Resumo
Objetivos: analisar o sofrimento psíquico de agentes penitenciários do estado do Rio de Janeiro e apontar os fatores a ele associados no âmbito social, destacando o ambiente de trabalho.
Métodos: estudo quantitativo e qualitativo. As unidades prisionais foram selecionadas por meio da amostragem estratificada. Utilizou-se a escala de sofrimento psíquico Self-Reported Questionnaire (SRQ20) e uma escala de apoio social. Variáveis explicativas foram relacionadas tanto ao perfil profissional como aos fatores de âmbito social e do trabalho e foram utilizados modelos de regressão logística (stepwise).
Resultados: participaram 217 homens e 100 mulheres, em nove unidades prisionais femininas e masculinas. A prevalência de sofrimento psíquico foi de 27,7%, sem diferenças segundo o gênero. Os sintomas mais frequentes foram: dormir mal (53,0%) e sentir-se nervoso, tenso ou agitado (52,0%). Entre os possíveis fatores que propiciam o sofrimento psíquico, estão: relacionamento interpessoal entre agentes e presos; ameaças constantes; superlotação; poucos profissionais e sobrecarga de trabalho. E entre os possíveis fatores protetores, estão: praticar alguma religião; ter apoio social; contar com a compreensão dos colegas; ter o reconhecimento de seu trabalho e relacionar-se bem com superiores.
Conclusão: a superlotação e a insalubridade do ambiente trazem consequências negativas para a saúde mental dos trabalhadores; no entanto, formas de apoio social e valorização profissional podem protegê-los.
Palavras-chave: sofrimento psíquico, prisões, empregados do governo, condições de trabalho, saúde do trabalhador.
Abstract
Objectives: to analyze the psychological suffering of prison agents in the state of Rio de Janeiro, Brazil, and to point out the social factors associated with it, especially in the work environment.
Methods: this is a quantitative and qualitative study. Prison units were selected using stratified sampling. We used the Self-Reported Questionnaire (SRQ20) and a social support scale. Explanatory variables were related to both the professional profile as well as the social and work scope factors, and we employed logistic regression models (stepwise).
Results: in total, 217 men and 100 women from nine female and male prison units participated. The prevalence of psychological distress was 27.7%, with no gender differences. The most frequent symptoms were sleeping poorly (53.0%) and feeling nervous, tense or agitated (52.0%). Among the possible factors that lead to psychological distress are interpersonal relationships between agents and prisoners; constant threats; overcrowded cells; few professionals and work overload. Among the possible protective factors are practicing a religion; having social support; relying on the co-workers’ understanding; being recognized for their work and having a good relationship with their superiors.
Conclusion: overcrowding and unhealthy environment produce negative consequences on worker’s mental health. However, forms of social support and professional enhancement can protect them.
Keywords: psychological distress, prison, government employees, working conditions, occupational health.
Artigo de pesquisa
Fatores associados ao sofrimento psíquico de agentes penitenciários do estado do Rio de Janeiro, Brasil
Psychological distress and associated factors among correctional agents in Rio de Janeiro State, Brazil
Recepção: 27 Setembro 2018
Revised document received: 16 Março 2020
Aprovação: 08 Julho 2020
O sistema penitenciário brasileiro passa por um momento de agravamento de sua crise, com episódios de rebeliões e assassinatos cometidos com grande violência e que refletem problemas nacionais, como a superlotação das celas, as condições subumanas de encarceramento, o número inadmissível de presos provisórios (40%)1 e a piora dos conflitos entre facções rivais. Como é inerente à sua ocupação, os agentes penitenciários devem garantir a segurança de todos no ambiente prisional, inclusive a dos presos. Eles mantêm contato direto com a população carcerária e lidam diariamente com um ambiente perigoso e violento, participando de eventos estressantes e traumáticos2. Responsáveis pela contenção, custódia e tratamento dos apenados3, os agentes estão frequentemente expostos a diversas situações geradoras de estresse, como as intimidações, agressões e ameaças, a possibilidade de rebeliões e o risco de serem mortos ou se tornarem reféns4.
Certas atividades laborais têm peculiaridades que podem exercer efeitos psicológicos adversos em seus profissionais, como o trabalho monótono e que exige concentração constante, o trabalho em turnos, o trabalho isolado e o trabalho sob a ameaça de violência5. Todos esses aspectos são característicos das atividades de profissionais de segurança, entre eles os agentes penitenciários. No Brasil, Fernandes et al. (4 verificaram a presença do sofrimento psíquico entre esses trabalhadores e apontaram que eles enfrentam um ambiente psicologicamente inadequado, com condições precárias de infraestrutura nos ambientes de trabalho, longas jornadas de trabalho, falta de tempo para o lazer e inadequada organização do trabalho. A revisão da literatura6 mostra que internacionalmente, a partir de 2009, estudos com foco na saúde mental desses profissionais vêm despertando interesse acadêmico, embora no Brasil ainda sejam escassos.
Para Dejours e Bègue7
se o trabalho pode gerar o melhor e permitir a muitos sobrepor com eficácia as falhas no terreno psicológico - assentadas pela hereditariedade e pela infância - deve-se admitir que também pode, ao inverso, desempenhar um papel preponderante nas descompensações. (p. 31)
Nessa perspectiva teórica, o funcionamento psíquico do trabalhador sofre o impacto principalmente da “organização do trabalho” definida pelos ritmos impostos, os modos operatórios prescritos e, sobretudo, pela divisão de tarefas entre os operadores, representada pelas hierarquias, as repartições de responsabilidades e os sistemas de controle8.
Bezerra, Assis e Constantino6, em revisão de literatura sobre o tema, descrevem que
o sofrimento psíquico (psychological distress) é uma dificuldade emocional que associa sintomas psicológicos e físicos, sendo considerado[9] um transtorno mental comum (TMC), caracterizado por sintomas não psicóticos como insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração e queixas somáticas como dor de cabeça, dor abdominal, tosse ou fraqueza. Essas queixas são manifestações ou respostas a um tipo de sofrimento psicológico e não estão necessariamente associadas à existência de uma patologia orgânica diagnosticável. (p. 2137)
O sofrimento psíquico decorrente do trabalho é um processo dinâmico entre saúde e doença, que surge na tentativa do trabalhador de não adoecer8.
São identificados como fatores de risco para o sofrimento psíquico de agentes penitenciários6: o baixo apoio social no trabalho, os conflitos com colegas e superiores, a exposição cotidiana à violência física, o temor em relação à segurança de seus familiares, o medo da exposição a doenças como tuberculose, hepatite C e HIV e o baixo reconhecimento social. O “conflito de papéis” ou “paradoxo punir/reeducar”, que remete ao trabalho de custódia e vigilância, concomitante ao de ressocialização ou reabilitação, foi incluído enquanto fator de risco em pesquisas na França e no Canadá10), (11.
As ciências sociais e humanas12 conceituam o apoio social como elemento de integração e coesão social promotor da autoestima que pode assumir diversas configurações, podendo ser de ordem informacional, material e econômica, de proteção, promoção da saúde e participação social, e como elemento redutor do estresse que transcende o cuidado. Esse tipo de apoio com o qual as pessoas podem contar em situações difíceis de suas vidas consiste no processo pelo qual os recursos emocionais, materiais ou informativos numa estrutura social permitem satisfazer necessidades em situações quotidianas e críticas13. O “reconhecimento” do indivíduo, enquanto forma de apoio social, atua como uma das molas mestras da saúde mental e da dinâmica psíquica do trabalho. Ele se apresenta enquanto retribuição simbólica obtida por aquele que trabalha como resposta à contribuição do trabalhador à empresa e, por seu intermédio, à toda a sociedade. Essa retribuição é diferente da retribuição material (salário, bonificações, promoções); o reconhecimento é capaz de transformar o sofrimento no trabalho em prazer por meio do fortalecimento da identidade7.
A fim de conhecer sobre o sofrimento psíquico de agentes penitenciários, é preciso analisar tanto os fatores que o propiciam como, principalmente, os que protegem os agentes da ocorrência do transtorno emocional. Este artigo tem como objetivo analisar o sofrimento psíquico de agentes penitenciários do estado do Rio de Janeiro e apontar os fatores associados no âmbito social, focando no ambiente de trabalho.
Os dados ora apresentados fazem parte de uma pesquisa maior de âmbito quantitativo e qualitativo, realizada no sistema penitenciário do estado do Rio de Janeiro em unidades prisionais femininas e masculinas entre 2013 e 2015 e que investigou as condições de saúde de presos e agentes penitenciários. A pesquisa sobre a saúde dos presos foi realizada em 31 unidades prisionais e deu origem ao livro “Deserdados sociais: condições de vida e saúde dos presos do estado do Rio de Janeiro” (14. Na presente pesquisa sobre as condições de trabalho e saúde dos agentes penitenciários foi realizado um recorte de nove unidades prisionais através de uma amostragem estratificada, sendo os estratos as unidades, localizadas em cada um dos três territórios existentes no estado: Campos (Interior), Japeri (Baixada) e Bangu (Gericinó). Elas foram escolhidas de modo a incluir unidades masculinas e femininas de regime fechado que custodiassem presos condenados ou provisórios. Em uma segunda etapa da seleção, exclusivamente em Bangu, onde se concentra a maioria das unidades prisionais, foi realizada uma seleção por conglomerados e selecionadas duas unidades masculinas e uma feminina. No interior do estado, a cidade de Campos concentra o maior número de unidades prisionais: são três, sendo um presídio feminino, um masculino e uma cadeia pública. Todas as unidades de Campos participaram da pesquisa. No município de Japeri existe um pequeno complexo com três unidades prisionais que também participaram da pesquisa. Nesse território, não existem presídios femininos; por esse motivo, a amostra de mulheres agentes de Japeri se limitou às que trabalhavam nos presídios masculinos realizando a revista feminina das familiares e visitantes dos presos. O cálculo amostral foi de 271 agentes, com nível de confiança de 95%, erro percentual de 5% e prevalência de 0,5, considerando os múltiplos desfechos que a pesquisa poderia ter (este valor escolhido maximiza o tamanho da amostra). Analisou-se o poder para um modelo de regressão logística simples para as variáveis que foram significativas. O valor variou entre 0,818 (menor valor) e 1 (maior valor). Foi realizada correção para população finita, chegando a um n de 356 agentes.
Na investigação quantitativa, todos os 454 inspetores em efetivo exercício nas unidades selecionadas foram convidados a participar. Responderam aos questionários 217 homens (68,1%) e 100 mulheres (31,9%), o que corresponde a 70% da amostra pretendida. As “perdas” de 30% se justificam, pois alguns agentes se recusaram a responder o questionário e houve também a ininterrupta demanda de serviços em alguns postos, o que dificultou a participação na pesquisa; assim como a distância geográfica de certas unidades dificultava que os pesquisadores retornassem inúmeras vezes àqueles presídios.
O questionário padronizado, anônimo e autoaplicável continha perguntas sobre dados socioeconômicos e demográficos, condições de trabalho, de saúde, qualidade de vida e incluía uma escala que indicava a existência de transtornos psiquiátricos menores (também denominados como sofrimento psíquico): o Self-Reported Questionnaire (SRQ20), desenvolvida por Harding et al. (15 e validada no Brasil por Mari e Williams16. O questionário possui originalmente 20 perguntas referentes a distúrbios não psicóticos e 4 sobre distúrbios psicóticos; nesta pesquisa, foram utilizadas apenas as 20 questões referentes a distúrbios não psicóticos. O ponto de corte utilizado é de 7 para homens e 8 para mulheres: cada ponto equivale a uma resposta positiva relacionada às perguntas sobre dores de cabeça frequentes; falta de apetite; dormir mal; assustar-se com facilidade; tremor nas mãos; sentir-se nervoso, tenso ou agitado; má digestão; dificuldade de pensar com clareza; sentir-se triste; chorar mais do que o habitual; dificuldade em realizar tarefas diárias com satisfação; dificuldade em tomar decisões; considerar que o trabalho lhe é penoso; sentir-se incapaz de ser útil; não ter mais interesse pelas coisas; sentir-se inútil; ideias suicidas; desconforto estomacal; cansaço constante; e cansar-se com facilidade.
A escala de apoio social, desenvolvida por Sherbourne e Stewart17) e adaptada para a população brasileira por Chor, Griepe e Faertein18, foi utilizada para verificar se o agente penitenciário contava com o apoio de outras pessoas. A escala tem 19 itens relativos a apoio social e 5 sobre a rede social. Nessa pesquisa foram utilizados apenas os 19 itens referentes ao apoio social. A escala abrange 5 dimensões: emocional, que mede o apoio recebido por meio da confiança, da disponibilidade em ouvir, compartilhar preocupações/medos e compreender seus problemas; de informação, que estima o apoio por meio de sugestões de outros, bons conselhos, informação e conselhos desejados; material, que mensura a ajuda recebida caso a pessoa adoeça, fique acamada e precise de ajuda para levá-la ao médico, preparar refeições e executar tarefas diárias; afetiva, que avalia o apoio pela demonstração de afeto e amor, além de gestos como dar um abraço; e de interação positiva, que mede a capacidade de inter-relação, de divertir-se em grupo, relaxar, fazer coisas agradáveis e se distrair. Cada dimensão é composta de 3 a 4 itens. As opções de resposta para cada uma das questões são: nunca, raramente, às vezes, quase sempre, sempre. Um escore é obtido para cada dimensão, com cada um deles podendo variar de 0 a 100. O cálculo da escala de apoio social corresponde à razão entre a soma das pontuações observadas e o total de itens vezes 5 e, por último, essa razão é multiplicada por 100.
As variáveis explicativas selecionadas para analisar o sofrimento psíquico dos agentes penitenciários foram: perfil do profissional (sexo, idade, cor da pele, situação conjugal, número de filhos, religião e escolaridade) e apoio social nas modalidades afetivo, emocional, material, de informação e de interação positiva. Outras variáveis relacionadas ao trabalho por eles efetuado foram: horário atual; salário; reconhecimento do mérito pela instituição, pela população e pelos colegas (notas entre 0 e 10 que foram analisadas através de médias) e os relacionamentos com superiores, com o chefe imediato, com colegas de trabalho e com os presos. Os agentes foram ainda perguntados se as pessoas se relacionam bem umas com as outras; se o ambiente é calmo e agradável; se contam com apoio dos colegas; se não estando em um bom dia, os colegas compreendem; e se gostam de trabalhar com seus colegas.
Para modelagem, foram empregados os modelos de regressão logística com a variável resposta “tem sofrimento psíquico” ou “não tem sofrimento psíquico”. Primeiro, foram feitos modelos de regressão logística simples a fim de selecionar os fatores que iriam compor o modelo completo. O teste de Wald foi utilizado para selecionar as variáveis explicativas do modelo final. Empregou-se como nível de significância o valor 5%. O método de seleção do modelo completo foi o stepwise com eliminação bidirecional, que se inicia com um modelo nulo (somente com o intercepto) e então, a cada passo ou variável que entra no modelo, avalia-se, através do menor Akaike Information Criterion (AIC), se uma variável merece sair ou ser acrescentada ao modelo múltiplo. Razões de chances (odds ratio - OR) com intervalos de confiança de 95% (IC 95%) foram incluídas na análise.
Para a investigação qualitativa, utilizamos a técnica de entrevistas individuais, realizadas com 26 agentes homens (68,4%) e 12 mulheres (31,6%) convidados a participar. Os critérios utilizados, dentro de cada unidade, para se definir os agentes selecionados para as entrevistas foram relativos às especificidades de sexo (homens e mulheres na amostra) e ao tipo de função exercida: profissionais que trabalhavam diariamente em atividades administrativas e em escala de plantão na “turma de guardas” (contato mais direto com os presos). Havia um roteiro com questões sobre condições de trabalho e relativas à saúde física e mental, prazer no trabalho, relações no trabalho, relacionamento familiar, atividades de lazer, de estudo e de religião, entre outras. As entrevistas individuais foram realizadas durante o horário de trabalho, em sala com privacidade e tiveram duração média de 45 minutos, sendo gravadas e transcritas. Para diferenciar as pessoas cujas falas foram transcritas, neste artigo as citações são identificadas com a letra A (agente penitenciário) seguida por números, por exemplo: A1, A2 etc.
O critério adotado para definir o número de entrevistas em cada unidade foi o de saturação do conteúdo. As entrevistas foram suspensas quando foram percebidas a suficiência no aprofundamento das questões relevantes e a abrangência dos atores principais19. Houve garantia de anonimato durante a coleta de dados, a participação foi voluntária e recusas prontamente acatadas. Os questionários não foram identificados com nomes; apenas códigos foram atribuídos a cada entrevistado, a fim de preservar o sigilo das informações e dessa forma manter o anonimato. Os dados foram analisados em conjunto, sem citar os locais de trabalho/lotação, assim como as informações pessoais foram omitidas.
A análise e a interpretação dos dados qualitativos se basearam no enfoque da análise temática na perspectiva da análise de conteúdo de Bardin20, adaptada por Minayo19. Em relação ao sofrimento psíquico, destacaram-se categorias centrais, como os sintomas, as mudanças comportamentais percebidas, o relacionamento direto com os presos, a superlotação das unidades prisionais, a escassez de profissionais, a sobrecarga de trabalho e as tensões geradas. Sobre os fatores associados ao sofrimento psíquico, destacou-se o tema do apoio social: principalmente dos colegas e da família.
A pesquisa foi autorizada pela Secretaria de Administração Penitenciária e pelo Comitê de Ética da ENSP (CAAE: 14486913.2.0000.5240). Os agentes penitenciários assinaram um termo que comprovava seu livre consentimento à participação na pesquisa.
A maioria dos agentes penitenciários participantes era homem (69,0%), com idade até 40 anos (58,4%) e cor da pele preta e parda (56,6%), casados ou com companheiros/as (70,7%) e que tinham, em média, um filho. Cerca de 80% declararam praticar alguma religião frequentemente ou às vezes e 44,6% tinham o ensino superior completo ou eram pós-graduados (Tabela 1).

Dentre os agentes penitenciários avaliados na pesquisa, 27,7% apresentaram sofrimento psíquico (indicada pela escala SRQ20), com percentual similar em ambos os sexos. As entrevistas analisadas qualitativamente também não apresentaram diferenciação de gênero no discurso de homens e mulheres em relação ao sofrimento psíquico. Os sintomas (Figura 1) mais frequentemente apontados pelos agentes foram: dormir mal (53,0%) e sentir-se nervoso, tenso ou agitado (52,0%), o que também foi ressaltado durante as entrevistas.

Eu acho que [quando] você dorme mal, [isso] interfere muito no organismo; quando chegava do plantão, dormia o dia inteiro, chegava de noite não conseguia dormir. (A1)
Quando a gente entra aqui, vira outra pessoa: fica mais agressivo, sem paciência, fala mais alto, diz mais palavrão. (A2)
Você sai daqui com aquela tensão no ombro, sente que o braço está preso. (A3)
Outros sintomas também foram relatados, como dores de cabeça frequentemente (39,7%), cansaço o tempo todo (33,4%), sensação de cansar-se com facilidade (32,9%), impressão de ter se sentido triste ultimamente (27,6%), má digestão (26,4%) e sensações desagradáveis no estômago (24,5%), além da dificuldade para realizar suas atividades diárias com satisfação (22,6%), entre outros.
Segundo os agentes, existe um tipo de tensão, denominada por eles “tensão pré-plantão”, que se constitui em um conjunto de sintomas, como desânimo e dores difusas, percebidos na véspera do plantão. Os sintomas manifestados a partir do tipo de atividade que realizavam afetaram sua saúde e geraram reflexos em seus relacionamentos familiares.
Quando eu sei que está chegando a hora de vir trabalhar, começa a bater aquele desânimo, aí de vez em quando dá aquela dor no estômago, uma tensão no corpo, na nuca. Afeta a sua saúde e a sua relação com terceiros. (A4)
Atrapalha na sua relação com as pessoas. Seu nível de estresse aumenta, a sua saúde, o seu corpo sente as consequências às vezes. (A5)
Percebe que você está menos paciente com as coisas, às vezes fala com alguém como se tivesse falando com um preso. Você acaba levando um pouco daqui para casa. (A6)
Entre as variáveis relacionadas ao perfil do agente penitenciário (Tabela 1), “pratica alguma religião” foi a única que se mostrou associada ao sofrimento psíquico. Os agentes que relataram não praticar religião alguma informaram esse problema emocional com maior frequência (OR=2,52; IC 95% = 1,26 - 5,10) do que aqueles que contaram com o apoio religioso frequentemente.
Em relação ao apoio social percebido por esses profissionais17), (18, constatou-se o relato de apoio afetivo, emocional, de informação, material e de interação positiva (Tabela 2).

O cargo em si gera um impacto em nossa saúde física e mental, mas tentamos absorver buscando ajuda espiritual e com as famílias. (A7)
Nesse primeiro ano [de trabalho] eu mudei, mas foi bom que a minha família falou comigo: “O que está acontecendo, o que foi?” Só que você não sente. Dali para frente eu estou tentando mudar até hoje. (A8)
No que se refere aos fatores associados ao sofrimento psíquico no ambiente de trabalho, diversas variáveis mostraram-se significantes (Tabela 3). O trabalho distribuído ao longo das 40h semanais mostrou estar relacionado a menos sofrimento psíquico do que aquele executado em sistema de plantões (OR=0,36; IC 95%=0,19 - 0,65). Ao avaliarem (notas de 1 a 10) seu salário à época da pesquisa, a média das notas ficou em 7,1, uma avaliação relativamente positiva, assim como a observada no reconhecimento de seu mérito por parte dos colegas de trabalho, com média 7,0. Negativa foi a avaliação do reconhecimento de seu mérito pela instituição (média 4,4) e pela população (média 3,7). Os agentes que apresentaram maiores notas para salários e reconhecimento tiveram menos chances de apresentar sofrimento psíquico do que aqueles que apontaram menores notas. A abordagem qualitativa corrobora a aridez do trabalho em plantões; a relativa satisfação em relação ao salário à época e o desgosto em relação ao reconhecimento social da profissão.

É uma profissão muito sacrificada, essa escala de 24h por 72h na verdade acaba com a saúde, corresponde a três serviços de oito horas. (A9)
O salário atualmente é razoável. Eu acho [o salário] justo, já foi pior. (A10)
Eu acho que a sociedade detesta a gente! Para eles todos são bandidos, todos são ladrões, todos são corruptos. (A11)
Apesar de gostar das atividades que exerço, me sinto pouco valorizada e muito pressionada, me sinto triste e sem vontade de trabalhar. (A12)
Os relacionamentos estabelecidos no trabalho foram avaliados pelos agentes e indicaram elevada satisfação com os colegas (91,4%) e com o chefe imediato (89,4%). Já com os presos, a avaliação foi negativa: 56,8% se declararam insatisfeitos com as relações com os detentos. Agentes que relataram maior insatisfação com o relacionamento com colegas (OR=4,23; IC 95%=1,87 - 9,89), chefes (OR=6,37; IC 95%=2,97 - 14,40) e presos (OR=4,02; IC 95%=2,25 - 7,50) evidenciaram mais sofrimento psíquico do que aqueles com melhores relações. Mesma tendência ocorre entre aqueles que afirmaram não se relacionarem bem com os superiores (OR=5,51; IC 95%=2,53 - 12,57). A maioria dos agentes avalia que, no trabalho, os colegas se relacionavam de forma positiva (66,1%), que podiam contar com o apoio deles (83,3%), que gostavam de trabalhar juntos (93,9%) e que podiam contar com a compreensão dos colegas se eventualmente não estivessem em um bom dia (72,8%).
Para 73,6% dos agentes, o ambiente prisional não era calmo e nem agradável. Os que perceberam o ambiente de trabalho de forma mais negativa evidenciaram mais sofrimento psíquico; os que acharam que as pessoas no trabalho não se relacionam bem umas com as outras foram mais propensos a esse transtorno emocional (OR=2,72; IC 95%=1,61 - 4,62); bem como os que consideram que não contaram com apoio dos colegas (OR=2,21; IC 95%=1,16 - 4,17); que não gostavam de trabalhar com os seus colegas (OR=2,80; IC 95%=1,05 - 7,42) e que consideraram não ter tido apoio no trabalho, pois, estando em um mau dia, não receberam compreensão dos colegas (OR=3,78; IC 95%=2,19 - 6,60). As entrevistas mostraram que, na maioria das vezes, existia um relacionamento saudável entre os colegas de trabalho.
Os guardas são amigos, a gente procura ter um bom relacionamento. (A13)
Aqui, com o tempo, a gente vai criando afinidade, os colegas ajudam uns aos outros. Quando um colega tá [sic] com problema, o outro ajuda. (A14)
As entrevistas complementam as informações e desvendam a autoavaliação dos agentes sobre os possíveis fatores relacionados às condições ambientais e à rotina de trabalho que propiciam o sofrimento psíquico. Entre eles, estão a superlotação crescente das unidades prisionais, a falta de recursos humanos e materiais, a sobrecarga de trabalho e o relacionamento direto e constante com os presos, descrito como tenso e permeado por ameaças.
A superlotação, o quantitativo de guardas, a questão jurídica do preso, a falta de médico na unidade, a precariedade do transporte (dos presos), isso tudo reflete no inspetor. (A15)
A nossa dificuldade aqui é material humano. Pouca gente! Poucos funcionários pra [sic] muito trabalho. Sobrecarrega! (A16)
Ao lidar com o preso, você está em constante ameaça, mesmo que seja velada. Você não se estressa fisicamente, você se estressa emocionalmente com os presos, lá dentro é o tempo todo gritaria. (A17)
Nesta pesquisa também ficou claro durante as entrevistas que os agentes penitenciários não consideram a ressocialização da pessoa presa como sua função. Nesse sentido, não existe para eles, como aparece em outros países10,11, o “conflito de papéis, dupla missão ou paradoxo punir/reeducar”, uma vez que seu papel é entendido basicamente como o de garantir a segurança.
Você pode passar uma imagem de respeito, ser um exemplo na sua postura e conduta, mas a sua função principal não é a educação. É uma função de segurança, apenas isso. (A18)
Eu acho que nós não temos esse papel de ressocialização, o inspetor não. A gente não educa o preso, a gente orienta, eu não sou agente ressocializador, não sou mesmo! (A19)
A fim de se analisar integradamente todas as variáveis apresentadas nas três tabelas, elaborou-se um modelo estatístico (Tabela 4) que demonstra quais delas são mais relevantes para a compreensão do sofrimento psíquico sentido pelos agentes. Evidenciou-se e reiterou-se a força do apoio social, seja na forma de práticas religiosas, seja na forma de interação positiva ou de apoio no próprio trabalho. O relato de prática religiosa mostrou-se de forma significante associado ao melhor estado de saúde mental (OR=4,02; IC 95%=1,66 - 10,11). Maior escore de apoio social no formato de interação positiva está relacionado a menor sofrimento psíquico, apontando que a capacidade de inter-relação, de se divertir em grupo, de relaxar, de fazer coisas agradáveis e de se distrair foram importantes formas de prevenção de transtornos emocionais. Também se destacou a relevância de aspectos como a compreensão dos colegas e o relacionamento com os superiores/chefe imediato; os agentes que relataram pior padrão relacional no trabalho apresentaram chance maior de sofrimento psíquico. E, por fim, quanto mais o agente percebeu que seu trabalho foi reconhecido pela população, menor foi relatado seu sofrimento psíquico.

Avaliado nessa pesquisa, o sofrimento psíquico de agentes penitenciários teve prevalência de 27,7%, índice mais elevado que em pesquisas com professores (21,8%)21, com profissionais de saúde (19,7%)22 e até com policiais civis do estado do Rio de Janeiro (20,3%)23; no entanto, esse índice mostrou-se inferior que em pesquisa com policiais militares do estado do Rio de Janeiro (33,6%)24. Os sintomas físicos e psicológicos ligados ao sofrimento psíquico são descritos pelos agentes penitenciários e correspondem à literatura sobre o tema6. Os mais apontados durante as entrevistas são relacionados à dificuldade para dormir, ao nervosismo, tensão ou agitação.
Os fatores mais relevantemente associados ao sofrimento psíquico dos agentes estão vinculados ao apoio social por eles recebido. Observa-se na literatura que o suporte social está entre os fatores de redução do impacto causado por eventos estressores25 e funciona como agente protetor da saúde26. Os agentes possuem apoio social principalmente vindo da família e de seus colegas de trabalho. O ambiente prisional gera muita insegurança e, por isso, eles se unem para enfrentar o ambiente hostil. Quanto maior é sua percepção desse apoio social, menores são as chances de apresentarem sofrimento psíquico. A maioria dos participantes é casada e tem filhos, possui bom nível de escolaridade e conta com apoio religioso. O apoio religioso também se apresenta enquanto variável associada ao sofrimento psíquico de forma protetiva, uma vez que a prática de uma religião contribui como um suporte emocional e social em situações de sofrimento. Através dela, os indivíduos podem se sentir mais motivados, acolhidos e fortes para enfrentar momentos de dificuldade13), (27.
Entre os possíveis fatores que propiciam o sofrimento psíquico no ambiente de trabalho, os agentes apontam: o contato direto, constante e tenso com os presos, as ameaças vindas dos detentos, a superlotação crescente, a falta de recursos humanos e a sobrecarga de trabalho, fatores que correspondem aos destacados em artigo de revisão sobre o tema6.
Diferentemente dos resultados de pesquisas em outros países10), (11, fica claro que não existe entre esses profissionais o paradoxo punir/reeducar, uma vez que não se identificam com a função educativa em relação aos presos. Para eles, sua função é basicamente garantir a segurança. De acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações28, espera-se dos agentes penitenciários atividades ligadas à segurança, fiscalização, recepção, controle, escolta e comunicação, não havendo conteúdo relativo à educação ou ressocialização dos presos como função ou como esperado deles. A inexistência desse conflito de papéis também pode ser considerada um fator protetivo, pois não perceber essa contradição no trabalho diminui a possibilidade de sofrimento.
Os fatores de proteção ao sofrimento psíquico no trabalho, como o reconhecimento social e da população em geral, não são bem avaliados pelos agentes. Eles consideram que existe muito preconceito e desconhecimento em relação à profissão, sendo na maioria das vezes taxados de violentos e corruptos. A mídia ajuda a incrementar essa visão negativa, noticiando apenas o que há de pior na instituição: “A lógica de transformar em notícia aquilo que foge da normalidade pouco valoriza o trabalho regular de centenas de milhares de agentes” (29) (p. 5). Eles têm uma missão perigosa que conta com poucas retribuições simbólicas30.
Nesta pesquisa, de acordo com a análise univariada, a escala de 24h de trabalho por 72h de descanso (plantão) se mostrou mais associada ao sofrimento psíquico do que o trabalho diário de 8 horas. Estudos sobre o trabalho em turnos e noturno (plantão) apontam as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores quanto à saúde e o bem-estar orgânico e social31. Além dos problemas relativos ao relógio biológico (ao trabalharem quando normalmente estariam dormindo) o que causa mudanças fisiológicas, psicológicas e comportamentais32, agentes que trabalham em plantões têm contato mais direto com os presos (custódia/atividade fim) e estão em número insuficiente, o que gera uma maior insegurança. Para lidar com essa questão, é necessário aumentar o número de profissionais nesta função. Trabalhar nos plantões é exaustivo e, por esse motivo, não é algo desejado pelos agentes; no entanto, é preciso ter mais agentes nesses postos a fim de diminuir a carga de trabalho, tanto física quanto psicológica, de cada um. Em relação aos salários, os agentes pareciam satisfeitos, mas sabiam que se não houvesse reajustes periódicos, sua remuneração logo estaria defasada.
Entre as limitações desta pesquisa ressalta-se que, por ser apenas de rastreamento, a escala de sofrimento psíquico utilizada não permite o estabelecimento de diagnósticos. Além disso, estudos adotam diferentes pontos de corte o que, por vezes, prejudica a comparação de resultados entre eles. Essa escala refere-se ao sofrimento psíquico na vida e não particularmente no trabalho; no entanto, sabe-se que a profissão exercida está diretamente ligada aos hábitos de vida e exerce influência na saúde física e mental do trabalhador. Em função das limitações de tempo e recursos, não houve investigação de todas as unidades prisionais do estado do Rio de Janeiro, conforme indicado anteriormente. Este fato, aliado à perda de 30% de entrevistados entre os profissionais das unidades investigadas, também indica cautela na interpretação dos resultados. Todavia, a escassa informação existente sobre esta categoria profissional, o elevado número de profissionais participantes e as abordagens metodológicas quantitativas e qualitativas justificam a contribuição deste estudo. Espera-se que os resultados apresentados possam contribuir com a saúde pública no sentido de identificar fatores que podem ser evitados ou controlados a fim de melhorar a qualidade de vida desses profissionais e, consequentemente, a prestação de serviços para a sociedade.
A literatura, a mídia e até o senso comum nacional e internacional sabem que o ambiente prisional é violento, insalubre e não se mostra adequado aos presos e aos profissionais carcerários. O trabalho diário em um ambiente como esse tem suas consequências na saúde do trabalhador. Entre as causas mais graves dessa insalubridade, a superlotação precisa ser resolvida definitivamente. No entanto, acredita-se que a solução desse problema não passe pela construção de mais unidades prisionais e sim pela revisão das leis e das formas de punir.
O apoio social, considerado tão fundamental na prevenção e proteção da saúde mental desses trabalhadores, aponta para a importância da análise das relações dentro e fora do trabalho. As observações realizadas e os depoimentos dos agentes mostram que os profissionais que trabalham nos “plantões” são mais vulneráveis ao desgaste físico e mental. É um posto de trabalho desvalorizado até mesmo entre os próprios agentes, ocupação em que a maioria deles não gostaria de estar. No entanto, “trabalhar no plantão” é a atividade-fim do agente penitenciário (custodiar, viabilizar direitos, estar em contato com o preso) e, por esse motivo, deve ser mais valorizada, aumentando-se as gratificações e o número efetivo de profissionais nesta atividade a fim de se trabalhar com mais segurança e paz.
O investimento na formação profissional, embora não pesquisado como elemento protetor neste estudo, é fortemente recomendado por ser um importante veículo de valorização, tanto para o trabalhador quanto para a instituição. A formação continuada de profissionais pode ser considerada uma forma de apoio social que visa a melhoria de suas aptidões, a facilidade na forma de se comunicar, a melhoria na qualidade dos relacionamentos e que ainda pode promover atualizações no estudo sobre as legislações, tecnologias e exigências práticas para as atividades diárias. Quem se sente preparado tem mais disposição para enfrentar imprevistos e desafios e pode prestar um serviço de melhor qualidade para a sociedade.
Contato: Claudia de Magalhães Bezerra E-mail:paticons@ensp.fiocruz.br




