Resumo
Objetivo: analisar as condições de trabalho na cultura de cana-de-açúcar no Brasil e as suas repercussões na saúde do trabalhador.
Métodos: revisão de literatura realizada nas bases LILACS, PubMed/MEDLINE e SciELO. Foram incluídos estudos originais publicados em português, inglês e espanhol, de 1970 a 2018.
Resultados: inicialmente foram identificados 622 estudos e, após a aplicação dos critérios de exclusão, 69 artigos foram selecionados para a revisão. A análise dos trabalhos evidenciou o sistemático descumprimento das normas trabalhistas, previdenciárias e de saúde. Os estudos constataram ausências de intervalos de descanso, jornadas excessivas de trabalho, deficiência na distribuição dos equipamentos de proteção individual (EPIs) e na oferta de treinamentos para o seu uso, precariedade da distribuição e orientação sobre uso de repositores hidroeletrolíticos, inadequadas condições dos alojamentos e da alimentação dos trabalhadores, pressões e conflitos existentes no ambiente de trabalho, vínculos de trabalho precários, baixos salários e pagamento por produção. Exaustão física e psíquica dos trabalhadores, afecções musculoesqueléticas e articulares, hipertermia e acidentes de trabalho são comuns.
Conclusão: as condições de trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar, aliadas às diferentes vulnerabilidades existentes nos territórios, levam ao adoecimento e à morte, demonstrando que frequentemente os interesses econômicos se sobrepõem aos cuidados com a saúde dos trabalhadores.
Palavras-chave: agroindústria, cana-de-açúcar, condições de trabalho, saúde do trabalhador.
Abstract
Objective: to analyze the working conditions in sugarcane crops in Brazil and their effects on workers’ health.
Methods: it consists of a literature review conducted at LILACS, PubMed/MEDLINE, and SciELO databases. We searched original articles published from 1970 to 2018 in Portuguese, English, and Spanish.
Results: from the 622 studies identified, 69 met the inclusion criteria and were selected for review. Their analysis indicate the systematic non-compliance with labor, social security, and health standards. The studies evinced lack of work breaks and excessive working hours; deficiency in the distribution of personal protective equipment (PPE) and in the offering of training for its use; precarious distribution and orientation on electrolyte replenisher use; inadequate housing and feeding conditions; pressures and conflicts in the work environment; precarious work relationships; low wages; and production-based pay. Physical and mental exhaustion, musculoskeletal and joint disorders, hyperthermia, and occupational injuries are common among these workers.
Conclusion: the working conditions in sugarcane plantations, associated to different territories vulnerabilities, promote illnesses and death, indicating that economic interests often overlap with workers’ health.
Keywords: agroindustry, sugarcane, working conditions, occupational health.
Artigo de revisão
Condições de trabalho no cultivo da cana-de-açúcar no Brasil e repercussões sobre a saúde dos canavieiros
Working conditions in sugarcane crops in Brazil and their effects on workers’ health
Recepção: 22 Abril 2020
Revised document received: 27 Agosto 2020
Aprovação: 01 Setembro 2020
Historicamente, o sistema capitalista atribuiu significativa importância às fontes de energia, uma vez que elas são forças motrizes para a expansão econômica. O recente debate da associação entre o uso de combustíveis fósseis e as alterações climáticas levou o Estado e as empresas a buscarem outras matrizes energéticas, introduzindo no cenário econômico o álcool como fonte alternativa de combustível, impulsionando o crescimento das lavouras de cana-de-açúcar. Essa escolha tem se revelado uma opção bastante lucrativa para os grandes empresários do agronegócio1.
Com isso, estruturou-se um mercado internacional de etanol de grande rentabilidade, tendo como principais produtores o Brasil, a Austrália e a Tailândia. O Brasil é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, e sua produção tem crescido ao longo dos últimos anos. A produção da safra 2020/21 foi de 654,8 milhões de toneladas, acréscimo de 1,8% em relação à safra anterior. O ciclo 2020/21 destinou cerca de 8.616,1 mil hectares à produção de cana-de-açúcar, o que representou um aumento de 174,1 mil hectares em comparação a 2019/20. Na safra 2019/20, já se observava aumento na produção do etanol fabricado a partir da cana-de-açúcar, com uma produção de 23,62 bilhões de litros, representando incremento de 2,6% em comparação à safra passada. O Brasil também é um dos maiores produtores mundiais de açúcar, apresentando, em 2019/20, incremento na produção de 3,8% em relação à safra passada, atingindo a produção de 30,14 milhões de toneladas2.
O crescimento da produtividade no setor sucroalcooleiro tem como marco inicial a crise do petróleo no contexto internacional da década de 1970, que afetou diretamente a agroindústria da cana-de-açúcar brasileira e levou ao aumento massivo do investimento nesse setor3. O aumento da produção nas décadas seguintes foi impulsionado pela revolução verde, com investimento de grandes oligarquias multinacionais, e influenciado pelo movimento de reestruturação produtiva, com a intensificação do uso de fertilizantes e de agrotóxicos4.
A produção sucroalcooleira revela-se uma estratégia rentável ao capital em países de economia periférica. No Brasil, a concentração de riquezas no setor é centrada na superexploração dos trabalhadores, mantendo o histórico de trabalho degradante, uma estrutura agrária latifundiária e de monocultura e perpetuando reflexos da escravidão do período colonial3), (5. A herança das relações sociais de produção e reprodução são refuncionalizadas na atualidade e repercutem na organização do trabalho por meio da intensificação das condições exploratórias e abusivas diante da redução de direitos3), (6. Somam-se a esses elementos as vulnerabilidades socioambientais existentes nos territórios, como as precárias condições de habitação, saneamento e acesso aos serviços de saúde e, mais recentemente, os desafios impostos em áreas rurais pela pandemia de COVID-197.
Embora diversos estudos avaliem as condições de trabalho nas lavouras da cana-de-açúcar, existe a necessidade de sistematização desses achados e da sua relação com a saúde. Assim, este estudo tem como objetivo analisar as condições de trabalho na cultura da cana-de-açúcar no Brasil e as suas repercussões na saúde do trabalhador.
Realizou-se uma revisão sistemática da literatura buscando responder à pergunta: quais são as condições de trabalho dos canavieiros do Brasil?
A busca foi realizada nas bases de dados LILACS, PubMed/MEDLINE e SciELO e foram selecionados artigos publicados entre os anos de 1970 e 2018, considerando como marco inicial a crise internacional do petróleo na década de 1970, que levou ao aumento massivo do investimento na produção de cana-de-açúcar.
Para seleção dos termos utilizados nas buscas, recorreu-se aos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS). Os descritores utilizados para avaliar as condições de trabalho foram: “escravidão”, “exploração”, “jornada de trabalho”, “setor informal”, “automação”, “emprego” e “serviços terceirizados”, que foram combinados utilizando o operador booleano “OR”. Utilizando-se o operador “AND”, esses termos foram combinados ao conjunto de descritores “agricultor”, “trabalhador” e “cana-de-açúcar”, unidos entre si pelo operador “OR”. As doenças e agravos relacionados ao trabalho foram identificados a partir da sistematização das evidências de danos à saúde decorrentes das condições de trabalho descritas em cada artigo.
Foram incluídos na pesquisa estudos originais publicados em português, inglês e espanhol, que continham resultados referentes às condições de trabalho em plantações de cana-de-açúcar no Brasil. Foram excluídos estudos experimentais, os que não possuíam resultados originais de investigação, literatura cinza, monografias, dissertações e teses.
O processo de seleção ocorreu mediante a leitura dos títulos e resumos dos artigos localizados nas buscas, a fim de eliminar aqueles que não atendiam aos critérios de inclusão. Quando essas informações não eram suficientes para tomada de decisão, submeteu-se o artigo à leitura na íntegra. A seleção foi realizada por dois revisores independentes (AMG e CPS) e as discordâncias foram resolvidas por consenso. Observou-se elevado grau de concordância entre os pesquisadores, com kappa geral de 0,893 (Intervalo de Confiança 95%, p < 0,001). Os metadados dos artigos encontrados nas bases de dados pesquisadas foram exportados para o gerenciador de referências bibliográficas Mendeley versão 1.19.2.
O método de metassumário foi escolhido para análise dos dados diante da necessidade de integração e síntese dos achados de estudos independentemente do seu desenho, com o objetivo de desenvolver novos conhecimentos baseados em análises críticas e sínteses integrativas8), (9.
Durante a análise dos artigos, extraíram-se dados relativos à publicação (autor, título, ano de publicação e periódico); à pesquisa (objetivos do estudo, desenho, local, período, população, considerações éticas e critérios de inclusão e exclusão); às condições de trabalho (critérios de seleção dos trabalhadores, função, jornada, volume de cana cortada, ferramentas/instrumentos utilizados, forma de execução do trabalho, tipo de vínculo empregatício, formas de pagamento, existência de pausas/descansos/repouso, condições do ambiente de trabalho, uso de equipamentos de proteção, medicamentos utilizados, exposições a condições e agentes com potencial de causar danos, acidentes, doenças e agravos). Os resultados foram tabulados no Microsoft Excel 2010.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Aggeu Magalhães, CAAE nº 73834317.2.0000.5190.
Foram identificados 622 trabalhos, sendo que 95 foram excluídos por estarem repetidos entre as bases de dados e outros 427, após a leitura do título e do resumo. Entre os textos analisados na íntegra (n = 100), 41 foram desconsiderados por não atenderem aos critérios estabelecidos. Foram inseridos 10 novos artigos após uma busca de referências cruzadas, totalizando um corpus de 69 artigos (Figura 1).

Observou-se, no setor, uma predominância de trabalhadores jovens do sexo masculino10)- (16. Quatro estudos relataram a ocorrência de trabalho infantil17)- (20. Duas pesquisas foram publicadas na década de 1980, anteriormente à instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente, criado em 1990, que proíbe o trabalho de menores de 18 anos em atividades noturnas ou em condições perigosas e insalubres, como nas lavouras de cana-de-açúcar.
A baixa escolaridade e o analfabetismo entre os trabalhadores foram destaques em 12 artigos11), (12), (14)- (16), (21)- (27.
Poucos estudos descrevem o processo de trabalho no setor canavieiro, detalhando apenas o processo de trabalho dos cortadores e as condições de trabalho no setor de forma geral. Embora haja uma predominância de estudos na região Sudeste, onde predomina o corte mecanizado, a maioria dos artigos discorre sobre as condições de trabalho ou os agravos decorrentes do corte manual da cana-de-açúcar.
As atividades do corte manual organizam-se a partir da divisão da lavoura em espaços retangulares de tamanho variável, compostos por linhas, chamadas de ruas, em que se planta a cana-de-açúcar em um formato conhecido como “eito”, que é dividido entre os trabalhadores28), (29. Na realização do trabalho, os instrumentos mais utilizados no corte da cana são o facão ou o podão, o afiador30, a enxada, a foice31, a lima (instrumento utilizado para amolar o facão) e a bainha (estojo que guarda a lâmina do facão) (20.
Quanto às condições de trabalho (Quadro 1), observou-se uma sobrecarga de trabalho no corte manual, pois os trabalhadores realizam diversos movimentos que forçam a estrutura da coluna vertebral e prejudicam as articulações, como golpear, abaixar-se e abraçar o feixe de cana, levantar e baixar o facão, carregar o material cortado e organizá-lo em montes15), (18), (19), (29), (32)- (39. Durante a atividade do corte manual, em oito horas de trabalho, são realizadas cerca de 3.080 flexões de coluna e desferidos de 3.500 a 14 mil golpes de facão. Os trabalhadores caminham de 5.700 a 8.800 metros, carregando grandes quantidades de cana em montes de aproximadamente 15 quilos, repetindo este trajeto várias vezes ao dia27), (29), (33.

A superexploração da mão-de-obra relacionada à intensa carga de trabalho do cortador de cana também é evidenciada ao se analisar o volume de cana-de-açúcar cortado, que varia entre 7 e 20 toneladas por dia (t/dia) (11), (13), (24), (27), (29), (38), (40)- (45.
Apenas dois estudos apresentaram diferenças de produção segundo sexo, com uma média da quantidade de cana-de-açúcar cortada por homens superior à produção das mulheres, em uma proporção que variou de 8 a 11 t/dia para homens e 6 a 10 t/dia para mulheres40), (46.
A sobrecarga e a exaustão também se refletem nas tensões e conflitos no trabalho, na cobrança de metas pelas chefias das usinas, no estímulo à disputa entre os trabalhadores por meio de estratégias, como colocar dois trabalhadores para cortar nas mesmas ruas em direções opostas, além da utilização de “técnicas motivacionais”, como sorteios de carros, motos, bicicletas e outros equipamentos21), (24), (33), (45. Também há a distribuição de cestas básicas para os trabalhadores que atingirem as metas de produção firmadas pela empresa11, o que gera pressões para se produzir até a completa exaustão.
São atribuídas designações aos trabalhadores, como “podão de ouro” para os mais produtivos e “podão de borracha” para os menos produtivos, sendo estes humilhados, desvalorizados e desrespeitados pelos fiscais e pelos colegas de trabalho, além de terem seus nomes postos em “listas negras” das usinas, para que não sejam contratados em safras futuras15), (24), (47.
Outra característica marcante do trabalho no campo, que contribui para o processo de precarização e exploração da força de trabalho, é o pagamento por produção, no qual a capacidade de produção individual determina o valor a ser recebido, estratégia comum na indústria sucroalcooleira4), (11)- (13), (18), (19), (24), (25), (27), (29), (30), (32), (33), (38), (39), (44), (45), (47), (48.
Como a maioria dos trabalhadores desconhece a metodologia utilizada para determinar os preços a serem pagos pela cana cortada, bem como a quantidade colhida em um dia trabalho, acabam ficando à mercê dos fiscais das empresas11), (25), (28), (29), (47. Essas estratégias revelam a perda do controle da produção, uma vez que os trabalhadores não controlam nem a medida, nem o valor do seu trabalho, marcando o processo de alienação25), (29.
A jornada de trabalho foi avaliada em 19 estudos, que observaram, em todos os casos, a ultrapassagem do estabelecido na legislação trabalhista, que preconiza, salvo os casos especiais, uma jornada de trabalho de 8 horas diárias e de 44 horas semanais, conforme Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (49. Nos estudos que avaliaram esse aspecto, para o cortador de cana observou-se que a jornada era superior a 8 horas/dia, chegando até a 14 horas de trabalho diário11), (15), (23)-26), (29), (36), (39), (42), (47), (50), (51. Um estudo registrou o início do turno de trabalho diariamente às 5h30, porém sem horário previsto para encerramento da jornada21, havendo total descumprimento da legislação trabalhista.
Também se observou, entre os trabalhadores nas lavouras da cana-de-açúcar, a ausência de intervalos intrajornada, preconizados pela Norma Regulamentadora (NR) nº 3152 da Segurança e Saúde no Trabalho na Agricultura, Pecuária, Silvicultura, Exploração Florestal e Aquicultura, que recomenda medidas de ampliação dos intervalos de descanso por meio de dois intervalos intrajornada, além da pausa no horário do almoço15), (30), (33), (40.
Quanto aos equipamentos de proteção individual (EPIs), é comum que as empresas não os forneçam nas lavouras da cana-de-açúcar19), (21), (30), (32), (53), (54, ou, quando o fazem, distribuam equipamentos inadequados para a atividade, fora do prazo de validade e danificados19), (28), (40), (47), (48), (55 ou não promovam treinamento prévio para sua utilização26), (32. Os equipamentos comumente utilizados pelos trabalhadores são roupas sobrepostas (saias sobre calças compridas, camisas de mangas compridas, luvas e lenços cobrindo o rosto e chapéus ou bonés), registrando-se também o fornecimento de óculos, fone de ouvido, máscaras, botas e caneleiras15), (18), (19), (28), (29), (32), (38), (56.
Os contratos temporários de curta duração foram frequentemente observados, implicando a insegurança e o aumento da volatilidade dos rendimentos, uma vez que não é assegurado um trabalho estável de longa permanência11), (18), (21), (44), (45. Identificaram-se também contratos via empresas terceirizadas4), (14), (18), (21), (28), (31), (47, prática que descumpre o acordo firmado no Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-açúcar, que proíbe o estabelecimento desse tipo de vínculo trabalhista57.
Para minimizar os problemas gerados pela desidratação, os empregadores distribuem para os trabalhadores um repositor hidroeletrolítico, também denominado repositor energético, que é uma mistura de água, sais minerais e carboidratos. Sua distribuição foi identificada em apenas nove estudos, apesar da instituição de sua obrigatoriedade11), (21), (27)- (29), (31), (39), (45.
No corte manual também há acidentes com o facão nos membros inferiores e superiores; com a folha da cana no rosto e nos olhos; e acidentes envolvendo animais, peçonhentos e outros (cobras, abelhas, vespas, ratos e morcegos).
Poucos estudos descrevem as condições de trabalho no corte mecanizado da cana-de-açúcar, mas algumas características se destacam neste segmento, como a exigência de um certo nível de qualificação profissional para a execução do trabalho e a preferência por contratar trabalhadores que residam próximos aos canaviais. Os vínculos empregatícios são elaborados diretamente pela contratante, sem terceirização. São estabelecidos contratos por tempo indeterminado, o que assegura alguma proteção social e direitos trabalhistas básicos45.
Constatou-se também que a diminuição dos postos de trabalho nas lavouras da cana-de-açúcar, particularmente na região Sudeste, decorre da mecanização do plantio e da colheita12. Com isso, são instaurados critérios mais rigorosos no processo de seleção dos empregados, sendo exigido pelas empresas um alto nível de produtividade4), (15), (24), (41), (51, a realização de diversos exames admissionais com o objetivo excluir os trabalhadores que apresentem maior chance de desenvolver patologias11), (47), (58 e a busca de trabalhadores com “comportamento dócil”, ou seja, que não realizem greves, não sejam sindicalizados, obedeçam aos fiscais e sigam as normas da empresa sem questionar4), (15.
As máquinas acentuam as sobrecargas psíquicas e fisiológicas pela intensificação do ritmo de trabalho devido às escalas de plantão, em turnos de 12 a 24 horas. Como as pausas intrajornada não estão previstas, uma vez que o funcionamento das colhedoras deve ser ininterrupto, os operadores das máquinas agrícolas só param se houver imprevistos33), (51. O ritmo do trabalho é orientado pelo funcionamento das máquinas, estimulando o exercício contínuo das atividades51.
A execução do trabalho no corte mecanizado requer grande esforço mental devido ao alto grau de concentração exigido na operação das máquinas, o que predispõe ao envelhecimento precoce, estresse, insônia e outros distúrbios psicológicos, além de alterações nos sistemas cardiovascular e gastrointestinal13), (51.
No corte mecanizado, o trabalhador tende a se sentir “preso” à escala de serviços, havendo a sensação de falta de liberdade, já que faltas, férias, descontos de horas ou qualquer outro motivo que justifique a ausência no trabalho precisam ser programados com antecedência mínima de 15 dias51. Assim, o trabalho se mostra penoso, uma vez que o trabalhador não possui controle sobre seu processo25), (29.
Os operadores de máquinas executam outras atividades no período em que não há colheita, como preparo do solo, plantio e tratos na lavoura, operando diferentes tipos de máquinas. Logo, a estabilidade dos vínculos exige a formação de um trabalhador rural polivalente, apto para desempenhar diferentes atividades em todas as fases do cultivo51.
Outras situações geram desgaste nos operadores do corte mecanizado, por exemplo, a ausência de sistema de ventilação e refrigeração nas cabines das máquinas, o que contribui para a elevação da temperatura. Para amenizar o calor, o trabalhador desenvolve as atividades com os vidros abertos, expondo-se a agrotóxicos, à poeira e ao ruído provocado pela circulação das máquinas, bem como ao perigo de ser atingido por pedras, pedaços de cana e outros detritos51. Durante o conserto e a limpeza nas máquinas também podem acontecer acidentes, que, embora sejam eventos mais raros em comparação ao corte manual, são muito mais graves e, na maioria das vezes, provocados pelo manuseio de lâminas afiadas20), (26), (51.
Alguns acidentes ocorrem mais frequentemente no turno da noite, como quedas e colisões com caminhões, devido à sonolência, deficiência de iluminação noturna e presença de neblinas e névoas no inverno. Durante o dia é comum a ocorrência de incêndios provocados pelo superaquecimento do motor das colheitadeiras, em virtude do contato das palhas secas com as partes quentes das máquinas e do intenso calor do sol51. Essas ocorrências refletem problemas nos aspectos organizacionais do corte mecanizado.
Contribuem para o desgaste profissional e a deterioração do trabalho nos canaviais, tanto no corte mecanizado como no manual, o risco de ocorrência de acidentes, a realização de movimentos repetitivos, a exposição a radiações não ionizantes, a animais peçonhentos, a agrotóxicos e fertilizantes, a material particulado, poeira, fumaça e vapores e a ruídos (Quadro 1).
Esse cenário é agravado pelas precárias condições de vida a que esses trabalhadores são submetidos, que podem ser consideradas sub-humanas, a exemplo das refeições, em geral compostas por alimentos pobres em nutrientes e ricos em gorduras, sem variedade e, em alguns casos, de má qualidade e conservados de maneira inadequada devido às altas temperaturas do ambiente de trabalho12), (19), (28), (30), (32), (41), (44), (45), (47.
O transporte desses trabalhadores para as plantações é realizado em ônibus velhos, em mau estado de conservação, muitas vezes clandestinos e que ultrapassam a capacidade de lotação do veículo11), (12), (18), (30), (32), (39), (48.
Os alojamentos oferecidos aos cortadores imigrantes também são um grave problema, pois apresentam péssimas condições sanitárias e de limpeza, por albergarem muitos trabalhadores e por se localizarem usualmente nas periferias das cidades4), (11), (15), (21.
Uma característica marcante da atividade do corte da cana-de-açúcar, sobretudo no Sudeste, é o fato de um contingente considerável de trabalhadores ser composto por imigrantes do Nordeste brasileiro25), (32), (39), (45), (58, em especial de áreas do sertão, onde as condições de vida são mais precárias, levando-os a buscar melhores alternativas32. Isso implica em um sofrimento psíquico adicional pelo afastamento da família e dos amigos e pela inserção em territórios que podem ser muito diferentes, considerando os arranjos socioculturais.
Diante das condições de trabalho e de vida impostas aos trabalhadores dos canaviais no Brasil, observa-se, com frequência, o esgotamento físico e mental, revelando a sobrecarga a que os trabalhadores são submetidos, bem como seus desdobramentos na saúde.
As condições de trabalho e a superexploração podem levar os cortadores de cana a óbito. Nos estudos avaliados, as principais causas de morte decorrentes das atividades laborais foram: parada cardiorrespiratória, infarto do miocárdio, pancreatite, acidente vascular cerebral e púrpura19), (47.
Enfermidades, como doenças infecciosas e parasitárias, também surgem devido à precariedade de habitação e saneamento, a exemplo da esquistossomose, pneumonia, tuberculose e conjuntivite59), (60), (68), (72), (73.
O cultivo da cana-de-açúcar é marcado por um acentuado nível de exploração dos trabalhadores, com severas repercussões para a saúde. A baixa escolaridade, característica no trabalho rural e evidenciada pelos artigos analisados, contribui para a manutenção dessa situação, apesar de o Compromisso Nacional firmado em 2009 entre empresas e trabalhadores da cana-de-açúcar estabelecer o oferecimento de educação básica e qualificação profissional como um dever das empresas57. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua revela que a maioria dos trabalhadores rurais não concluiu o ensino fundamental74.
A predominância de trabalhadores jovens e do sexo masculino nas lavouras de cana-de-açúcar é outra característica histórica deste setor, confirmada por estudos que apontam caber aos homens, especialmente aos mais jovens, as atividades que requerem grande esforço físico no trabalho rural75. Na produção da cana-de-açúcar, a escolha por trabalhadores com essas características está relacionada ao maior nível de rendimentos auferidos por eles, pois produzem mais do que os mais velhos e as mulheres, independentemente da faixa etária25.
Poucos estudos relatam a presença do trabalho infantil nos canaviais, embora esta seja uma realidade comumente vivenciada no trabalho do campo no modelo produtivo do agronegócio17)- (20. Organismos internacionais de defesa dos direitos da infância e da adolescência vêm pressionando o Estado para a erradicação do trabalho infantil no Brasil76.
A concentração de pesquisas sobre o tema em São Paulo pode ser justificada considerando que o estado é o maior produtor de cana-de-açúcar do país2. O fato de a região Sudeste concentrar 63% dos programas e cursos de pós-graduação na área da saúde pode explicar a grande quantidade de estudos nessa região77.
Um aumento da produção e da expansão da fronteira agrícola tem levado o monocultivo de cana-de-açúcar para áreas como o Cerrado e a região Amazônica, contribuindo para o aumento do número de trabalhadores explorados no Brasil78.
Observaram-se diferenças importantes na organização do trabalho entre as regiões do país. A mecanização marcante no Sudeste impõe mudanças no trabalho dos cortadores, que são obrigados a executar o corte manual nas áreas que as colheitadeiras não acessam, cabendo a eles os terrenos mais irregulares e difíceis, o que pode aumentar o número de acidentes no setor10), (13. Em estados do Nordeste, como Paraíba, Pernambuco e Alagoas, há um predomínio da colheita manual, evidenciando o baixo grau de mecanização e a manutenção de práticas como a queima da cana-de-açúcar para facilitar o corte2), (3), (79. Essas distinções explicam as diferenças verificadas em alguns aspectos do trabalho entre as regiões. Em geral, o trabalho em terrenos menos irregulares no Nordeste implica em maior volume de cana cortada por trabalhador1. Bezerra3 e Santos79 corroboram essas afirmativas, demonstrando que os estados que apresentaram os maiores volumes de cana-de-açúcar cortada por pessoa diariamente foram Paraíba e Alagoas, com 20 toneladas por trabalhador.
Embora a superexploração do trabalho marque o setor nas diferentes regiões, é previsto que haja uma variação na incidência e prevalência de determinadas doenças e agravos, de acordo com as especificidades do processo de trabalho em cada território. Em estados onde a cana-de-açúcar é queimada, por exemplo, espera-se encontrar um maior número de doenças de pele, do aparelho respiratório e circulatório71), (79), (80.
Quanto às condições de trabalho, o processo traz em sua origem aspectos que geram cargas específicas e podem afetar direta ou indiretamente a saúde do trabalhador81. As cargas de trabalho presentes nas lavouras de cana-de-açúcar são físicas, ligadas à intensa atividade realizada, e psíquicas, ligadas às sobrecargas, tensões e conflitos decorrentes das cobranças pelo aumento da produção24), (45.
A superexploração que marca o setor impõe a intensificação do ritmo do trabalho. Observa-se a predominância de posturas forçadas e de movimentos repetitivos, que caracterizam a penosidade do trabalho nos canaviais e contribuem para o comprometimento do sistema musculoesquelético, podendo levar ao absentismo32)- (34), (55), (56. O aumento do ritmo dos cortadores de cana é impulsionado pela constante pressão das chefias, para garantir pagamentos mais altos e a manutenção de seus empregos nas colheitas subsequentes4), (15. As cobranças e pressões pelo aumento da produção gera uma grande carga psíquica, levando ao sofrimento e adoecimento24.
O pagamento por produção acarreta a intensificação do trabalho, podendo provocar fadiga, câimbras intensas, edema dos membros inferiores, bradicardia, hipotensão, náuseas, vômitos, irritabilidade, confusão mental, falta de coordenação motora, delírio, desmaio, calafrios, aumento da temperatura corporal, sudorese e desidratação. Esse conjunto de sintomas é indicativo do desgaste e do esgotamento físico do trabalhador e pode levar à morte por exaustão29), (47.
O processo de exploração vem aumentando consideravelmente após a mecanização do setor, exigindo do trabalhador um rendimento equiparado ao das máquinas agrícolas51 e impulsionando o aumento da quantidade de horas trabalhadas por dia. A mecanização impõe o controle da colheitadeira sobre o sujeito, pois a máquina determina a intensificação da atividade. As operadoras de corte computadorizadas funcionam como fiscais eletrônicos, instituindo ritmos intensos de trabalho e monitorando o ritmo dos trabalhadores7. O prolongamento da jornada de trabalho ultrapassa as recomendações legais, a exemplo da Convenção Coletiva de Trabalho do Setor Canavieiro e da própria Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que preconizam uma jornada semanal máxima de 8 horas/dia e de 4 horas aos sábados. Em casos de hora extra, é recomendado que o limite não ultrapasse 2 horas por dia74. Já as horas suplementares deveriam ser pagas com o acréscimo de, no mínimo, 50% sobre a hora normal, conforme estabelecido na Constituição Federal.
A relação entre a mecanização e os acidentes com máquinas e equipamentos refletem a incorporação das relações de trabalho do corte manual, com a persistência da pressão por metas e o pagamento por produção, marcas da intensificação do trabalho. A mecanização possibilitou o trabalho noturno, aumentando o risco da ocorrência de acidentes. As jornadas extenuantes no corte mecanizado apontam a ocorrência de acidentes, que podem ser mais graves que os observados no corte manual, devido à severidade das lesões provocadas pelas máquinas utilizadas, demonstrando que a incorporação de novas tecnologias manteve ou mesmo agravou os problemas no setor82), (83. Logo, as novas tecnologias não representaram a diminuição da penosidade, insalubridade e periculosidade do trabalho, mas sim a manutenção do elevado nível de desgaste dos trabalhadores51.
Em consonância com o aumento da quantidade de horas trabalhadas diariamente está a ausência de intervalos intrajornada, assegurados por meio do Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-açúcar, que determina a realização de duas pausas coletivas por dia, além do almoço57. A NR nº 31 também aponta que, nas atividades que demandam uma sobrecarga muscular estática ou dinâmica, devem ser incluídas pausas para descanso84. Ainda, as convenções da Organização Internacional do Trabalho, nos anos de 1980, já apontavam a necessidade de pausas breves durante o horário de trabalho, bem como de pausas mais extensas para as refeições. As pausas podem ser consideradas como uma ação protetiva para a saúde e a segurança do profissional.
Outro mecanismo utilizado para que o trabalhador “recupere” suas forças é a distribuição do repositor hidroeletrolítico, também chamado de “soro” pelos trabalhadores, mas que não se observou em 82,64% dos estudos. Com isso, não há a reposição da água e dos eletrólitos perdidos com o suor, levando ao surgimento dos problemas decorrentes da desidratação, como comprometimento do sistema cardiovascular, prejuízo nas respostas fisiológicas, alterações no equilíbrio eletrolítico e fadiga muscular. O sódio, presente no soro, é o principal eletrólito perdido no suor e sua reposição promove maior absorção de água e previne a hiponatremia, que pode provocar câimbra, convulsões, coma e morte78), (85. Já o carboidrato do repositor auxilia na manutenção da glicemia, dando energia e evitando desmaios.
Os trabalhadores rurais da cana são expostos a ambientes com baixos níveis de umidade, elevadas temperaturas, e ainda se deparam com dificuldades relacionadas ao processo de transpiração por conta das roupas utilizadas. Assim, as empresas viram-se obrigadas a oferecer soros aos canavieiros como meio de amenizar os efeitos nocivos do exercício profissional86. Contudo, os repositores hidroeletrolíticos não reduzem a sobrecarga térmica dos trabalhadores rurais, atuando apenas na reidratação corporal.
É característica do trabalho no campo a exposição às intempéries e radiações não ionizantes, dado que os trabalhadores exercem as atividades a céu aberto durante longos períodos. Aqueles que trabalham em ambientes externos e quentes tendem a desenvolver problemas relacionados a essa exposição, uma vez que medidas de proteção, como resfriamento e ventilação, não estão disponíveis e o uso de vestimentas de proteção contribui para o aumento da temperatura corporal, levando à sobrecarga térmica30), (33. Esses mesmos problemas podem ser observados entre os operadores de máquinas, que muitas vezes permanecem em cabines fechadas e sem ventilação, bem como nos trabalhadores das indústrias de açúcar e etanol, expostos a elevadas temperaturas devido aos processos químicos em caldeiras51), (87.
Ainda sobre a proteção dos trabalhadores, o fornecimento dos EPIs em condições adequadas, dentro dos parâmetros estabelecidos, bem como o treinamento para seu uso estão preconizados na legislação trabalhista brasileira, como aponta a NR nº 688. A situação desvelada por esta revisão aponta que o estabelecido nas normativas não vem sendo respeitado, o que implica um aumento de risco de acidentes.
Deve-se considerar que o risco de exposição a agentes e situações de perigo não é eliminado pelo uso de EPI. Estudos indicam sua baixa eficiência, a ineficácia desses equipamentos contra os efeitos sinérgicos, a chance de exposição do trabalhador durante o processo de limpar, vestir e retirar as vestimentas, além de exposições ocasionadas pelo uso de equipamentos não indicados para aqueles agentes ou em situações não previstas nas especificações preconizadas89)- (91.
Quanto aos vínculos empregatícios, verificou-se uma predominância de contratos temporários realizados por empresas terceirizadas. O Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-açúcar estabelece a proibição de contratação por empresas terceirizadas, buscando reduzir a precarização das condições de trabalho. Os contratos temporários são uma estratégia para diminuir os encargos sociais para os grandes empresários e implicam na instabilidade dos vínculos de trabalho e na perda de vários direitos trabalhistas e previdenciários, contribuindo, ainda, para a composição de baixos salários. Essa modalidade de contratação, aliada à intensificação do trabalho e o pagamento por produção, concorre para o processo de acumulação do capital58), (92, ampliando a exploração dos trabalhadores e as desigualdades sociais93), (94.
Tanto a terceirização como as contratações temporárias compõem o processo de flexibilização das instituições sociais e do trabalho vivenciado a partir 1970, provocando a fragmentação e precarização das atividades laborais e dos vínculos empregatícios em áreas urbanas e rurais, que se refletem em uma elevada incidência de acidentes de trabalho, incluindo os fatais95.
Também é frequente o registro de trabalho escravo nas lavouras de cana-de-açúcar brasileiras. Entre 2003 e 2018, foram registrados no país 45.028 casos de resgate de trabalhadores em situação de trabalho forçado. A fabricação de álcool, o cultivo da cana-de-açúcar e a fabricação de açúcar bruto ocupam a terceira, quarta e quinta posição no Brasil, com o registro de 2.106, 1.503 e 955 casos de trabalho análogo ao escravo, respectivamente. Somados, os casos colocam o setor como o que mais registra situações de trabalho forçado no país96.
As reformas das legislações trabalhista e previdenciária em 2017 e 2019 agravam ainda mais esse cenário ao estabelecerem novas regras para aposentadoria e trabalho, que repercutem no exercício das atividades no campo, aumentando a vulnerabilidade desses trabalhadores. As mudanças preconizadas representam a ofensiva neoliberal, que flexibiliza as legislações trabalhistas e se manifesta na perda de direitos, como a intensificação da jornada de trabalho e a diminuição dos intervalos intrajornada, além das alterações nos critérios para tipificar o trabalho análogo ao escravo. Essas modificações contribuem significativamente para o processo de exploração e adoecimento do trabalhador97), (98.
As condições de trabalho reveladas nesta revisão são típicas do trabalho análogo à escravidão, previsto no Código Penal brasileiro99 e definido como a submissão de uma pessoa “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Cercear o “uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho”, “manter vigilância ostensiva no local de trabalho” ou se apoderar de “documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho” também caracterizam essa condição.
Estas formas de atividades laborais ocorrem devido ao enorme contingente de desempregados que se encontram aptos ao desenvolvimento do trabalho - o chamado “exército de reserva” -, razão pela qual os empregadores em geral tentam reduzir os gastos por meio da não adoção de medidas de proteção e prevenção de agravos, oferecendo condições sub-humanas de alimentação, habitação e trabalho3. Usualmente, quando o trabalhador deixa de ser produtivo, ele é simplesmente substituído por outro, que se sujeitará a condições de trabalho semelhantes ou até mesmo piores em razão das vulnerabilidades sociais, político-econômicas e institucionais que usualmente permeiam a vida do trabalhador do campo.
Esses elementos evidenciam que o esforço extenuante registrado nas lavouras de cana-de-açúcar, somado aos demais impactos relacionados à atividade, são determinantes do desgaste e aparecimento de doenças nos trabalhadores submetidos a essas terríveis condições de trabalho79), (86.
Com isso, é esperada a exaustão física e psíquica dos trabalhadores, podendo levar ao esgotamento profissional100, que se manifesta no desenvolvimento da síndrome de burnout, ou síndrome do esgotamento mental101, ou à morte pelo excesso de trabalho, denominada síndrome de Karoshi29), (47.
Desde o início dos anos 2000, há um aumento no número de denúncias ao Ministério Público do Trabalho relacionadas à ocorrência de mortes de trabalhadores do corte da cana por exaustão. Entre 2004 e 2008, foram registradas 21 mortes de cortadores de cana-de-açúcar somente em Ribeirão Preto, grande parte delas atribuídas a paradas cardiorrespiratórias47. A exploração a que os cortadores da cana-de-açúcar são submetidos ocasiona a negação da própria vida em decorrência da exaustão e do desgaste, resultantes de uma organização do trabalho que antecipa a morte3.
Sobre as afecções musculoesqueléticas e articulares, sabe-se que o trabalho no campo tem relação direta com o desenvolvimento desses problemas, como demonstrado em estudo desenvolvido com trabalhadores rurais no estado de Minas Gerais, onde as principais causas de adoecimento constatadas foram “postura inadequada”, “problemas lombares gerados a partir de esforço físico”, “esforço repetitivo” e “problema muscular e movimentos contínuos” (56), (102.
Acidentes de trabalho também são frequentes entre os cortadores de cana, dada a utilização de instrumentos cortantes, o contato com as palhas afiadas da cana e com os talhões dos caules, podendo causar lesões graves ou fatais. Para os operadores de máquinas, há a possibilidade de acidentes durante o manuseio ou manutenção dos equipamentos. A exaustão decorrente do excesso de trabalho diário contribui para a ocorrência de acidentes, uma vez que o corpo extenuado perde a precisão dos golpes do facão e o controle das máquinas45. Foram constatadas torções nos punhos, distensões, fraturas, lesões e ferimentos, câimbras e ataques de animais com peçonha em outras produções agrícolas. Ressalta-se que o corte da cana crua aumenta as chances de contato com animais peçonhentos, como cobras, escorpiões e morcegos, que oferecem riscos aos trabalhadores15.
Quanto à exposição ao calor, a hipertermia pode levar à falência da regulação hipotalâmica. Em 2003, na França, foram identificadas 15 mil mortes em decorrência dessa problemática, o que demonstra as nocividades decorrentes da exposição a altas temperaturas, que é parte do cotidiano dos trabalhadores do campo no Brasil. Uma pesquisa realizada com trabalhadores agrícolas no estado de São Paulo aponta o desenvolvimento de problemas de saúde causados pela exposição a vários agentes, dentre eles o calor, o frio, a chuva e as radiações não ionizantes nas atividades de campo, como no preparo do solo, plantação, colheita e adubação, sendo observadas com maior frequência lesões na face, queimaduras solares, ceratose actínica e dermatites103.
Em relação aos agrotóxicos, o seu uso na agricultura provoca a contaminação ambiental e a exposição humana a esses agentes podem ocasionar intoxicações agudas e crônicas. A exposição ocupacional é particularmente problemática, uma vez que os trabalhadores estão expostos cotidianamente a venenos, durante longos períodos de tempo. Além dos aplicadores, foi evidenciado que os tratoristas também estão expostos a uma grande quantidade de agrotóxicos104.
Dada a magnitude e severidade decorrentes das precárias condições de trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar no Brasil, com registro de doenças graves e potencialmente irreversíveis, que podem levar à morte, fica evidenciada a necessidade da adoção de medidas intersetoriais imediatas para evitar a violação de direitos humanos fundamentais.
As pressões pelo aumento da produtividade no setor canavieiro ao menor custo possível levam o trabalhador a despender grandes esforços para assegurar uma produção elevada, desencadeando um ritmo de trabalho intenso e extenuante, o que caracteriza a superexploração existente nas lavouras de cana-de-açúcar.
Há um sistemático descumprimento das normas trabalhistas, previdenciárias, ambientais e de saúde, evidenciando a precarização do trabalho no setor. Essas condições, aliadas às diferentes vulnerabilidades existentes nos territórios, levam ao adoecimento e à morte, demonstrando a sobreposição dos interesses econômicos aos cuidados com a saúde e com o ambiente. A mecanização da colheita não trouxe os benefícios prometidos pelo setor produtivo aos trabalhadores, intensificando ainda mais o trabalho e a superexploração e culminando na ocorrência de acidentes ainda mais graves, demandando a realização de mais estudos para melhor identificação desses danos.
As condições de trabalho na produção de cana-de-açúcar no Brasil são características do trabalho análogo ao escravo, revelando seu elevado custo humano. A submissão dos indivíduos a condições degradantes de trabalho viola direitos fundamentais e ameaça a saúde e a vida, perpetuando nas lavouras de cana-de-açúcar desigualdades históricas, incompatíveis com a dignidade humana.
Há uma omissão tanto do Estado quanto da sociedade, manifestada pela ineficácia ou ausência de políticas públicas e pelo baixo grau de organização dos movimentos sociais e das entidades de classe, que não conseguem construir alternativas voltadas a melhorias concretas das condições de trabalho no setor.
As soluções para problemas tão complexos são igualmente complexas e exigem mudanças substanciais na sociedade, perpassando pela discussão do modo capitalista de produção. A economia brasileira, pautada na produção de commodities minerais e agrícolas, em um modelo altamente dependente do uso de insumos químicos, revela-se produtora de iniquidades e insustentável nas dimensões da saúde, do ambiente e mesmo na econômica.
Esses elementos comprovam a necessidade de reformas política e agrária verdadeiras, promotoras da justiça ambiental e garantidoras da preservação de direitos fundamentais.
Contato: Clécia Pereira da Silva E-mail: clecia.pereira@ufpe.br

