Resumo: O artigo propõe aproximar a temática das mudanças climáticas com as pesquisas acadêmicas de Relações Públicas. Para tanto, ancora-se na perspectiva das Relações Públicas Críticas, adotando como cerne a exploração acerca dos impactos dessa atividade nos processos sociais de criação de sentido e disputa de poder. Para compreender como pesquisas de Relações Públicas podem auxiliar na reflexão acerca das mudanças climáticas são realizados dois movimentos de revisão bibliográfica: o primeiro explorando interfaces entre opinião pública e mudanças climáticas, o segundo abordando uma literatura que denuncia a utilização de práticas de relações públicas por parte atores sociais que tentam negar a existência do aquecimento global.
Palavras-chave:relações públicas críticasrelações públicas críticas,aquecimento globalaquecimento global,opinião públicaopinião pública,vigilância civilvigilância civil.
Abstract: The paper aims to bring close the issue of climate change and the academic research on Public Relations. It is anchored in the perspective of Critical Public Relations, which takes as its basis the exploration of the impacts of this activity on the social processes of meaning creation and power struggles. In order to understand how Public Relations research can help the reflections about climate change, two bibliographic reviews are carried out: the first exploring interfaces between public opinion and climate change, the second approaching a literature that denounces the use of public relations practices by actors and corporations who try to deny the existence of global warming.
Keywords: critical public relations, global warming, public opinion, civil surveillance.
Resumen: El artículo propone aproximar la temática del cambio climático a las investigaciones académicas sobre Relaciones Públicas. Se basa en la perspectiva de las Relaciones Públicas Críticas, adoptando como núcleo un análisis acerca de los impactos de esa actividad en los procesos sociales de creación de sentidos y de disputas de poder. Para comprender cómo las investigaciones sobre relaciones públicas pueden ayudar en la reflexión sobre el cambio climático, se realizan dos acciones de revisión bibliográfica: la primera explora las interfaces entre opinión pública y cambios climáticos; la segunda aborda una literatura que denuncia la utilización de prácticas de relaciones públicas por parte de actores sociales que intentan negar la existencia del calentamiento global.
Palabras clave: Relaciones públicas críticas, calentamiento global, opinión pública, vigilancia civil.
Monográfico
Mudanças climáticas: uma questão de relações públicas?
Climate change: a public relations issue?
Cambio climático ¿una cuestión de relaciones públicas?
Recepção: 31 Julho 2017
Aprovação: 16 Dezembro 2017
As discussões ocorridas nas últimas décadas acerca das mudanças climáticas, classificadas por Anthony Giddens (2009) como uma verdadeira climate wars de consequências futuras globais, tem obtido crescente destaque dentre os esforços acadêmicos do campo de comunicação. Tal temática pode ser identificada no cerne de um conjunto amplo de reflexões oriundas de teóricos de diversos países e especialidades, que buscaram ampliar a compreensão acerca da formação de discursos e narrativas sobre o meio ambiente nas mídias e desvelar aspectos sobre os processos culturais de produção de sentido sobre a natureza (entre outros, ver Boykoff, 2011; Cox, 2013).
Enquanto esses estudos acabam por congregar e promover diálogos e intercâmbios de ideias entre áreas distintas do campo de comunicação, como o jornalismo, os estudos de mídia, a comunicação política e a comunicação ambiental, o presente artigo parte da observação sobre como a literatura de relações públicas permanece, em larga medida, tímida perante esses desenvolvimentos. Apesar da importância da temática, muitos dos teóricos dessa área optam por centrar suas reflexões acerca do meio ambiente na questão do discurso de sustentabilidade de organizações, dispensando pouca atenção para a disputa de sentidos que perpassa a própria noção do aquecimento global.
Acreditamos ser preocupante esse comportamento, contribuindo tanto para o isolamento da área quanto para a cristalização de uma dissonância entre os estudos de relações públicas e as preocupações sociais sobre as mudanças climáticas. Isso ocorre, em especial, pela forma com que seus autores permanecem alheios à popularização de uma vasta literatura de denúncia sobre a utilização abusiva de técnicas de relações públicas por parte de atores, especialmente grandes corporações, que buscam difundir posições contrárias ao consenso científico, negando a existência do aquecimento global antropogênico.
Convictos de que essa lacuna deve ser superada, nosso objetivo é reposicionar as relações públicas perante a temática das mudanças climáticas. Tal proposta está ancorada e sintonizada com a perspectiva recente das Relações Públicas Críticas, desenvolvida e popularizada especialmente em países da Europa, Ásia e Oceania (L’etang, McKie, Snow & Xifra, 2016). Trata-se de uma abordagem sobre a área que busca fugir do funcionalismo que marca a corrente hegemônica de pensamento sobre a atividade. No cerne dessa agenda está a proposta de explorar os impactos das relações públicas nos processos sociais de criação de sentido e de disputa de poder – visão orientada para um nível macrossocial capaz de explorar interfaces da atividade com o sistema político e sociocultural (L’etang & Pieczka, 2006; Motion & Leitch, 2016).
O presente esforço ocorre a partir de dois movimentos distintos de revisão bibliográfica. No primeiro buscamos entender e articular aspectos básicos sobre as discussões acerca das mudanças climáticas e seus vínculos com a opinião pública, argumentando sobre como determinadas facetas que permanecem em segundo plano nas abordagens do campo de comunicação sobre o tema poderiam ser desveladas a partir de uma aproximação com os estudos de relações públicas. O segundo busca ampliar a compreensão acerca das características e limites do diálogo estabelecido pelas obras de denúncia publicadas nos últimos anos, que demonstram a existência de robustas ligações entre práticas de relações públicas e as disputas climáticas. Para tanto, nos engajamos em uma análise crítica em profundidade de quatro obras principais desse movimento – The Boiling Point (Gelbspan, 2004), Trust us, we’re experts! (Stauber & Rampton, 2002), Merchants of Doubt (Oreskes & Conway, 2010) e The Climate Cover-up (Hoggan, 2009) –, buscando identificar suas principais linhas argumentativas, assim como possibilidades futuras de pesquisas abertas por seus desenvolvimentos, e na análise de iniciativas de vigilância civil sobre o tema.
O marco inicial que atraiu os holofotes da opinião pública para a questão das mudanças climáticas pode ser identificado como o depoimento do Dr. James Hansen perante o Congresso dos Estados Unidos, em 1988. Se até então os cientistas eram cautelosos em apontar o aquecimento global como responsável por aumentos de temperatura ou anomalias climáticas, Hansen, diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da NASA, se destacou ao sustentar afirmações categóricas que capturaram a atenção mundial. Segundo o cientista, o ano de 1988 era o mais quente já registrado na história e os dados resultantes das coletas da NASA e do seu modelo climático revelavam que o aquecimento global havia alcançado um ponto no qual era possível afirmar, com um alto grau de confiança, a existência de uma relação causal com o efeito estufa.
A intervenção de Hansen no Senado mobilizou a imprensa, políticos, grupos ambientalistas e cientistas. A visibilidade alcançada pelas declarações do cientista fez com que a questão, ainda pouco estudada, ganhasse contornos de urgência global. Nos meses seguintes, a situação exigiu que muitos atores sociais se posicionassem rapidamente sobre um assunto que pouco entendiam, enquanto acumulavam-se questionamentos sobre o que deveria ser feito pelos governos ao redor do mundo, sobre os impactos econômicos e sociais daquela revelação e sobre a acuidade científica das análises que embasavam aqueles dados. Suspeitas iniciais sobre a ciência envolvida naquela revelação, especialmente por parte de alas conservadoras do governo dos Estados Unidos, adicionavam ainda mais elementos à controvérsia (Weart, 2003).
Uma resposta aos questionamentos e incertezas sobre o tema foi a criação, por iniciativa das Nações Unidas e da Organização Mundial de Meteorologia, ainda em 1988, do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), com uma arquitetura híbrida única: não é nem um corpo estritamente científico, nem uma entidade unicamente política. Seus cientistas estão, em geral, ligados aos laboratórios e iniciativas de pesquisa apoiadas pelos governos dos países membros da ONU, e representantes políticos dessas mesmas nações são ouvidos e participam do processo de construção dos relatórios do órgão.
Apesar da avalanche midiática de 1988, o tema das mudanças climáticas perdeu força nos anos seguintes. Mesmo o primeiro relatório do IPCC, em 1989, que confirmou a existência de um aumento nas temperaturas (mas ressaltando não haver, ainda, dados definitivos para apontar os motivos dessa variação), resultou em cobertura pequena da imprensa (Weart, 2003). A questão, porém, voltou à pauta pública com força em 1992, quando foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, na cidade do Rio de Janeiro. O aquecimento global era tema central do encontro, que resultou em mais de 150 países assinando um termo de compromisso não mandatório para a diminuição das emissões de CO2. Diversas nações deixaram o Rio frustradas pelo insucesso das negociações de um acordo mandatório para limitação das emissões, recusado principalmente pelos Estados Unidos, que ainda argumentavam pelas dúvidas científicas envolvidas no tema.
O resultado do segundo relatório do IPCC, publicado em 1995, trouxe novamente o aquecimento global para a ordem do dia e superou muitas das incertezas ligadas ao assunto. O relatório ficou conhecido por afirmar que o balanço das evidências sugeria a existência de uma discernível influência humana no clima global, afastando ainda mais as dúvidas sobre a origem do aumento das temperaturas nos últimos anos. Complementava o documento uma previsão de que o dobro da concentração de dióxido de carbono, algo que aconteceria nos próximos 100 anos se a emissão não fosse controlada, traria uma elevação média de 3ºC na temperatura global. A declaração de grande peso científico foi estampada nos principais jornais do mundo e se tornou o combustível fundamental para a elaboração do Protocolo de Kyoto, assinado em 1997 por 192 países.
Como Oreskes e Conway (2010) apontam, a questão científica ao redor das mudanças climáticas estava, nesse momento, praticamente encerrada. Os anos seguintes consolidaram essa posição sobre o aquecimento global, com o terceiro relatório do IPCC, em 2001, afirmando 90% de confiança de que as temperaturas da superfície terrestre continuariam aumentando e que, muito provavelmente, a causa era o acumulo do CO2 na atmosfera. Dezesseis academias nacionais de ciência, entre elas a Royal Society do Reino Unido e a Academia Brasileira de Ciências, lançaram um comunicado oficial conjunto apoiando o relatório do IPCC e conclamando todos a adotarem ações para reduzir a emissão de CO2.
Novo momento de visibilidade ocorreu em 2006, ano em que Al Gore, Vice-Presidente dos Estados Unidos entre 1992 e 2000, lançou um livro e um documentário chamados Uma Verdade Inconveniente. A intensa reverberação de Uma Verdade Inconveniente foi sucedida pelo lançamento do quarto relatório do IPCC, em 2007, afirmando que o aquecimento do planeta era inequívoco e, “muito provavelmente” (termo usado para uma confiança acima de 90%), resultado direto das atividades humanas. O grau de confiança do IPCC acerca das atividades humanas serem as causadoras do aquecimento da Terra cresceu no seu quinto relatório, em 2014 – agora descrito como fator “extremamente provável”, termo relacionado com taxas de certeza entre 95% e 100%.
O consenso científico construído a partir da década de 1990 sobre as mudanças climáticas foi observado também por pesquisas que tinham como corpus os artigos publicados em periódicos científicos e sujeitos ao processo de revisão pelos pares. Oreskes (2005) mostra como a análise de 928 artigos publicados entre 1993 e 2003 revela que nenhum deles trazia uma discordância explícita sobre a existência do fenômeno do aquecimento global ou sobre o papel humano em sua criação. Mais recentemente, Cook et al. (2013) analisaram 4.014 resumos e pediram que os próprios autores de 1.381 artigos avaliassem seus esforços, observando que para 97,1% dos mesmos a ação humana é o fator responsável pelo aquecimento global. Cook, Oreskes e demais colegas uniram forças e realizaram um meta-estudo sobre o consenso científico em 2016 (Cook et al., 2016): partindo de 14 artigos, sendo 12 deles publicados nos últimos dez anos, os pesquisadores comprovaram a existência do consenso científico sobre o aquecimento global antropogênico, com uma porcentagem de cientistas que concordam que o homem é responsável pelo fenômeno variando entre 90% e 100%, dependendo da metodologia empregada.
Ao final desse percurso cabe a pergunta: perante um consenso científico tão robusto e cristalizado, onde estaria a guerra climática mencionada por Giddens (2009)? Como ela poderia existir e se desenvolver? As respostas para esses questionamentos perpassam a compreensão sobre como essa guerra ocorreu paralelamente à construção do consenso científico, travada principalmente por meio de especialistas que se nomeiam “céticos” e que questionam um suposto alarmismo ambiental. Apesar de creditar aos céticos em geral um papel fundamental na evolução científica, já que eles trazem questionamentos que incentivam o escrutínio, Giddens observa que essa climate wars, especificamente, pouco impactou nas evidências sobre as mudanças climáticas, que permanecem como um consenso.
O que nos ajuda a entender esse fato é reconhecer que essa guerra climática ocorreu em um ambiente distinto daquele no qual o consenso científico era construído. Ela não se deu em laboratórios, em grupos de trabalho do IPCC ou mesmo nas páginas das principais publicações científicas, mas sim nos media, em jornais televisivos, nas pesquisas de opinião, em audiências governamentais, nas tentativas de formulação de políticas públicas e em conversas informais. Não é uma disputa travada, como Oreskes e Conway (2010) e Hoggan (2009) lembram, nos palácios da ciência, mas sim no reino da opinião pública.
Pesquisas anuais do instituto Gallup nos Estados Unidos (Saad & Jones, 2016) mostram que, nos últimos dez anos, a porcentagem daqueles que acreditam que os efeitos do aquecimento global já começaram nunca passou de 61% (em 2008), e que o maior índice de americanos que acreditam que as atividades humanas são responsáveis pelo efeito estufa foi de 65% (em 2016) – sendo que a média dessas estatísticas nos últimos dez anos está na faixa de 55%. Essa mesma observação se sustenta em termos globais, apesar da variação entre os diversos países. Uma pesquisa publicada pelo Gallup em 2009 (Pelham, 2009) apontava que a porcentagem de pessoas que concordavam que o aquecimento global é resultado da atividade humana era, por exemplo, de 80% no Brasil, 64% na Suécia, 63% na França, 59% na Alemanha, 48% no Reino Unido e 44% na Holanda. Números mais recentes, derivados da pesquisa Global Trends 2014 do Ipsos Mori, apontam que no Reino Unido, por exemplo, 64% agora afirmam acreditar que a atividade humana é a principal responsável pela variação de temperatura, assim como 72% dos entrevistados alemães, 74% dos suecos e 79% dos brasileiros. Porém, a mesma pesquisa traz dados preocupantes – quando confrontados, por exemplo, com a afirmação de que os cientistas não sabem do que estão falando quando abordam a temática climática, 67% dos japoneses, 58% dos alemães, 51% dos brasileiros e 48% dos franceses concordaram.
Essa cisão entre o consenso científico e a opinião pública no que tange aos pontos nevrálgicos das mudanças climáticas – a existência do aquecimento global e do efeito estufa, bem como o papel da atividade humana como causadora desse processo – gera preocupações principalmente perante a apatia social na busca por políticas públicas capazes de neutralizar o problema gerado pela emissão de CO2. Ainda que confrontada pelos constantes apelos da comunidade científica acerca da urgência da questão e de seus potenciais efeitos catastróficos, a sociedade caminha em um ritmo lento na direção das mudanças. Giddens observa que a concretização dessas transformações está atrelada, em boa medida, à forma como avaliamos a seriedade dos riscos que estamos de fato enfrentando, adicionando em seguida que nesse ponto somos dependentes dos achados e dos prognósticos da ciência (Giddens, 2009, p. 8-9). Em última instância, porém, essa interpretação apresenta um equívoco: não somos, como sociedade e públicos, dependentes da ciência para agirmos, mas sim de nossas próprias percepções e julgamentos sobre o que ela afirma – que podem ser, ou não, influenciados pelo consenso científico. Uma questão central emerge: por quais razões nossas percepções sobre o assunto diferem do consenso dos especialistas nessa área?
Diversas frentes de reflexão foram abertas, nas últimas décadas, para tentar responder a esse questionamento. Dentre aquelas que abordam temáticas afins aos estudos comunicacionais, a principal linha de pesquisa consiste na exploração sobre o comportamento dos media e da cobertura realizada acerca das mudanças climáticas. Dentre as vertentes de pesquisas dessa corrente estão, por exemplo, aquelas que buscam entender a forma com que as normas jornalísticas levam a comunicações enviesadas sobre o clima (Boykoff & Boykoff, 2004; Boykoff, 2011), como a questão climática é enquadrada em diferentes veículos (O’neill, Williams, Kurz, Wiersma & Boykoff, 2015) e reflexões sobre o papel desempenhado pelos especialistas céticos na cobertura mediática (Boykoff & Olson, 2013).
Um trabalho seminal dessa corrente foi publicado em 2004 por Boykoff e Boykoff, apresentando a análise da cobertura de quatro jornais de prestígio nos EUA sobre o aquecimento global. Eles evidenciam que a forma com que os valores e normas jornalísticas de uma cobertura balanceada e justa, pautada na apresentação dos dois lados de uma história, propiciou uma cobertura enviesada sobre o aquecimento global. Ao apresentar sempre pontos e contrapontos e oferecer uma plataforma igualitária para cientistas ortodoxos e especialistas céticos, cria-se a falsa impressão de um grande debate ao redor das afirmações realizadas pelo IPCC. Esses veículos se tornam, assim, incapazes de transmitir a ideia do consenso científico.
Apesar da análise de cobertura mediática fornecer insumos reveladores para compreendermos o debate sobre as mudanças climáticas na esfera pública, essa corrente de pesquisa apresenta um entrave significativo na busca por um entendimento crítico mais amplo. Esses estudos centram seus esforços no entendimento da cobertura e na crítica ao comportamento dos media, deixando em segundo plano as escolhas estratégicas de atores diversos que antecedem o momento da cobertura. Acabam, assim, por promover um desaparecimento dos esforços conscientes que visam influenciar a própria cobertura mediática, como parte de uma campanha de relações públicas que objetiva criar dúvidas sobre as mudanças climáticas.
Ao contrário dessas, compartilhamos o entendimento de Cottle (2003) acerca da complexa interação entre as estratégias de relações públicas, questões de poder e os media, e de McNair, no qual a cobertura emerge a partir da interação dos elementos do ambiente comunicativo que prevalecem em dado espaço mediático – espaço que abarca vários atores sociais que se empenham para construir e moldar as notícias, porém nenhum deles com garantia de sucesso (2006, p. 49).
Dessa forma, enquanto é indiscutível que a representação dos especialistas céticos nos media é desproporcional em relação ao consenso científico (Boykoff & Boykoff, 2004), a explicação para esse fato não pode ser relacionada puramente ao valor da norma jornalística de uma cobertura balanceada. Ele é fruto de complexas interações entre uma série de comportamentos estratégicos e o sistema dos media. Adotando uma abordagem distinta dos estudos centrados nos media encontramos um conjunto de autores que, com background bastante diversificados – historiadores da ciência, profissionais de relações públicas, jornalistas, ativistas de movimentos ambientais, colaboradores de iniciativas de vigilância civil –, privilegiam tentativas de trazer essa campanha à tona e desvelar as diversas estratégias adotadas pelos seus atores, nas últimas duas décadas. Seus trabalhos revelam a complexidade e o alcance dessas práticas e constituem uma base importante para muitas das críticas contemporâneas direcionadas para a atividade de relações públicas.
Um dos primeiros autores a abordar especificamente os esforços de relações públicas empreendidos pela indústria de energia como uma forma estratégica de minar a ideia do aquecimento global foi o jornalista norte-americano Ross Gelbspan. Seu interesse pela temática teve início em 1995, quando ele recebeu, após publicar uma matéria sobre as mudanças climáticas, cartas de leitores que afirmavam uma forte descrença em relação ao aquecimento global e indicavam a leitura de alguns cientistas céticos sobre a questão. Após entrar em contato com o pensamento de especialistas como Fred Singer e Pat Michaels, Gelbspan ficou convencido que o aquecimento global, de fato, não existia, que aquele era um não-evento criado por alarmistas. O jornalista já possuía, porém, entrevistas agendadas com cientistas envolvidos nas pesquisas sobre mudanças climáticas. Durante os encontros com esses especialistas, Gelbspan se surpreendeu: eles demonstravam, com amplo domínio e embasados em diversas pesquisas, como Singer, Michaels e outros céticos estavam manipulando os dados, seletivamente omitindo fatos críticos, sustentando objeções ilusórias e deliberadamente representando de maneira inapropriada a situação (Gelbspan, 2004, p. xix). Foi nesse momento que o autor decidiu investigar os motivos por detrás da atividade desses céticos.
A empreitada de Gelbspan veio a constituir o núcleo da literatura que visa denunciar a campanha de desinformação criada para negar o aquecimento global, focando-se em rastrear as transações financeiras por detrás de grupos e cientistas céticos. O autor conseguiu levantar dados que apontavam como grupos fundados pelas indústrias de energia, como a Global Climate Coalition, haviam gasto milhões de dólares em iniciativas contrárias às mudanças climáticas, e repassado milhões para agências de relações públicas, como a Burtson-Marsteller, elaborarem campanhas capazes de derrotar propostas de leis para limitar as emissões de carbono. Mais ainda, Gelbspan conseguiu rastrear e reconstituir a movimentação financeira que relacionava a indústria e os cientistas céticos, demonstrando como eles eram pagos rotineiramente por diversas empresas de petróleo. O autor concluía que a indústria de energia estava conduzindo uma feroz campanha de relações públicas com o intuito de vender a noção de que a ciência é sempre incerta, com opiniões discordantes amplificadas para além de sua proporção pelos media. Gelbspan prosseguiu suas investigações nos anos seguintes, e concluiu que a campanha de relações públicas financiada pela indústria vai muito além do tradicional spin, operando com uma privatização da verdade (Gelbspan, 2004, p. 61).
Enquanto o contato de Gelbspan com essa campanha se deu por meio do debate climático, John Stauber e Sheldon Rampton trilharam uma trajetória distinta. Os dois autores já realizavam um acompanhamento sistemático e crítico das atividades da indústria de relações públicas quando escreveram, em 2002, a obra Trust Us, We’re Experts!. Stauber havia, inclusive, fundado, em 1993, o Center for Media and Democracy (CMD), uma iniciativa não partidária e sem fins lucrativos voltada para o monitoramento de práticas abusivas de relações públicas empregadas por corporações e governos. O CMD pode ser encarado como a iniciativa pioneira de vigilância civil sobre relações públicas (Henriques & Silva, 2013; 2015), mantendo projetos como o PRWatch (um observatório sobre as relações públicas) e o SourceWatch (uma enciclopédia colaborativa com intenção de prover informações sobre campanhas abusivas de relações públicas).
Stauber e Rampton exploram as formas com que corporações, em conjunto com algumas das principais agências de relações públicas do mundo, se engajavam em campanhas que tinham a intenção de promover uma distorção de fatos e descobertas científicas. Dentre as principais preocupações dos autores estava aquele que eles consideravam o pilar de sustentação dessas práticas: os front groups. Os front groups são uma prática que consiste, segundo o SourceWatch (2017), na criação de uma organização que afirma representar uma agenda enquanto, na realidade, serve outro ator ou interesse cujo financiamento é ocultado ou raramente mencionado. Esses grupos atuam de formas variadas, por vezes assumindo o papel de linhas de defesa das corporações ou de máquinas difusoras de ideias dotadas de maior credibilidade, justamente por se apresentarem como uma fonte aparentemente neutra. Diversos fatores contribuem para o seu sucesso, desde a ocultação de laços financeiros até os nomes escolhidos – Stauber e Rampton (2002) observam como muitos dos front groups apresentam nomeações que causam, desde o primeiro momento, confusão em relação ao que eles realmente defendem. Esse era o caso, por exemplo, da Global Climate Coalition, que, apesar do nome, consistia não em uma coalisão a favor do meio ambiente, mas de um front group da indústria de energia que negou, durante anos, a existência do aquecimento global.
Para além dos front groups, Stauber e Rampton (2002) denunciam também outras práticas importantes que complementam o repertório das agências de relações públicas e configuram a interface entre ciência, indústria e opinião pública, como a tentativa de criação de dúvidas sobre consensos e descobertas científicas; o recrutamento de porta-vozes que serão expostos como especialistas, mesmo sem possuir qualificações acadêmicas ou tendo formação em outras áreas do conhecimento; o pagamento para cientistas que não produzem pesquisas ou publicam em periódicos com revisão por pares; a ênfase em estratégias voltadas para a conquista de visibilidade mediática e não para o debate científico; a criação de acontecimentos para conquistar a atenção dos media; e a utilização de práticas de astroturfing1 e de falsas petições para criar a impressão de que um grande número de pessoas apoia determinada ideia.
Stauber e Rampton afirmam que é notável o quanto a indústria de relações públicas obteve sucesso em criar a ilusão que o aquecimento global é uma teoria arduamente disputada e cercada de controvérsia (2002, p. 270). Os autores denunciam ações de alguns dos principais front groups ligados à indústria de energia, como a Global Climate Coalition (GCC), criada pela agência Burston-Marsteller em 1989, e o Informational Council for the Environment (ICE), criado em 1991, acompanhando os cientistas que compunham o núcleo duro dos céticos que tentavam negar o aquecimento global e suas campanhas – como a Oregon Petition, uma falsa petição voltada para frear o Protocolo de Kyoto.
A maior contribuição de Stauber e Rampton, porém, reside na observação de padrões recorrentes nas ações de diversas indústrias que lidam com a tentativa de influenciar a opinião pública por meio da negação de consensos e descobertas científicas. Mais do que a simples repetição de práticas, o que os autores captam evidências que apontam para a formação de uma verdadeira rede da dúvida: inúmeros front groups que, mesmo dotados de propósitos distintos, interagem e dão sustentação para a ação de um pequeno número de cientistas e especialistas que atuam em frentes diferentes de conflito – caso de Singer, que era apresentado, dependendo do momento, como especialista que negava os malefícios do tabaco, o aquecimento global ou a existência do buraco na camada de ozônio. Essa rede, criada por diversas agências e ações de relações públicas, era financiada por uma ampla gama de empresas que tinham em comum o fato de estarem do lado contrário de maiorias científicas – especialmente corporações do setor de energia e do tabaco, mas também empresas de produtos químicos e de pesticidas. As ações dessa rede caminham, em geral, para uma mesma direção: a criação de dúvidas sobre a ciência, de maneira a frear políticas públicas que regulamentassem atividades das empresas financiadoras.
Se em 2004 já era claro para muitos cientistas e ambientalistas que o debate climático era atravessado por uma elaborada campanha de relações públicas para negar a existência do aquecimento global, o trabalho de Stauber e Rampton demonstrava um grande desafio para lidar com esse tópico: a forma de rede assumida por tais esforços, fator que dificultava profundamente o acompanhamento daquelas estratégias. Enquanto os primeiros trabalhos sobre o tema conseguiram desvelar algumas ligações pontuais daquela trama, agora era possível perceber como ela permanecia, em grande parte, envolta em sombras. Ainda mais grave: a constante criação de grupos e a circulação dos especialistas céticos por essas organizações tornava a rede mais complexa e retirava o impacto de denúncias isoladas.
Ainda em 2004, o Greenpeace lançou um projeto que levava ao extremo a máxima de seguir movimentações financeiras: o ExxonSecrets. O objetivo era criar um mapeamento extensivo de todas as contribuições monetárias da ExxonMobil, desde 1998, para front groups, especialistas céticos e think tanks, gerando representações gráficas interativas que seriam verdadeiros mapas da rede de sustentação do movimento cético. Os dados usados foram coletados a partir de extensivas pesquisas tanto em documentos da ExxonMobil quanto nas declarações financeiras dos grupos e pessoas envolvidas e a base de dados foi pensada de maneira a possibilitar atualizações rápidas e constantes.
O ExxonSecrets se tornou uma referência central e embasou obras diversas que buscavam denunciar os laços da indústria de energia com cientistas céticos tanto nos Estados Unidos quanto na Europa – trabalhos que resultaram dos esforços de profissionais de relações públicas (Hoggan, 2009), historiadores da ciência (Oreskes & Conway, 2010) e climatologistas (Mann & Toles, 2016). Dentre essas, é importante destacar a obra Merchants of Doubt, de Naomi Oreskes e Erik Conway (2010), que ganhou notoriedade no meio acadêmico e na cena pública, dando origem, inclusive, a um documentário de mesmo nome lançado em 2014 pelo diretor Robert Kenner. Na obra eles optam por focalizar os cientistas céticos, ou deniers, buscando ampliar a compreensão sobre suas atuações e motivações. Trilhando as pistas levantadas por investigações como a ExxonSecrets, os autores foram capazes de reconstruir os fluxos financeiros que vinculavam esses cientistas com as indústrias de energia, tabaco e produtos químicos.
Para além das obras que destacamos, é importante também notar como a campanha voltada para a negação do aquecimento global acabou por originar, especialmente nos últimos dez anos, iniciativas diversas de vigilância civil acerca da temática na internet. Henriques e Silva (2013; 2015) abordam de maneira mais ampla esse fenômeno, observando como o surgimento de instâncias que, munidas das possibilidades oriundas das novas tecnologias digitais, passam a se dedicar ao monitoramento e acompanhamento de atividades do mercado, dos governos e mesmo dos media, colocam os públicos no centro da defesa de seus próprios interesses e tecem contundentes críticas à função de watchdog tradicionalmente atribuída à imprensa.
As iniciativas de monitoramento sobre o tema assumiram, nos últimos anos, a forma de uma rede de vigilância, composta por iniciativas como o DeSmog, o ExxonSecrets e o PRWatch. Essas instâncias acabam por trabalhar em conjunto, compartilhando documentos e vazamentos. As vantagens trazidas pela internet para essas iniciativas se tornam particularmente relevantes no momento em que os atores são confrontados com a trama resultante daquela campanha e precisam construir sentidos perante suas práticas, seus inúmeros front groups e diversos deniers.
Um dos nódulos centrais dessa rede é o DeSmog, criado em 2006 pelo canadense James Hoggan, dono da prestigiada agência Hoggan & Associates. A trajetória do DeSmog é única justamente pelo background de Hoggan: em sua obra Climate Cover-Up (2009), o autor conta que, ao criar o DeSmog, não se considerava um ativista ou um ambientalista, e tampouco possuía qualquer cisão ou rixa com a área de relações públicas – ao contrário, sua agência era bem-sucedida e ele possuía grande apreço pela área e pelos seus colegas. Ele já havia, é claro, lido e ouvido falar sobre o eventual spin doctor, um profissional da área que se especializava em práticas de distorção de informação. Em sua experiência, porém, esses eram casos extremamente excepcionais e episódicos.
Ao procurar ideias para uma seção voltada para a comunidade no site de sua agência, Hoggan recebeu a sugestão de tratar as mudanças climáticas. Esperando encontrar um grande debate, ele foi surpreendido pela existência de um consenso científico já bastante consolidado. Sua confusão se tornou revelação quando teve acesso aos livros de Gelbspan. Foi então que percebeu que os cientistas céticos não faziam pesquisas ou debatiam resultados científicos, mas estavam, na verdade, engajados em uma grande campanha de relações públicas. Hoggan conta como começou a notar evidências daquela campanha em todos os lugares, e que, para um olho treinado, as táticas e técnicas de relações públicas, assim como a manipulação estratégica dos media, eram óbvias (Hoggan, 2009, p.3). O DeSmog surgiu dessa indignação e da percepção de que ele estava em uma posição privilegiada, graças aos conhecimentos específicos acumulados durante sua trajetória profissional, para desvelar as técnicas e táticas que confundiam o debate climático e aumentavam a má fama da área de relações públicas.
O DeSmog tem como foco batalhar contra a bem financiada e organizada campanha que nega o aquecimento global antropogênico e, em pouco tempo, se tornou o maior banco de informações específicas sobre o tema, reunindo uma equipe capaz de realizar investigações e denunciar práticas abusivas. As atividades do projeto foram editadas na forma de livro (Hoggan, 2009), e o site foi eleito, em 2011, um dos 25 melhores blogs do mundo pela revista Time (Walsh, 2011). Perante o sucesso, o DeSmog acabou por expandir suas atividades, lançando o DeSmog Canada, em 2013, e o DeSmog UK, em 2014, consolidando perfil internacional de suas atividades.
Dentre as características comuns das múltiplas iniciativas de vigilância civil sobre o tema cabe destacar o grau de especialização. Henriques e Silva chamam a atenção para a forma com que, “a partir do processo de vigilância, as instâncias civis ampliam seu domínio sobre as temáticas que versam, desenvolvendo um corpo de conhecimento cada vez mais especializado e propício para o monitoramento das mesmas” (2015, p. 10). Trata-se de uma reação natural, principalmente perante a noção de que campanha sobre a qual aquelas iniciativas buscam exercer vigilância tece uma trama complexa. Diante de uma atividade organizada de monitoramento, os agentes vigiados não deixam, obrigatoriamente, de agir de maneira considerada abusiva pelos seus vigilantes: seus deslizes podem continuar, porém agora envoltos em novas camadas de secretismo (Henriques & Silva, 2013). A ExxonMobil, frente à repercussão negativa das revelações do ExxonSecrets, afirmou, em 2005, que deixaria de financiar grupos envolvidos com a negação do aquecimento global. De fato, a empresa cortou o financiamento a alguns dos grupos mais polêmicos, mas ao mesmo tempo passou a apoiar novas associações que compartilhavam das mesmas táticas e especialistas (Greenpeace, 2007).
O momento atual das iniciativas que buscam exercer vigilância sobre a campanha de desinformação acerca do aquecimento global é de um esforço constante para ligar os pontos da trama gerada pelas práticas de corporações nos últimos anos e construir sentidos a partir daquelas denúncias. Não se trata apenas de realizar novas revelações pontuais, mas sim de desvelar e compreender as estratégias de uma maneira mais ampla, capaz de colaborar com um entendimento sobre o funcionamento complexo daquelas práticas.
Observamos como a literatura crítica desenvolvida nas últimas duas décadas jogou luz sobre os contornos de uma estruturada campanha de relações públicas, financiada por grandes corporações do setor de energia e centrada na criação de dúvidas na opinião pública. Não se trata, como apontamos, de um conjunto linear de ações de comunicação realizadas por organizações, ou mesmo de uma campanha nos moldes mais tradicionais e restritos no qual do termo. O que entra em jogo nesse caso é a criação de um complexo emaranhado de estratégias de influência que, desafiando entendimentos éticos e atuando no limiar entre segredo e visibilidade, entrelaçam inúmeras agências de relações públicas, corporações, think tanks, front groups, agentes políticos, cientistas, jornalistas e personalidades mediáticas.
Apesar de extremamente importante para trazer à tona a existência dessa campanha, é fundamental reconhecer a existência de um entrave relacionado a essas obras: ao darem foco à denúncia de práticas que consideram abusivas, possuem um alcance explicativo e analítico limitado. É justamente nesse ponto que defendemos que os estudos de relações públicas podem se tornar de grande significado, adotando uma orientação que não visa a formulação de (ou mesmo a defesa perante) denúncias acerca da existência dessa campanha ou das práticas abusivas específicas que entram em jogo para distorcer informações e fomentar incertezas. Ao contrário, nossa aposta é no sentido de esforços futuros que visem ampliar a compreensão sobre esse objeto por meio de uma análise pautada na perspectiva relacional da comunicação e em um entendimento amplo sobre as dinâmicas das relações públicas, identificando e explorando as lógicas de influência que moldam o fluxo de sentidos resultante do emaranhado dessas ações e configuram essa trama.
Acreditamos que essa perspectiva emerge como um elemento importante para expandir o entendimento acerca do debate sobre as mudanças climáticas e da multifacetada relação entre ciência e opinião pública, bem como sobre a formulação de políticas públicas resultantes do processo de interação entre essas dimensões. Não sugerimos que tal estudo seja capaz de oferecer uma chave de leitura cabal sobre todos os aspectos da controvérsia global acerca das mudanças climáticas, mas sim que um olhar pautado por esse viés pode encontrar insumos relevantes que estão ausentes, ainda hoje, em muitas das abordagens sobre a temática. Além disso, estudos críticos voltados para a compreensão das lógicas envolvidas nesse processo podem oferecer contribuições teóricas e metodológicas para o campo da Comunicação Social e, especificamente, para as áreas de relações públicas e comunicação organizacional, preenchendo uma lacuna importante acerca do papel que as corporações e suas práticas de comunicação assumem no processo de construção social e nas disputas de sentido em temáticas importantes e controversas do mundo contemporâneo.
http://revistachasqui.org/index.php/chasqui/article/view/3288/2981 (pdf)