Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
A narrativa termográfica em Incoming e There Will Be No More Night
RAFAEL TEIXEIRA TASSI
RAFAEL TEIXEIRA TASSI
A narrativa termográfica em Incoming e There Will Be No More Night
The thermographic narrative in Incoming and There Will be no More Night
Matrizes, vol. 17, núm. 2, pp. 257-276, 2023
Universidade de São Paulo
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Incoming (2017), do fotógrafo e cineasta Richard Mosse, é uma instalação artística multicanal que se baseia no sistema de detecção térmica de uma potente e restrita câmera de vigilância militar, adaptada por Mosse para observar campos de refugiados no sul da Europa. There Will Be no More Night (2020), filme da cineasta Éléonore Weber, aciona registros de operações militares filmados desde aeronaves bélicas em ações de rastreamento e ataque, utilizando imagens térmicas visualizadas nos capacetes dos pilotos. O presente trabalho é uma análise dos processos de apropriação artística do formato imersivo e multitela produzido pelo artista Richard Mosse, e o uso de arquivos militares em modulação cinematográfica, acionados como vestimenta tecnológica e imagens de vigilância no documentário da diretora Éléonore Weber.

Palavras-chave: Imagem, apropriação artística, refugiados.

Abstract: Incoming (2017), by photographer and filmmaker Richard Mosse, is a multi-channel art installation that is based on the thermal detection system of a powerful and restricted military surveillance camera, adapted by Mosse to observe refugee camps in southern Europe. There Will Be no More Night (2020), a film by filmmaker Éléonore Weber, triggers records of military operations filmed from a war aircraft in tracking and attack actions, using thermal images from pilots’ helmets. This study analyzes the artistic appropriation processes of the immersive and multi-screen format produced by artist Richard Mosse and the use of military archives in cinematographic modulation, used as technological clothing and surveillance images in the documentary by director Éléonore Weber.

Keywords: Image, artistic appropriation, refugees.

Carátula del artículo

EM PAUTA/ AGENDA

A narrativa termográfica em Incoming e There Will Be No More Night

The thermographic narrative in Incoming and There Will be no More Night

RAFAEL TEIXEIRA TASSIa
Universidade Estadual do Paraná, Brasil
Matrizes, vol. 17, núm. 2, pp. 257-276, 2023
Universidade de São Paulo

Recepción: 16 Septiembre 2022

Aprobación: 20 Abril 2023

INCOMING (2017), DO FOTÓGRAFO e cineasta Richard Mosse, é uma instalação artística que trabalha com a lógica biopolítica (Beiguelman, 2021) associada à dimensão da detecção térmica efetuada a partir de uma câmera de alta tecnologia, construída para agências militares norte-americanas, e adaptada por Mosse para uso cinematográfico. Desenvolvido em parceria com o cinegrafista Trever Tweeten e o compositor Ben Frost, o projeto é uma instalação multicanal que analisa os mapas de calor (heat maps) dos corpos humanos captados por uma câmara militar classificada como arma segundo o direito internacional (Martin, 2019). Estruturada para exibir o calor corpóreo a uma distância de mais de 30 km, a tecnologia é de domínio restrito, e foi originalmente desenhada para campos de batalha, zonas de guerra e espaços de conflito1.

Mosse reconfigura a câmara para uso cinematográfico, em apoio steadycam clássico, e aplica a tecnologia para observar pessoas em situação de refúgio nos campos das Nações Unidas, e em zonas da fronteira sul da Europa (Mar Mediterrâneo). Circunscreve as imagens espectrográficas geradas pelo aparato militar em dimensão artística: as modulações calóricas espelhadas revelam gráficos de calor, a intimidade biológica indetectável ao olho humano (respiração e ritmo cardíaco, rastros de suor, circulação sanguínea etc.).

No trabalho de Mosse, as imagens são ressignificadas em um efeito audiovisual potente e inovador que deriva em um filme sem acompanhamento narrativo ou diálogos, mas que incorpora em sua dimensão estética elementos acústicos, trilha sonora e mise-en-scène cinematográfica. O resultado é uma concepção criativa desenvolvida com o uso de multitelas: uma videoinstalação e um projeto fotográfico que dialogam em um vídeo de 52 minutos a partir das imagens térmicas produzidas com refugiados no sul da Europa2.

Dispostas em linguagem audiovisual, as imagens ou espectros invisíveis produzidos por Mosse com a câmera de alta tecnologia fluem a partir da modulação cinematográfica adaptada para uso próximo (em stedycam) e distante (equipada com uma teleobjetiva, sendo possível zoom de mais de dez quilômetros). São geradas imagens monocromáticas subtraídas desde grande alcance, exibindo majoritariamente dois universos de captação: cenas cotidianas das zonas de refúgio mostrando os movimentos das pessoas em atividades diversas (desde crianças se alimentando e adolescentes jogando futebol passando por sujeitos conversando e caminhando solitários no espaço de confinamento); e imagens dramáticas dos processos de resgate e salvamento de sobreviventes de naufrágios no Mediterrâneo.

De certo modo, essa concepção temática é construída praticamente em toda a diegese. Alternam-se difíceis sequências de resgate de corpos de vítimas nas águas mediterrâneas junto às imagens de rostos e espectros de indivíduos em campos de refúgio. As imagens geradas por modulação térmica tornam possíveis a assistência de cenas complexas, como, por exemplo, uma sequência fílmica em que a dissecação de um cadáver de uma vítima de afogamento é exposta, em alcance próximo (zoom de detalhes das mãos, corpo e espectro visual).

Incoming expõe, portanto, a lógica contemporânea do biopoder, desenvolvida, como escreve Giselle Beiguelman (2021, p. 26), a partir da “tirania retiniana da subjetividade moderna”, e da dessubjetivação a partir de tecnologias de visualização gráfica, termografia e telepoder, tal como se refere Beiguelman, nas “reconfigurações do olhar, modos de ver e de sermos vistos”. Centra-se no calor, assim como nas imagens invasivas e invisíveis, indetectáveis aos olhos humanos, que exibem o ser humano em seu rastro biológico mais básico. De maneira semelhante às imagens detectadas por mísseis de longo alcance, que buscam fontes de calor e rastros térmicos, a tecnologia reconhece espectros e sensorialidades termais invisíveis e camufladas. No tratamento artístico de Mosse, o procedimento que rastreia corpos e não vê identidades é reorganizado para propor uma experiência estética, acusmática e imersiva singular, atuando no interstício entre documentário, fotojornalismo e arte contemporânea.

There Will Be no More Night (2020), filme de 77 minutos da cineasta francesa Éléonore Weber, utiliza vários vídeos gravados por pilotos de helicópteros e aviões de caça em regiões de ações militares da Otan (especialmente Afeganistão, Iraque e Paquistão). Organiza o material em uma narrativa centrada na modulação espectral da imagem, térmica e profanadora, que substitui a visão tradicional dos pilotos, vestidos com capacetes de alta tecnologia. As poderosas câmeras com zoom de longo alcance e visão noturna, além de possibilidade de modulação termográfica, alternam a visualização tradicional dos aparatos militares permitindo o visionamento desde altura e distâncias quilométricas. O efeito facilita, ainda, a aproximação indetectável e mortífera na execução das operações militares, que são gravadas e exibidas pelos pilotos3.

A narrativa do filme, que segue em grande parte os comentários da cineasta (na voz intérprete da atriz Nathalie Richard) sobre os registros gravados, se baseia nas filmagens de operações militares produzidas desde aeronaves em ações de rastreamento e vigilância, que frequentemente se transformam em ataque e eliminação de pessoas. O soldado Pierre V. é entrevistado pela diretora, e seu testemunho anônimo e protegido (não aparece no filme) alimenta a estrutura narrativa. No gesto de organização narrativa, Weber produz um minucioso ensaio sobre as complexas imagens geradas pelas tropas norte-americanas e francesas no Afeganistão, Iraque e Paquistão. O uso e a fácil veiculação dos arquivos, gravados pelos próprios pilotos e disponíveis no YouTube sem restrição, mostram a terrível coincidência entre o gesto de olhar, gravar e identificar alvos, e a encenação da violência (nesse caso, instrumentalizada na concomitância do olho humano com a máquina – os capacetes de alta tecnologia)4.

Colocando o espectador no centro da imagem modulada – os alvos e supostos alvos militares –, Weber faz dos arquivos gravados pelos pilotos conteúdo cinematográfico. Aqui, a própria natureza da imagem, condicionada pela tecnologia de vigilância e execução, aprofunda a perspectiva da eliminação. Por mais impressionante que seja o rastro biológico e a possibilidade de visionamento de alvos em alcance extremo, o silhuetamento gerado pelas imagens advindas de fontes termais não desfaz a confusão com a perspectiva humana. Na voz dos pilotos, em vários momentos, é possível ver a dúvida instalada (e o júbilo abjeto) no reconhecimento de alvos e supostos alvos. Os pilotos militares fustigam a imagem gerada pela tecnologia dos capacetes, procurando signos de violência e ameaças possíveis (armamentos, gestos suspeitos etc.) – mas nenhuma ameaça concreta, além daquela produzida pelo sistema aéreo de vigilância, é de fato vista ao longo do filme.

O presente trabalho é uma análise do formato imersivo e multitela (a videoinstalação Incoming) produzido pelo artista sobre campos de refugiados contemporâneos, e o uso de arquivos militares gerados por situações de ataque e vigilância por câmeras térmicas de rastreamento em caças e helicópteros pilotados por europeus e norte-americanos em missões de ataque, reorganizados artisticamente no contexto do filme There Will Be no More Night (2020).

INCOMING (RICHARD MOSSE, 2017)

Entre os anos de 2014 a 2017, o fotógrafo e cineasta Richard Mosse captou imagens de migrações massivas de pessoas vindas principalmente da África e do Oriente Médio em busca de refúgio e acolhimento nos países europeus. Na maior parte das vezes, provenientes de rotas migratórias conhecidas e deslocados por causa de catástrofes humanitárias, guerras civis e situações políticas e sociais calamitosas, os migrantes procuram as fronteiras sul da Europa para entrar no continente, e nele acabam sendo detidos em campos de refúgio provisórios5.

Utilizando uma câmara termográfica de alta tecnologia, com alcance qualificado de mais de 30 quilômetros e uso restrito ao âmbito militar, Mosse organiza mapas térmicos dos fluxos migratórios e centra-se no calor como modulação figurativa. Desenvolve, no plano audiovisual e fotográfico, um conjunto de imagens que documenta a experiência dos deslocamentos massivos, e também a vida nos campos de refugiados na Grécia e na Alemanha (além do Porto de Calais, na França, onde o filme termina). O uso da câmera sofisticada, adaptada para tecnologia fílmica (stedycam, teleobjetiva zoom), acompanhada por trilha musical e em montagem cinematográfica, cria a peça Incoming (2017)6, uma videoinstalação imersiva que propõe uma narrativa estética vigorosa definida pelos espectros de calor, semelhante ao efeito de raio-X, que conforma imagens indetectáveis transformando-as em modulações biopolíticas (Beiguelman, 2021).

Desenvolvido em conjunto com o cinegrafista Trever Tweeten e o músico e compositor Ben Frost, a obra é uma instalação multicanal que dimensiona os registros biológicos mínimos produzidos pelo calor corpóreo (map heats), invisível ao olho humano, em montagem cinematográfica. No efeito militar do sistema de vigilância, a câmera dirigida pelo monitoramento térmico explora o espectro biológico humano remanescente, além de marcar o trabalho espectrográfico impondo uma narrativa a partir da detecção termal (antes que pelo som e/ou pela imagem).

A videoinstalação concebida por Mosse, programada para salas imersivas e utilização audiovisual, é projetada em três telas de grande tamanho (8 metros). Foi exibida pela primeira vez em 2017, na galeria de arte Barbican, em Londres, ganhando logo a seguir uma edição em fotolivro7. Acompanha-lhe a exposição fotográfica, ganhadora do Prix Pictet, Heat Maps (2017), que exalta a figura dos refugiados no mapa geopolítico contemporâneo a partir da metamorfose propiciada pela redução ao signo térmico. Invariavelmente, também é escoltada por outra composição, reproduzida sobre dezesseis painéis formando uma arquitetura visual e acústica de grande poder dimensional, que é apresentada em conjunto em algumas galerias – chamada Grid (2017).

Nos 52 minutos do vídeo em três canais HD nas telas imersivas, a obra entrecruza imagens de aviões norte-americanos sobrevoando alvos de combatentes do ISIS – em uma operação militar conduzida na cidade Síria de Dabiq, a poucos quilômetros da fronteira com a Turquia –, com imagens do porta-aviões USS Theodore Roosevelt, além de mísseis lançados contra posições inimigas e incêndios provocados por bombas e movimentação de tropas militares realizadas durante a noite. Completam o filme imagens de missões de busca e resgate de refugiados africanos no mar mediterrâneo, além de cenas dos campos de acolhida provisórios: imagens dos acampamentos de refúgio na ilha de Lesbos e Lampedusa; sequências gravadas no abrigo temporário para imigrantes no antigo aeroporto Tempelholf, na Alemanha; e imagens do Porto de Calais, na França, passagem final da composição.

No filme, a abertura é estruturada com cenas de mísseis teledirigidos utilizados para bombardear objetivos estratégicos pelo exército dos Estados Unidos. Também são exibidos voos de helicópteros e aviões a jato nos céus da Síria, e em países próximos. As imagens da ilha de Rodes, na Grécia, apresentam o segundo movimento da organização visual, sendo possível ver em planos geralmente distantes os gestos das equipes de resgate e a população retirada dos botes de salvamento atendidas. É possível observar imagens de alguns dos rostos dos imigrantes da travessia marítima, tomados com a teleobjetiva adaptada, mas protegidos de identificação por causa da câmera térmica.

A sequência de um atendimento feito por um socorrista em alguns desses refugiados é, nesse sentido, bastante reveladora: a hipotermia dos corpos dos imigrantes em salvamento contrasta com a impressão calórica das mãos do agente de resgate (Figura 1), que cobre os corpos dos imigrantes com cobertores e mantas de alumínio, enquanto tenta massageá-los. Sombras escuras que sinalizam o calor humano podem ser enxergadas nas mãos do socorrista impressas nos flancos do bote e nos cobertores utilizados, ao mesmo tempo em que é possível notar que quase não há sinal de calor nos sujeitos ali estendidos (podemos imaginar quão frio estão estes corpos, na diferença térmica exposta pela câmara de detecção de calor).


Figura 1
Richard Mosse – Fotograma de Incoming, instalação de vídeo em três telas (som 7.1, 52 min e 10 seg)
Nota. Fonte: Incoming, Richard Mosse8

Uma segunda cena, no mesmo movimento cinematográfico, captada com imagens de teleobjetiva, estrutura uma segunda sequência impactante: em uma sala de autópsia, uma dissecação é mediada pela câmera feita no corpo de uma criança, vítima de afogamento. Vemos a retirada de parte do fêmur para a extração do DNA, além de planos do crâneo da criança e o som da serra elétrica utilizada para o procedimento9. A modulação térmica das imagens produzidas por Mosse permite a assistência do árduo processo, em certo sentido próximo à codificação exibida em filmes com conteúdo animados, ou em documentários que usam parcial ou inteiramente configurações animadas (Honess, 2013) para responder por visionamentos sensíveis.

A experiência traumática e insuportável da cena é coberta pelo acesso codificado permitido pela câmara térmica. De modo transversal, o efeito e a indexação da imagem apreendida a partir do calor aponta para uma exposição que é ao mesmo tempo mais testemunhal e menos invasiva. A abordagem estruturada pela figuração em captação térmica, nesse sentido, interage com a própria imagem cinematográfica, impondo um fio de expressão que artisticamente adverte e permite a assistência ao discurso complexo. Os espectros termais, nesse caso, geram informações imaginárias que reequilibram a tensão temática, arrostando as cenas dolorosas sem perder seu poder de indexação (no fundo, esgarçando seu efeito simbolizador). Com efeito, ao tornar visível e modulado o invisível e\ou difícil, as formas térmicas desenvolvidas em linguagem narrativa e cinematográfica por Mosse são fontes de transmissibilidade definidas pela brecha simbolizável: mostram a relação com a realidade dificilmente narrável.

Nesse sentido, equilibrando-se no interstício entre documentário e instalação contemporânea, Incoming questiona a atuação das agências de controle de fronteira, que fazem uso de equipamento militar sofisticado e exploram a tecnologias de vigilância hipermoderna para produzir uma leitura essencialmente jurídico-policial (Nash, 2005) dos deslocamentos humanos (em busca de auxílio humanitário). Agências como Frontex, na união europeia, e ICE, nos Estados Unidos, fazem amplo uso de tecnologias militares sofisticadas em adaptação para vigilância de fronteiras. No caso da Frontex, especializada em uso de drones para cobertura aérea, como expõe Saugman (2019), múltiplas notícias têm exposto a relação problemática entre atuação mercenária da agência e financiamento europeu.

No filme de Mosse, há planos de rostos, mas todos são protegidos pela desfiguração termal. Os sujeitos são vistos na “fantasia de uma visibilidade panóptica do mundo” (Lavoie, 2020), mas, também, estruturados em uma imagem “desnaturalizada” que, de certa forma, implica um contraste não convencional da realidade. Esse delineamento é, em parte, uma escavação ou um aprofundamento na dinâmica visível\invisível estruturada no filme – que se encontra também nos êxodos em massa de refugiados e imigrantes, conhecidos pelas estatísticas e muito pouco pelas narrativas pessoais.


Figura 2
Richard Mosse – Fotograma de Incoming, instalação de vídeo em três telas (som 7.1, 52 min e 10 seg)
Nota. Fonte: Incoming, Richard Mosse10

A sequência que vem a seguir, no corpo do filme, são imagens de grupos de jovens e crianças percorrendo as instalações e brincando no aeroporto de Tempelholf, na Alemanha. Antigo aeroporto criado por Albert Speers como parte da cidade futurística nazista na década de 1930, e posteriormente abandonado durante várias décadas dentro de um parque cívico em Berlim, passa a ser, a partir de 2007, convertido em abrigo improvisado de refugiados. É o único momento do filme em que vemos imagens domésticas gravadas próximas, e com a autorização das pessoas11.

Surgem cenas de crianças brincando nos espaços do lugar, além do trabalho cotidiano dos imigrantes na tentativa de organizar um ambiente que não possui condições mínimas de sobrevivência, sem luz elétrica e saneamento básico. Situado no meio de uma zona arbórea de um parque de Berlim, o local impacta pela relação entre as ruínas do aeroporto, com a dimensão paisagística associada ao controvertido uso público e político da antiga “topografia do terror” (Huyssen, 2014) berlinense. Com autorização para gravar e utilizando a câmera termográfica próxima às pessoas, o trecho do filme apresenta uma relação significativa entre memória, ausência e invisibilidade. São os novos migrantes dentro da Europa que, depois de Auschwitz, mostram que os governos seguem sem saber o que fazer com as populações massivas de refugiados. No interior dessas sequências críticas e contundentes, o filme produz a possibilidade de debate sobre as políticas de significação e o imaginário do pertencimento (os visíveis e invisíveis corpos migratórios quando dentro e fora das fronteiras) e os fantasmas da história europeia – e, especialmente, a alemã.

Como todo o filme é sobre o corpo humano e a relação entre identidade (protegida) e identificação (reduzida ao fluxo térmico), as imagens feitas nas instalações do antigo aeroporto espelham projeções invertidas da relação entre superfície, transparência e (in)detecção biográfica. A apropriação artística concebida por Mosse rompe com a proposição militarizada inicialmente entendida no uso da câmera e as “imagens frias” geradas a partir do calor biológico. Ao buscar visualizações mais próximas dos corpos e dos rostos dos imigrantes, a câmera se converte em uma mediação apriorística que, por um lado, extingue ou atenua as fisionomias, e, desde outro, acentua a característica invisibilizada dos refugiados, colocando-os como figuras fantasmagóricas e perturbadoras.

No caso dos imigrantes, que procuram as fronteiras da Europa para conseguir um auxílio que chega apenas de forma precária ou emergencial, o distanciamento (dos corpos e das pessoas) é uma das características das mais definidoras, pois, como escreve Tramontana (2018), as sucessivas crises migratórias vêm ganhando a agenda ocidental apenas quando a catástrofe adquire proporções épicas12.

O último movimento da diegese se ocupa das cenas captadas na travessia do deserto do Saara, na região da Líbia, e de imagens feitas (Figura 2) no Porto de Calais, na França. Os comboios de imigrantes que atravessam durante dias a região desértica em grandes caminhões são exibidos em imagens captadas desde longo alcance, novamente utilizando a cartografia térmica para estruturar o êxodo em massa. A legibilidade das imagens produzidas, sempre no efeito hipnotizante e espectral, em uma ação de temporalidade lenta e grandiloquente, permite reorganizar o sentido perceptivo redimensionando o olhar sobre o espectro biológico e a (des)identificação subjetiva fundante (o modo com que estruturamos e acessamos as narrativas sobre os corpos migratórios).

As imagens da partida dos comboios desde a cidade de Agadez, na Líbia, e os caminhões repletos de pessoas que, no relato de Mosse na Live Narration13, se sabe que em grande parte não conseguirão permanecer nos veículos (não param no caso de quedas), impactam pela forma com que os corpos humanos são visualizados (semelhantes a hordas de fantasmas expandindo-se em direção a um destino violento). Na proposta artística de Mosse, a cena em certo sentido distópica funde-se com a reformulação iconográfica e fotojornalística comumente associado aos fluxos migratórios. Nesse sentido, no tramo final da diegese, o aparato de finalidade militar revela a intencionalidade jurídica-policial do regime de controle de fronteiras europeu, que vende imagens de resgate e salvamento14.

O filme de Mosse, assim, reorganiza a experiência estética ao campo da imagem política, ainda a ser feita. Aponta para a dualidade da máquina – do equipamento de tecnologia restritiva e militar -, realçando a desproporcionalidade da observação, e a dinâmica impedida entre territorialismos e deslocamentos. Os sujeitos migrantes, assumidos como espectros, “sem consistência real e sem rosto individual” (Lavoie, 2020), são captados, em Incoming, ao moverem-se para dentro da questão biopolítica: são vistos como alvos em uma lente inimiga, reduzidos aos seus rastros termais inalcançáveis a olho nu, e alçados ao gesto de terem seus corpos expostos (e suas identidades invisibilizadas). No limite, os sujeitos migratórios do filme renascem na apropriação artística que realça em narrativas de calor como as tecnologias de vigilância mostram a desorganização geopolítica da questão dos refugiados dentro dos estados europeus (em uma Europa que, pela história, deveria ser a primeira em saber como acolher).

Em certo modo, na gravidade leitosa e fantasmal produzida pelo filme, os corpos “reais” se assumem diante de uma figuração que sobrepuja a detecção militar do caríssimo aparato. Os espectros e “fontes fantasmais” que cruzam as fronteiras até a Europa, como no poema de Niki Giannari (Didi-Huberman & Giannari, 2017), se tornam, individual e coletivamente, “criaturas que pedem passagem”, e que, também, lembram, ao pedirem para entrar, do compromisso e da corresponsabilidade entre “perseguidor” e “perseguido”15.

THERE WILL BE NO MORE NIGHT (ÉLÉONORE WEBER, 2020)

O documentário da cineasta Éléonore Weber é composto por materiais gravados pelos exércitos norte-americano e francês em operações de rastreio, identificação e execução de alvos desde zonas remotas no Afeganistão, Iraque e Paquistão. Disponibilizado na internet (aparecendo nos créditos do filme), as gravações utilizadas pela cineasta são de imagens termográficas visualizadas nos capacetes de alta tecnologia utilizados pelos pilotos militares, que não têm outra visão a não ser aquelas produzidas pelos aparatos tecnológicos.

Segundo a cineasta16, grande parte dos vídeos disponíveis no YouTube foram postados por veteranos do exército norte-americanos (segundo a diretora, aos 24 minutos e 33 segundos, são raros os vídeos franceses e ingleses), liberados principalmente depois de ações de ciberativismo da WikiLeaks. Alguns dos materiais que aparecem no filme têm a marca da organização, e são registros provenientes de diversas fontes anônimas. As famosas sequências do helicóptero norte-americano Apache, onde é possível acompanhar a execução de doze pessoas (dentre as quais dois jornalistas da Reuters) em Bagdá, durante ataques aéreos efetuados no Iraque em 2007, são utilizadas em um dos momentos mais importantes da diegese (vemos a execução na íntegra).

A maioria dos registros provém de missões noturnas, realizadas geralmente em zonas remotas e espaços de conflito, e tomadas a grande distância pelos caças e helicópteros militares da Otan. São inscritas em uma mortífera relação entre monitoramento e eliminação. Os pilotos usam as potentes câmeras térmicas e câmeras de visão noturna para qualificar indivíduos em ações suspeitas, observando o movimento no solo a partir do calor emitido pela detecção. Durante as missões, as imagens geradas desde alcance extremo criam sombras ou silhuetamentos visuais, transformando espaços/paisagens, pessoas e animais em manchas abstratas de luz e escuridão, que, antes que solucionar, confundem a identificação17.

Enxergadas através da câmera termográfica, as figuras manchadas e brilhantes parecem esconder uma fantasmagoria emergente: ao longo do fluxo fílmico, construído com imagens provenientes de operações gravadas pelos próprios pilotos (sequências sem edição, derivadas das câmeras de visão noturna), os rastros biológicos prevalecem sobre os signos humanos. De forma instrumental, concentram a relação entre ver (inimigos) e identificar (pessoas) transformando quase tudo em alvo. São, em certo sentido, imagens de perpetuadores (Brink & Oppenheimer, 2012), desenvolvidas em uma relação entre o ato de ver e o gesto de matar. Essa disposição faz dos conteúdos gerados, a maioria em um preto e branco estranho e difuso, apresentados quase sempre com intercessões sonoras (produzida pelo ruído abafado dos helicópteros), uma narrativa silenciosa e desnaturada, que confunde a interpretação. Geram uma espécie de bolha sônica, onde se ouve apenas o som das hélices e o ruído das metralhadoras, intervalados pelas vozes dos pilotos, que sentem dificuldade em perceber a ação por trás dos focos de luz e intensidades brilhosas – e desde um universo de sombras. Por causa da especificidade técnica do processamento visual, e pelo fato de a maioria das imagens serem feitas à noite, tomadas em grande distância, o excesso de luz e a verificação ótica confundem a visualização – aprofundando o limite entre o que é pode ser visto e sua relação com a realidade.

Na posição dos pilotos, com a mesma concomitância visual e a tecnologia de detecção, além dos áudios gerados pelas aeronaves, os espectros visionados estruturam imagens moduladas, tão assustadoras como “bonitas como videogames” (Farocki, 2013). Essa perspectiva, de certa forma, faz com que a distinção entre processos técnicos e funcionamento visual coincida, produzindo imagens sem contraplano, na “fronteira entre dois campos de força” (Daney, 1991)18.

A tecnologia térmica, que permite “eliminar a noite” (Weber, 2020) e aprofundar as distâncias tecnológicas entre perseguidores e perseguidos, não resiste ao paradoxo apontado por Farocki (2013): através da “imagem-máquina”, a desproporcionalidade de instrumentos e os signos da violência são ainda mais alarmantes. Aquilo que emerge no visor tecnológico dos pilotos transforma a atividade visual em superfícies dessubjetivizadas e anestésicas, protegidas pela distância quilométrica, e pela barreira sônica (os pilotos ouvem apenas o ruído da aeronave e o som da metralhadora).


Figura 3
Éléonore Weber – Fotograma de There Will Be no More Night
Nota. Fonte: There Will Be no More Night, Éléonore Weber19.

No limite entre imagem e desconhecimento, as formas concebidas em recortes de luz aprofundam a indexação iminente, e fazem aumentadas, para os pilotos, o compromisso com a prospecção e o encontro de suspeitos. Entre imagem, índice térmico e desconhecimento, o programa de vigilância coincide com o programa de eliminação. Na voz dos pilotos, explorada na diegese, observamos a confusão entre camponeses e combatentes, entre armamento e ferramentas, entre jogos de roles e situações comuns – e entre intencionalidade e representação. Em certo sentido, a visão modulada assistida pelos soldados, desde alturas quilométricas e protegidas (Figura 3), delineia um campo de processamento sígnico que impede o contraste com a visão real, instalando a justificativa da guerra: combate e terror. Sobre o imaginário térmico das imagens de longo alcance, portanto, a realidade apresentada nos capacetes sofisticados se estrutura em uma possibilidade de interferir ou diagnosticar o real a partir da representação.

As primeiras sequências exibidas no filme mostram isso: as figuras luminosas e fantasmagóricas que aparecem na visão dos pilotos são, antes que pessoas em atividades diversas, personagens situados em uma atmosfera onde tudo é lido em um código de violência. No áudio dos pilotos, as conversas gravadas entre o piloto e o artilheiro das aeronaves buscam diagnosticar as ações cotidianas: os deslocamentos estranhos dos veículos, as casas geralmente situadas no entorno rural e remoto, as atitudes de pessoas no meio da noite. A noite, aqui, é “aberta” pela autenticidade da descoberta, que considera a exploração visual uma forma de ver suspeita. Nesse sentido, os espectros são sujeitos sem fisionomias, que precisam ser extintos. A visualidade intensificada pela luz cria uma desproporção de metamorfoses que não elimina a diferença entre o real e seu duplo, mas que reorganiza a percepção através de substâncias vivas (a serem mortas) e suspeitas (a justificarem a gravação).

Os pilotos mostram-se confusos e dentro de um jogo de papéis. Focam inimigos potenciais, que escondem seus armamentos em campos e paisagens suspeitas, sempre disfarçados e prestes a atacar. Os corpos furtivos na noite, perdidos nos caminhos das estradas de terra e ao redor de casas, são, muito mais do que combatentes afegãos e iraquianos, personagens de um videogame – e de um mundo de espectros e biopoder (Beiguelman, 2021). Figuras, ou efeitos luminosos, dimensionados em termos de abstração e redução biológica. Para os pilotos, as imagens gravadas são carregadas de evidenciação e alimentam a paranoia da vigilância (em um manto imagético que esconde a simulação e os traços de sua simbolização). Contaminadas pela transformação térmica, a imagem gerada em There Will Be no More Night é, antes que uma condição (insinuação), um conteúdo (live-action) determinado a ser real. O real transformado em vigilância e suspeição.

Ao contrário do que acontece nos videogames, a vestimenta tecnológica apresentada no filme não é realizada sobre uma fantasia sensorial. É utilizada como uma brecha, ou uma vantagem técnica (ver durante à noite), que concentra a realidade em uma ênfase biológica, anamórfica, vestigial – e terrivelmente mortífera no programa militar. Sua estratégia em se dar como real, sem o contraste com a distinção visual (sem nenhuma divisão entre claro e escuro, entre dia e noite, e entre realidade e suspeição), leva tudo para o contexto de encenação da violência. A possibilidade de transformação da realidade, difícil e indetectável em modulações limites, não transporta, no filme de Weber, sua disposição associativa e sensorial.

As câmeras termais intensificam as fontes de luz e programam um universo de vigilância que não realiza imagens entendendo-as como superfícies encobertas. Apresenta-as dotadas de abertura: de emancipação de suas dimensões humanas, fisionômicas e de seus rastros étnicos. As imagens são transferidas ao lugar da realidade, como espectros de luz, formas (in)sensíveis deslocadas de seu entorno e imersas em um contexto de acentuação belicosa. Tal como escreve Català (2012), a imagem é sempre um modo de apontar e de esconder o real. Essa noção é apagada nos capacetes tecnológicos, pois a modulação calórica projeta imagens de figuras “iridescentes”, fantasmáticas e luminosas, onde o real é convocado como delírio.

Aos vinte e quatro minutos da estrutura fílmica, a primeira sequência que exibe uma execução ao vivo, realizada desde um helicóptero norte-americano, exibe essa intensidade assassina. Os disparos são feitos pelo artilheiro desde a aeronave, que combina com a visão do piloto – e com as metralhadoras do aparato20. A narração ensaística e interrogativa do texto de Weber questiona o uso da força, a desproporção e a desigualdade de tecnologias. Vemos os pilotos disparando até dissolverem os corpos em manchas de luz, esparramadas pelo chão. A sensação é estranha, pois não há corpos assassinados e sim espectros de luz termal, transformados em borrões de sangue no solo escuro. Pierre V., o piloto da armada francesa que atua como consultor sobre algumas dessas sequências gravadas, responde para a cineasta que, mesmo que exista confusão, “quando começa a atirar, é difícil interromper”. Nesse caso, é possível escutar o áudio dos pilotos, o som das hastes dos helicópteros e a relação entre imagem, performance e violência. A cena é, de certa forma, marcada pela distorção que há no visor tecnológico, que aceita a imagem como se nunca estivesse codificada. A imagem é, aqui, uma transparência, uma disposição de abordagem em que cada instante é um registro, e um índice de advertência.


Figura 4
Éléonore Weber – Fotograma de There Will Be no More Night
Nota. Fonte: There Will Be no More Night, Éléonore Weber21.

Sequência diversa é a que aparece a eliminação dos repórteres da agência Reuters, num episódio que ficou bastante conhecido por causa do material disponibilizado por fonte anônima no WikiLeaks. O gesto da cineasta, se apropriando do material e fazendo com que ele seja visualizado mais de uma vez, permite ao espectador se tornar mais consciente da ação de morte: o tripé da câmera de um dos jornalistas é confundido com armamento, e a execução vai adiante. A cena exibe a cadência do helicóptero e o sobrevoo repetido até encontrar os alvos ao redor de uma casa, terminando na destruição. No contingente da ação, a imagem térmica e saturada serve para o propósito ilusionista: não consegue apagar a diferença entre corpos reais e modulação espectral, designando uma identificação ao mesmo tempo belicosa e fantasmática.

Escolhendo regressar ao material por duas vezes, e tornando cúmplice o espectador, Weber comenta no texto da narrativa em off que acompanha a sequência: “há sempre alguém atrás da câmera … há sempre alguém que pede licença para disparar”. Pierre V., o piloto anônimo que atua como examinador de algumas sequências do filme, refere-se a essa passagem em especial: “quanto mais o piloto pode ver, mais risco há”. Na sequência que veem a seguir, estruturada desde os cinquenta e dois minutos do fluxo fílmico, observamos duas aeronaves circundando, com o recurso térmico e a possibilidade de zoom, um grupo de indivíduos que escava uma parte do solo. Posicionados em círculo, agachados e fazendo esforço para abrir o chão, são acompanhados pelos helicópteros, à distância (não percebem que estão sendo filmados). Com fala dos pilotos, que reagem quando há uma impactante explosão, assistimos o poder da eliminação: nesse caso, uma cratera é formada por causa do que supostamente é a deflagração de uma bomba caseira, que estava no solo. Há regozijo nos pilotos, que não são os autores da execução, mas que trocam comentários entusiasmados sobre a explosão. No solo aberto, ao redor de uma grande abertura, já não há mais nada além de destroços da explosão (derramados como fragmentos de luz). Um indivíduo se aproxima, põe a mão na cabeça, e procura entre os sinais das vítimas.

O poder da execução e a lógica do biopoder (Beiguelman, 2021) regressa no conjunto de arquivos posteriores, e caracteriza a passagem final do filme. Os halos luminosos retornam sob a lente do capacete tecnológico, e assistimos mais imagens de eliminação. Observamos a morte de um homem que está agachado e em busca de proteção atrás de um veículo, no meio de um descampado de uma zona remota, depois que vários disparos eliminaram seus companheiros. A cena é dura, porque o sujeito rasteja, ferido, e as metralhadoras não poupam: seu corpo é reduzido a uma mancha de luz, após, uma grande nuvem de poeira causada pelo disparo da artilharia termina de se dissipar. Não há comentário entre os pilotos. Apenas silêncio. E o som dos helicópteros, captados também entre o solo desértico (agora mais próximos dos alvos). O pó luminoso como mordo da guerra lembra a lógica do extermínio nazi, apontada por Primo Levi em Os Afogados e os Sobreviventes (1990). Os nazistas proibiam seus soldados chamarem de “corpos” ou “cadáveres” os restos fúnebres da estrutura concentracionária. Designavam os mortos como figuren, formas finais, esqueléticas e esquadrinhadas pelo mecanismo industrial da matança. Aqui, as figuras são destruídas e se tornam manchas luminosas. Poças incandescentes que, por breves instantes, antes de se tornarem desaparecidas no chão escuro, só podem ser vistas pelo visor tecnológico dos pilotos.

As últimas cenas, realizadas com arquivos domésticos, produz uma fratura figurativa (uma devolução da imagem), em um filme que não há corpos e fisionomias, mas contornos e perfis dissolvidos (atrozes manchas luminosas que se espalham em um chão de morte). Nesse momento, é possível perceber o contraste e a compensação incômoda com um outro corpo, o do espectador. A reparação dizível e indizível das últimas imagens, salvadas pela organização de uma visualidade humana que contém rostos, fisionomias, corpos e roupas (vestimentas), salvaguarda e desafia a posterior violência. É a escolha da cineasta, ao trazer arquivos de registros de cenas caseiras disponibilizadas pelos militares, que assistimos coadunar felicidade, audibilidade e um mundo sem dor. Totalmente diverso das sequências produzidas pelas câmeras térmicas, que abrem uma reciprocidade outra – inexistente, desigual e oposta.

Como escreve Comolli (2006), estamos, portanto, diante da política da imagem. Da enunciação visual que, deflagradora da mistura entre vivos e mortos, em um continuum desequilibrante e atroz, não relaciona os mortos com sua semelhança humana. No filme de Weber, isso se dá com a possibilidade de ser instado pela rasgadura e a mancha luminosa que dissolve as figuras traçadas sem possibilidade alguma de se projetar nelas; no corpo filmado, que, diferentemente dos corpos produzidos pelo regime concentracionário nazi, já não é nem cadáver nem figura, nem subtração nem estátua (ou corpo em dor); apenas, um sinal dissolvido, um borrão imperfeito, destinado a não ter inscrição.

Uma nódoa, circunstante e provisória, que não é mais perturbação. Que não é mais imagem, que não pode ser coisa e retrato a ser visto. Apenas, o desaparecer. Resignado, deslizante e líquido da eliminação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS – BIOMETRIA E NARRATIVAS DE CALOR

A dimensão artística do trabalho de Richard Mosse se processa na ressignificação das imagens geradas pelo aparato militar de vigilância e documentação: uma câmera que capta intencionalmente os corpos camuflados nas paisagens, e os revela desde traços biológicos primordiais. Em dinâmica cinematográfica, Mosse expõe imagens testemunhais (mas testemunhais a partir da desfiguração concebida) que narram monitoramento visual e a presença anonimizada dos imigrantes. Tal desfiguração, pretendida num efeito estético original, coloca em xeque a tipologia tradicional associada ao tema. Muitas vezes captadas na escuridão, as imagens chocam por estabelecer esgarçar o modus operandi das imagens fotojornalísticas comumente utilizadas para abordar o assunto (Chouliaraki & Tijana, 2017; Santos & Teixeira, 2019).

O trabalho de Mosse, com efeito, inscreve essas imagens, a maior parte captadas desde grande distância, numa dimensão estética e analítica que mostra como a figura epistémica do refugiado no mundo contemporâneo é visto sobretudo a partir da lógica biopolítica de vigilância, impedimento e poder.

O filme de Mosse, com efeito, trabalha com a experiência estética e a modulação figurativa em imagens que solapam a “verificação” da estrutura da vigilância, da vontade de detecção. A transformação estética – em espectros termais -, carrega em sua superfície uma imagem de teor mais forte, política, que permite um conhecimento (biográfico, subjetivo) a ser percorrido. No exterior da imagem, na face mais livre da “tecnologia de vestimenta”, a dualidade da máquina perscruta um caminho a ser realçado: o calor se ocupa da observação, e a observação é um adiamento.

Nesse sentido, a imagem é uma iminência, uma camuflagem que retira da vigilância seu sentido genealógico e maquínico. No esgarçamento artístico, as narrativas de calor desorganizam a experiência da representação a partir da experiência estética singular (o calor como fonte e como interstício modular).

As modulações calóricas construídas em Incoming, criam pontos de fuga que combinam imagens profundamente desumanizadas, ou humanas em seu apelo elemental (dados biológicos). Os corpos são ao mesmo tempo índice e metáfora (Lavoie, 2020), mostrando os sujeitos políticos detidos nos campos de refúgio e na tentativa de cruzamento das fronteiras europeias. A intimidade biológica impossível de ser vista pelo olho humano serve, portanto, de elemento central na organização fílmica, revelando o trabalho do corpo (e muitas vezes o desespero e a dor) por debaixo das imagens dos sujeitos que cruzam fronteiras.

Tal como escreve Demos (2013), a imagem dos migrantes mundiais passa com frequência por um circuito alarmista e um discurso de impermeabilização de fronteiras. Os dispositivos tecnológicos têm ganho sofisticação cada vez maior com toda a tecnologia militar, sendo capaz de detectar corpos em grande distância, mas não sendo capaz de ativar e devolver-nos a posição, incômoda e crítica, diante da exposição de pessoas (reduzidas à signos térmicos, imagens midiáticas e fotojornalísticas).

Já o filme da cineasta Éléonore Weber, produz uma articulação diferente do uso da narrativa termográfica (desde arquivos militares gravados por pilotos de aeronaves em missões de vigilância e combate). Semelhantes às imagens de animação, moduladas pela relação alternativa e simbolizadora da visualidade (e também nociva e escopifílica da assistência), o filme de Weber é composto pela (i)neutralidade da câmera, que, no anseio de ver/prever, perseguir e executar, atualiza de modo aterrador a dinâmica da eliminação de pessoas.

O gesto da cineasta, escolhendo arquivos conhecidos e que circulam sem restrição na internet, atuando com textos, falas e repetições sequenciais sobre o material encontrado, destaca a visualidade assassina que engendra uma complexa assistência e assustadora percepção. A possibilidade de “ver tudo” da ação dos pilotos, e, ao mesmo tempo, o engano fácil entre figuras (ou espectros) e pessoas (ou ameaças), constrói uma relação comprometida com o real, visto através do visor ou do capacete tecnológico dos pilotos (escolhidos entre os melhores atiradores gamers). As formas visuais qualificadas pela câmera térmica, antes que modulações estéticas, são percebidas como abertura tecnológica (efeito de vantagem panóptica, que apresenta um “mundo aparente e escondido” transportado em universo real. Tal procedimento induz a determinada interpretação vigilante dos pilotos, vorazes por distinguir ameaças (e por matar)22.

Ao contrário do vídeo instalação Richard Mosse, que é construída sem acompanhamento narrativo ou diálogos, a obra de Weber explora a fria neutralidade dos pilotos, e seus comentários in situ. Tenta interpretar as imagens geradas pela câmera, que coincide com a visão do piloto, e também, com as metralhadoras e armas de aniquilação.

As duas obras, dentro de seus procedimentos e processos de visualização distintos (instalação multitela acompanhada de série fotográfica, e documentário que se alimenta de material acessível em vídeo gravados por pilotos), são experiências estéticas que circunscrevem as imagens de vigilância, e a discussão sobre sua veiculação (mortífera e comprometedora), em esgarçamento cinematográfico. Junto ao texto narrativo e poético produzido por Weber, por vezes cotejando o formato de vídeo ensaio, e a experiência imersiva em multitela de Mosse, é possível observar a gameficação da guerra contemporânea, e a estrutura panóptica e hegemônica que transforma a imagem em polícia da violência.

Material suplementario
REFERÊNCIAS
Beiguelman, G. (2021). Políticas da Imagem: Vigilância e Resistência na Dadosfera. Ubu editora.
Brink, J., & Oppenheimer, J. (2012). Killer Images. Documentary Film, Memory and the Performance of Violence. Columbia University Press.
Català, J. M. (2012). El Murmullo de las Imágenes. Shangrila.
Chouliaraki, L., & Tijana, S. (2017). Rethinking media responsibility in the refugee crises: a visual typology of European news. Media, Culture & Society, (39). http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0163443717726163.
Comolli, J.-L. (2006). A última dança: como ser espectador de Memory of the Camps. Devires, 3(1). http://fafich.ufmg.br/devires/index.php/Devires/article/view/261.
Daney, S. (1991). Montage obligé. La guerre, du Golfe et petit écran. Cahiers du Cinéma, 442. https://www.cahiersducinema.com/produit/serge-daney/
Demos, T. J. (2013). The migrant image. The art and politics of documentary during global crisis. Durham University Press.
Didi-Huberman, G., & Giannari, N. (2017). Pasar, cueste lo que cueste. Shangrila.
Farocki, H. (2013). Desconfiar de las Imágenes. Caja Negra.
Honess Roe, A. (2013). Animated Documentary. Palgrave Macmillan.
Huyssen, A. (2014). Culturas do Passado-Presente: Modernismos, Artes Visuais, Políticas da Memória. Contraponto.
Jones, R. (2016). Violent borders: refugees and the right to move. Verso.
Lavoie, V. (2020). Qual visualidade para o êxodo em massa. Revista Interin, 25(2). https://interin.utp.br/index.php/i/article/view/2400
Levi, P. (1990). Os afogados e os sobreviventes. Paz e Terra.
Martin, N. (2019). As index and metaphor: Migration and the Thermal Imaginary in Richard Mosse’s Incoming. Culture Machine, 17. https://culturemachine.net/vol-17-thermal-objects/as-index-and-metaphor/
Mosse, R. (2017). Incoming. Mack.
Nash, M. (2005). Inmigrantes en nuestro espejo: inmigración y discurso periodístico en la prensa española. Icaria Antrazyt.
Santos, A. C. L., & Teixeira, R. T. (2019). Sobre paisagens conhecidas e corpos anônimos: memórias fotográficas do fluxo migratório no Mediterrâneo. Revista Rumores, 13(25). https://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/148356
Saugmann, R. (2019). Military techno-vision: Technologies between visual ambiguity and the desire for security facts. European Journal of International Security, 1. Cambridge University Press.
Snow, J. Richard Mosse on the refugee crisis. Channel4.com. https:\\www.channel4.com\news\richard-mosse-on-the-refugee-crisis
Tramontana, F. (2018). The conversation: migrants have crossed the mediterranean for centuries but they used to head from north to south. The Conversation, 2(1). https://theconversation.com/migrants-have-crossed-the-mediterranean-for-centuries-but-they-used-to-head-from-north-to-south-97287
Weber, E. (2020). There will Be no More Night. https://www.youtube.com/watch?‌v=5CBJgANNYjE.
Notas
Notas
1 Serve, por exemplo, para rastreamento de indivíduos ocultos em dimensões montanhosas e áreas urbanas densas. Eventualmente também é utilizada, segundo Martin (2019), para busca, detecção e resgate de pessoas. Sua manipulação é programada por computador, e o equipamento funciona como câmara termográfica que registra os espectros visuais e as “assinaturas biológicas” (Heat Signatures) produzidas por corpos diversos.
2 Programada para ser exibida em espaços museísticos e galerias de arte, Incoming reúne tanto material fotográfico (Frameworks) como linguagem audiovisual. É uma criação sui generis, feita para salas imersivas que faz uso de três telas de largo tamanho, de 8 metros de dimensão, com andamento síncrono e assíncrono das imagens exibidas – em vídeo de três canais de High Definition. Sua realização foi produzida em 2017 a pedido da National Gallery of Victoria (Melbourne) e da Barbican Art Gallery (Londres).
3 O texto narrativo do filme, ditado pela atriz Nathalie Richard, explica que os procedimentos regulatórios da Otan obrigam a gravação do material, que é analisado por supervisores militares, embora na maioria das vezes não sejam utilizados em ações jurídicas (mesmo quando a ação gravada resulta em execução). A maior parte dos vídeos utilizados no filme foram facilmente retirados do YouTube, e estão listados ao final da película.
4 Naquilo que Farocki (2013) chamou de “imagens-operativas”, feitas para apagar o rastro humano, dificultando sua acusação e ao mesmo tempo tornando mais difícil reconhecer os autores. Disseminadas sobretudo durante a Guerra do Golfo, em 1991, provenientes de câmeras acopladas na ponta de mísseis teleguiados, se tornam conhecidas como “imagens sem pessoas”, ou “imagens-máquinas”, sem manipulação humana, transmitindo a impressão de precisão e limpeza – ao contrário das “imagens-sujas”, ou “contra-imagens”, comuns nas guerras (corpos mutilados, cadáveres e destruição).
5 Incoming, nesse sentido, capta imagens sobretudo de duas das mais importantes rotas utilizadas para a passagem de populações em situação migratória: àquela conhecida como rota Turca, que começa com deslocamentos de pessoas vindas da Síria, do Oriente Médio e da Ásia Central e que termina frequentemente no Tempelholf Airport em Berlim (convertido em abrigo de refugiados); e a comumente estabelecida como rota africana, acionada por migrantes vindos da África negra em passagem pelo deserto do Saara em direção à Líbia (normalmente através de botes utilizados para atravessar as águas revoltas do mediterrâneo rumo à Itália, Espanha etc.); além disso, o filme termina com imagens do porto de Calais, no norte da França, local conhecido pelas Jungle Camp, abrigos provisórios que servem de último porto antes do cruzamento do canal rumo à Inglaterra.
6 Em tradução livre, o título poderia ser traduzido como “aqueles que entram” (tradução nossa).
7 A obra homônima Incoming (MOSSE, 2017).
8 Impressão cromogênea digital sobre papel metálico, #100 (2014-2017). Recuperado de http://www.nga.gov/exhibitions/2019/richard-mosse-incoming.html.
9 No visionamento do filme disponível em live narration pelo diretor, é comentado que a vítima é uma menina de sete ou oito anos, falecida junto com outros imigrantes em um afogamento múltiplo na costa da Grécia (11 min e 25 seg). Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=3iWMihBtmuk- Live Narration of “Incoming” by Richard Mosse
10 Impressão cromogênea digital sobre papel metálico, #281 (2014-2017). Recuperado de http://www.nga.gov/exhibitions/2019/richard-mosse-incoming.html
11 Segundo Richard Mosse, as cenas foram gravadas durante duas semanas na estrutura local, com avisos sobre os dias e momentos das filmagens, além da autorização dos imigrantes (41 min e 13 seg). Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=3iWMihBtmuk
12 Para os imigrantes e refugiados que falecem praticamente à diário no Mediterrâneo e nos campos de acolhida, a maioria dos corpos não são recuperados; a autora mostra que os casos contabilizados de imigrantes vítimas de afogamento são muito mais reduzidos que o volume de pessoas que desaparecem nessas fronteiras marítimas.
13 Live narration do diretor recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=3iWMihBtmuk (50 min e 02 seg).
14 Segundo Hussein Baoumi, investigador da Anistia Internacional sobre a Líbia: “Os países europeus estão cooperando e são diretamente cúmplices na abordagem militar de pessoas que se deslocam. Querem separar-se os aspectos mais sujos da contenção de migrantes. Mas não importa”. Recuperado de https://www.eldiario.es/desalambre/drones-frontex-funciona-maquinaria-europea-devuelve-migrantes-libia_130_8528417.html.
15 “Com um desejo\que nada pode vencer, nem o exílio, nem o encerro, nem a morte\órfãos, esgotados\com fome, com sede, desobedientes e obstinados, seculares e sagrados, chegaram, desfazendo as nações e burocracias\e posam aqui, esperam e não pedem nada\apenas passar” (Didi-huberman; Giannari, 2017).
16 Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=8G5yk5o9t3Q (21 minutos e 16 segundos).
17 No depoimento do soldado francês Pierre V. (19 min e 02 seg), a principal testemunha do filme, e nas vozes dos próprios pilotos das aeronaves, é possível acompanhar constantemente essa confusão.
18 Na passagem final do filme (aos 72 min e 01 segundos), o texto narrativo da diretora, além de belo e poético, aponta nessa direção: “Câmeras mais recentes poderão suprimir a noite. Só as estrelas poderão criar um distúrbio nessa visualização, porque brilham muito (mais que a luminosidade desnaturada exposta). Não haverá, assim, mais noites. Nem a necessidade de lâmpadas. Nem longe, nem perto. Nem aberturas, nem relatos. Serão imagens impossíveis de se distinguir rostos, sem reciprocidade, sem face a face” (Weber, 2020).
20 Tal como explicado na voz em off, os helicópteros geralmente são pilotados por dois soldados, piloto e artilheiro. A visão do artilheiro coincide com o movimento da câmara termal, movendo também a metralhadora instalada na base da aeronave. A possibilidade de disparar é efetuada por comando verbal simples.
22 Apresentando “um olho de uma pálpebra que não fecha nunca. Um olho interminável” (Weber, 2020).
Notas de autor
a Docente do mestrado em Cinema e Artes do Vídeo (PPG-CINEAV\UNESPAR) e do mestrado e doutorado em História (PPGHIS\UFPR). Pós-Doutor em Cinema e Audiovisual (Universitat Autònoma de Barcelona). Doutor em Sociologia pela Universidad Complutense de Madrid. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7137-0904. E-mail: rafael.tassi@unespar.edu.br

Figura 1
Richard Mosse – Fotograma de Incoming, instalação de vídeo em três telas (som 7.1, 52 min e 10 seg)
Nota. Fonte: Incoming, Richard Mosse8

Figura 2
Richard Mosse – Fotograma de Incoming, instalação de vídeo em três telas (som 7.1, 52 min e 10 seg)
Nota. Fonte: Incoming, Richard Mosse10

Figura 3
Éléonore Weber – Fotograma de There Will Be no More Night
Nota. Fonte: There Will Be no More Night, Éléonore Weber19.

Figura 4
Éléonore Weber – Fotograma de There Will Be no More Night
Nota. Fonte: There Will Be no More Night, Éléonore Weber21.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS por Redalyc