Resumo
Introdução: a pesca artesanal e a mariscagem são consideradas atividades especiais, para fins de benefícios, no âmbito do Regime Geral de Previdência Social do Brasil.
Objetivo: descrever o acesso aos benefícios previdenciários por uma população quilombola tradicional pesqueira no Nordeste do Brasil, cuja principal atividade ocupacional é a extração e beneficiamento de mariscos.
Métodos: estudo transversal, descritivo, em uma comunidade da Ilha da Maré, em Salvador, Bahia, Brasil. Os dados foram coletados por meio de entrevistas, utilizando questionários padronizados.
Resultados: participaram 213 pescadores artesanais e marisqueiras, 76,5% do sexo feminino. Dentre os participantes, 62,9% não recebem nenhum tipo de benefício previdenciário. Apesar de se submeter a uma jornada de trabalho exaustiva (90,9%), com exposição a substâncias químicas (83,9%), ruído (69,9%) e radiação solar (88,2%), a maioria não obtém rendimentos que garantam a subsistência familiar (79,6%).
Conclusão: há um importante déficit no recebimento de benefícios previdenciários em uma população quilombola tradicional que atende aos critérios de segurados especiais. Sugere-se adequação da legislação, de forma que o acesso aos benefícios se torne mais justo para as comunidades tradicionais.
Palavras-chave: Seguridade social, saúde do trabalhador, pesca, epidemiologia descritiva.
Abstract
Introduction: artisanal fishing and shellfish gathering are considered special activities under the Brazilian general social security system for the purposes of social security benefits.
Objective: to describe the access to social security benefits for a traditional fishing quilombola community in northeastern Brazil, whose main occupational activity is shellfish extraction and processing.
Methods: a cross-sectional descriptive study conducted in a community from Ilha da Maré, Salvador, Bahia, Brazil.
Results: 213 fishermen (76.5% female) participated in the study, of which 62.9% did not receive social benefits. Although most participants undergoing an exhausting working hours (90.9%), with exposure to chemicals (83.9%), noise (69.9%) and solar radiation (88.2%), the majority of them do not earn an income that guarantees their family’s subsistence (79.6%).
Conclusion: there is an important deficit in social security benefits access for a traditional quilombola population that meets the criteria for special insurance. Legislation must be adapted to ensure fairer access to social benefits for this population.
Keywords: Social welfare, occupational health, fishing, epidemiology, descriptive.
Artigo de Pesquisa
Benefícios previdenciários de pescadores artesanais e marisqueiras em comunidade quilombola no Nordeste do Brasil
Social security benefits for small-scale fisherman in a quilombola community in northeastern Brazil
Recepção: 09 Agosto 2021
Revised document received: 22 Janeiro 2022
Aprovação: 24 Janeiro 2022
O Regime Geral da Previdência Social (RGPS) tem a finalidade de assegurar, mediante contribuição, amparo financeiro quando houver incapacidade, desemprego ou idade avançada. Diante disso, existem modalidades de contribuição previdenciária que definem os segurados como contribuintes empregados, individuais, facultativos e especiais1.
Os segurados especiais (SE) do RGPS correspondem a um grupo de contribuintes com características peculiares em virtude do seu trabalho. Essa categoria compreende produtores, parceiros, meeiros, arrendatários rurais e pescadores artesanais, bem como seus cônjuges, desde que exerçam suas atividades laborais em regime de economia familiar e sem empregados permanentes1. Esses trabalhadores contribuem para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização de seus produtos, e fazem jus a benefícios previdenciários2.
Além da normativo presente na Constituição Federal (CF) (3, outros dispositivos reforçam o aparato legal para a concessão dos benefícios previdenciários para os SE. Entre eles, destacam-se a Lei 8.213/19911 e a Lei 11.718/20084. Essa última reafirma a inclusão do pescador artesanal como SE3.
Entre as diferentes formas de pesca artesanal vinculadas ao arcabouço legal dos SE, inclui-se a mariscagem, definida como toda a atividade desenvolvida sem a utilização de embarcação pesqueira. Caracteriza-se pela captura ou extração de elementos animais ou vegetais que tenham na água o seu meio de vida, na beira do mar, em rios ou em lagoas2), (4.
A mariscagem é uma atividade predominantemente feminina5 na qual, durante as etapas de extrativismo, manipulação, beneficiamento e conservação, coexistem diversos riscos ocupacionais e ambientais às trabalhadoras. Entre eles, destacam-se a sobrecarga musculoesquelética em pescoço, ombros, dorso, membros superiores e região lombar decorrentes do trabalho extrativo, movimentação manual de cargas e posturas de risco. Todo esse processo resulta em mecanismos de adoecimento dessas trabalhadoras6)- (8. Não obstante os diversos riscos ocupacionais presentes no processo de trabalho, a mariscagem é também considerada uma atividade penosa9.
Desse modo, a mariscagem pode acarretar diversas doenças relacionadas ao trabalho e gerar situações de incapacidade temporária e permanente. Alguns estudos realizados com marisqueiras no Brasil identificaram associações entre esse trabalho e doenças ocupacionais11)- (13.
Soma-se a isso, ainda, a dificuldade das marisqueiras em acessar os benefícios previdenciários como seguradas especiais, o que impacta negativamente no modo de vida e de trabalho dessas populações, apesar do extenso arcabouço jurídico que garante os benefícios previdenciários para os SE no Brasil. De acordo com dados do Anuário Estatístico da Previdência Social (Aeps), o Brasil possui mais de 65 milhões de contribuintes, dos quais apenas 2.700 estão inscritos como SE10, contudo são escassas as pesquisas que abordam aspectos relacionados ao acesso aos benefícios previdenciários.
O objetivo do presente manuscrito é descrever o acesso aos benefícios previdenciários de pescadores artesanais e marisqueiras situados em uma comunidade quilombola no Nordeste do Brasil.
Trata-se de um estudo transversal, descritivo, realizado na comunidade de Bananeiras, Salvador, Bahia, Brasil. Trata-se de uma das 16 comunidades que compõem a Ilha de Maré, localizada na Baía de Todos os Santos (BTS).
A pesquisa foi realizada entre maio e setembro de 2018 e faz parte do projeto “Desenvolvimento de territórios saudáveis e sustentáveis em comunidades tradicionais na Ilha de Maré, Salvador, BA”.
É importante ressaltar que a presente pesquisa foi demandada pelo Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) junto à Fundação Oswaldo Cruz, Escola de Governo em Brasília. O MPP, por seu turno, realizou diversas mobilizações junto à comunidade, como forma de sensibilizar a população sobre a importância da participação de toda a comunidade.
Foi realizada uma pesquisa de caráter censitário na comunidade de Bananeiras com a participação de todas as pessoas maiores de 18 anos que possuíam residência fixa na comunidade.
Foi aplicado um questionário adaptado ao instrumento utilizado na Pesquisa Nacional de Saúde14. Para a realização do trabalho de campo, os entrevistadores passaram por treinamentos conduzidos pelos coordenadores da pesquisa. Objetivou-se com isso garantir a qualidade dos dados, bem como evitar possíveis vieses durante a coleta das informações.
Para esta pesquisa, foram analisados três blocos de informações. O primeiro versava sobre as características sociodemográficas como sexo, idade (igual ou maior que 55 anos, 45-54 anos, 35-44 anos, 25-34 anos, 18-24 anos), nível de escolaridade (superior completo, médio completo, fundamental completo e fundamental incompleto), estado civil (solteiro, casado/união estável ou viúvo), situação do domicílio (próprio ou alugado) e identificação como população tradicional (sim/não).
O segundo bloco de informações abordou questões sobre o acesso aos benefícios previdenciários nos últimos seis meses (sim/não) e perfil ocupacional dos participantes do estudo. Em relação às características ocupacionais, foram questionados se trabalham naquele momento (sim/não), ocupação principal (pescadores, marisqueiros e outros), tempo de experiência profissional (≤5 anos, 6 a 10 anos e >11 anos), horas de trabalho por dia (<4 horas/dia, 4 a 8 horas/dia e >8 horas/dia), quantas pessoas trabalham na família (1, 2, 3 ou mais) e se realizam outra atividade remunerada (sim/não).
Também foram investigadas as características relacionadas ao trabalho e à exposição aos riscos ocupacionais: trabalho noturno, dores enquanto trabalha, cansaço exaustivo durante o trabalho, exposição ocupacional a riscos químicos, ruídos, radiação solar, estresse ocupacional e violência no trabalho. Também foi questionado se gostavam e se sentiam prazer com o trabalho.
Inicialmente, foi realizada uma distribuição de frequências absolutas e relativas para as variáveis de interesse. Em seguida, procedeu-se à análise estratificada do recebimento de benefícios previdenciários segundo características socioeconômicas e ocupacionais. Os dados foram digitados utilizando-se o software Epi-Info®, versão 3.5.1, e analisados no Stata®, versão 13.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o parecer CAAE 01857318.7.0000.8027, em 2019. Como se trata de pesquisa envolvendo a participação de seres humanos, todos os procedimentos obedeceram à Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. O termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) foi assinado por todos os participantes da pesquisa, respeitando e assegurando a adequação às pluralidades culturais, linguísticas e educacionais dos envolvidos.
Foram entrevistados 213 indivíduos, sendo a maioria do sexo feminino (76,5%), com faixa etária predominante a partir dos 35 anos. Pouco mais de 80% se autodeclararam pretos e 91,18% se identificaram como população tradicional. Mais de 60% dos entrevistados cursaram até o ensino fundamental completo e pouco mais da metade dos pescadores artesanais e marisqueiras (62,94%) afirmaram não receber nenhum tipo de benefício previdenciário (Tabela 1).

A Tabela 2 apresenta o perfil ocupacional da população de estudo. Mais de 70% trabalham, sendo a pesca e a mariscagem as atividades predominantes para quase 84% dos entrevistados. A maioria (82%) tem mais de 11 anos de experiência profissional e cerca de 80,2% não desempenham nenhuma outra atividade remunerada.
Quanto a queixas ocupacionais, mais de dois terços dos participantes afirmaram sentir dor enquanto trabalham e quase a totalidade referiu sentir cansaço exaustivo (90,91%). A exposição ocupacional a riscos químicos e radiação solar também foi expressiva, estando presente em 83,87% e 88,2%, respectivamente. O estresse ocupacional foi mencionado por 63,7% e cerca de 72,2% relatou sofrer algum tipo de violência durante o trabalho. Apesar da magnitude e importância dos riscos ocupacionais, 92,4% afirmaram que gostam do seu trabalho e mais de 91,1% alegaram sentir prazer em suas atividades ocupacionais (Tabela 2).

A Tabela 3 apresenta a análise estratificada para recebimento de benefícios previdenciários e características socioeconômicas e ocupacionais dos pescadores artesanais e marisqueiras que recebem benefícios previdenciários na comunidade de Bananeiras/Ilha de Maré. Entre os que recebem o benefício, a maioria é do sexo feminino (40%), com faixa etária de 55 anos ou mais (66,67%) e ensino fundamental incompleto (63,13%)

Com relação ao perfil ocupacional, 48,8% não trabalham atualmente. Entre os que recebem benefícios, a mariscagem é a principal atividade desenvolvida (38,7%). Quanto à exposição a riscos ocupacionais, dores enquanto trabalha (36,8%) e exposição ocupacional a riscos químicos (36,1%) apresentaram maior prevalência entre os que recebem benefícios previdenciários.
O estudo revelou que mais da metade da população entrevistada não recebe nenhuma espécie de benefício previdenciário. Essa informação é preocupante, sobretudo por dois aspectos: trata-se de populações tradicionais quilombolas com baixa renda e vulnerabilizadas6), (15)- (17 e a principal atividade ocupacional dessas pessoas é a pesca artesanal e a mariscagem, que se enquadram no marco legal para SE.
No que tange às principais atividades ocupacionais, a pesca artesanal e a mariscagem são praticamente as únicas fontes de renda dessas famílias, responsáveis por promover sua subsistência. Conforme legislações específicas10(4, esses aspectos são suficientes para caracterizá-los como SE e deveriam ser reconhecidos pelas políticas de seguridade social1), (3), (4. No entanto, a prática cotidiana dos pescadores artesanais e marisqueiras da comunidade de Bananeiras evidencia uma realidade contraditória.
Para que os pescadores artesanais e marisqueiras sejam classificados como SE, a Previdência Social exige documentos comprobatórios, como recolhimentos de impostos ou notas fiscais dos produtos comercializados17, além da filiação à colônia de pescadores. Contudo, tais exigências criam, na verdade, uma barreira de exclusão, impedindo que esses trabalhadores tenham acesso aos benefícios. Este hiato agrava-se ainda mais por tratar-se de uma comunidade tradicional quilombola, cuja natureza cultural das atividades de pesca e mariscagem não comporta a existência de contratos de comercialização.
Outro aspecto a ser destacado relaciona-se a questões de gênero. Segundo os achados, quase todas as marisqueiras estão trabalhando, o que reafirma a importância do trabalho feminino na renda dessas famílias16. Por outro lado, é uma atividade pouco valorizada do ponto de vista econômico e social5, o que gera insegurança e sofrimento psíquico7), (16. Esses aspectos podem contribuir para a magnitude de estresse ocupacional e a ocorrência de episódios de violência durante o trabalho devido a questões de gênero.
Além disso, pesca e mariscagem são reconhecidas como atividades profundamente desgastantes do ponto de vista ocupacional7), (11), (12), (17, o que pode justificar o sofrimento psíquico desses trabalhadores. A pesquisa evidenciou que a mariscagem possui uma longa jornada de trabalho, além de trabalho noturno frequente. Essas particularidades, associadas ao trabalho a céu aberto, contribuem para a desidratação e fadiga muscular, também agravada pelo manuseio e transporte dos pescados, e posturas viciosas, podendo provocar diversos agravos à saúde17)- (20. Soma-se a isso a proximidade de estabelecimentos industriais e portuários capazes de promover exposição a ruído ambiental21 e contaminação por metais pesados22.
Não obstante, a situação agrava-se no contexto do desastre ambiental provocado pela contaminação por óleo no litoral do Nordeste do Brasil, resultando em inúmeras situações de prejuízos sociais. A mídia mostrou o desespero de pescadores artesanais e marisqueiras da Bahia que não conseguiam vender seus produtos devido ao receio da população com a contaminação, mesmo com informações dos órgãos de controle e vigilância sanitária atestando a qualidade dos pescados23. Esse drama é vivenciado por centenas de trabalhadores que têm na pesca artesanal sua principal fonte de renda.
Diante do desastre ambiental, o governo federal liberou parcelas do seguro defeso para os pescadores. Apesar da medida auxiliar no momento de crise e emergência, a situação demonstra a fragilidade do Estado, que não possui no seu arcabouço legal políticas públicas específicas capazes de considerar contextos de desastres ambientais23), (24. Isto torna evidente a necessidade de atualização e fomento de políticas públicas de proteção social para catástrofes ambientais específicas para essas populações25.
A presente pesquisa apresenta limitações. Inicialmente, destaca-se a falta de informação em algumas variáveis. De acordo com os entrevistadores, um dos motivos para isso é o constrangimento que participantes sentiram ao informar sua baixa escolaridade, ou mesmo outras questões que evidenciem suas vulnerabilidades. Outro elemento importante a ser apontado diz respeito à percepção dos sujeitos da pesquisa sobre o seu próprio processo de trabalho, muitas vezes naturalizando riscos ocupacionais importantes. Como consequência, há a possibilidade de viés de resposta, subestimando frequências calculadas.
Por fim, cabe destacar que algumas questões acrescidas ao instrumento de coleta de dados não fazem parte do questionário da Pesquisa Nacional de Saúde, nem de instrumentos validados. Elas foram incorporadas por uma demanda do MPP junto ao grupo de pesquisadores.
Apesar dessas limitações, acredita-se que este trabalho pode trazer visibilidade a um grave problema sociossanitário enfrentado pela comunidade da Ilha da Maré que também é comum a várias outras comunidades de pesca artesanal em todo o território nacional.
O estudo revelou um importante déficit no recebimento de benefícios previdenciários em uma população que atende aos critérios de SE, sobretudo por ser uma população composta, na sua quase totalidade, por pescadores artesanais e marisqueiras. Tais aspectos são graves, principalmente por se tratar de uma comunidade tradicional quilombola que utiliza ambas as atividades como principal fonte de renda8,9,26,27 e sofre com as consequências do desastre ambiental causado pelo óleo no litoral do Nordeste do Brasil.
A exclusão de comunidades tradicionais pesqueiras do acesso ao recebimento de benefícios previdenciários demonstra a necessidade urgente de adaptar as legislações às respectivas características ocupacionais, ambientais e culturais dessas populações. Soma-se a isso, ainda, a necessidade iminente de flexibilização das normas previdenciárias à situação real dessas comunidades, de forma que o acesso aos benefícios sociais se torne mais justo ante a situação econômica, social e ambiental dessas populações.
Contato: Maria Luiza Almeida Bastos E-mail:mluiza@alu.ufc.br


