os dados narrativos, coletados nessa primeira entrevista, foram transcritos e organizados de forma esquemática e cronológica, por meio de um instrumento denominado biograma, um recurso facilitador para a organização dos dados e para a devolutiva ao entrevistado do extenso volume de dados gerados por entrevistas desse tipo.
Os biogramas tem se mostrado recurso importante para a organização de dados biográfico-narrativos, pois facilita a devolutiva dos dados aos sujeitos que nem sempre “dispõem de tempo para ler e confirmar o vasto material produzido” (Sá y Almeida, 2004, p. 185). Assim, a segunda entrevista constituiu momento de devolutiva dos dados às cientistas, para que elas confirmassem os incidentes críticos identificados pelas pesquisadoras nos relatos originados pela primeira entrevista. Nesse momento, a primeira versão do biograma representou um recurso para a análise compartilhada (dialógica) dos dados, dando origem à segunda e última versão desse instrumento, que possibilitou conhecer as singularidades de cada trajetória. A sobreposição dos biogramas das cientistas, possibilitou o conhecimento dos aspectos comuns presentes nas diversas trajetórias profissionais.
3. As trajetórias profissionais: resultados e discussão
Apresentam-se, aqui, o perfil socioprofissional das pesquisadoras e tecnologistas. Discutem-se, também, as singularidades e os pontos comuns, marcantes na vida dessas profissionais. Nessa perspectiva, a análise dos dados considerou as experiências vivenciadas pelas cientistas, e nelas os incidentes críticos representados por momentos de mudanças, de rupturas, de desconstrução e de reorganização.
No instituto de pesquisa, de âmbito nacional e referência no Brasil nas áreas espacial e do ambiente terrestre, a carreira de pesquisa em ciência e tecnologia (C&T) é regulamentado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Assim, reguladas pela Lei nº 8.691, de 28 de julho de 1993, Art. 3: “A carreira de pesquisa em ciência e tecnologia (C&T) destina-se a profissionais habilitados a exercer atividades específicas de pesquisa científica e tecnológica”. O cargo de pesquisador tem como foco principal as atividades de pesquisa e os de tecnologista, as de desenvolvimento tecnológico, incluindo a pesquisa.
O quadro funcional geral da instituição era constituído por 835 servidores ativos (pesquisadores, tecnologistas e administrativos), dos quais 653 (78,2%) eram homens e 182 (21,8%), mulheres. Dos 653 homens, 128 (19,6%) eram pesquisadores, 425 (65,1%) eram tecnologistas e 100 (15,3%) vinculavam-se à área administrativa. Das 182 mulheres, 34 (18,6%) eram pesquisadoras, 84 (46,2%) eram tecnologistas e 64 eram da área administrativa.
Ressalvada a pequena presença numérica de mulheres no quadro funcional institucional, a presença de homens e mulheres — proporcionalmente — estava mais concentrada nas atividades de tecnologia. Ressalte-se, entretanto, uma concentração das mulheres (35,2%) na área administrativa, responsável não pela pesquisa e sim como atividade de suporte a ela.
Dentre os servidores ativos (pesquisadores, tecnologistas e administrativos) em cargos de chefia 58 (8,8%) eram homens e 15 (8,24%), mulheres. Entretanto, ao se considerar somente pesquisadores e tecnologistas, havia 43 (6,58%) homens e cinco (2,75%) mulheres, evidenciando-se uma desigualdade ainda maior entre homens e mulheres quando se tratava de cargos de chefia nas atividades de pesquisa e tecnologia.
3.1 . O perfil das cientistas gestoras
A constatação da existência de cinco mulheres, pesquisadoras e tecnologistas, ocupando cargos de chefia definiu a decisão de entrevistar todas elas e, inclusive, aquelas que não eram mais diretivas, mas continuavam atuando como cientistas, totalizando 8 mulheres com experiência em gestão na área de pesquisa e tecnologia. De modo a preservar suas identidades, foram atribuídos a elas nomes fictícios, inspirados nos planetas do Sistema Solar. As pesquisadoras receberam os nomes de Vênus, Mercúrio, Marte e Netuno. As tecnologistas foram nomeadas Terra, Urano, Saturno e Júpiter. A escolha desses nomes são uma clara homenagem a mulheres que atuam nas áreas espacial e do ambiente terrestre. Trata-se também de um agradecimento, pois como ressalta Sá (2004, p. 85), “contar a própria história a alguém desconhecido — em nome da ciência — mesmo sendo o sujeito um pesquisador, representa um gesto de generosidade. Atribuir-lhes um código é uma forma de retribuição à confiança depositada na condução do trabalho”.
Quem eram as pesquisadoras?
• Vênus, física, 67 anos de idade e 45 de carreira. Mestrado e doutorado em ciência espacial. Pós-doutorado em pesquisa espacial. Era pesquisadora com bolsa produtividade do CNPq, nível 1 A.
• Mercúrio, matemática, 66 anos de idade e 42 de carreira. Mestrado e doutorado em estatística e estatística espacial, respectivamente.
• Marte, matemática aplicada. 61 anos de idade e 36 de carreira. Mestrado e doutorado em ciência espacial e astrofísica. Doutorado em ciência espacial e geofísica espacial. Pesquisadora com bolsa produtividade do CNPq, nível 2.
• Netuno, física, 50 anos de idade e 13 de carreira. Mestrado e doutorado em astrofísica. Pesquisadora com bolsa produtividade do CNPq, nível 2.
Quem eram as tecnologistas?
• Terra, ciência da computação, 60 anos de idade e 33 de carreira. Mestrado em eletrônica e telecomunicações. Doutorado em engenharia da computação.
• Urano, engenharia elétrica, 57 anos de idade e 33 de carreira. Mestrado em engenharia eletrônica e computação. Doutorado em computação aplicada.
• Saturno, ciência da computação, 45 anos de idade e 20 de carreira. Mestrado e doutorado em computação aplicada
• Júpiter, ecologia, 43 anos de idade e 24 de carreira. Mestrado em sensoriamento remoto e doutorado em geociências e meio ambiente.
A formação inicial das cientistas em cargos de chefia no instituto se concentrava na área de exatas e da terra e engenharias. Somente uma, Júpiter, tinha formação na área das ciências biológicas. O mestrado e o doutorado foram realizados na área de exatas e da terra e nas engenharias. Apenas uma cientista fez pós-doutorado. Todas elas eram docentes e atuavam como pesquisadoras e tecnologistas, com publicações em nível nacional e internacional. Três das cientistas eram Bolsistas Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), condição que evidenciava o reconhecimento de suas contribuições para o conhecimento científico.
Essas cientistas, altamente qualificadas, ao narrarem suas trajetórias profissionais, definiram os incidentes críticos que orientaram os rumos de suas vidas profissionais. Esses incidentes foram organizados nas seguintes categorias temporais: escolha da profissão e a vida universitária; mestrado, doutorado e maternidade; a assunção aos cargos de chefia.
3.2. Incidentes críticos na escolha da profissão e na vida universitária
Que incidentes marcaram a escolha de cursos na área das ciências exatas pelas cientistas entrevistadas? Casagrande e Souza (2016, p. 177) ressaltam, no estudo sobre as trajetórias de estudantes de engenharia e licenciaturas na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, que “dos motivos mencionados pelos/as estudantes para a escolha do curso universitário, o mais apontado foi a vontade própria”. Essa característica converge para os relatos das cientistas, que desde meninas ou adolescentes, se percebiam com habilidades para as ciências exatas. A pesquisadora Mercúrio relatava que “já sabia que provavelmente iria fazer algo na área das ciências exatas, porque gostava muito de Matemática e Marte afirmava: sempre gostei de exatas, sempre tive jeito para exatas e essa coisa de astrofísica, de estrelas que têm diferentes temperaturas, diferentes tamanhos, e tal, eu achava superinteressante”.
Além da percepção de habilidades para a área de exatas, as cientistas relataram a influência de pessoas próximas na escolha profissional, assim como os/as estudantes da pesquisa conduzida por Casagrande e Souza (2016). De modo especial, ressaltaram em suas narrativas a influência de figuras masculinas, em especial a do pai e do cônjuge, condição que se relaciona à característica masculina da área. No processo de escolha profissional, as pesquisadoras Mercúrio e Marte fizeram suas opções influenciadas por seus parceiros, que eram da área e a consideravam mais promissora. A tecnologista Saturno se espelhou no pai, cuja formação era em ciências exatas. Terra escolheu ciências da computação para demonstrar ao pai que era capaz, mesmo não sendo um filho homem. Urano queria fazer Arquitetura, mas optou pelas Engenharias por morar em uma cidade pequena e não ter a permissão do pai para estudar fora.
Nas narrativas sobre o período da graduação, as pesquisadoras Vênus e Netuno relataram que a iniciação científica se constituiu num incidente crítico positivo em suas trajetórias de formação profissional. Sá (2004) ao descrever os momentos constituintes das trajetórias de professores engenheiros e Casagrande e Souza (2016), ao tratar das trajetórias de estudantes de engenharia também se referem à iniciação científica como importante para a formação e também para a opção pela carreira de pesquisador.
O casamento e a maternidade constituíram-se em acontecimentos marcantes nas vidas de três cientistas durante o período universitário: Vênus casou-se. Marte casouse e teve sua primeira filha. Relatou que terminou “o curso em três anos e meio, nesse período já tinha nascido a minha primeira filha, eu estava no 3º ano da Faculdade quando ela nasceu”. Mercúrio já estava casada e com um filho pequeno quando cursou a graduação fora do país. A persistência em relação à formação parece se fortalecer mesmo com a demanda de conciliação entre o doméstico e o público, entre a formação, o casamento e cuidado dos filhos, pois essa responsabilidade ainda é assumida e atribuída à mulher.
Importante ressaltar que se os avanços são expressivos em relação à presença feminina no mercado de trabalho, inclusive em áreas tradicionalmente masculinas, ainda há muito a conquistar principalmente quando se trata da divisão das tarefas familiares, domésticas. Davis (2019),Pochic (2019) e Frader (2019) são autoras que discutem, em diferentes e atuais contextos, os avanços e os obstáculos persistentes que ainda influenciam no desenvolvimento igualitário das mulheres no trabalho. Frader (2019, p. 99) ressalta que apesar da maioria dos países economicamente desenvolvidos terem adotado medidas favoráveis como “a licença maternidade remunerada e o financiamento público do cuidado das crianças pequenas” essa não é uma realidade em países como os Estados Unidos e principalmente em países em desenvolvimento como, por exemplo, o Brasil.
3.3. Mestrado, doutorado e maternidade: incidentes críticos na vida profissional
O interesse pela pesquisa teve início durante a graduação, a partir da iniciação científica, e foi reafirmado quando as cientistas optaram pela continuidade dos estudos por meio do mestrado e do doutorado. O casamento e a maternidade continuaram a ser referidos como incidentes críticos vividos por essas cientistas durante esse período de formação, reiterando as situações que exigiam a conciliação entre as ativiades familiares, formativas e de trabalho.
Durante os processos formativos, cinco cientistas estudaram e trabalharam em outros países, o que se tornou um diferencial no desenvolvimento de suas carreiras. A experiência adquirida no exterior favoreceu o fortalecimento e a atuação em áreas ligadas à ciência e à pesquisa. Esse contexto foi extensa e intensamente discutido por Velho (2001) ao tratar da titulação de doutores em países do exterior, principalmente no final dos anos de 1990 e início de 2000, referenciando os Estados Unidos como um dos principais polos de atração para o doutorado (Velho, 2001). Em publicação mais recente a autora reafirma a importância para a ciência da qualificação em nível internacional. (Ramos y Velho, 2011).
A tecnologista Urano iniciou a atuação no instituto de pesquisa concomitante com o mestrado e o doutorado. Defendeu a dissertação de mestrado grávida de 7 meses. Fez parte do doutorado no exterior, com segunda filha ainda pequena e o marido no Brasil. Netuno engravidou pouco antes de saber que havia passado no concurso público para o instituto. Relatava: “fiquei grávida entre fazer o concurso e saber oresultado”. Ao longo de sua trajetória, realizar o mestrado e o doutorado foi possível com o apoio do marido, porque “ele sempre me ajudou muito. Volta e meia tinha que viajar e ele ficava com as crianças”. A pesquisadora Vênus teve três filhas durante o período que trabalhava e fazia o mestrado e doutorado. “Confesso que tinha hora que eu tinha vontade de parar! achava que eu não ia conseguir e felizmente, nessas horas, eu tive o apoio do meu marido”. Marte interrompeu o mestrado para cuidar da filha recém-nascida: “eu tinha uma bolsa e conseguia dedicar um tempo maior às minhas filhas. O atraso foi bem-vindo”. Entretanto, isso não a impediu de conquistar uma das poucas vagas para um importante programa nacional na área espacial. Segundo ela, “contrataram vários dos alunos que tinham se destacado, tirado nota boa, e eu fui uma delas. Entrei na instituição em fevereiro de 1982, neste grande projeto”.
A tecnologista Urano foi a primeira mulher a cursar a pós-graduação stricto sensu numa instituição da aeronáutica. “Foi muito difícil no início, porque eu fui a primeira mulher a fazer pós-graduação lá, que foi em 1983 na engenharia. Eu entrava na sala, ninguém conversava comigo, era um ambiente muito difícil”. Iniciou a vida profissional deu continuidade ao mestrado no instituto público de pesquisa onde recebeu apoio para continuar o mestrado. Casou-se e defendeu a dissertação de mestrado grávida de sete meses da primeira filha: “No doutorado, minha segunda filha estava pequenininha eu fui para a Califórnia para o estágio de doutorado. Fui eu, meu marido, minhas filhas e a minha babá [...]. Meu marido ficou só 3 meses lá, porque ele trabalhava aqui. Depois de um ano ele foi lá e levou as meninas embora, aí eu fiquei mais 6 meses sozinha para terminar”. Terra iniciou o mestrado na mesma universidade em que se graduou. Logo em seguida foi contratada pelo instituto público de pesquisa, onde reiniciou o mestrado. Quando finalizou o mestrado estava grávida do primeiro filho: “Não quis fazer o doutorado em seguida, preferi dedicar meu tempo à maternidade. Eu achava que não era hora, meu marido já estava fazendo doutorado e as crianças precisavam de atenção”. Mas continuou a trabalhar, “era responsável pelos sistemas de solo. Um colega atuou mais ativamente enquanto eu estava de licença maternidade. Quando eu voltei e estava na fase de instalação da antena (eu tinha feito todos os testes e o software para a antena funcionar) soube que não faria parte da equipe de instalação”. Saturno também casou e engravidou do primeiro filho durante o mestrado. Júpiter conciliou o mestrado no instituto de pesquisa, o trabalho em uma empresa e à docência em uma instituição de ensino. Assim relatava: “não lembro muito bem essa fase da minha vida, sabe, entre os 25 e 30 eu acho que eu perdi muita coisa, eu acho que eu perdi tempo para mim, eu não tinha tempo para mim. Era o tempo inteiro trabalho”.
Pesquisadoras e tecnologistas tiveram, durante o processo de realização do mestrado e doutorado, a experiência da maternidade. E embora a conciliação entre essas atividades seja desafiadora para mulheres em atividades profissionais que demandam alta qualificação, as narrativas das cientistas entrevistadas indicam que elas se mantiveram na carreira, apesar das dificuldades e da inexistência de políticas públicas e organizacionais de apoio ao desenvolvimento na carreira científica. Essa é a realidade de
“... pesquisadoras brasileiras que se veem diante do desafio de conciliar as atividades docentes e em laboratório com as demandas da maternidade – que, não raro, coincidem com o período de consolidação da carreira. A conclusão é de um estudo desenvolvido no âmbito do projeto “Parent in Science”, criado em 2017 com o propósito de discutir a maternidade no universo acadêmico brasileiro” (Andrade, 2019).
Foram ouvidas 1182 pesquisadoras (921 mães) e os resultados preliminares foram apresentados no 1º Simpósio Brasileiro sobre Maternidade e Ciência, em Porto Alegre, em maio de 2019. A maternidade teve impacto negativo na trajetória profissional de 81% delas. Tais questões, ainda tão atuais, indicam o quanto demandam discussão não somente pelas cientistas, mas também pela sociedade brasileira, pois como ressaltava Hayashi, Cabrero, Costa e Hayashi ((2007), saber utilizar o grande banco de talentos que se coloca à disposição do país, significa fortalecer o potencial competitivo da comunidade nacional.
Esse fortalecimento, entretanto, transcende o desafio de agregar mais mulheres à ciência e tecnologia, pois se refere principalmente a entender e a teorizar sobre as questões de gênero, impactantes que são na própria forma de se fazer essa ciência e tecnologia (Waldman, 2019).
3.4. Incidentes marcantes na assunção a cargos de chefia
“¿Por qué tan pocas?” Perguntava Rossi (1965), quando elaborou a pergunta que se tornou central nas pesquisas sobre as relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Foi somente nos anos de 1960 que se iniciou a produção científica sobre a ausência e invisibilidade das mulheres na ciência. Desde então, os estudos e a presença das mulheres na ciência e tecnologia tem crescido, mesmo em áreas majoritariamente masculinas como as ciências exatas e engenharias, ressalvadas as limitações (sejam pela ausência de incentivo às meninas, sejam pelas jornadas duplas ou triplas de trabalho). Entretanto, a proporção das mulheres em postos de maior prestígio não reflete o tamanho de sua contribuição, mesmo nas universidades e institutos de pesquisa públicos, regidos pela admissão de pessoal por concursos. Essa ausência nos postos de comando das organizações científicas, certamente impactam, como já se afirmou, no desenvolvimento da ciência e tecnologia.
Para a pesquisadora entrevistada, Vênus, essa é também uma característica do instituto, uma organização do setor público, pois segundo ela “na divisão que chefiei, como pesquisadoras continuamos sendo poucas mulheres, hoje somos eu e mais uma. Então, ao longo desses anos todos, agregou mais uma mulher só. [...]. Isso significa que não está mudando muito o quadro ao longo desses anos todos. Mas uma coisa interessante é que na pós-graduação a gente tem um número significativo de alunas do sexo feminino, mas isso não está se refletindo depois nas contratações”.
Lombardi (2017) ressalta que as mulheres não são mais beneficiadas no serviço público por nele existirem igualdade de oportunidade para ambos os sexos. As únicas vantagens para as mulheres no serviço público seriam apenas as oportunidades de acesso e progressão regular nas carreiras até um determinado nível da hierarquia profissional. Para alcançar níveis gerenciais e cargos de chefia, as dificuldades e barreiras seriam maiores para as mulheres do que as enfrentadas pelos homens.
Para as cientistas entrevistadas, a chegada aos cargos de chefia veio por meio de eleição pelos pares, por convite de chefias ou mesmo mediante o envolvimento com questões institucionais, como a coordenação de cursos de pós-graduação.
A pesquisadora Mercúrio foi a primeira e única diretora da faculdade de engenharia em que atuou antes de iniciar o trabalho no instituto. Foi também a pioneira na ocupação de um cargo de responsabilidade na instituição. Foi chefe de divisão. Depois, ser eleita coordenadora da área representou um reconhecimento à sua experiência como chefe e também marcou e alavancou a sua carreira de forma muito positiva. Segundo ela: “Foi feita a lista tríplice, eu entrei, mas também com uma experiência de seis anos na chefia, o pessoal estava votando com conhecimento de causa, e aí eu fui para a coordenação da área como um todo”. Essa experiência lhe possibilitou ser secretária nacional adjunta em Brasília. Foi também a primeira mulher vice-presidente do Painel Intergovernamental de Pesquisas Climáticas. Avaliava: “duas pessoas foram importantes na minha trajetória, o então secretário e o diretor do instituto naquela época”. Candidata à direção do instituto, relembrava: fui a primeira mulher a me candidatar a esse cargo, foram oito candidatos, meu nome foi colocado na lista tríplice, mas hei de confessar a você que na entrevista que foi feita, um dos participantes do comitê de busca me perguntou, mas se você for diretora como você se relacionaria com a engenharia? Toda a trajetória de conquistas, entretanto, ainda segue marcada pelo sentimento de ausência: “se existe uma crise, acho que a única crise que eu ainda tento digerir, é a minha percepção que meu filho me via como uma mãe ausente. Desde sempre”.
Marte, também pesquisadora, relatou identificar-se com a área de gestão. Foi presidente do conselho do curso de pós-graduação e coordenadora acadêmica de curso. Assumiu a chefia de laboratório e foi coordenadora substituta de laboratórios associados de pesquisa. Foi chefe de gabinete da direção por dois mandatos. A conciliação da gestão com a pesquisa foi o desafio: “Felizmente, sendo chefe de gabinete, eu fui capaz de manter a minha atividade de pesquisa através dos meus alunos [...] de doutorado”. Entretanto, a ausência de reconhecimento do trabalho, pelo novo diretor, foi marcante “porque eu sabia que eu tinha feito um excelente trabalho e recebi um muito obrigado, claro, do diretor que era o meu chefe imediato, mas do resto do instituto, nada, nada, nada, nada, nada. Eu realmente me senti muito mal”.
Vênus, pesquisadora, tornou-se a primeira coordenadora acadêmica de um curso em sua área de atuação. Ao refletir sobre a carreira, permeada por questões de gênero, relembrava que “por algum motivo a gente tinha que ir para Brasília para resolver um problema lá com a CAPES [...] E um colega fez um comentário assim: mas o seu marido deixa você ir?”. Mais tarde, ao atuar em uma divisão em que era a única mulher, foi eleita chefe por seus pares. Depois foi indicada para ser coordenadora da área, cargo importante na hierarquia institucional. Avalia a carreira: “entendo que eu tenho respeito dos meus pares, dos meus colegas, eu tenho bastante contato internacional, participo de vários comitês científicos no exterior, eu acho que tudo isso é uma forma de reconhecimento do seu trabalho porque no final tem que ser a própria comunidade que avalia”. Enfatiza a centralidade do trabalho: “Minha vida está ligada totalmente no trabalho [...] mas talvez isso tenha sido um pouco rígida na época, quem sabe, poderia ter sido um pouco mais flexível, não sei”.
A pesquisadora Netuno foi eleita por seus pares para chefiar uma divisão e coordenar um curso de pós-graduação: “Eu cheguei a aceitar ser coordenadora da pós-graduação o que não é um cargo de chefia dentro do organograma do instituto. [Mas] eu pedi para sair porque meu pai estava muito doente na época”. O cuidado com os pais também pesou em sua decisão de não sair do país para o pós-doutorado, o que considera um ponto negativo em sua carreira de pesquisadora. “Eu fui presidente da comissão brasileira de um programa de referência internacional na astrofísica e então isso também mostra que a comunidade astronômica tem uma certa confiança no meu nome.”
A tecnologista Urano ocupou o cargo de chefia de uma divisão e depois tornouse coordenadora de área. Foi escolhida, dentre dois pesquisadores, por um Comitê de Busca. Considera que provou sua capacidade ao gerir uma coordenação com predomínio masculino. Entretanto, ressaltava, “um dos fatores é como criar filhos e crescer na profissão? Então eu montei uma rede com essas pessoas. E eu não tinha trauma nenhum de, por exemplo, Dia das Mães, eu não poder participar porque eu estava viajando. Eu viajava muito para apresentar trabalhos científicos, fiz uma carreira científica, mas ao mesmo tempo eu não fui uma pesquisadora nata, sou tecnologista, porque eu gosto de fazer coisas mais práticas também”. Para ela o esforço da mulher em cargos de responsabilidade e tomada de decisões é muito maior do que se fosse um homem no poder: “Eu acho que quem quer mesmo se desenvolver na sua profissão, não pode dar bola para o que os outros falam, tem que se impor e ser você [...] Essa é a nossa dificuldade, por ser mulher, porque além de fazer o seu serviço bem feito você tem que provar que ele é bem feito!”.
Terra, tecnologista, sempre almejou a conquista de uma posição em sua área de atuação. Primeiro foi coordenadora substituta, depois membro do Conselho Técnico Científico e tornou-se coordenadora da área pretendida: “Essa questão dos Centros Regionais sempre foi um desafio para mim, desde quando fui eleita”. Após 31 anos de carreira, seu relato demonstra que o cargo alcançado foi o início de uma grande realização como profissional e experiência na área de gestão: “Eu sempre gostei de estar à frente! Procuro fazer o meu melhor”.
Saturno e Júpiter são tecnologistas com 17 anos de atuação. Saturno atribui a chegada a um cargo de chefia ao seu esforço e dedicação: “Por ser uma instituição predominante masculina, eu sinto que, às vezes, você tem que provar alguma coisa, você tem que trabalhar muito mais, até as pessoas acreditarem que você é capaz de fazer alguma coisa”. Descreve-se como uma pessoa preparada para assumir maiores responsabilidades, que gosta dos desafios. Sua motivação, segundo ela, responde mais à sua própria natureza do que às políticas organizacionais. Sempre trabalhei em um mundo masculino, pois dava aula no curso de engenharia da computação. Na maioria das vezes só tinha homens na sala de aula. Nunca tive nenhum problema. Aqui no instituto foi diferente. É muito mais difícil. A discriminação é muito grande e velada aqui: “[Uma] crise profissional, por causa de um trabalho que me gerou muito estresse emocional, refletiu no meu físico”. Mais tarde, com a mudança de direção na instituição, foi convidada para ocupar a coordenação de uma área.
Júpiter ocupou o cargo de chefe substituta no início da carreira no instituto. Foi um período de estresse físico e emocional em uma unidade situada longe dos principais centros urbanos e de cultura diferentes da região onde vivia. “Foram anos bem difíceis.” De um lado as dificuldades de comunicação com um chefe do qual era substituta e que exigia a excelência. De outro, as questões culturais e de gênero. “Além disso morar naquela região também não era fácil. No começo eu levantava a mão no bar ninguém vinha. Eles não atendem mulher. Você tinha que pedir para um homem levantar a mão. Ao assumir a chefia, o clima mudou, as pessoas ficaram com menos medo, porque eu sempre fui muito mais clara, eu chamava as pessoas para conversar. Tem aquela coisa do olhar feminino, que eu acho que ajuda.”
Nas narrativas ficaram evidenciadas as questões que caracterizam a assunção aos postos de chefia:
• são conquistas pessoais, mas também coletivas, pois as cientistas sabem da importância de sua chegada aos cargos de maior poder para as outras mulheres pesquisadoras e tecnologistas;
• são importantes as influências de familiares para a escolha profissional na área de exatas, mas são igualmente importantes o apoio de referências como professores e chefias para que as mulheres sigam e se desenvolvam na produção cientifica;
• são avanços marcados por desafios institucionais, como a confirmação para o outro de suas próprias competências;
• são escolhas entre o privado e o público, entre o doméstico e organizacional, muitas vezes caracterizadas pela culpa, seja pela opção pelo cuidado com a família, seja pela opção pelo profissional.
Esses aspectos convergem para quatro dos seis temas identificados por Waldman (2019), quais sejam: Priscilla Sousa Frigi Raimundi e Maria Auxiliadora Ávila 262
• o compromisso que as cientistas assumem na hora de tratar/desenvolver um problema, inclusive os impactos da própria chegada em cargos de gestão para a carreira de outras pesquisadoras;
• a relevância de mentores e pessoas referentes para o desenvolvimento na carreira científica;
• a convicção de que se pode alcançar qualquer objetivo, mesmo e apesar dos desafios institucionais, que demandam das cientistas esforços e sacrifícios nem sempre exigidos de seus colegas homens;
• a urgente demanda pela remodelação das culturas organizacionais (e isso é ainda mais premente para as que atuam em países em desenvolvimento), em especial aquelas que se referem ao apoio aos cuidados domésticos e familiares.
Se são poucas as mulheres que chegam ao topo da hierarquia organizacional, principalmente se comparadas aos homens, como afirma Henderson, Ferreira e Dutra (2014), também são inegáveis e importantes as conquistas de cientistas como as do instituto pesquisado. Os cargos de responsabilidade assumidos por mulheres em espaços masculinos evidenciam as desigualdades de gênero na atuação em grandes áreas, com muitos subordinados, homens. São exigidas das chefes provas constantes de suas capacidades intelectuais e de liderança. A superação de desafios e a conquista de reconhecimento em suas áreas de atuação implicam em muito trabalho, muita dedicação, o abdicar de outras atividades como o cuidado da família, por exemplo.
Nesse sentido, Olinto (2011), ao discutir o fenômeno do teto de vidro, ressalta a necessidade que as cientistas têm de apresentar mais credenciais para obter o mesmo benefício, seja ele uma promoção, uma bolsa de pesquisa ou outro tipo de vantagem acadêmica. Tal necessidade se faz notar em situações nas quais as mulheres são submetidas a avaliações pelos seus pares. Vários são os indícios de que, através de mecanismos sutis que se estabelecem no ambiente científico, criamse barreiras para as mulheres, que dificultam a sua progressão profissional. Muitos desses mecanismos não seriam percebidos pelas próprias mulheres. Trata-se de comportamentos culturalmente enraizados e internalizados por aqueles que estão atuando no campo científico, o que significa que as próprias mulheres podem estar contribuindo para a sua perpetuação.
Um diagnóstico apontado pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), demonstrava que o número de mulheres em postos gerenciais no serviço público era inversamente proporcional ao nível decisório associado a eles. Isto significava que, quanto mais alto o escalão, menos representadas estavam as mulheres. Em relação aos cargos de direção e assessoramento superior (DAS), quanto mais alto o nível do cargo, menor era o número de pessoas do sexo feminino (Enap, 1998). Esse é o contexto ainda representado pelo instituto pesquisado. São importantíssimas as conquistas das cientistas investigadas, mas é preciso mais. É preciso que a entrada das mulheres nos campos de trabalho seja proporcional ao crescimento das matrículas nos cursos de engenharia, de ciências exatas e da terra. De modo especial, é necessário que a presença das cientistas cresça na hierarquia institucional, em especial nos cargos de maior peso. No caso das cientistas entrevistadas, isso significaum maior número de pesquisadoras e tecnologistas nas coordenações de área e a chegada de uma mulher à direção do instituto.
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