Resumo: As metas para o desenvolvimento sustentável reafirmaram os direitos humanos e articularam compromissos globais que só serão alcançados com a inclusão de todas as pessoas, entre estas, as pessoas com deficiência. Apesar dos esforços nacionais e internacionais na direção da afirmação e implementação dos direitos dessa população, ainda persistem as experiências de discriminação, exclusão social e falta de oportunidades para participação plena e efetiva na sociedade. Este ensaio teórico com natureza reflexiva e interpretativa tem como objetivo explorar a relação entre a inclusão de pessoas com deficiência no trabalho e a promoção da sustentabilidade, utilizando como base de análise a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas e o referencial normativo brasileiro. Com isso, apresenta-se uma discussão que destaca como a inclusão das pessoas com deficiência é primordial para a concretização de metas específicas dos ODS, especialmente aquelas relacionadas ao trabalho tendo em vista o papel desta atividade para promoção da igualdade e do crescimento econômico sustentável. Assim, salienta-se a necessidade de formulação de estratégias para impulsionar a participação das pessoas com deficiência no trabalho, garantindo o acesso ao emprego, a permanência na atividade e o desenvolvimento profissional.
Palavras-chave: Pessoas com Deficiência, Desenvolvimento Sustentável, Diversidade, Equidade, Inclusão, Saúde do Trabalhador, Trabalho.
Abstract: The sustainable development goals reaffirmed human rights and articulated global commitments that will only be achieved by including all individuals among these people with disabilities. Despite concerted international and national efforts to uphold their rights, experiences of discrimination, social exclusion, and lack of opportunities for full and effective participation in society persist. This theoretical essay, with a reflective and interpretative nature, explores the relationship between the inclusion of people with disabilities in the workplace and the promotion of sustainability. It uses the 2030 Agenda for Sustainable Development and the United Nations Sustainable Development Goals (SDGs) as a basis for analysis and the Brazilian normative framework. The discussion highlights the essential role of people with disabilities inclusion in achieving specific SDG targets, particularly those related to work, given the role of this activity in promoting equality and sustainable economic growth. Thus, it emphasizes the need to formulate strategies to boost the participation of people with disabilities in work, ensuring access to employment, permanence in the activity, and professional development.
Keywords: Disabled Persons, Sustainable Development, Diversity, Equity, Inclusion, Occupational Health, Work.
Ensaio/Dossiê Desenvolvimento Sustentável e Trabalho
Pessoas com deficiência, desenvolvimento sustentável e trabalho: da invisibilidade para a prioridade?
People with disabilities, sustainable development and work: from invisibility to priority?
Received: 07 August 2024
Revised document received: 23 October 2024
Accepted: 31 October 2024
De acordo com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD)1, promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2006 e ratificada por 184 países, “pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas” (p. 29).
Nessa perspectiva, a CDPD considera as especificidades corporais e suas expressões, mas enfatiza que as restrições à participação plena e efetiva das pessoas surgem na interação entre o corpo com impedimentos e as barreiras sociais. A Convenção reconhece a questão da deficiência como um tema de justiça e direitos humanos e que assegurar a vida digna não se reduz à oferta de bens e serviços de saúde, mas requer também a garantia de um ambiente social acessível à diversidade dos corpos2.
Essa visão apresentada pela CDPD é consonante com o modelo conceitual da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), que a precedeu e foi um marco importante na redefinição da compreensão sobre a deficiência no campo da saúde3,4. A importância deve-se ao reconhecimento da deficiência como um fenômeno dinâmico, resultado da interação entre fatores intrínsecos – como condições genéticas e características pessoais – e o contexto social, que pode criar barreiras ou facilitar a participação e a realização de atividades3,4.
Assim, tanto a CDPD quanto a CIF adotam uma perspectiva biopsicossocial, que compreende a deficiência como fruto de uma interação complexa entre o indivíduo e o meio, e não simplesmente como uma limitação pessoal ou de cunho biomédico3,4.
Estima-se que na atualidade existam 1,3 bilhão de pessoas com deficiência (PCD), aproximadamente 15% da população global, com 80% destas vivendo em países de baixa e média renda5-8. Diversos estudos apontam para existência de uma relação complexa e interdependente entre pobreza e deficiência, formando um ciclo no qual uma pode ser tanto causa quanto consequência da outra5,9-12.
Assim, de um lado, a pobreza econômica pode levar à deficiência devido à falta de acesso a serviços de saúde, nutrição inadequada e condições de trabalho inseguras. De outro lado, a deficiência pode empurrar indivíduos e suas famílias para a pobreza devido à discriminação, exclusão social e falta de oportunidades de emprego5,10.
Além disso, observa-se que meninas e mulheres com deficiência, residentes de zonas rurais e PCD intelectual, psicossocial ou múltipla, estão particularmente mais privadas do acesso a bens e serviços básicos que acabam agravando as desigualdades vivenciadas por tais grupos11,13. Nesse contexto, também é importante considerar que os custos adicionais que as famílias com membros com deficiência enfrentam podem ter efeitos sobre a renda e acentuar a pobreza. Tais custos incluem gastos diretos relacionados às necessidades específicas das PCD, perda de renda e a demanda por cuidados providos por um cuidador.
Desse modo, apesar dos avanços no entendimento sobre o fenômeno da deficiência e sua relação com os direitos humanos, a população com deficiência ainda enfrenta barreiras que impedem ou restringem a sua plena participação na sociedade ao longo da vida. Embora outros grupos sociais também possam estar expostos a situações de exclusão e vulnerabilidade social, PCD são afetadas por estas de forma desigual e desproporcional, com maiores dificuldades para o acesso à educação, saúde, trabalho, lazer e proteção social8,14,15.
Todas essas áreas da vida estão interconectadas e influenciam-se mutuamente. Mas, especificamente, em relação ao trabalho, reconhece-se sua centralidade para a inclusão social, o empoderamento econômico, o desenvolvimento pessoal e profissional, consequentemente, para a quebra do ciclo de pobreza e marginalização em que as PCD podem estar inseridas14,15.
Frente ao exposto, o presente ensaio objetiva explorar a relação entre a inclusão de PCD no trabalho e a promoção da sustentabilidade, utilizando como base de análise a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Nessa discussão, buscou-se destacar como a inclusão das PCD é primordial para a concretização de metas específicas dos ODS, especialmente aquelas relacionadas ao trabalho, tendo em vista o papel desta atividade para promoção da equidade e do crescimento econômico sustentável.
Trata-se de ensaio teórico que possui natureza reflexiva e interpretativa e se constitui na interação entre objetividade e subjetividade16. O ensaio foi inicialmente construído a partir de estudo exploratório e não sistematizado da literatura nacional e internacional que correlacionou os temas deficiência, desenvolvimento sustentável e trabalho, sem a pretensão de esgotar a análise das publicações existentes. O texto se compôs na articulação de reflexões que emergiram das leituras e do envolvimento com o tema, discussões e análises críticas para compreensão da realidade estudada, salientando novos enfoques para a pesquisa.
Nessa perspectiva, este texto inicialmente discutirá como a Agenda 2030 e os ODS abordam as demandas das PCD, destacando os critérios e indicadores específicos voltados para esse grupo. Em seguida, será analisada a pauta da inclusão de PCD no trabalho na busca de “não deixar ninguém para trás” no contexto internacional e o aparato jurídico brasileiro que visa reduzir as desigualdades enfrentadas pelas PCD no que tange ao campo do trabalho, incluindo a Constituição Federal, a Lei de Cotas e a Lei Brasileira de Inclusão (LBI). Por fim, serão apresentadas recomendações para o futuro, com foco em estratégias práticas e contextualizadas para a realidade brasileira, destacando a necessidade de políticas eficazes, produção de dados desagregados e apoio contínuo para a inclusão, permanência e desenvolvimento profissional das PCD.
Em 2015, foi estabelecida a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, precedida e consideravelmente influenciada pela CDPD. Essa agenda reafirmou os direitos humanos e articulou compromissos para o desenvolvimento global a partir da erradicação da pobreza, proteção do meio ambiente e do clima e garantia de paz e prosperidade para as pessoas em todos os lugares.
A Agenda 2030 aplica-se para todos os países signatários e pessoas, com e sem deficiência, possui 17 objetivos, 169 metas para ação e menciona explicitamente os termos “deficiência” e “pessoas com deficiência” 11 vezes em cinco de seus objetivos (4, 8, 10, 11 e 17) e respectivos indicadores. Ademais, esse grupo é abrangido na definição de pessoas vulneráveis, reconhecendo, portanto, os desafios singulares que as PCD enfrentam na busca pela realização de seus direitos e na sua participação na sociedade em igualdade de oportunidades7,15,17.
O Quadro 1 apresenta um panorama dos ODS citados, destacando como cada um deles aborda as questões relacionadas às PCD.

Os ODS abordam tanto critérios para identificar as fontes de exclusão e de desigualdade enfrentadas pelas PCD em comparação com a população em geral, bem como indicadores relacionados a demandas específicas deste grupo. Entre os indicadores específicos voltados para PCD, destacam-se a ampliação do acesso a serviços de saúde e reabilitação e provisão de adaptações para inclusão escolar e no trabalho, entre outros7,17,18.
Contudo, apesar dos esforços de diferentes organizações e países, ainda persistem as barreiras à participação das PCD na sociedade e as desigualdades que essa população vivencia ao longo de toda a vida, o que se relaciona com diferentes ODS19, tais como: ODS 1, 4, 5, 8, 10, 11 e 16. A exclusão das PCD está associada a diversos fatores, por exemplo: a discriminação, o estigma e as atitudes negativas em relação a essa população que impedem ou limitam o acesso à educação, o que é vital para a inclusão em outros contextos.
Outro fator é a falta de acessibilidade nas cidades e no transporte público, dificultando os deslocamentos para a escola, o trabalho, equipamentos de lazer e saúde, assim como a disponibilidade limitada de adaptações nestes diferentes espaços. Além disso, destaca-se a falta de competências, compreensão e sensibilização em torno da deficiência, o que é verificado inclusive entre profissionais que prestam serviços diretamente a essa população e aqueles envolvidos com a construção de políticas públicas14,15.
Todos esses fatores são interdependentes e estão interligados em relações complexas que se influenciam mutuamente. Por exemplo, as barreiras enfrentadas por crianças com deficiência no acesso à educação frequentemente resultam em jovens e adultos com níveis educacionais mais baixos. Isso, por sua vez, pode acarretar desafios adicionais para a inclusão desta população no trabalho, levando a rendas mais precárias e a um maior risco de pobreza.
Além disso, a situação pode ser agravada pela necessidade de distanciamento do trabalho das pessoas que se dedicam ao cuidado de familiares com deficiência, um papel predominantemente exercido por mulheres, o que contribui para a perpetuação das desigualdades e limitações econômicas de famílias que têm PCD entre seus membros15.
Em se tratando especificamente do trabalho, o indicador que mede a proporção da população ocupada, em relação às pessoas em idade de trabalhar, é inferior entre as PCD, em comparação àquelas sem deficiência. Estimativa das Nações Unidas, referente ao período 2006–2016, com base em dados de 91 países, aponta que a proporção de pessoas ocupadas foi 36% entre as PCD e 60%, entre as sem deficiência, considerando a população que tem 15 anos ou mais de idade. Em todas as regiões geográficas do planeta, as mulheres com deficiência têm menor probabilidade de estarem ocupadas em comparação com os homens com deficiência e com pessoas sem deficiência em geral. Tal quadro aponta para uma questão da interseccionalidade entre deficiência e gênero quando se discute o acesso ao trabalho14.
O tipo e a severidade da deficiência também influenciam as oportunidades de inclusão em atividades laborais. Em média, a proporção da população ocupada entre PCD múltiplas é de cerca de 37%, enquanto entre aquelas com uma única deficiência é de 47%. PCD motoras que demandam mais apoio para realização das suas tarefas têm menor probabilidade de estarem ocupadas, em comparação com aquelas que são mais independentes. Além disso, PCD intelectual e/ou psicossocial tendem a estar menos ocupadas do que pessoas com outros tipos de deficiência, destacando que o grupo das PCD psicossocial é o que apresenta menores proporções de ocupação14.
Em se tratando da qualidade dos vínculos trabalhistas, as PCD estão mais inseridas em trabalhos de tempo-parcial do que pessoas sem deficiência. Essa situação tem como principais determinantes a disponibilidade limitada de adaptações no processo e no ambiente de trabalho e a falta de transporte acessível. Trabalhos em tempo integral sem adaptações necessárias inviabilizam que trabalhadores com deficiência tenham um tempo adequado para se preparar para o trabalho, para se deslocar até esse e para conciliar com cuidados básicos relacionados à deficiência e a saúde14.
Em comparação com a população geral, trabalhadores com deficiência tendem a ter vínculos mais precários de trabalho, por exemplo, trabalham no setor informal ou de forma autônoma. Estima-se que 62% das PCD trabalham por conta própria, sendo na maioria das vezes com a família, enquanto esse tipo de trabalho é observado em 53% das pessoas sem deficiência. Essa situação contribui de forma significativa para as menores rendas que trabalhadores sem deficiência recebem. A disparidade de salários pode ser mais ou menos acentuada a depender do tipo de deficiência ou se a pessoa vive em área rural14.
No Brasil, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua de 202220 revelam que existiam aproximadamente 18,6 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, correspondendo a 8,9% da população com dois anos ou mais de idade. Os dados apontam para desigualdades marcantes entre as PCD e seus pares sem deficiência, como uma maior taxa de analfabetismo e um menor percentual de conclusão do Ensino Médio.
A participação na força de trabalho também apresentou disparidades: 29,2% das PCD estavam na força de trabalho em relação às pessoas em idade de trabalhar, enquanto esse indicador foi 66,4% entre as pessoas sem deficiência. Foram observadas desigualdades em todos os grupos de escolaridade. O nível de ocupação entre as PCD era de 26,6%, menos da metade do percentual de 60,7% encontrado para pessoas sem deficiência20.
Cerca de 55,0% das PCD ocupadas estavam na informalidade, enquanto para as pessoas sem deficiência esse percentual era de 38,7%. O rendimento médio real das PCD era de R$ 1.860, significativamente abaixo dos R$ 2.690 recebidos pelas pessoas sem deficiência. Adicionalmente, mais de 50% das PCD no país são mulheres, que têm maior prevalência de deficiências múltiplas em comparação aos homens20.
Tendo em vista a extensão das situações de exclusão que globalmente ainda afeta a participação das PCD na sociedade ao longo de toda a vida, a inclusão dessa população tornou-se uma prioridade na Agenda 2030, assim como, a implementação da CDPD18,19. Nessa perspectiva, o Secretário Geral da ONU, António Guterres, salientou que “esta visão de um futuro melhor só pode ser alcançada com a plena participação de todos, incluindo as pessoas com deficiência. Defender os direitos e garantir a plena inclusão de 1 bilhão de pessoas com deficiência no mundo não é apenas um imperativo moral, mas também uma necessidade prática”14 (Foreword, p. 5; tradução livre)c.
Cabe salientar que o trabalho é um dos temas que têm recebido atenção em projetos apoiados pela United Nations Partnership on the Rights of Persons with Disabilities (UNPRPD). Assim, 33% de 39 propostas de projetos aprovados em 2019 faziam referência ao artigo 27 da CDPD e/ou ao ODS 821.
A busca pela ampliação do acesso das PCD ao trabalho no Brasil é respaldada por um aparato jurídico que remonta à Constituição Federal de 1988. A Carta Magna ampliou as normas vigentes ao reconhecer o trabalho como um direito social de todas as pessoas e estabelecer a proibição de qualquer discriminação quanto a salário e critérios de admissão22.
Além disso, a Lei de Cotas (Lei nº 8.213 de 1991)23 estabeleceu a reserva de vagas para PCD em empresas privadas com mais de cem funcionários, enquanto a Lei nº 8.112 de 199024 assegurou a reserva de 20% das vagas de concursos públicos para essa população. Esses instrumentos de ação afirmativa visavam corrigir desvantagens históricas e promover a igualdade de oportunidades.
Desde sua promulgação até a atualidade, a Lei de Cotas configura-se como a principal política para inclusão de PCD no trabalho, sendo essencial para induzir as contratações. Em 2021, por exemplo, 92% dos trabalhadores com deficiência que tinham vínculo empregatício, trabalhavam para empregadores obrigados a contratar PCD pela Lei de Cotas. Ou seja, a contratação ainda é assegurada pela obrigatoriedade legal. O setor privado respondia pela maior parte das contratações, cumprindo 50,65% da sua cota. Por outro lado, a administração pública cumpria apenas 11,61%25.
Entretanto, a Lei de Cotas, isoladamente, tem se mostrado insuficiente para modificar de forma efetiva a falta de acesso das PCD ao trabalho, pois não articula estratégias sistêmicas para adaptações urbanísticas e ambientais que melhorem as condições de acessibilidade nas escolas, cidades e no transporte público, nem para transformar as representações negativas e comportamentos persistentes em relação à deficiência e à participação social deste grupo populacional26.
A este respeito, pesquisas que analisaram a aplicação da Lei de Cotas no Brasil, observaram desafios que precisam ser superados para aumentar a participação social deste grupo por meio do trabalho. Entre os desafios listados estão a baixa receptividade da norma legal por parte das empresas devido à predominância de uma racionalidade estritamente econômica27-30, a competitividade exacerbada no mercado de trabalho e a persistência do estigma por parte dos empregadores que se configura como uma barreira atitudinal31.
Além disso, a percepção de que as adaptações necessárias nas empresas representam um custo sem contrapartida em ganho de produtividade30 juntamente com as barreiras atitudinais resultam na falta de flexibilização em relação ao perfil exigido pelas empresas32,33. De outro lado, importa destacar que a Lei de Cotas foca na inclusão das PCD no trabalho, mas não apresenta caminhos que promovam a permanência e a ascensão profissional das PCD26.
Mais recentemente, a Lei nº 13.146/201533, também conhecida como a LBI ou o Estatuto da Pessoa com Deficiência, aborda o Direito ao Trabalho em uma perspectiva mais ampla conforme apresentado no Quadro 2.

Diferente das legislações anteriores, a LBI33 promove avanços que vão além do ambiente de trabalho, visando, de forma sistêmica, a redução das iniquidades na sociedade como um todo. Ao alinhar-se à CDPD, a LBI aborda a necessidade de transformações abrangentes no acesso à educação, saúde, cultura e lazer, entre outros. Essas transformações têm o potencial de romper com as barreiras que dificultam ou impedem o acesso das PCD ao mercado de trabalho e que, dificilmente, são tratadas pelas políticas afirmativas quando aplicadas de forma isolada.
Para enfrentar os desafios para inclusão das PCD no trabalho, vários países vêm implementando políticas e práticas para assegurar esse direito e transformar a realidade de trabalho dessa população. Destaca-se a criação de legislação antidiscriminação concretizada no reconhecimento do direito ao trabalho e na proibição de discriminação por motivo de deficiência, conforme verificamos no Brasil14,33.
Associado a isso, alguns países estão elaborando estratégias para assegurar a aplicação das políticas, tais como adaptações razoáveis; ações afirmativas; serviços profissionais de reabilitação e emprego que incluem capacitação profissional e apoio individual com aconselhamento, apoio para procura de emprego, colocação e acompanhamento para permanência no trabalho ou mesmo para o retorno ao trabalho; incentivos para empregadores; trabalho com apoio e ações para mudança de atitudes em relação à experiência das PCD no trabalho14,33,34.
Programas de emprego podem compreender ainda melhorias da acessibilidade nas informações, na comunicação, nos ambientes construídos e nos transportes14,34,35.
Em relação às ações afirmativas para promover o emprego das PCD, são utilizados sistemas de cotas que obrigam as empresas e o setor público a preencherem um percentual de suas vagas de trabalho contratando PCD, conforme observamos no Brasil. Os sistemas mais efetivos são aqueles que estão articulados a fiscalização e pagamento de multas para cada vaga reservada não preenchida. Os valores acumulados podem compor um fundo para apoiar iniciativas relacionadas ao emprego das PCD, por exemplo, a realização de acomodações razoáveis no trabalho14.
A ONU sugere que os setores públicos liderem pelo exemplo ao serem empregadores de PCD e que os países invistam em ações para garantir a representatividade dessas pessoas no trabalho, o que no caso brasileiro parece ainda estar distante, apesar da previsão legal de reserva de vagas também no setor público14.
Os países também têm investido em programas para formação técnica e treinamento profissional para PCD. Além disso, alguns adotam programas de contratação de aprendizes que proporcionam formação para o trabalho no desenvolvimento da prática profissional em complementação à escola. Há ainda capacitações que buscam incentivar o empreendedorismo das PCD, o que requer também facilitação de acesso a financiamentos14.
Entretanto, permanece como um desafio a produção de dados para acompanhar a participação no trabalho desagregados por deficiência, gênero, raça, condição social, atividade econômica, formação educacional e que permitam avaliar a efetividade de políticas, serviços e programas que vêm sendo adotados nos países, assim como, possibilitem a comparação entre as suas realidades14,15.
Ademais, sistemas de proteção social que preveem benefícios para as PCD em geral, alinhados à renda e à incapacidade para o trabalho, podem desincentivar a inclusão das PCD14. Por outro lado, mundialmente o acesso à proteção social está muito aquém das necessidades da população e, portanto, não cumpre seu potencial para o desenvolvimento social e econômico35. Além disso, especialmente, em países de baixa e média renda, nos quais a maior parte da população com deficiência encontra-se em situação de pobreza, é um desafio construir um sistema que garanta segurança econômica para essa população em paralelo ao apoio à permanência no emprego14.
Nessa perspectiva, salienta-se a necessidade de políticas e de programas para assegurar a entrada no trabalho, mas também para apoiar a permanência, o desenvolvimento na carreira profissional e o retorno ao trabalho, já que tal como acontece com outros trabalhadores, aqueles que possuem deficiência também podem adoecer, por motivo relacionado ou não ao trabalho, e precisar afastar-se da atividade. A probabilidade de retorno ao trabalho torna-se menor conforme se prolonga o tempo de afastamento desta atividade, o que pode produzir maiores dificuldades econômicas, sociais e de saúde mental. Esse processo é influenciado por diversos fatores, entre estes, a existência de serviços de apoio para o retorno ao trabalho36.
Cabe salientar ainda que a permanência dos trabalhadores com deficiência no trabalho tende a ser maior também quando são disponibilizadas adaptações para eliminar ou diminuir as barreiras relacionadas aos fatores ambientais e sociais, como locais de trabalho inacessíveis e atitudes negativas de empregadores ou pares de trabalho. Nessas situações, as modificações no local de trabalho ou no modo como esse deve ser realizado e a sensibilização das chefias e pares, melhoram a adaptação do trabalho ao trabalhador, favorecem a participação no trabalho e evitam que o trabalhador com deficiência se mantenha em uma condição de desemprego ou dependente de benefícios de proteção social37. Embora a legislação brasileira reconheça o direito dos trabalhadores com deficiência a adaptações razoáveis para ingresso, permanência e retorno ao trabalho, ainda não temos estratégias para efetivamente apoiar os empregadores nestes processos.
Vale pôr em evidência que está em construção a regulamentação da avaliação biopsicossocial da deficiência prevista no artigo 2º da CDPD e da Lei nº 13.146/2015 que poderá contribuir para avanços em relação à realização de acomodações para e no trabalho, na medida em que avaliará a experiência da deficiência a partir dos seus fatores determinantes, que incluem as possibilidades ou restrições para participação em uma atividade e os fatores socioambientais que podem funcionar como barreiras ou facilitadores. Nesse sentido, fornecerá informações para identificação das necessidades e efetivação de adaptações personalizadas para os trabalhadores com deficiência38.
O presente ensaio teve como objetivo explorar a relação entre a inclusão de PCD no trabalho e a promoção da sustentabilidade, analisando como essa inclusão está alinhada com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e os ODS.
Primeiramente, foi abordada a forma como a Agenda 2030 e os ODS incorporam explicitamente as necessidades das PCD, refletindo um compromisso global com a eliminação das barreiras que impedem sua plena participação na sociedade. Em seguida, a análise revelou os desafios persistentes enfrentados por PCD no campo do trabalho, incluindo disparidades de escolaridade, emprego e renda, além de barreiras atitudinais e estruturais que limitam a inclusão e a permanência dessas pessoas em atividades laborais.
Em se tratando da realidade brasileira, a manutenção de desigualdades históricas indica a necessidade urgente de formulação de estratégias que impulsionem quantitativa e qualitativamente a participação das PCD no trabalho. Assim, é premente que o Brasil avance colocando na pauta do desenvolvimento sustentável as demandas relacionadas à inclusão das PCD no trabalho. Isso porque a erradicação da pobreza, como proposto pelos ODS, demanda um olhar atento para a inclusão plena e equitativa desses indivíduos. A promoção da acessibilidade de forma sistêmica é, portanto, fundamental para garantir que as PCD tenham oportunidades reais de trabalhar e contribuir de forma significativa para o desenvolvimento econômico e social.
É importante destacar que este texto não tem a pretensão de esgotar a discussão sobre a inclusão de PCD no trabalho em relação à sustentabilidade, mas sim iniciar um debate. Nesse sentido, se reconhece que há aspectos dessa discussão que não foram abordados, como, por exemplo, a interseccionalidade entre deficiência, gênero e raça, as questões relacionadas à geração de trabalho e renda que transcendem o emprego formal, incluindo empreendedorismo e cooperativismo. Esses tópicos são cruciais para uma compreensão mais completa e multidimensional do tema abordado neste ensaio e merecem uma atenção específica em futuras análises.
No que tange às perspectivas futuras, a regulamentação da avaliação biopsicossocial da deficiência pode trazer avanços importantes. Outrossim, é crucial fomentar uma mudança cultural nas percepções sobre as PCD, assegurando que as políticas e os programas promovam a inclusão deste grupo no trabalho e garantam seu desenvolvimento e progresso profissional contínuo. Ademais, a realização de estudos e a avaliação constante das estratégias implementadas são fundamentais para facilitar que o acesso ao trabalho das PCD esteja contribuindo efetivamente para a construção de uma sociedade mais inclusiva e justa.
Contato: Talita Naiara Rossi da Silva; E-mail: talitarossi@usp.br

