Resumo: A ergotoxicologia é uma disciplina que é a especialidade da ergonomia voltada à compreensão das situações de exposição a produtos perigosos por trabalhadores e trabalhadoras. Constitui-se também como uma tecnologia que busca transformar as situações de trabalho para reduzir ou eliminar as exposições por eles vivenciadas. As pesquisas realizadas e/ou coordenadas por Alain Garrigou, em diversos setores como a agricultura, a indústria e a produção nuclear, têm contribuído para: expandir a noção de exposição a fim de considerar o papel ativo dos trabalhadores na prevenção e preservação de sua saúde; o desenvolvimento de métodos de investigação co-construídos com os participantes e comunidade envolvida; a aplicação de métodos de projeto e de participação na concepção de situações de trabalho e equipamentos. Além disso, os conhecimentos produzidos servem para influenciar o debate social e, consequentemente, as ações e políticas públicas voltadas à prevenção e à proteção da saúde dos trabalhadores e trabalhadoras, em especial no enfrentamento ao uso dos agrotóxicos.
Palavras-chave: Saúde do Trabalhador, Ergonomia, Pesquisa-ação, Exposição, Prevenção, Agrotóxicos.
Abstract: Ergotoxicology is a discipline, a specialty of ergonomics focused on understanding situations in which workers are exposed to dangerous products. It is also a technology that seeks to design work situations in order to reduce or eliminate the exposures they experience. The research carried out and/or coordinated by Alain Garrigou, in various sectors such as agriculture, industry, nuclear production, among others, has contributed to: expanding the notion of exposure in order to consider the active role of workers in preventing and preserving their health; the development of research methods co-elaboreted with the participants and the community involved; the application of design methods and participation in work situations and equipment design. In addition, the knowledge produced serves to influence the social debate and, consequently, public actions and policies aimed at preventing and protecting the health of workers, especially in the face of pesticide use.
Keywords: Occupational Health, Ergonomics, Action Research, Exposure, Prevention, Pesticides.
Entrevista
O enfrentamento às exposições a substâncias tóxicas no trabalho: a utopia da ergotoxicologia segundo Alain Garrigoud
Coping with exposure to toxic substances at work: the utopia of ergotoxicology according to Alain Garrigou
Received: 23 December 2024
Accepted: 06 January 2025
Entrevistador: Como foi seu percurso entre a ergonomia e a ergotoxicologia? Como você caracteriza essas disciplinas?
Alain Garrigou: Vou tentar trazer parte da história da ergotoxicologia, como pude vivenciá-la e situá-la inicialmente na paisagem francesa e, a seguir, internacional, relacionando-a com as questões de saúde no trabalho. De antemão, é preciso definir tanto a ergonomia quanto a ergotoxicologia, que não é uma disciplina nova. Trata-se de especialização da ergonomia, como a ergonomia de informática, o gerenciamento de projetos ergonômico ou a ergonomia arquitetônica. Para mim, em primeiro lugar, a ergonomia é uma disciplina científica, entre as ciências do trabalho, que produz conhecimentos, modelos e metodologias, tendo como objeto o engajamento humano no trabalho e sua capacidade de atender tanto aos objetivos de produção quanto à sua relação com a saúde.
Em segundo lugar, uma especificidade importante da disciplina é que a ergonomia é uma tecnologia, isto é, está comprometida com a transformação das situações de trabalho para manter o desempenho e a saúde no trabalho ou a saúde no trabalho e o desempenho. Estamos além do conhecimento, produzimos conhecimento para transformar seguindo a herança da ergonomia deixada por Alain Wisner, Antoine Laville, Catherine Teiger, François Guérin, Jacques Durafourg, entre outros.
Em terceiro lugar, para mim, a ergonomia é uma forma de utopia, ou seja, manter a saúde e o desempenho ou o desempenho e a saúde não é algo evidente. Há uma série de situações em que a ergonomia superou modelos de racionalidade produtivista para preservar a saúde. Todavia, bastava a mudança de um dirigente de fábrica, ou de um abatedouro, para que o que havia sido ganho fosse perdido pouco tempo após a ação ergonômica. Há uma série de projetos em que não vencemos a batalha do trabalho reale, não conseguindo fazer que as pessoas pudessem construir sua saúde no trabalho. Como postulou Christophe Dejours, as ciências do trabalho, entre elas a ergonomia, perderam a batalha do trabalho diante das profundas transformações das diferentes formas de trabalho, nos últimos anos.
Para mim, diante desse cenário, ressoa essa questão da utopia. Segundo Valérie Puyo2, a ergonomia é uma utopia a ser concretizada e trabalhada de forma contínua, embora pouco discutida em nossa comunidade profissional.
O que acabei de dizer é válido para a ergonomia em qualquer uma de suas especialidades e, portanto, se aplica à ergotoxicologia, que produz conhecimento como disciplina ou subdisciplina sobre questões de exposição, e que busca explicá-las, assim como seus efeitos potenciais à saúde. A noção de exposição é, portanto, central para a ergotoxicologia, que também se constitui em uma tecnologia que busca transformar as situações de trabalho para reduzir, ou eliminar, as exposições3.
Nós atuamos conforme os princípios clássicos de prevenção, segundo os quais primeiro devemos eliminar o perigo na fonte, quando há riscos residuais; em seguida temos de implementar proteções coletivas e, após, se isso não for possível, devemos agir no nível individual.
Diante dos impactos ao meio ambiente e à saúde dos trabalhadores, a noção de utopia também se coloca para a ergotoxicologia. Podemos eliminar completamente a exposição a produtos perigosos? Isso é um grande debate. Se tomarmos o exemplo dos agrotóxicos, não podemos atualmente eliminar a exposição, conseguimos até a reduzir, mas seria utópico pensar que o sistema agrícola francês ou mundial pode prescindir dos agrotóxicos no curto prazo. Apenas em contextos muito específicos é possível produzir sem agrotóxicos.
Como se percebe no seu próprio nome, trata-se de uma aventura multidisciplinar que mobiliza dois elementos centrais: trabalho e toxicologia. Para tal, é preciso trabalhar com toxicologistas, com médicos toxicologistas ou sanitaristas, profissionais e pesquisadores dos campos da antropologia, psicologia e fisiologia do trabalho.
Tomemos o caso do nível de atividade física que, se somado aos níveis de exposição, aumenta os efeitos da contaminação. Isso significa que cada projeto depende de organização multidisciplinar específica. Quando se trabalha a problemática dos agrotóxicos, podem ser chamados especialistas em agricultura ou agroecologia. Quando se lida com nanomateriais, estamos mais preocupados com a toxicologia industrial. Portanto, a ergotoxicologia se constrói (e foi construída) em uma rede de atores específica e situada.
Entrevistador: Quais foram as razões que levaram você a desenvolver a ergotoxicologia. Quais foram os problemas iniciais?
Alain Garrigou: É preciso colocar um ponto inicial: não criei a ergotoxicologia, continuei o trabalho iniciado antes de mim, a partir dos anos 1984–1985. Em particular, é preciso realmente destacar Robert Villatte, sindicalista da área química que havia sido surpreendido por doenças que afetavam os trabalhadores da indústria química. Ele questionou, desde meados dos anos 1980, os limites da toxicologia, e se tornou um dos pioneiros da disciplina. No livro “Les Risques du Travail”, de 1985, propôs capítulo no qual expôs os desafios para o desenvolvimento da ergotoxicologia4.
Outra pessoa que trabalhou sobre essas questões, mas que não as desenvolveu posteriormente, foi Nicole Devolvé, que, em 1984, publicou um artigo, chamado “Ergonomia e Toxicologia” na revista Travail Humain5. A autora foi pioneira ao questionar esses aspectos. Laerte Sznelwar, cuja tese foi defendida em 1992, abordando questões da ergotoxicologia na agricultura, é o terceiro nome a destacar. Ele se interessou pela exposição comparada de agricultores na horticultura no Brasil e, ao mesmo tempo, na região de Orléans6. A abordagem que pude desenvolver se inscreve nesse movimento, iniciada no Laboratório de Ergonomia dos Sistemas Complexos em 1997, sob a direção de François Danielou, na Universidade de Bordeaux 2. Atendendo demanda do Organisme professionnel de prévention du bâtiment et des travaux publicsf(OPP-BTP) no momento da interdição do uso do amianto, participei de pesquisa com o médico Mohamed Brahim para intervir nas situações de trabalho de retirada do amianto em diferentes locais7. Foi meu primeiro trabalho no campo da ergotoxicologia.
Em 1998, assumi minhas atividades acadêmicas no Departamento de Higiene, Segurança e Ambiente do Institut Universitaire Technologique (IUT) da Universidade de Bordeaux. Como não consegui dar continuidade à ergonomia de projetosg, me aproximei do Laboratório de Saúde, Trabalho e Ambiente, dirigido na época por Patrick Brochard, que havia trabalhado sobre o amianto.
Foi nesse laboratório que conheci Isabelle Baldi. Começamos a colaborar, inicialmente de forma modesta, por meio da oferta de estagiários da IUT em projetos de pesquisa sobre a exposição aos agrotóxicos. Pouco a pouco, eu me envolvi nas pesquisas em saúde e trabalho, focando nos agricultores e suas exposições aos agrotóxicos.
Quando as universidades Bordeaux I, Bordeaux II e Bordeaux IV formaram a Universidade de Bordeaux, o laboratório se tornou a equipe Epidémiologie du Cancer et Expositions Environnementales (Epicene)h do Centro de Pesquisa do Institut National de Santé e Recherche Médicale (Inserm)i, da Universidade de Bordeaux.
Foi no seio dessa equipe, dirigida inicialmente por Simone Mathoulin, depois por Isabelle Baldi, que pude continuar a desenvolver a questão da ergotoxicologia, associada à exposição a agrotóxicos, e a investigar as exposições às partículas ultrafinas, incluindo nanométricas, problemas endereçados ao Laboratório, na época, e, mais tarde, para a equipe de pesquisa Epicene.
Entrevistador: Um dos aspectos que me parece importante é que a ergotoxicologia, diferentemente, da análise do trabalho que se praticava naquela época, sublinhou a necessidade de medidas. Havia, todavia, no debate acadêmico e profissional, posições contrárias ao uso de medidas, sobretudo no enfrentamento às questões das lesões por esforços repetitivos (LER) e dos distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT), na França. Como integrar medidas à análise da atividade? Quais foram os desafios e problemas a serem superados e como isso foi resolvido?
Alain Garrigou: Efetivamente, a questão da medida na ergonomia da atividade sempre foi objeto de debate, sendo que alguns colegas se posicionaram contrários à realização de medidas, de uma forma geral, ou aceitavam apenas medidas de frequência da ação realizada ou da duração acumulada dessas ações, constatadas a partir da análise da atividade. Para mim, as últimas já se constituíam em medidas observáveis da atividade, em duração e frequênciaj.
Ao encontrar colegas de saúde no trabalho e saúde ambiental, para os quais a questão da medida e de suas diferentes modalidades era uma prática comum, ao colaborar com Nicole Vezina, no Québec, sobre a questão de LER/DORT, e ao formar jovens técnicos de prevenção no IUT, para a análise dos riscos profissionais, fui levado a rever a questão da medida e a buscar dispositivos que a integrassem à análise da atividade, como se fazia em ergonomia. Ou seja, definem-se as categorias de ação; dentro delas, identificam-se varáveis observáveis associadas a cada uma das categorias e, sabendo que dentro de cada categoria, essas variáveis podem se interromper mutuamente, é preciso mensurar a frequência e a duração de cada uma delas para cada categoria de ação. Essa perspectiva metodológica foi desenvolvida no livro “Compreender o trabalho para o transformá-lo”10. Naquela época, Alain Kerguelen desenvolveu um software adaptado para a análise da atividade, que deu origem ao Kronos e a outros desenvolvimentos posteriores.
A partir da base do Kronos, uma empresa que trabalhava para o Institut National de Recherche et de Sécurité (INRS)k, desenvolveu o novo software Captive, em projeto financiado pelo INRS. Após a desistência do INRS, ele passou a ser comercializado, até o presente, pela empresa. A vantagem do Captive em relação ao que o Kronos fornecia na época, é a possibilidade da integração de até quatro vídeos codificados em paralelo, além de diversos captores, fornecendo informações em tempo real de frequência cardíaca, concentração em composição orgânica volátil, concentração de partículas ultrafinas, micrométricas ou nanométricas etc. Existem diferentes dispositivos de tomadas de medidas que podem ser integrados ao uso do Captive.
Como me pareceu interessante, adquiri esse software, passei a testar os protótipos, até financiar modificações para aplicações particulares, e montamos exercícios de campo em situações reais de trabalho com estudantes para dominar o método e as funcionalidades do software. A medida se tornou essencial, porque associada à análise de imagens de vídeo e à análise da atividade, permitia produzir objetos intermediários para a prevenção, envolvendo médicos, profissionais de prevenção, trabalhadores, sindicalistas e responsáveis de empresas. Tornou-se possível por meio desses objetos visualizar exposições que não eram visíveis diretamente, que se constituíam em enigma, e quando usados em situação de autoconfrontação11, em particular, demonstraram ser uma ferramenta particularmente interessante. Dos desenvolvimentos metodológicos, propostos por Nathalie Judon, Louis Galey, Fabienne Goutille, Caroline Jolly e Marion Albert, chegou-se a uma engenharia de objetos intermediários para a prevenção, que permite revelar as exposições e construir estratégias de prevenção, e se constitui em uma contribuição maior de nossa abordagem. Assim, sob essa perspectiva, não se busca a medida pela medida. É a medida integrada à descrição da atividade, registrada em imagens de vídeo, que permite, em paralelo, fazer a codificação dessa atividade.
Entrevistador: Você coordenou vários estudos e realizou várias pesquisas: você poderia dar um panorama sobre as principais pesquisas que você realizou, os objetos tratados, as contribuições conceituais e metodológicas e o desenvolvimento tecnológico resultante?
Alain Garrigou: Há vários elementos a apontar. Entre os anos 2000 e 2010, fomos confrontados com um enigma, relacionado à exposição dos viticultores aos agrotóxicos. No estudo coordenado por Isabelle Baldi, que se chama Pesticides Expositionl (Pestexpo)12, nós nos inserimos na perspectiva dos estudos não controlados. Na questão dos agrotóxicos há duas correntes que se opõem. Estudos controlados, geralmente feitos pela indústria, que impõem as maneiras de trabalhar aos agricultores, os equipamentos de proteção que devem ser usados e, claro, apontam níveis de exposição inferiores aos dos estudos não controlados. Dessa forma, favorecem a autorização formal da introdução no mercado de certos produtos.
Nós, contrariamente, realizamos estudos de campo não controlados, ou seja, nós partimos do que as pessoas fazem, das atividades que realizam e das proteções que usam ou não.
No estudo Pestexpo em meados dos anos 2000, cujos resultados foram publicados entre 2006 e 2008, comparamos o nível de contaminação do Folpel, produto usado contra fungos que afetam as vinhas. Comparamos o nível de exposição entre trabalhadores usando vestimentas de proteção e trabalhadores que não estavam protegidos, durante as fases de preparação da calda [diluição] de pesticida, de aplicação e de limpeza [dos equipamentos de aplicação – pulverizadores].
Durante essas três fases, aproximadamente 200 medidas de exposição diferentes foram tomadas. Por meio de uma técnica de patch, colado na pele, observamos uma grande quantidade de produtos. Se o trabalhador não está usando proteção, o patch está (exposto) ao ar livre. Se o trabalhador está usando proteção, o patch está sob a proteção. Três tipos de resultados foram encontrados: O primeiro foi uma variação dos níveis de contaminação. Em certos casos, as pessoas foram pouco contaminadas, em outros casos, bastante contaminadas, sem que pudéssemos compreender necessariamente o porquê. O que correspondeu a uma primeira linha de raciocínio, e fez com que os dados não tenham sido apresentados em médias, mas em distribuição geométrica, em particular, em medianas.
O segundo, é o fato de que, durante a fase de preparação da calda, os trabalhadores que usavam proteção apresentavam um nível de contaminação comparável, em mediana, aos trabalhadores não protegidos. Isso foi algo que nos surpreendeu. Durante a fase de aplicação, os trabalhadores protegidos estavam duas vezes mais contaminados do que os trabalhadores não protegidos, em mediana. No final, durante a fase de limpeza dos pulverizadores, os trabalhadores portando proteção, em mediana, poderiam estar três ou quatro vezes mais contaminados que os não protegidos.
Isso nos pareceu um enigma, de difícil compreensão na época, porque pensávamos que o fato de portar uma proteção evitava as exposições, ou seja, protegia. Verificamos se não tínhamos invertido as amostras, pois era uma possibilidade, mas confirmamos que não haviam sido invertidas. Passamos a trabalhar considerando várias hipóteses e, na equipe do Laboratório, meu trabalho foi desenvolver métodos para caracterização das exposições em função da atividade: chegamos aqui ao terceiro resultado de nossas pesquisas. Na primeira hipótese, considerou-se que os trabalhadores que usavam proteção, por acreditarem estar protegidos, poderiam ser menos precavidos do que os trabalhadores não protegidos, em especial, nos movimentos durante o abastecimento [do equipamento de aplicação] e, em particular, na maneira de despejar o pó [do agrotóxico no pulverizador]; enquanto isso, os trabalhadores desprovidos de proteção tinham mais consciência do risco de exposição e eram muito mais meticulosos na forma de movimentar as embalagens dos agrotóxicos, de despejar os produtos e de realizar as preparações [de calda para aplicação].
Trata-se de hipótese que permanece válida de uma forma geral, mas há uma segunda hipótese, baseada na questão da permeação das vestimentas, evidenciada após conversas com um fabricante de agrotóxicos. É preciso notar que as vestimentas, na época, e ainda hoje de forma majoritária, disponíveis aos agricultores, não eram projetadas para proteção aos agrotóxicos utilizados na agricultura. Embora fossem vestimentas projetadas para a indústria química, foram recomendadas para proteger os agricultores utilizando agrotóxicos em forma de pó ou em forma líquida. Isso é um primeiro nível. No segundo nível, o que eu descobri e me fez engajar em uma relação pluridisciplinar e pluritecnológica, buscando compreender o que estava acontecendo com as vestimentas e quais seriam os critérios de proteção adotados. Dois temas apareceram. A noção de penetração sugere que os produtos químicos, incluindo os agrotóxicos, podem passar por imperfeições dos materiais, sejam luvas ou roupas, conforme as imperfeições, como os buracos das costuras, quando são cosidas e não coladas, por exemplo; isso vai facilitar a travessia do agrotóxico através do tecido e, portanto, da vestimenta. Trata-se de questão relativamente conhecida. Mas havia outro fenômeno que era muito menos conhecido, o fenômeno de permeação, a reação química a nível molecular entre o material que constitui a vestimenta de proteção e o produto ou os produtos que constituem a formulação dos agrotóxicos: o ingrediente ativo, seus adjuvantes e todas as substâncias que podem ser encontradas na sua composição. O que emergiu rapidamente é que, para uma mesma vestimenta, de acordo com o material ou seus materiais, seu nível de eficácia e de proteção varia conforme os agrotóxicos, com permeações que poderiam ocorrer rapidamente, em menos de 10 minutos, e outras que poderiam ocorrer em tempo maior, até 8 horas, por exemplo, da exposição da vestimenta aos agrotóxicos. O que se revelou para mim, é que não existia uma vestimenta genérica que protegeria de todos os produtos químicos ou de todos os agrotóxicos. Portanto, era necessário abordar essa questão caso a caso, em uma relação dual entre a composição do material da vestimenta, geralmente em polipropileno, e as substâncias encontradas no agrotóxico, tal como é comercializado. Dessa forma, descobrimos que um certo número de produtos pode atravessar rapidamente as vestimentas.
Um estudo de um fabricante de agrotóxicos que testou um avental de PVC relativamente espesso, com 12 desses produtos verificou que, em oito dos 12, houve permeações em menos de 10 minutos ou menos de 20 minutos através da peça. Isso nos permitiu questionar a capacidade de proteção dos equipamentos. Pudemos, assim, explicar porque as pessoas usando proteção poderiam estar mais expostas ou contaminadas do que pessoas que não portavam proteções. Então, no longo prazo, o que isso pode significar? Os agricultores reutilizam os meios de proteção várias vezes, porque custam entre 50 e 100 euros, conforme o equipamento. Os recomendados como descartáveis podem ser usados por eles o ano inteiro, até mesmo, por vários anos. Se associarmos essa prática, de quem usa proteção, com a permeação, isso significa que, progressivamente, há produtos que se acumulam no interior do material que compõe a vestimenta de proteção, por um fenômeno de absorção a partir da parte externa e de dessorção a partir da parte interna. Quanto mais aplicados os agrotóxicos, mais utilizadas as vestimentas de proteção, e usadas por muito tempo, o fenômeno de permeação vai gerar uma acumulação no interior das roupas; isso, provavelmente, explica o que foi encontrado nas nossas análises. Trata-se, portanto, de um assunto muito polêmico na comunidade, “quente” para a Indústria e para os representantes do Estado. Diante disso, tivemos de realizar um trabalho importante para lançar um alerta aos serviços do Estado responsáveis pela avaliação da eficácia dos equipamentos de proteção, em particular, a Direção-Geral do Trabalho, do Ministério do Trabalho. Fui levado a escrever, entre 2007–2008, seis versões do alerta, antes de chegar à versão finalm, para que houvesse controles específicos e que, na verdade, essa hipótese fosse validada em laboratório pela Agence française de sécurité sanitaire de l’environnement et du travail (Afset)n, instituição que se tornou a Agence nationale de sécurité sanitaire de l’alimentation, de l’environnement et du travail (Anses)o posteriormente. Assim, essas questões originadas no campo foram endereçadas para as instituições de prevenção e, de alguma forma, para os atores das políticas públicas. Isso nos levou a participar de debates, até mesmo entrar em conflito com representantes da indústria ou pesquisadores financiados pela indústria.
Entrevistador: Esses estudos sobre a exposição na viticultura foram anteriores a sua habilitação a orientação de teses – HDR14, na qual você formalizou a perspectiva de um programa de pesquisa sobre ergotoxicologia. Então, quais foram os objetos, orientações, estudos realizados e principais resultados até o presente?
Alain Garrigou: Exatamente. Houve o trabalho sobre os agrotóxicos, o estudo sobre a exposição ao estireno na fabricação de barcos, o trabalho que foi feito no setor nuclear, sobre a exposição de mecânicos aos vapores de graxa, por exemplo. Havia vários trabalhos realizados na época (ao final dos anos 2010). Entre 2009 e 2010, redigi minha tese de HDR, defendida em 2011, na qual procurei fazer uma síntese dos conhecimentos produzidos, resultantes do meu percurso de pesquisa, desde as incursões na ergonomia de projeto até chegar à ergotoxicologia, para defini-la, colocar um certo número de conceitos de base e de desenvolvimentos metodológicos, a partir, em particular, da integração da medida14. Isso me permitiu estabelecer um programa de pesquisas e iniciar a orientação de trabalhos de tese para avançar nesses desenvolvimentos. A primeira tese orientada em ergotoxicologia foi a de Nathalie Judon, defendida em 201715. Tratava-se da atividade de pavimentação de estradas e da exposição dos trabalhadores ao vapor do betume. Nessa tese, financiada pelo INRS, Nathalie desenvolveu ferramentas que integravam a análise da atividade, a medida de exposição e as autoconfrontações individuais e cruzadas para abordar a exposição dos trabalhadores e da sua consciência sobre ela. Seu trabalho permitiu também discutir aspectos que se passavam na esfera privada dos trabalhadores. Até então, na ergonomia, como estávamos centrados na esfera profissional, não investigávamos a esfera privada. Os trabalhadores da construção de estradas, expostos ao betume, não se protegiam porque era muito quente. Lembro-me de um trabalhador das Landes, divertido, que contou que quando chegava em sua casa todos os dias, entre 21 e 22 horas no verão, seus dois filhos, de quatro e seis anos, o esperavam, tentando agarrá-lo pelas pernas. Disse: “o que eu faço é evitar o mais possível, porque sei que posso trazer produtos para casa ... e tenho uma segunda máquina de lavar, na qual vou lavar minhas coisas etc.”. Mesmo que se pensasse que os trabalhadores não tinham conhecimento ou sabedoria específica sobre a proteção ao trabalho, o trabalho de Nathalie evidenciou aspectos na vida doméstica. Esse trabalho foi realizado em paralelo a um grande projeto, financiado pelo Instituto Nacional de Pesquisa sobre Câncer, onde coordenei equipe com mais de 20 pessoas, entre 2012 e 2016, a fim de investigar as exposições em setores diversos, como agricultura, fabricação de móveis, fabricação de solventes etc. Nesse projeto, essa questão surgiu. Na fábrica de móveis, objeto da intervenção de Fabienne Goutille16, havia uma senhora que contou que chegava em casa muito cansada, após turno noturno, e dormia sem se lavar; quando sua filha acordava para ir à escola, recusava os carinhos da filha, por medo de lhe transmitir produtos que vinham da fábrica. Seguiu-se uma tese cofinanciada pelo INRS e um projeto Anses, após ser selecionada em edital. Trata-se da tese de Louis Galey17, sobre as exposições dos trabalhadores a partículas de tamanho nanométrico encontradas na fabricação de borracha técnica, ou de fabricação dita aditiva, na indústria aeronáutica. O importante neste trabalho é que, até então, na ergotoxicologia, havíamos desenvolvido métodos e ferramentas para caracterizar as exposições, mas atuado pouco na transformação das situações de trabalho. Podíamos atuar em modificações de sistemas de aspiração, de equipamentos de proteção individual, mas pouco no projeto das situações de trabalho. Louis desenvolveu um método de integração usando Captive com captores de medida em tempo real, com partículas ultrafinas, micrométricas e nanométricas, associadas à atividade e, ao mesmo tempo, recuperou a essência da metodologia da ergonomia de projetos, usando, em particular, situações de ação característica que nos permitiam simular atividades futuras com os trabalhadores. Ele propôs a noção de situação de exposição característica que pode ser utilizada em projetos para simular as exposições possíveis no futuro e, eu diria, arbitrar um certo número de escolhas. Seu trabalho foi realmente importante; especialmente, em um dos locais da empresa Safran, foi possível convencer a hierarquia de alto nível sobre a importância da metodologia, o que provocou, sete ou oito anos depois, a oferta de uma tese Cifrep em desenvolvimento na empresa. As duas primeiras teses, tanto a de Nathalie Judon15 quanto a de Louis Galey17, permitiram avançar bastante sobre a formalização, os conhecimentos e as metodologias. Há três outras teses que foram realizadas quase ao mesmo tempo. A tese de Caroline Jolly18, que pertencia ao IRSST, coorientada por Elise Ledoux, da Universidade do Québec, em Montreal, e por mim mesmo. Ela trabalhou na exposição aos agrotóxicos dos trabalhadores no cultivo da maçã, no Québec, levando em conta o seu status de chefe de empresa, de pequenas propriedades rurais, para abordar os níveis de compromisso que poderiam estabelecer entre exposição, garantia da colheita e escolhas econômicas importantes. O trabalho influenciou o ambiente do Québec sobre a questão dos agrotóxicos, questionando a percepção sobre utilização desses produtos e provocando a publicação de uma lei sobre a reconhecimento das doenças, em particular, a de Parkinson e sua associação à exposição aos agrotóxicos, além de outros movimentos em curso. Em seguida, houve a tese de Fabienne Goutille19, formada em etnologia, que havia sido recrutada para o projeto da Associação de Pesquisa sobre o Câncer (ARC), em 2012, para atuar como diretora de projetos na ARC. Ela descobriu a ergotoxicologia entre 2012 e 2016.
Eu a chamei em seguida em outro projeto. Desenvolveu-se uma tese pluridisciplinar, ergonomia e antropologia, um pouco na continuidade dos trabalhos de Caroline Jolie, para contemplar os agricultores e suas preocupações, até porque, para eles, a exposição aos agrotóxicos ou os problemas de saúde por eles provocados, não é o ponto principal. Hoje, diante da mudança climática, sua preocupação é salvar seu plantio, salvar o seu modelo econômico, transformar seu modo de produção; às vezes, dizem que se sacrificam em prol de sua família para tornar viável sua produção. O interessante no trabalho de Fabianne foi que sua análise aprofundada permitiu descobrir que todos os agricultores tinham uma representação bem precisa dos riscos relacionados às exposições. A especificidade do trabalho é que a metodologia foi inspirada nos trabalhos de Odonne, na Itália, nos anos 1970, em especial pela ideia de Comunidade de Pesquisa Expandida, na qual era possível associar os trabalhadores e seus representantes às equipes de pesquisa para definir os objetos de estudo e metodologias. Normalmente são os pesquisadores que definem os protocolos de medida da exposição. No trabalho de Fabienne, nós apresentamos nossas ferramentas de medida, perguntamos aos agricultores o que queriam que fizéssemos ou o que queriam aprender e poderiam reproduzir. Foi o que aconteceu. Eu me lembro de um momento em que, de repente, uma mãe de família disse que o que lhe interessava era ir ao jardim, em frente da fazenda, verificar se onde seus filhos brincavam estava contaminado ou não. Assim, passaram a fazer as medições da exposição; chegamos a transferir elementos metodológicos no caso de um Chateauqem Pessac, onde essas questões foram colocadas diante da pressão da vizinhança. Estávamos em uma lógica de construção conjunta da medida de exposição com os atores. Trata-se do ponto forte da tese de Fabienne.
Já a teser de Marion Albert20 evidenciou que, na maioria dos casos, os determinantes das exposições têm origem em decisões que não cabiam ao agricultor, ou seja, devido a problemas de projeto, a problemas de integração entre os equipamentos, nos quais o agricultor não tinha nada a fazer ou a escolher.
Marion Albert ilustra, como exemplo, o caso de um pulverizador com painéis recuperadores para limitar a poluição ambiental. Dessa forma, a vinha tratada fica encarcerada entre os dois painéis que, localizados face a face, capturam e recolhem os aerossóis para não serem dispersados pelo vento; são coletados na placa frontal, escorrem, sendo reinjetados no reservatório. Solução interessante do ponto de vista ambiental. Porém, nesse projeto, o agricultor, para colocar combustível, para ter acesso e realizar alguns ajustes, era obrigado a passar entre os painéis e, mesmo que ele estive com uma vestimenta, ficava completamente molhado de pesticida.
Ficou demonstrado, assim, que diversas escolhas dos projetistas, além do resultado materializado da falta de integração na concepção, se constituíam em macrodeterminantes das exposições sobre as quais os trabalhadores tinham pouquíssima margem de ação. Três níveis de análise foram realizados por ela. No primeiro nível, fez uma análise a partir da atividade dos agricultores em situação de uso dos pulverizadores e a partir de medições da exposição. No segundo nível, ela procurou três fabricantes de pulverizadores; trabalhou de uma forma mais próxima com um deles, realizando entrevistas com os projetistas e com os responsáveis pelos projetos; buscou saber como os projetistas integravam informações de uso dos equipamentos no projeto. Seu diagnóstico mostrou que o uso não era considerado, além da insuficiência no que tange ao uso das normas, pois os projetistas as usavam apenas parcialmente, e não todas. No terceiro nível de análise, ela abordou os formuladores das normas que se impõem aos fabricantes. A hipótese que defendeu em sua tese é que a exposição é devida a uma sobreposição de determinantes: desde elementos que se encontram na situação de trabalho, passando pelas escolhas dos projetistas dos equipamentos e dos atores do processo normativo. A exposição foi abordada como resultante de uma série de micro, meso e macrodeterminantes.
Entrevistador: Após todas essas pesquisas, quais são as principais contribuições conceituais e metodológicas que a ergotoxicologia trouxe para a ergonomia e as ciências do trabalho e da saúde?
Alain Garrigou: Eu acho que a contribuição maior da ergotoxicologia repousa na noção de exposição. No caso da saúde pública ou da toxicologia, a exposição resulta do contato de um trabalhador com uma fonte de emissões de produtos químicos; o contato com essa fonte de emissões favorece a contaminação do trabalhador. Mas, as disciplinas não interrogam qual é o papel que o trabalhador desempenha nas situações de exposição que vivencia. Há situações de exposição em que o trabalhador será exposto a um produto sem o saber, e assim, efetivamente, seu papel pode ser passivo em relação a essa exposição. Trata-se do modelo dominante que vamos encontrar no campo da saúde pública. Mas, existem dois outros tipos de situações de exposição a serem considerados. O que nós mostramos, se considerado o caso dos agricultores expostos aos agrotóxicos, é que, na maior parte do tempo, os agricultores têm consciência do risco de exposição, a percebem por meio dos odores, pela tosse, em seu corpo, na sua pele eles vivem as exposições. Algumas esposas nos diziam que, no verão, mesmo tendo tomado banho após o trabalho, se durante a noite seu marido começasse a transpirar, eram capazes de detectar os odores dos produtos, que saiam do corpo, e de dizer o que seu marido havia feito durante o dia. Essas questões mostram que os trabalhadores na agricultura, mas não apenas nesse setor, pois ele se passa na indústria, têm uma percepção das exposições, cuja influência se materializa em seus corpos. Assim, podemos considerar três níveis de situações de exposição. No primeiro, há o trabalhador que pode estar exposto sem o saber. No segundo nível, o trabalhador percebe que está exposto e continua a se expor. O que se coloca em evidência, e são pontos que continuamos a trabalhar, são as estratégias utilizadas pelos trabalhadores, dentro da margem de ação de que dispõem em diversas situações de exposição, e os conhecimentos que dispõem para evitá-las21. Além disso, o que se evidencia, de forma mais precisa, são as contradições que existem e os compromissos percebidos pelos trabalhadores nessas circunstâncias. Compromissos colocados por eles da seguinte forma: “Tenho o meu trabalho, faço o meu trabalho para atender as exigências de produção; eu me exponho porque, às vezes, não tenho outra escolha, ou porque outra alternativa faz perder muito tempo, ou o material não é adequado etc.”.
Há um terceiro nível na exposição, na qual um trabalhador exposto se torna uma fonte de exposição para os outros, ou seja, vai se tornar fonte de exposição no seu ambiente de trabalho e familiar, se ele entrar em casa com roupas que estão contaminadas. Essa é a primeira contribuição em termos de conhecimento, documentada nos estudos que comentei. Além dela, nossas pesquisas não se encerram nas atividades que envolvem as exposições, mas voltam-se às atividades de preservação realizadas pelos trabalhadores. Ou seja, porque adoeceram ou porque em seu entorno conhecem pessoas que ficaram doentes, os trabalhadores realizam tanto uma atividade de prevenção das exposições, quanto de preservação da sua saúde. As duas se interseccionam. Embora preservar a sua saúde permita desenvolver atividades de proteção, não necessariamente isso ocorra no outro sentido. A atividade de preservação da saúde necessita de uma conexão com o próprio corpo: o corpo sensível pode dizer, em algum momento, que a atividade de preservação do trabalhador não é efetiva. Tais vivências convocam as categorias propostas por Yves Schwarz, sobre o uso de si para si mesmo ou o uso de si mesmo para os outros. Questionam, dessa forma, os trabalhadores: “Eu aceito, em algum momento, colocar em perigo minha atividade de preservação?” “Qual é o compromisso que estabeleço entre atividade de preservação e atividade de proteção?” Esses elementos, que foram pouco discutidos na ergonomia da atividade, me parecem contribuição importante da ergotoxicologia.
O último ponto sobre o qual eu gostaria de insistir concerne o projeto dos espaços e dos sistemas de trabalho, ou seja, como seria possível simular as atividades futuras, integrando exposições futuras a perigos de origens diferentes, em especial, considerando situações de múltipla exposição. É preciso se questionar como, no trabalho, os trabalhadores estão expostos a vários produtos químicos, ou seja, uma forma de multiexposição. Mas não é só isso, uma vez que podem estar expostos a perigos de origens diferentes. Por exemplo, a penosidade física aumenta a frequência cardíaca e a frequência respiratória, o que favorece maior absorção de produtos químicos pelo corpo. A ocorrência de LER/DORT nos trabalhadores da indústria náutica nos mostrou que os trabalhadores expostos ao estireno desenvolviam LER/DORT de forma mais importante, porque o estireno afeta o gânglio sinovial dos tendões, se somando aos efeitos provocados pelo trabalho repetitivo. O desafio maior consiste em caracterizar as situações de exposição e de multiexposição para reconhecimento das doenças; há também desafio importante voltado à necessidade de caracterizar as exposições futuras para poder arbitrar ou instruir escolhas de projeto que sejam mais favoráveis à proteção da saúde dos trabalhadores. Na continuidade do trabalho de Marion Albert, em projeto financiado por um edital público que conta com os fabricantes de pulverizadores, será proposto protótipo de equipamento de aplicação na forma de realidade virtual. Contribuímos com os cenários de uso do pulverizador e das situações de exposição aos agrotóxicos e, baseados nas escolhas dos projetistas, pretende-se realizar simulações com a participação dos agricultores. Assim, considerando a lógica de uso do equipamento na atividade e a das exposições, podemos influenciar as decisões de projeto.
Entrevistador: Gostaria de saber como você concebe, após a longa experiência da prática da ergotoxicologia, a relação entre ciência, produção de conhecimentos e as políticas públicas? Trata-se de aspecto muito importante para o meio científico, mas também para a disciplina de ergonomia, historicamente preocupada com a produção de conhecimentos para a intervenção, para a melhoria das condições de trabalho.
Alain Garrigou: A primeira coisa que gostaria de colocar é como os atores da política pública se apropriaram dos aportes da ergotoxicologia.
É preciso saber que o alerta sobre a não proteção ou a proteção insuficiente ou relativa dos equipamentos de proteção contra a exposição aos agrotóxicos foi transmitida ao Ministério do Trabalho e à AFSET, Anses atualmente, tornando visível o trabalho feito em Bordeaux, sabendo que esse trabalho já era reconhecido por sua base científica sólida em epidemiologia, após os trabalhos de Isabelle Baldi e de Pierre Lebailly. Em 2012, a Anses decidiu criar um grupo de especialistas internacionais para caracterizar as exposições aos agrotóxicos dos trabalhadores da agricultura. Os trabalhos do grupo foram coordenados por Catherine Laurent, na primeira expertise transdisciplinar na Anses, que durou quatro anos. Nós produzimos quatro volumes de relatórios. Nós fizemos uma atualização bibliográfica sobre as questões de exposição e sobre a questão da proteção dos trabalhadores, enquanto os efeitos de saúde foram revisados, em paralelo, por uma expertise do Inserm. Para mim, esse trabalho pluridisciplinar, de longa duração, no qual nos mobilizamos muito, desempenhou um papel importante para mudar a concepção que havia inicialmente sobre os níveis de determinantes, e, muito claramente, considerar a dimensão políticas em relação aos agrotóxicos, a dimensão política relacionada ao papel dos conhecimentos já alcançados na orientação das políticas públicas, seja de saúde, seja das políticas agrícolas. Foi um processo com conflitos muito fortes com dois dos pesquisadores do grupo e com alguns servidores da Anses, além de dificuldades de natureza administrativa. Enfim, dois relatórios com perspectivas divergentes foram publicados após a intervenção da ministra do trabalho na época, Ségolène Royal, que fora solicitada por meio dos contatos do grupo.
Nesse momento, mesmo sabendo que os conhecimentos científicos produzidos sobre a exposição e/ou sobre a saúde dos trabalhadores não seriam suficientes para mudar as políticas públicas, posso dizer que Anses se apropriou dos resultados da ergotoxicologia.
Integrei posteriormente um grupo, sobre o reconhecimento de doenças profissionais. Nós preparamos dossiês em perspectiva transdisciplinar para submetê-los ao Ministério do Trabalho e ao Ministério da Agricultura, visando reconhecer doenças profissionais dos trabalhadores em todos os setores da economia. Em outro grupo de especialistas, trabalhamos na implementação do Plano Nacional de Saúde e Trabalho, fundamental para a estruturação da política pública. Há um terceiro espaço, o Conselho de Orientação das Condições de Trabalho (COCT), uma emanação do Ministério do Trabalho onde se reúnem os parceiros sociais e se definem as prioridades sobre esses assuntos. Nesse contexto, a ergotoxicologia oferece respostas às questões colocadas pela sociedade que foram apropriadas pelos atores das políticas públicas. De alguma forma, a ergotoxicologia é reconhecida pelo que ela sabe fazer modestamente a seu nível. Todavia, após a experiência da expertise internacional relatada acima, fica claro que a ciência não é suficiente para orientar as políticas públicas. Quando vemos a situação atual do aquecimento climático, notamos que há mais de 40 anos foram emitidos alertas que, no entanto, foram pouco considerados. Mas, qual seria a participação de disciplinas como a nossa, que produzem conhecimentos situados, sobre a atividade de trabalho? Daniellou propôs um modelo de confrontação, heterogênea, entre os conhecimentos desenvolvidas pela ergonomia e conhecimentos obtidos em ambientes específicos, para produzir conhecimentos menos locais e mais gerais. Tais conhecimentos seriam confrontados a conhecimentos de corpus científico experimental, principalmente, na época, fisiologia, fisiologia do sono, psicologia cognitiva etc.22. Isso explicou a dificuldade da ergonomia, em dado momento, de influenciar o debate público. Em nossa experiência quanto à questão dos agrotóxicos, é fundamental adicionar que há apenas um certo tipo de conhecimento que influencia a produção técnico-regulamentar, que são conhecimentos simplificados. No caso da toxicologia regulamentar, diversos efeitos notados na realidade, conhecidos pelos toxicologistas, são simplificados, por exemplo, o fato de considerar apenas valores limites de exposição funcionando para um único produto, o que não se aplica em situação de multiexposição. Embora a comunidade científica em toxicologia reconheça os limites de não se considerar a multiexposição, a apropriação e produção da toxicologia regulamentar suprimem essa nuance. Atualmente, a ergotoxicologia enfrenta confrontações heterogêneas, considerando os modelos técnicos e regulamentares que existem e que permitem, por exemplo, autorizar a introdução de agrotóxicos no mercado, no nível europeu ou nacional. Os modelos dominantes de autorização de introdução no mercado se baseiam em estudos controlados nos quais se impõem aos agricultores o que e como devem fazer e os equipamentos que devem portar. Como a ergotoxicologia investiga por meio de modelos não controlados, ou seja, considera a complexidade da atividade e das especificidades da atividade, os conhecimentos que produzimos são desqualificados em relação aos modelos dominantes. Mas, obrigatoriamente, nos modelos dominantes, os níveis de exposição são minimizados em relação à realidade do que se encontra no campo. Enfim, é fundamental instruir e debater a validade de tais modelos. É preciso, ainda, considerar o nível macro, no qual a produção técnico-regulamentar se materializa; construída frequentemente com a participação de representantes da indústria, o que nos impõe a considerar a questão dos lobbies, presentes nas arenas políticas. No caso da agricultura, esses lobbies visam impor/manter uma agricultura industrial, e destruir a agricultura familiar, tal como a conhecemos. Trata-se de impor modelo capitalista da agricultura, onde grandes investimentos, em especial chineses, são feitos nas grandes culturas, como a produção do trigo. Como o trigo está indexado na Bolsa de Chicago, o modelo econômico sugere vender quando seu valor está em alta, para obter a maior rentabilidade possível; observa-se movimento forte na Europa para seguir nesse sentido. Mesmo havendo um debate importante em torno da mudança ou não do modelo de agricultura, o risco de perdermos a capacidade de alimentar nossos próprios povos se coloca, mas, por trás, há problemas econômicos que nos superam completamente.
Entrevistador: Você deixou claro acima sua visão acerca dos limites da atividade da produção de conhecimentos para influenciar as políticas públicas, sobretudo, em temas como o dos agrotóxicos. Como você vislumbra o desenvolvimento futuro da ergonomia diante desse cenário?
Alain Garrigou: Nossos estudos sugerem que o desafio maior para a ergonomia é pensar nas externalidades do trabalho. Há um desafio maior no caso do uso dos agrotóxicos, sendo que uma externalidade resultante dessa tecnologia, que precisa absolutamente ser discutida, é a poluição que provoca nos lençóis freáticos e a água potável e do custo faraônico dessa poluição. Se colocarmos esse custo na conta da produção econômica agrícola, o modelo explode completamente. Mesmo assim, há atores do setor e políticos que não querem discutir tais externalidades. Eles as conhecem, mas não querem. Essa questão é essencial.
Assim, a ergotoxicologia coloca para a ergonomia a necessidade de novo modelo de saúde, que considere o meio-ambiente, superando o modelo de saúde centrado no homem ou na mulher no trabalho e suas vertentes – o da alteração da saúde, da adaptação da margem de manobra e o centrado no desenvolvimento23. Embora esses três modelos de saúde possuam limitações, eles permanecem úteis para articular uns com os outros, seja na adaptação ao trabalho, seja para o desenvolvimento das pessoas, situações de trabalho e organizações.
Enfim, o que há de interessante no modelo de desenvolvimento é a busca pela emancipação do trabalhador por meio da sua atividade. A questão que devemos responder é até onde vai essa emancipação e como essa questão também concerne ao próprio ergonomista. Ou seja, como o ergonomista também precisa, como trabalhador, se emancipar de modelos que continuam a explorar os recursos do planeta.
Como coloquei inicialmente, a utopia da ergotoxicologia é não ser mais necessária, isto é, quando não houver mais trabalhadores e trabalhadoras expostos a substâncias que são perigosas para sua saúde e para a vida, de modo geral. Continuamos em movimento, guiados por nossa utopia.
Contato: José Marçal Jackson Filho. E-mail: jose.jackson@fundacentro.gov.br