Resumo: Este artigo pretende aprofundar a noção de reflexividade, aproximando o significado à experiência contemporânea. Ao contrário de reflexividade tradicional, equivalente à virtude e reflexividade moderna, equivalente à autorreflexão e diálogo interno, este artigo propõe a noção de “reflexividade construcionista” para evidenciar o processo recursivo de inclusão dos produtos sociais na facticidade da realidade. Na segunda parte, o artigo coloca em questão o conceito de “reflexividade construcionista” como um instrumento para a descrição da realidade social, com especial referência para a escrita sociológica. Finalmente, sugere três dimensões principais para desenvolver uma forma de escrita reflexiva construcionista: escuta, crítica e responsabilidade.
Palavras-chave:ReflexividadeReflexividade, Escrita Escrita, Construção social da realidade Construção social da realidade.
Abstract: This article intends to focus on the notion of reflexivity, approaching the significance to contemporary experience. Unlike traditional reflexivity, equivalent to virtue and modern reflexivity, equivalent to self-reflection and inner dialogue, this article proposes the notion of “constructionist reflexivity” to highlight the recursive process of inclusion of social products in the factuality of reality. In the second part, the article sets into question the concept of “constructionist reflexivity” as an instrument for describing social reality, with special reference to the sociological writing. As a final point, it suggests three main dimensions to develop a form of constructionist reflective writing: listening, criticism and responsibility.
Keywords: Reflexivity, Writing, Social construction of reality.
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Reflexividade e escrita1

Recepção: 22 Outubro 2015
Aprovação: 10 Dezembro 2015
Existe um crescente interesse pelo desenvolvimento de métodos pedagógicos que estimulam a aquisição de competências reflexivas. Educar para a reflexividade é considerado, justamente, um tema fundamental da formação contemporânea. Este artigo pretende contribuir para circunscrever os conteúdos de uma reflexividade afinada com a experiência contemporânea e sugerir algumas direções úteis para desenvolver compreensivamente a escrita reflexiva.
Do ponto de vista clássico, o termo reflexividade se refere a capacidade específica do ser humano de fazer de si mesmo e das suas ações objeto de análise. Neste caso reflexividade se refere a uma característica cognitiva dos seres humanos, a sua capacidade de avaliar os vínculos e as possibilidades ‘externas’ a luz dos seus desejos, dos seus objetivos e dos seus interesses ‘internos’, ‘individuais’. A reflexividade se manifesta, sobretudo, como ‘introspecção, como ‘olhar retrospectivo’ (John Stuart Mill, 1882), capacidade de ‘diálogo interior’ (Peirce 1868; Mead, 1934), ou como capacidade de pensar-se em relação aos próprios contextos (social) e vice-versa (Archer, 2007). Enquanto tal, a reflexividade indica o processo através do qual as razões se tornam causas do curso de ações adotadas pelos sujeitos sociais (Archer, 2013).
Tomada como (auto)reflexão, como diálogo interior, a reflexividade parece ser uma característica constitutiva e universal dos seres humanos. Se associa a capacidade de desenvolver técnicas e procedimentos de controle e verificação que permitem monitorar as práticas e de avaliar os resultados a luz das intenções do sujeito agente. A tradição tem sido por muito tempo, um elemento central no controle e orientação da (auto)reflexão, fornecendo quadros de referência suficientemente precisos, estáveis e compartilhados para avaliar e interpretar os resultados de suas ações e a relação entre vontade individual e a objetividade do real. Neste caso, a reflexividade indica uma ‘virtude’: a capacidade de monitorar as próprias ações e os próprios desejos a luz dos princípios da tradição, de promover o diálogo, dentro de si, as preferências subjetivas com os preceitos derivados da sedimentação da experiência coletiva.
Com a modernidade, as supostas certezas da tradição são submetidas à crítica radical e sistemática. A reflexividade assume o significado de prática de escrutínio objetiva, racional, separada dos vínculos impostos da tradição. A reflexividade moderna torna-se o “método” para um conhecimento objetivo da realidade, um conhecimento mais pontual, preciso, eficaz. Torna-se sinônimo da cientificidade. O conhecimento e a avaliação das ações humanas se fundam sempre menos sobre a fidelidade do passado. Antes disso, se baseiam sobre escrutínio contínuo dos pensamentos e das ações para verificar a correspondência aos fins. O futuro, os objetivos, os projetos se tornam as novas unidades de medida com as quais pode-se verificar a adequada correspondência entre ação, vontade, consciência e realidade. Nada do que é descoberto pode ser dado como certo porque o escrutínio mais acurado mostrará elementos que anteriormente fugiram da observação, que serão úteis para melhor compreender o presente e incrementar a certeza dos resultados futuros.
Reflexividade torna-se com a modernidade sinônimo de maior consciência, capacidade de olhar além da normalidade e da banalidade, para acolher as verdadeiras leis que regulam a realidade. Esta reflexividade pressupõe um certo grau de essencialismo: evidencia a ideia de reflexo, isto é, a convicção que mediante um método rigoroso e adequado seja possível, graças a elaboração de um código simplificado, um mapa ou uma superfície reflexa, reproduzir uma imagem acurada do mundo real externo, independentemente das hipóteses que o observador tem sobre a natureza de tal mundo.
É possível verificar três principais tendências, não necessariamente incompatíveis uma com a outra que sinalizam os eixos por intermédio dos quais se desenvolveu a reflexividade durante a modernidade: uma tendência metodológica, uma tendência romântica e uma tendência crítica.
A reflexividade metodológica invoca a necessidade de interrogar-se continuamente sobre as próprias ações, sobre os métodos que se utiliza para conhecer, controlar e orientar a realidade. Ciente das alterações introduzidas pela subjetividade, prevê o desenvolvimento das técnicas de distanciamento e de estranhamento que permitam, “colher os fatos como eles realmente acontecem”. Ciente de que a intervenção do observador afeta substancialmente a realidade, a reflexividade metodológica se empenha em desenvolver uma atenção contínua para limitar as distorções e interferências. Quem age deve ser continuamente confrontado com o problema de refletir sobre o que está fazendo e a forma como está fazendo, a fim de manter sob controle as próprias ações e evitar a necessidade de substituir a realidade objetiva à aleatória e desviante precariedade das suas próprias construções. Trata-se de uma reflexividade engenhada, atenta a monitorar e projetar estratégias para aumentar a possibilidade de controle do sujeito agente sobre os resultados das suas ações.
A reflexividade metodológica estimula uma escrita realista (Colombo, 2005) que procura ocultar a presença do autor para restituir uma narrativa do real “objetiva” não distorcida, depurada de inclinações subjetivas. Constitui a norma da escrita científica (sobretudo das ditas ciências hard): documental, impessoal, que descreve os caracteres estritamente necessários, constantes e universais da realidade, independentemente, das suas manifestações contingentes. O referencial do texto se baseia sobre a definição do dado.
A reflexividade romântica coloca a ênfase na necessidade de introspecção pessoal que permite conhecer-se plenamente e tornar-se autoconsciente das próprias ações. Para agir e conhecer de uma forma autônoma e eficaz, antes de tudo, é necessário conhecer-se, fazer um cuidadoso questionamento sobre si mesmo. A profunda preocupação com a “verdade” se antepõe a preocupação com a “sinceridade”. Nas palavras de Gouldner (1970, p. 495):
Na medida em que a realidade social é considerada em parte dependente dos esforços, das características e da posição de quem a conhece, a busca do conhecimento dos mundos sociais depende também da auto-consciência de quem sabe. Para conhecer os outros, não se pode simplesmente estuda-los, mas deve-se também escutar a si próprio e colocar-se frente a si mesmo.
Neste caso a norma principal da escrita é o estilo confessional (Van Maanen, 1988), na qual o autor entra no texto em primeira pessoa para tornar mais “verdadeira” a própria narrativa. O autor ‘se desnuda’ por inteiro para estabelecer um contato direto com o leitor e tornar a sua própria experiência pessoal uma fonte confiável pela narrativa. A reflexividade romântica constitui-se em um dos modelos de referência para o desenvolvimento do romance (especialmente o Bildungsroman): uma escrita “vivida”, que escava na intimidade, que interroga a experiência pessoal e favorece um percurso de amadurecimento. A confiabilidade do autor depende da capacidade de trazer para o texto o que há de mais profundo da experiência pessoal do leitor.
A reflexividade crítica tende a enfatizar a necessidade de desconstruir as aparências externas imediatas para apreender a realidade em seu aspecto mais verdadeiro e duradouro. As coisas não são como parecem; determinantes materiais ou processos inconscientes que permanecem ocultos a guiar a construção dos desejos, das ações e da realidade em que vivemos. Neste caso, a reflexividade consiste na capacidade de por em discussão o mundo como ele parece para compreender os elementos constitutivos subjacentes que orientam o curso da natureza e da história.
A reflexividade crítica também se direciona para uma escrita realista, mas neste caso o autor, excluído da sua subjetividade se destaca pela sua competência. Um trabalho constante de autorreflexão e análise permite ao autor apresentar-se como capaz de ir além das aparências, não para recontar a si mesmo, mas para destacar o que a maioria dos seus leitores não querem, ou não são capazes de ver. O autor não entra no texto enquanto ‘indivíduo’, mas enquanto ‘ expert ’, não fala em nome pessoal, mas em nome de uma vanguarda que, graças à reflexão e estudo, é capaz de ‘pôr a nu a realidade’. A reflexividade crítica alimenta uma grande parte da escrita das ciências humanas e sociais. A confiabilidade do texto é baseada em citações aprendidas, que mostra o caráter “incomum” de seu autor.
Na modernidade, nos três casos, a reflexividade é orientada para colocar em primeiro plano a dimensão do ‘reflexo’, isto é, uma hipótese essencialista que declara a existência de uma ligação unívoca e necessária entre representação e realidade; ligação que deve ser trazida para primeiro plano e traduzida na linguagem da ciência – e a dimensão da reflexão - isto é, a atenção para o que se faz e como se faz, a fim de aumentar a autoconsciência e o real conhecimento do mundo.
A aplicação sistemática da reflexividade, como instrumento de controle das ações e de seus êxitos, prometida pela modernidade, favoreceu a crítica do ideal moderno. A ideia de que se poderia ter um conhecimento completo e não distorcido da realidade, graças a um método racional e rigoroso e um contínuo escrutínio crítico dos efeitos da ação humana, em vez de evidenciar a objetividade do real, tem mostrado a relevância da ação humana em definir a realidade (Giddens, 1991), a capacidade/necessidade de escolher entre opções diversas, cada qual caracterizada por uma particular objetividade e uma particular racionalidade (Melucci, 1996), a crescente produção de incerteza e risco (Beck, 1992).
Emerge um novo significado atribuível ao termo reflexividade: a recursividade contínua que permite englobar a ação humana sobre a realidade como parte da tal realidade. A reflexividade tende assim a indicar a inevitável circularidade e performatividade da construção/compreensão do mundo, que parece descrever a realidade social enquanto, na realidade a constrói e assim cria as condições da própria averiguação (Bourdieu, 1990).
A aplicação sistemática da reflexividade moderna coloca em primeiro plano os processos de construção social da realidade e aloca a questão epistemológica da relação co-constitutiva que existe entre a realidade conhecida e o sujeito agente e conhecedor. A atenção reflexiva se desloca dos fatos ao fazer, da essência à relação.
Por uma ótica construcionista e processual, a distinção entre observador e observado se torna mais problemática: é a própria relação que representa ao mesmo tempo o objeto e o produto de observação (Melucci, 1998). O foco não é mais direcionado a contraposição de duas entidades consideradas independentes – o sujeito pensante e a realidade externa - mas no processo de produção de conhecimento sobre o mundo que se torna uma parte constitutiva de tal mundo. Subjetividade e objetividade assumem um novo foco, não se constituem partes separadas que se contrapõem em uma luta inútil na explicação da experiência humana. Constituem antes disso o resultado daquilo que se põem em jogo de cada processo humano de siginificação, que ao organizar a realidade em uma ordem simbólica particular, produz espaço para a existência tanto da subjetividade do agente como da objetividade do contexto da ação. Considerar o caráter reflexivo da construção social da realidade significa evidenciar que a realidade, na sua percepção humana, não se apresenta como independente das categorias utilizadas em sua percepção e dos símbolos usados na descrição. Significa, contemporaneamente, evidenciar que a ação de construção desses sujeitos agentes não se apresenta como capacidade criativa autonoma, mas se expressa graças aos recursos e aos vínculos presentes na situação concreta de ação.
A partir de uma perspectiva construcionista, a reflexividade perde a sua caracterização, principalmente, técnica e de engenharia para assumir uma epistemológica e crítica: é reflexiva uma proposição ou uma ação que considera as condições de sua própria produção e assume todos os efeitos que produz. A reflexividade tende a enfatizar a circularidade e a interligação existente entre conhecimento da realidade e a realidade, entre o olhar subjetivo e percepção objetiva, entre ação e interpretação. Definirei esse tipo de reflexividade como o processo recursivo de inclusão de produtos sociais na facticidade do real .
Destacar a importância adquirida pelas construções sociais na determinação do que é real - verdadeiro, natural, existente, factual - implica uma ideia não ingênua de construcionismo social. Implica enfatizar não só o carater de construção, invenção, criatividade dos sujeitos agentes, mas também as condições sociais que permitem construções específicas de tornar realidade, enquanto outras são resolvidas em exteriorizações sem estabilidade e sem efeitos. A construção social da realidade não é um ato que se resolva na criatividade individual; é sempre um ato social - uma batalha pela hegemonia (Gramsci, 1971), que coloca em jogo a definição do que é (e deveria ser) real. O real é real enquanto partilhado, ‘público’ e o reconhecimento de tal natureza - e nisto consiste, principalmente, a reflexividade - só pode surgir a partir de múltiplas vozes, do diálogo.
A reflexividade construcionista é um produto social, é o resultado da pluralidade das narrativas e dos discursos e de uma atenção a como o mundo/sentido é construído. Necessita a abertura de um diálogo com uma voz inesperada, com uma perspectiva não considerada, com um outro colocado em outro lugar. Não pode se desenvolver de forma significativa como capacidade individual: o sujeito nunca pode olhar-se do lado de fora de forma radical, porque a sua colocação é o seu poder (de existir, de definir, de criar a realidade como recorte dotado de sentido) do qual nunca pode descolar-se completamente. A auto-reflexividade pode, na melhor das hipóteses, aspirar a ser estética (destacar a ‘forma’, o ‘o quê’), a reflexividade construcionista é sempre relacional, política (evidencia o poder, destaca o como, ‘o colocar-se em jogo, as implicações e os efeitos).
A auto-reflexividade como consciência individual tem vários limites: a) tende a ser demasiado intimista e põe em destaque a voz do narrador; b) tende a impor a existência de um ‘verdadeiro’ e ‘profundo’ narrador autoconsciente, desconsiderando o papel da narrativa na construção da realidade. c) mantém um alto grau de cegueira em relação ao poder (do autor). A reflexividade construcionista é uma resposta a uma narrativa, reside na concatenação pergunta-resposta, narrativa-interpretação-nova narrativa. Alimenta-se no envolvimento de outras vozes (diálogo interno com o texto, diálogo com o leitor, capacidade de provocar debate público). Abre-se à discussão, convida ao diálogo; não fecha, não afirma, mas anuncia, propõe (antecipa), sugere, provoca (chama para fora, faz sair).
Quais implicações pode ter sobre a escrita interessada em descrever a experiência social, uma perspectiva que coloca no centro a reflexividade construcionista? Em primeiro lugar, vamos considerar a escrita não como simples ato automático - um ato transparente e mecânico - que traduz (reflete de modo pontual e imparcial) a experiência (o olho que observa) ou a elaboração intelectual (a mente que teoriza) no texto. Evidencia ao contrário que a escrita implica sempre uma interveção ativa de seleção, interpretação, construção teórica. Produzir um texto, uma narrativa, constitui a substância do conhecimento sociológico. Quando uma narrativa é eficaz – quando é reconhecida publicamente como parte da realidade que pretende descrever e, assim, incorporada nesta realidade - é um exemplo de construção reflexiva da realidade social em que o conhecimento sobre o social torna-se um objeto social e ajuda a dar ordem e consistência à realidade social.
Mudando o foco do quê ao como , da essência ao processo, a reflexividade construcionista coloca em primeiro plano o caráter dialógico de cada narrativa.
Promover uma reflexividade construcionista significa reconhecer que o termo reflexivo não se aplica ao pesquisador, mas a relação entre pesquisador e outros sujeitos envolvidas na pesquisa. Reflexividade não se esgota completamente, portanto, nem na capacidade de introspecção e cancelamento de distância experiencial entre o observador e o observado, nem na capacidade de explicitar as condições e as opções relacionadas à investigação. É, antes, para facilitar a implementação e manutenção de um espaço dialógico, em que os pressupostos e condições situadas no conhecimento possam ser evidenciadas em vez de ocultadas e, por conseguinte, sujeitas a revisão, debate e confrontação teórica.
A abertura e manutenção de um espaço dialógico que permite uma reflexividade construcionista não pode ser garantida pela simples vontade individual do pesquisador. Trata-se de favorecer as condições que permitem um diálogo contínuo sobre a produção do conhecimento social.
O pesquisador ainda pode favorecer a criação deste espaço, por exemplo, mostrando ao leitor as escolhas feitas nos momentos relevantes da pesquisa de campo, ou tentando através da escrita, expressar adequadamente a complexidade e a polifonia que caracteriza a experiência etnográfica, considerando comentários, críticas e back talk relativo ao seu trabalho. É difícil pensar que seja possível manter plena transparência dos processos de construção da pesquisa e de suas narrativas. Além disso, reconhecer a diversidade de objetivos e interesses, bem como a assimetria de poder que distingue o observador dos sujeitos observados, faz com que seja difícil pensar que a reflexividade pode ser reduzida a uma escrita polifônica e bi-partida.
Na escrita, a reflexividade construcionista não pode ser um ‘projeto’, uma intensão do texto; não pode ir além de convidar ao diálogo, sugerir espaços de crítica, promover a resposta (não a adesão, mas a contra-argumentação). A reflexividade construcionista nunca se ‘realiza’, é sempre ‘proposta’.
O problema central da produção de narrativas reflexivas se torna então como produzir textos dialógicos, sem ocultar a assimetria de poder que caracteriza cada possível diálogo.
Produzir narrativas reflexivas significa escutar os sujeitos da nossa pesquisa, levá-los a sério, mas também interpelá-los, fazer perguntas indiscretas. Isso significa dialogar.
O problema de como incluir em uma narrativa a voz do outro foi enfrentado de diferentes formas2.
Uma primeira possibilidade consiste no esforço de trazer no próprio texto a voz do outro, deixar que o outro fale diretamente. Uma posição que implica que a voz trazida seja autêntica, constitua a verdadeira essência, inclua uma verdade (subjetiva e profunda) que não pode ser anunciada pelo próprio sujeito. Isto implica reter a existência de um sujeito que precede a interação social, e que é depositário de uma autenticidade e de uma verdade que só pode ser interna, privada.
Pensar que o outro possa falar de verdade, livremente, autenticamente nos nossos textos tem ao menos dois aspectos problemáticos. O primeiro consiste no perigo de sacralização da voz do outro, de transformá-la em algo indiscutível, verdadeira. Deste modo, a voz do outro é convertida em monólogo, perde a legitimidade e a seriedade, excluindo a possibilidade de poder dialogar abertamente com os interlocutores. O segundo consiste em ocultar as diferenças de poder. A voz do outro entra, frequentemente, nos nossos textos, respondem as nossas perguntas, as nossas lógicas e aos nossos interesses. Apesar de dar voz ao outro, para operar como uma prática de desmascaramento do poder e subverter a epistemologia hegemônica, não se pode ignorar a posição vantajosa do autor.
Este último, mesmo quando se limita, aparentemente, a mostrar a voz dos outros, na realidade, realiza um trabalho de seleção ativa, de tradução, de re-contextualização.
Uma segunda possibilidade consiste em trazer diretamente o diálogo evidenciando a polifonia, a multiplicidade de vozes. Isso permite destacar a natureza dinâmica e processual da narrativa e da produção do saber social. Mostra que cada “voz” nunca é já dada, original, é antes uma “resposta” a outros. Mostra que a narrativa nunca é totalmente “a própria narrativa”, mas se gera como uma réplica ao serem interpelados, interrogados, como necessidade de serem chamados para argumentar, justificar, apresentar a outros.
Mesmo essa possibilidade não assegura que sejam apresentadas adequadamente as assimetrias de poder. Há o risco de cair em uma pura celebração do diálogo, visto como sempre orientado para a certeza, capaz de deixar o mesmo espaço igual aos vários interlocutores, capaz de aniquilar as diferenças ou torná-las insignificantes.
Uma completa reflexividade construcionista, atenta a como o conhecimento é construído nas práticas sociais de produção da realidade, requer uma atenção especial para as dinâmicas de poder, aos conflitos em detrimento dos consensos. Empenhar-se na produção de uma narrativa reflexiva, implica considerar pelo menos três aspectos:
a. Levar a sério outras vozes e outras perspectivas (colocar-se em posição de escuta do outro).
b. Não renunciar de fazer a pergunta incomoda aos seus interlocutores (exercício de crítica) .
c. Aceitar e não ocultar o poder de quem escreve (assumir a responsabilidade por aquilo que escreve).
Narrar reflexivamente o outro é sempre um convite para a inclusão do outro, permitir que o outro entre, através de sua voz, em um círculo de discussão do qual estava excluído (sua voz não estava, agora está).
Uma verdadeira escuta do outro implica o respeito pela voz do outro. Um respeito que não pode ser reduzido à tolerância ou celebração sagrada. Por ser ‘levada a sério’, a voz do outro deve ser submetida à crítica, avaliada, discutida. O diálogo envolve um papel ativo dos interlocutores. Escutar o outro é colocar a narrativa não apenas como a expressão de uma postura ética que tem o compromisso de dar voz àqueles que são excluídos, para produzir um mundo mais justo e inclusivo. É, principalmente, uma maneira de evidenciar o caráter construtivo da realidade social e, assim, evitar o dado como certeza (as assimetrias, as exclusões, os poderes que produz e legitima) que se apresente como indiscutível e inevitável, fugindo à crítica e ao escrutínio. Não é necessário acreditar que a voz do outro seja mais verdadeira, mais autêntica, mais livre. É a pluralidade que produz o espaço para a crítica, não uma única voz.
Escutar a voz do outro significa deixar que o outro desenvolva a sua própria narrativa, conte a sua história, construa a sua subjetividade (Krumer-Nevo, Sidi, 2012). Significa deixar que mais vozes contribuam para dar sentido a experiência comum, cada uma com suas particularidades, sensibilidades, segredos e preconceitos. Escutar outras vozes significa, em primeiro lugar, expor-se à possibilidade que nossas certezas mais sagradas e mais profundas possam ser justificadas, expostas a críticas, reconhecidas em seu caráter de possibilidade e de localidade, em vez de necessidade e universalidade.
Um espaço para a escuta, para uma narrativa reflexiva, mantém em movimento este processo de confronto, justificativa, crítica, impede que uma só voz, sempre parcial e local, se torne ‘natural’ e reifique as relações de poder que constrói e do qual é o resultado.
O trabalho de exposição da recursividade entre construção e compreensão da realidade nunca é resolvido completamente na escuta. Não se completa deixando espaço para outro, se realiza no processo de escrever além do outro, ao dizer aquilo que o outro não diz, porque não sabe, não pode, não quer. Uma narrativa reflexiva empenha-se em adicionar outras palavras as palavras do outro, não porque essas são mais claras e mais verdadeiras, mas porque é na alternância de vozes, no narrar e perguntar, no afirmar e contestar que o processo de produção da realidade se evidencia e se torna fluído, impedindo que os significados produzidos se transformem em «dados» e ocultem o seu carater de construção.
Se abandonarmos uma pura celebração do diálogo (como momento de criação e liberdade, enquadrando-o no âmbito de uma prática social que não pode ser livre de poder e que tem entre seus fins a definição de um poder), pode-se ser capaz de perceber que ‘os outros’ (como nós), muitas vezes falam através de estereótipos, falam com a voz do poder, da disciplina (dos políticos, da mídia, da tradição, do senso comum).
Uma narrativa reflexiva construtivista não renuncia o ponto de vista do autor, não se exime da crítica, não trata a voz do outro como ‘indiscutível’. Está interessada em avançar a sua própria perspectiva, para mostrar os processos de construção e contrastar interpretações preguiçosas, contestar cada forma de justificativa do existente que recorra a fatores extra-sociais e explicações transcendentais.
A narrativa produz reflexividade quando se articula como diálogo, quando aciona a circularidade entre pergunta e resposta. A narrativa reflexiva nunca está acabada é sempre o próximo passo que a faz avançar e tornar possível. É nessa articulação entre pergunta e resposta, entre diferentes vozes, que o processo de construção da realidade e seus efeitos de conhecimento e poder tornam-se evidentes.
Esta reflexividade requer sempre outro lugar, uma voz diferente, um estranhamento. É por esta razão que ela nunca pode ser considerada uma capacidade pessoal, é sempre o resultado de um processo social.
Certamente a escrita em si pode constituir um momento de destaque da pesquisa e, portanto, constituir o lugar privilegiado da reflexividade. Constitui uma exotopia (Bakhtin, 1981) – um outro tempo e um outro espaço – relacionado ao envolvimento direto no campo, mas este nível de estranhamento, embora importante, é apenas um dos possíveis níveis de processo reflexivo. Uma reflexividade pessoal nunca é capaz de compreender as bases mais sólidas, incorporadas nas práticas, no local, nos termos usados. Pensar que o autor, a partir de sua posição de poder e privilégio (colocado no papel de quem dá voz para a narração) possa exercitar um olhar crítico sobre a própria posição, significa entender ingenuamente que os sujeitos - pelo menos os mais poderosos e os mais privilegiados – possam colocar-se do lado de fora dos processos de construção da realidade social, e vê-los e ver-se “sem um vínculo com a realidade produzida”, existir sem qualquer ligação com as construções sociais. Renunciar a este olhar simplista significa reconhecer que uma reflexividade concreta, capaz de compreender os processos de construção social da realidade exige um olhar externo, exige uma voz discordante, capaz de fazer a pergunta que não se gostaria, porque põe em discussão aquilo que diz respeito ao sagrado e fundamenta a nossa visão de mundo.
A narrativa reflexiva estimula a capacidade de ‘ respons-habilidade ’ (Melucci, 1996), isto é, a capacidade de produzir razões, de responder às interrogações que provém do outro. A responsabilidade, enquanto aspecto da reflexividade construcionista, não é uma postura ética individual, encontra-se no processo de ser interpelado, de deixar espaço para a pergunta do dissidente, no processo de ser chamado a justificar o que não deve ser justificado.
Mais do que sugerir sobre como o mundo poderia ser (Denzin, 2001), a narrativa reflexiva mostra que cada interpretação possível do mundo, é parcial, interessada, seletiva. Ela nos impede de acreditar que “é a única possível” e nos leva a responder aos privilégios e exclusões que a nossa construção do mundo produz. Mais do que uma instância ética (a capacidade do privilegiado de se distanciar do seu próprio poder, de não tirar proveito do próprio privilégio), a narrativa reflexiva se constitui como uma dimensão específica de análise sociológica: mostrando o tecido da humanidade coletiva sempre parcial da construção da realidade social.
Enfim, a narrativa reflexiva sugere que cada reflexão sobre o social é sempre parcial, que a pesquisa social é sempre incompleta (percebe algumas coisas opacizando/perdendo outras) e a escrita é sempre seletiva (não pode nunca perceber o mundo de forma transparente).
Nenhuma pesquisa social é definitiva. Uma boa pesquisa é aquela que discute e que provoca a discussão. Uma boa descrição da pesquisa se expõe a reflexividade coletiva, tem como objetivo estimular a reflexividade, mas o seu caráter reflexivo não depende apenas da vontade do pesquisador. Nós podemos refletir sobre como fazer uma boa pesquisa reflexiva e, sobre como produzir narrativas reflexivas, mas sermos realmente socialmente reflexivos não depende (apenas) de nós, é necessário cultivar contextos sociais em que haja espaço para o dissidente, que se possa sempre fazer uma nova pergunta, mesmo a mais indiscreta. O que está em jogo é a capacidade de impedir que algumas construções sociais sejam apresentadas como inevitáveis e sem alternativas, que se tornem reificações, produzam discriminação e exclusões injustificadas, que subtraiam nossa capacidade de interrogações, limitem nossas ações e restrinjam nossas liberdades.
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