Resumo: O artigo propõe um diálogo conceitual entre a folkcomunicação e os estudos de gênero, com ênfase na teoria queer, com o propósito de problematizar as práticas de resistência cultural operadas por grupos marginalizados por questões de gênero. Ao ‘atualizar’ o debate beltraniano em torno dos grupos erótico-pornográficos, são apresentadas reflexões sobre as transformações culturais que evidenciam a construção de identidades, subvertendo as hegemonias em torno da sexualidade. A partir da recuperação de aspectos comunicacionais que caracterizam os grupos homossexuais, o texto estabelece contrapontos entre os grupos marginalizados de ontem e de hoje, valorizando suas práticas de resistência.
Palavras-chave:estudos de gêneroestudos de gênero,homossexualidadehomossexualidade,grupos marginalizadosgrupos marginalizados.
Abstract: The paper proposes a conceptual dialogue between folkcommunication and gender studies, with an emphasis on queer theory, in order to discuss the cul- tural practices of resistance carried out by marginalized groups by gender. Reflections are presented about the cultural transformations that evidence the construction of identities, by subverting the hegemony around sexuality, from the debate made by Luiz Beltrao around the erotic-porn groups. As from the recovery of communicational aspects that characterize the homosexual groups, the text establishes counterpoints among marginalized groups from yesterday and today, valuing their resistance practices.
Keywords: gender studies, homosexuality, marginalized groups.
Resumen: En este trabajo se propone un diálogo conceptual entre la perspectiva teórica de la folkcomunicación y los estudios de género, con énfasis en la teoría queer, con el fin de discutir las prácticas de resistencia cultural operadas por grupos marginados por su condición de género. Para ‘actualizar’ el debate propuesto por Luiz Beltrão sobre los grupos erótico-porno, se presentan reflexiones sobre las transformaciones culturales que muestran la construcción de identidades, subvirtiendo las hegemonías acerca de la sexualidad. A partir de la recuperación de los aspectos comunicacionales que caracterizan a los grupos homosexuales, el texto establece contrapuntos entre los grupos marginados de ayer y de hoy, valorando sus prácticas de resistencia.
Palabras clave: estudios de género, homosexualidad, grupos marginados.
Ensayo
Folkcomunicação e Estudos de Gênero: práticas de comunicação nos grupos homossexuais
Folkcommunication and Gender Studies: communication practices in homosexual groups
Folkcomunicación y estudios de género: prácticas de comunicación en grupos homosexuales
Recepção: 03 Junho 2016
Aprovação: 08 Março 2017
Ao comemorar cinquenta anos da pesquisa em Folkcomunicação, desenvolvida pelo brasileiro Luiz Beltrão, é oportuno realizar balanços críticos e uma revisão do arcabouço teórico produzido até aqui. O legado beltraniano, no que tange à Folkcomunicação, pode ser dividido em dois momentos. O primeiro reflete a tese de doutoramento defendida em 1967 pelo pesquisador pernambucano. Neste momento a Folkcomunicação estava estreitamente ligada ao folclore – especialmente à abordagem desenvolvida por Edison Carneiro (2008)– e às pes- quisas empíricas que uniam o jornalismo não ortodoxo às práticas folclóricas nordestinas. Tal perspectiva, foi apontada como reducionista por Marques de Melo (1971), e, levou Luiz Beltrão a ampliar consideravelmente a amplitude da Folkcomunicação e a conceber a audiência folk com base nos grupos marginalizados, sendo este o segundo momento das pesquisas em Folkcomunicação.
O termo “marginalizado”, utilizado por Beltrão, surge na Escola de Chicago, a partir do artigo “Human Migration and the Marginal Man” (1928), de Robert Park, publicado no American Journal of Sociology. Park, neste artigo, reflete sobre o migrante, tido
[...] como um híbrido cultural, um marginal que embora compartilhe da vida e das tradições culturais de dois povos distintos, “jamais se decide romper, mesmo que lhe fosse permitido, com seu passado e suas tradições, e nunca é aceito com- pletamente, por causa de preconceito racial, na nova sociedade em que procura encontrar um lugar. (Beltrão, 1980, p. 38-39)
Na década de 1970 outros estudos sobre marginalidade tiveram forte repercussão no Brasil, como é o caso do livro “O Mito da Marginalidade”, de Janice Perlmann (1977), e “Desenvolvimento e Marginalidade”, de Maria Célia Paoli (1974). Perlmann aponta que se a partir de Park, marginal era o “indivíduo à margem de duas culturas e de duas sociedades que nunca se interpenetram e fundiram totalmente” (Beltrão, 1980, p. 39), com a passar dos anos,
[...] o termo ganhou um significado pejorativo, sendo o marginal considerado elemento perigoso, ligado ao mundo do crime, um fora da lei, vagabundo, violento, drogado [...] [sendo empregado] aos pobres, desempregados, migrantes, membros de outras subculturas, minorias raciais e étnicas e transviados de qualquer espécie. (Beltrão, 1980, p. 39)
Perlmann teve como objeto empírico quatro favelas da cidade do Rio de Janeiro e se propôs a redefinir o papel ocupado por favelados urbanos e o preconceito diário a que são expostos. Já Paoli ocupa-se do papel desempenhado pela religião e pelo mundo imaginário, largamente difundido pelos meios de massa e muitas vezes transpostos para os meios populares, na manutenção das relações de dominação impostas pelas elites às camadas subalternas da sociedade, pela integração simbólica que essas experiências mágicas provocam.
Com base nas leituras de Perlmann e Paoli, Beltrão (1980, p. 39) ainda aponta que o fenômeno da marginalidade se caracterizou após a revolução burguesa agravando ainda mais com a revolução industrial.
Do levantamento e análise dessas condições, a que vimos dedicando nossos estudos, resultou a identificação e classificação de grupos de usuários da folkcomunicação, através da qual se entendem, já que excluídos, marginalizados (e não marginais, expressão que evitamos para afastar sua conotação negativa) não só do sistema político como do de comunicação social, ambos voltados à preservação do status quo definido pela ideologia e pela ação planificada dos grupos dirigentes. (Beltrão, 1980, p. 39)
A partir dessas concepções, Beltrão (1980) distingue a audiência da Folkcomunicação em três grandes grupos: rurais marginalizados, urbanos marginalizados e culturalmente marginalizados1. Este último, que interessa mais diretamente ao presente trabalho, está subdividido em messiânico, político-ativista e erótico-pornográfico.
Como proposta de atualização da obra beltraniana com base nos recentes estudos de gênero, o artigo valoriza esta última subcategoria, estabelecendo um diálogo conceitual entre os grupos marginalizados identificados por Beltrão e os grupos que, na atualidade, subvertem as identidades universalistas relacionadas às questões de gênero para reivindicar o direito à diversidade.
Em seu percurso pelas expressões dos grupos culturalmente marginalizados, Beltrão (1980) assim define o grupo erótico-pornográfico:
Deste grupo participam todos os que não aceitam a moral e os costumes que a comunidade adota como sadios, propondo-se a reformálos em nome de uma liberdade que não conhece limites à satisfação dos desejos sexuais e práticas hedônicas consideradas perniciosas pela ética social em vigor. (Beltrão, 1980, p. 104)
Beltrão refere-se a este grupo a partir de referências que caracterizam os valores e padrões sociais da época. Neste sentido, a expressão “não conhece limites à satisfação dos desejos sexuais” pode ser interpretada como se a questão sexual fosse uma atividade fim da expressão desse grupo, o que remete à “ética social em vigor”. Entende-se que as práticas comunicacionais do referido grupo não estão apenas voltadas para a prática sexual, mas sim para a conquista de direitos civis, políticos, culturais e comunicacionais. Beltrão (1980, p. 210-217) faz um retrospecto da emancipação do movimento feminista e homossexual, tanto em escala universal como brasileira. Embora acreditemos que seu objetivo foi mostrar como os grupos, a partir da década de 1960, passaram a se organizar e criar produtos, inclusive no âmbito da comunicação, há termos linguísticos utilizados pelo pesquisador que são datados e, hoje, não são considerados politicamente corretos.
Sem a intenção de recair em um sentido purista na compreensão da obra de Beltrão, tampouco de cobrar de um texto escrito no final da década de 1970 uma atitude que só encontrou respaldo acadêmico, no Brasil, no final dos anos 1990, entendemos que ele esteve atento às demandas sociais da época no que se refere aos grupos ou minorias relacionadas às questões de gênero e registrou, com as marcas do seu tempo, o caráter contestatório das práticas dos grupos em questão.
Especificamente sobre a homossexualidade, Beltrão utilizou como fonte teórica a palestra de Rogério Bastos Cadengue, intitulada “Uma abordagem sobre a Comunicação em Comunidades Homossexuais”, apresentada no II Ciclo de Estudos Interdisciplinares em Comunicação2” da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) de 1979.
Cabe mencionar que as pesquisas em território nacional começaram a se destacar na década de 1980. Em 1982 Peter Fry3 lançou “Para Inglês Ver”, com dois capítulos voltados para a homossexualidade, sobretudo a masculina. Em 1983, Fry e Edward MacRae lançaram “O que é homossexualidade”, o volume 81 da coleção Primeiros Passos, conhecida por introduzir temas críticos para um público amplo. Também em 1983, Délcio Monteiro de Lima publicou “Os Homoeróticos”4. Para concluir, a lista de livros de impacto, em 1987 o argentino Néstor Perlongher publicou “O Negócio do Michê” a respeito da prostituição masculina em São Paulo. Textos anteriores, como “Homossexualismo em São Paulo”, de José Fábio Barbosa da Silva5, eram desconhecidos.
Se no âmbito acadêmico a produção científica sobre a homossexualidade era nula ou incipiente, o mesmo não se pode dizer da jornalística. Como apontou Beltrão, o diário Última Hora (SP), sob responsabilidade do jornalista Celso Curi, publicou a seção “Coluna do Meio”. E, na imprensa alternativa, mesmo sob a vigilância da censura militar, tiveram importantes títulos, como Lampião, Jornal do Gay, Little Darling, para ficarmos nos exemplos listados por Beltrão.
Décadas depois de seus primeiros estudos, torna-se pertinente revisitar o que se entende por grupos culturalmente marginalizados, de modo a dialogar com os conceitos trabalhados por Luiz Beltrão. Como apontado por Karina Woitowicz (2007):
[...] a cultura dos grupos marginalizados projeta determinadas políticas de identidade ao reivindicar o reconhecimento das diferenças através dos meios de informação e expressão populares. Deste modo, a folkcomunicação representa um mecanismo fundamental de constituição da cultura e da identidade de grupos que permanecem à margem dos sistemas hegemônicos de comunicação. (Woitowicz, 2007, p. 63)
Neste sentido, no que diz respeito às manifestações de caráter erótico-pornográfico, registram-se profundas transformações nos valores culturais da atualidade, diante do reconhecimento da autonomia sobre o corpo e da liberdade sexual dos cidadãos.
Para atualizar o debate, entende-se que os grupos mencionados por Beltrão poderiam ser identificados pelo termo “minorias sociais”, que diz respeito aos setores da sociedade comprometidos com a luta pelo reconhecimento de suas demandas, que não estão contemplados nas estruturas hegemônicas. De acordo com Muniz Sodré, “o conceito de minoria é o de um lugar onde se animam os fluxos de transformação de uma identidade ou de uma relação de poder. Implica uma tomada de posição grupal no interior de uma dinâmica conflitual” (2005, p. 12).
As práticas realizadas por grupos homossexuais, à medida que se configuram como ações de minorias sociais, buscam intervir nas diversas instâncias de poder, utilizando para isso estratégias midiáticas. Com base nestas considerações, serão apresentadas a seguir algumas noções sobre estudos de gênero, com o propósito de apontar o caráter contestatório e transformador das práticas dos grupos identificados como minorias.
A sociedade contemporânea tem como uma de suas principais marcas a diversidade cultural, marcada pela coexistência de diferentes e variadas manifestações. Ao reconhecer esta pluralidade de culturas e modos de expressão próprios de determinados grupos sociais, a teoria da folkcomunicação permite reconhecer diferentes formas de apropriação da cultura e de construção de referenciais simbólicos.
No caso dos grupos definidos por Beltrão como culturalmente marginalizados, pode-se destacar os grupos identificados por determinadas identidades de gênero, que constroem e reconhecem suas referências culturais a partir da identificação ou diferenciação com o outro. Nesta perspectiva, entende-se que os grupos possuem traços de reciprocidade entre si e desenvolvem modos de expressar estas diferenças, reforçando traços identitários e criando mecanismos de resistência. Interessa, a partir deste aspecto, discutir em que medida estes grupos recuperam e projetam uma cultura de contestação, que se contrapõe às hierarquias sociais, em uma perspectiva que dialoga com o conceito gramsciano de hegemonia6.
Renato Ortiz (2007) observa que “não devemos pensar a diferença como um Ser, uma essência; ela é sempre relacional e encontra-se situada num contexto determinado. Toda diferença é produzida socialmente e é portadora de sentido histórico” (Ortiz, 2007, p. 14). Pode-se dizer, com isso, que o conceito de diversidade sexual está atravessado por relações de desigualdade, uma vez que a hegemonia sociocultural não permite a expressão plural das diferenças de maneira igualitária.
O debate em torno das expressões culturais produzidas em meio às desigualdades remete à noção de cultura sustentada pela vertente teórica dos estudos culturais, que a entendem como uma esfera onde se naturalizam e se representam as desigualdades de classe, gênero, raça, entre outras. Nascidos nos anos de 1960 e 1970, na Universidade de Birmingham (Inglaterra), os estudos culturais se apresentam como um campo interdisciplinar de estudos que apresentam como característica fundadora o engajamento político. Este aspecto abriu espaço para o desenvolvimento de teorias feministas que passaram a discutir a construção de identidades de gênero no âmbito da cultura7.
É neste cenário que se pode estabelecer algumas relações entre os grupos homossexuais, que não se adequam nos papéis tradicionais de homem e mulher, e as teorias de gênero, que problematizam a construção da diferença com base na sexualidade.
Sabe-se que a busca por explicações capazes de elucidar as lógicas que sustentam a submissão feminina e a heteronormatividade8 marcou os debates teóricos e a produção acadêmica de diversos campos do saber, principalmente ao longo do século XX. Opondose à ideia de um sujeito universal, que tem como marca hegemônica o masculino, a crítica feminista passa então a problematizar a lógica da dominação e os modelos hierárquicos de sociedade, tendo como preocupações uma maior visibilidade para as mulheres e a necessidade de construir novos paradigmas, capazes de repensar a relação sexo/gênero.
Nos Estados Unidos, em meados dos anos 1970, ganha força a abordagem dos estudos de gênero que, na confluência entre o debate acadêmico e o movimento feminista, critica o determinismo biológico e busca ‘dessencializar’ a discussão da divisão dos papéis sociais masculinos e femininos, entendendo a diferença como construção histórica e social. Enquanto um paradigma da teoria social, o gênero passa a ser compreendido como um marcador social de diferença, que orientou observações e teorias da cultura e da sociedade e, ao mesmo tempo, também serviu como argumento para as lutas contra as diversas formas de opressão e desigualdade.
Ao entenderem a construção de diferenças por meio dos sistemas culturais, os estudos de gênero representam um terreno produtivo para as investigações a respeito de lógicas, hábitos e significados que envolvem uma cutura9. A discussão sobre a existência de singularidades que perpassam as diferenças de gênero motiva a pensar sobre diversos aspectos que envolvem a construção de masculinidades e de feminilidades, considerando ainda as diferenças no interior dessas representações. Neste sentido, a pertinência de problematizar o conceito de gênero está também na busca pela compreensão das diversas faces assumidas por estas diferenças, em meio às relações de poder que marcam a vida social.
Na perspectiva de Joan Scott (1990), o conceito pode ser entendido como parte da diferença sexual, reconhecendo assim uma multiplicidade de causas para a desigualdade de gênero. Uma definição da autora que se tornou clássica no campo de estudos de gênero considera que Gênero é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder. (Scott, 1990, p. 14)
A autora parte da trajetória das abordagens feministas para discutir o conceito de gênero como construção social, relacional, marcada por relações de poder (Scott, 1990). Assim, compreendendo que as significações de gênero e poder se constituem reciprocamente, o discurso sobre o sexo apresenta-se em um campo de correlação de forças. Esta abordagem pode ser relacionada à discussão de Michel Foucault, para quem a produção da sexualidade é entendida como um dispositivo histórico que inclui a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação aos discursos, a formação dos conhecimentos e o reforço dos controles e das resistências (Foucault, 2005, p. 89-90).
A proposta apresentada por Scott consiste em desenvolver a categoria analítica gênero, de modo a desconstruir as bases da diferença sexual. Esta noção de gênero busca problematizar como ele funciona nas complexas relações sociais, considerando as possibilidades de resistência ao modelo hegemônico.
Sobre os conceitos e noções que sustentam os estudos de gênero e dialogam com a capacidade de transformação das hierarquias, uma importante refe- rência é o desenvolvimento teórico proposto por Judith Butler. O referencial conceitual desenvolvido pela autora evidencia a busca pela dessencialização do sujeito universal, valorizando a dimensão subjetiva dos indivíduos. O modo como, ao longo do tempo, se naturalizou a relação sexo/gênero estaria, para ela, mascarando a construção destas representações.
Ao considerar que toda identidade atua como “alma que envolve o corpo”, Butler observa que “no existe ningún cuerpo fuera del poder, puesto que la materialidad del cuerpo –de hecho, la materialidad misma– es producida por y en relación directa con la investidura del poder” (Butler, 2006, p. 103). Na base dos estudos de gênero, há múltiplas possibilidades de ‘subverter’ as lógicas de poder, produzindo resistência às práticas regulatórias do sexo, o que permite reconhecer as disputas em torno da afirmação da homossexualidade como parte do processo de construção de identidades de resistência que reconfiguram as hegemonias culturais.
A partir da década de 1990, foram registrados importantes avanços na teoria de gênero no tocante à homossexualidade.10 Os estudos da teórica norte-ameri- cana Judith Butler se destacam no debate acadêmico sobre questões de gênero. Butler (2007) se concentrou em criticar a heterossexualidade dominante no âmbito da teoria literária feminista, com a finalidade de reestabelecer os limites e correções do gênero, que limitavam seus significados às concepções generalistas de feminilidade e masculinidade. A teórica considera os limites de uma teoria feminista que atribui o significado de gênero aos pressupostos de sua própria prática, ditando normas de gênero excludentes, que trazem consequências homofóbicas. Ademais, Butler questiona os binarismos e concebe o gênero como algo performático. Foram esses questionamentos a base para a fundamentação da teoria queer.
Butler reconhece no falocentrismo e na heterossexualidade compulsóriaa constituição de formas de poder (normativas) que marcam as relações degênero. Em “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”, aautora articula sexo, gênero e desejo para problematizar a ideia de uma identidadecomum. Para ela
Em sendo a “identidade” assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de “pessoa” se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é “incoerente” ou “descontínuo”, os quais pa- recem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas. (Butler, 2003, p. 38)11
Segundo Butler, em “Corpos que pesam: Sobre os limites discursivos do sexo”, a diferença sexual está marcada por práticas discursivas: “o ‘sexo’ não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regulatória que produz os corpos que governa” (2001). Os “corpos que pesam” mencionados por Butler são os corpos produzidos no regime regulatório. A formação de um sujeito exige uma identificação com o caráter normativo do sexo, principalmente no que diz respeito à heterossexualidade obrigatória: “as normas regulatórias do “sexo” trabalham de uma forma performativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual” (Butler, 2001, p. 154).
Guacira Louro (2008) explica a dificuldade de definir o termo “queer” nalíngua portuguesa. Ela afirma que a palavra pode ser traduzida por estranho,ridículo, excêntrico, raro e extraordinário. Nos Estados Unidos ela foiusada para agredir aos homossexuais, uma palavra de tom pejorativo. Tamsin Spargo afirma “a palavra ‘queer’, antes lançada ou sussurrada como insulto, éagora orgulhosamente reivindicada como marca de transgressão por pessoas que se autodenominam lésbicas ou gays” (2006, p.3). A autora ainda apontaque queer pode ser usada como substantivo, adjetivo ou verbo, mas semprese definindo como algo contra o normal ou normalizador “na teoria e na prática,queer poderia ser entendido como um adjetivo que age como um performativo,que tem a força de um verbo” (Spargo, 2006, p. 59). Louro completa:
“queer é o excêntrico que não deseja ser ‘integrado’ e muito menos tolerado” (2008, p. 7).
Uma das formas de expressão que ganha importante eco na teoria queer é a corpórea. Butler (2003) considera que a identidade de gênero é performativamente construída, valorizando ainda o lugar do corpo na sua possibilidade de subversão. Assim, entendemos o corpo como objeto comunicacional e também folkcomunicacional. As intervenções estéticas –cirúrgicas ou não– representam uma forma de comunicar o ser, de expressar sua performance de gênero, não somente de formar um discurso, representando um ato simbólico que ultrapassa a fronteira da comunicação interpessoal e grupal.
No âmbito das identidades de gênero, mesmo que a aceitação social seja importante, o bem-estar do “eu” e a identidade do self, tantas vezes se tornam mais importantes. Neste ponto, a teoria queer contribui ao apresentar novos grupos marginalizados, que desenvolvem outros mecanismos de comunicação como forma de expressar e publicizar seu ser, mas que não necessariamente almejam uma integração.
A pesquisa de José Fábio Barbosa da Silva (2005) é a primeira análise da homossexualidade no Brasil, fora da área médica12. Embora seja um estudo sociológico, o autor também aborda traços da comunicação desse grupo, especialmente pelo viés da linguagem, como diz o autor
Nos grupos marginais13, os indivíduos submersos na cultura grupal, por causa das barreiras e sanções a que estão sujeitos pela sociedade global, tendem a de- senvolver um sistema simbólico que, de um lado, facilita a comunicação entre os indivíduos do mesmo grupo e, de outro, dificulta o entendimento por indivíduos que não participam da mesma cultura. Os caracteres que servem de fundamentação simbólica seriam o grau de isolamento em que se coloca o grupo em relação à sociedade mais ampla, a intensidade das sanções negativas desenvolvidas ao com- portamento e à expressão dos indivíduos, e o grau de coerência e unidade interna existente entre os membros do grupo. (Silva, 2005, p. 145)
A forma de comunicação esboçada por Silva nada mais é do que a comunicação per se. Trata-se da criação de códigos que ganham sentidos específicos dentro de um determinado contexto e por portadores de uma determinada cultura. É também a forma mais tradicional de folkcomunicação. De modo mais específico, Silva (2005) aborda a comunicação nos grupos homossexuais
Ao participarem de um grupo marginal fundamentado em características diferentes de comportamento sexual, sancionadas negativamente pela sociedade global, os homossexuais tendem a desenvolver e especializar um sistema de comunicação comum e restrito ao grupo, vinculado às áreas de significados que exprimem o comportamento e os fundamentos de sua posição marginal. (Silva, 2005, p. 146)
A comunicação interpessoal também foi a forma mais característica apontada por Rogério Bastos Cadengue (1980) em seu estudo sobre a comunicação em comunidades homossexuais. Embora com menos de 20 anos de distância, a pesquisa de Silva, desenvolvida na década de 1950 e a de Cadengue, nos fins dos anos 1970, revelam questões políticas bem diferentes, decorrente do regime político que caracterizou o Brasil a partir de 1964. Cadengue, contudo, aponta que além da repressão por parte do governo, as pressões advindas por parte da sociedade também “têm levado os grupos homossexuais a uma intensa fuga dos meios comunicacionais de comunicação, para, agrupando-se em clubes, entidades culturais, bares ou grupos classistas, trancarem-se em verdadeiros guetos” (1980, p. 186). A respeito da “sociedade”, Cadengue faz uma interessante comparação, que, de certa forma, ainda é possível utilizar para pensarmos nas relações contemporâneas
Ainda analisando a posição da sociedade quando à aceitação de homossexuais, poderíamos dizer que esse ranço e essas discriminações se notam mais a nível de classe média, o que demonstra mais uma vez a busca de ascensão, com a consequente busca de fuga à realidade, que existe neste componente da população. Para a classe média, como para a maioria da população brasileira, a única “bicha” que pode ser aceita é aquela mostrada pelos veículos de comunicação ou que se encontra em posição subalterna. É o cabeleireiro, que fala com trejeitos, ou o mordomo que serve de modo espalhafatoso à madame que aparece na novela14, ou ainda o travesti que veste sua roupa de miss e faz a alegria dos fotógrafos de Manchete ou de O Cruzeiro. [...]. Porém, ninguém quer aceitar que o rapaz que lhe vende carne, trabalha na mercearia, ou estudo em sua classe, a exemplo da moça nas mesmas condições, tem o direito de osten tar sua sexualidade e escolher parceiros para os jogos amorosos. Eles mesmos precisariam, ao invés de se trancar em guetos, procurar se libertar, liberando seus opressores. (Cadengue, 1980, p. 189)
Trancados em guetos, o grupo criou um próprio código, inclusive para ser usado pela mídia massiva15. Cadengue relata a estratégia de divulgações de saunas e banhos turcos que, em suas publicidades, usavam termos que só integrantes do universo homossexual masculino conseguiriam entender, como nesta passagem
Essas casas, com códigos que só os “entendidos” decodificam, podem ser vistas em anúncios veiculados na maior parte dos jornais diários, quando a comunidade aproveita-se da chamada grande imprensa para passar seus recados. O mesmo acontece com o comércio da prostituição feminina, que se anuncia como “massagens” e outros estabelecimentos do mesmo gênero. Nesses banhos turcos expressões como “aviões novos”, “poucas horas de vôo”, “máquinas em pleno funcionamento” podem indicar que existem parceiros recém-chegados, físicos privilegiados ou pessoas com bastante experiência no setor. (Cadengue, 1980, p. 194)
Por fim, o pesquisador aponta uma forma de comunicação muito cara à folk- comunicação, que são os escritos no banheiro. Cadengue observou bares como o Ferro’s16 e o Madiavel17
[...] têm frases escritas em seus banheiros, que merecem ser citadas, para que se possa notar o quanto existe de descontração: “Maria ama Ana”, “Rita é meu amor”, “Ana e Neusa...”, etc., como também “Eu amo Carlos. Gustavo”, “Procuro um verda- deiro homem para amar. Paulo”, “Eu transei com o Alemão” etc. (Cadengue, 1980, p. 194-195)
As frases identificadas pelo pesquisador beiram o “amor romântico”. Esse tipo de comunicação foi bem explorado por Beltrão (1980, p. 235-241), e ainda hoje é uma forma de folkcomunicação que comumente encontramos –talvez não com a singeleza percebida por Cadengue.
Para encerrar as formas de comunicação interpessoal, cabe mencionar as gírias de uso corriqueiro do grupo, abordadas, en passant, por Silva e Cadengue.
A importância deste tipo de comunicação pode ser notada por um glossário realizado pelos editores do jornal Lampião, atualizando seu público das novas gírias do próximo verão, conforme figura a seguir18.
O uso de tais termos, reconhecíveis apenas pelo grupo em questão, evidencia a existência de códigos próprios de comunicação que configuram as marcas identitárias dos homossexuais. Este processo comunicacional, que apresenta na fala um modo singular de produção de sentido, é atualizado constantemente pelos grupos sociais, em uma dinâmica que dialoga com as demandas do seu tempo. O uso das expressões mencionadas, além de servir como estratégia de identificação e pertencimento, pode também, em contexto diverso, remeter a determinadas lutas em torno à reivindicação de direitos.
Contemporaneamente, os termos e gírias utilizados por homossexuais, especialmente por travestis, ganham fôlego em vídeos compartilhados no YouTube. Tal linguajar ainda foi o tema da dissertação de mestrado de Nilson Alonso (2005), defendida no Programa de Pós-graduação em Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Alonso realiza uma ampla categorização dos termos utilizados, catalogados em uma observação participante realizada em São Paulo. A popularização dos termos utiliza- dos por travestis foi assim defendida pelo pesquisador: “Até por constituírem o segmento mais discriminado, os travestis possuem o vocabulário gírio mais hermético, mais defensivo e mais agressivo do que os demais grupos que participam da diversidade sexual, com muitos africanismo” (Alonso, 2005, p. 24).
Entre os termos mais recorrentes, de origem africana estão: adé, alibá, mapoa, amapô, okani, equê, entre outros.
No YouTube, se destaca do trabalho de Fábio Vieira, originalmente realizado como trabalho final para a disciplina de Linguagens Audiovisuais na Universidade Católica do Ceará. O sucesso do primeiro vídeo19 (GLOSSário das bixas), gravado em outubro de 2008 na Praça do Ferreira em Fortaleza, Ceará, o levou a gravar quatro anos depois –novembro de 2012– a segunda edição20 (GLOSSário das bixas, 2ª lição). Ambos são recordistas de acessos no portal. A repercussão do material foi tanta, que outras produções vieram na sequência, como é o caso do vídeo “Gírias Gays21” de Felipe Mastrandea, com 325.846 visualizações no canal.
Outra importante forma de comunicação desse grupo, como já havíamos mencionado, é a corpórea. Na visão de Monica Rector e Aluizio Trinta (1990), “comunicar é atuar sobre a sensibilidade de alguém, buscando mobilizá-lo, convencê-lo ou persuadilo. Nosso corpo é um instrumento de causa eficiente sempre que, em presença de alguém, tencionamos compartilhar emoções, transmitir ordens, partilhar ideias, etc” (Rector & Trinta, 1990, p. 7). O corpo como folkcomunicação é assim defendido por Suelly Maux e Ysabelly Morais
Usar o próprio corpo para se expressar é um meio primitivo, artesanal, impactante e folk de se comunicar. É uma maneira simples de falar muito sem tantos recursos. O método rudimentar gera impactância devido ao uso do corpo como veículo folk-comunicacional, e ganha espaço na mídia massiva, o que possibilita a expansão de um pensamento e a consequente proliferação cultural. (Maux & Morais, 2013, p. 10)
Butler (2007, p. 254) expõe que qualquer teoria do corpo culturalmente construído deveria por em dúvida “o corpo” por ser uma construção de generalidades duvidosas quando se entende como passivos e anteriores ao discurso. Ao perceber o gênero como algo performático, o corpo assume uma função vital.
Para a teórica
[...] actos, gestos y realizaciones –por lo general interpretadas– son performativos en el sentido de que la esencia o la identidad que pretenden afirmar son invenciones fabricadas y preservadas mediante signos corpóreos y otros medios discursivos. El hecho de que el cuerpo con género sea performativo muestra que no tiene una posición ontológica distinta de los diversos actos que conforman su realidad. Esto también indica que si dicha realidad se inventa como una esencia interior, esa misma interioridad es un efecto y una función de un discurso decididamente público y social, la regulación pública de la fantasía mediante la política de superficie del cuerpo, el control fronterizo del género que distingue lo interno de lo externo, e instaura de esta forma la “integridad” del sujeto. (Butler, 2007, p. 266)
O uso militante do corpo como forma de comunicação assume relevância na compreensão das lutas em torno das políticas de identidade. Pode-se observar este aspecto em dois exemplos que acionam o repertório de gênero para ganhar a cena pública: a Parada Gay e a Marcha das Vadias. Ambos os movimentos possuem abrangência internacional e são realizados no Brasil desde 1997 e 2011, respectivamente. Tratam-se de ações em torno da afirmação de identidades que visam combater o preconceito e a violência de gênero, embora apresentem variações em seus modos de realização. A Parada Gay, ainda que traga em sua base a reivindicação de direitos dos homossexuais, assume um tom festivo, evidenciado nos carros de som, performances e decoração colorida, que já que se tornaram atrativo turístico em algumas cidades, como São Paulo22. A Marcha das Vadias23, por sua vez, pauta a exposição do corpo como prática de resistência cultural e produz mensagens pautadas pela liberdade e autonomia sexual, em tom irônico e irreverente. De acordo com estudo que considerou o uso do corpo como forma de veiculação de ideias e o conteúdo das mensagens produzidas em cartazes da Marcha em diferentes cidades brasileiras, são acionadas novas formas de inserção dos movimentos sociais na esfera pública, por meio de manifestações populares nas ruas e nas redes sociais.
Na Marcha das Vadias, pode-se identificar uma série de práticas de resistência que inserem as ativistas do movimento feminista como líderes folk. Ao desenvolverem um trabalho em rede que acontece fundamentalmente através da internet –Facebook, fan page, Youtube, blogs, etcos grupos e coletivos de mulheres desenvolvem um sistema próprio de comunicação que cumpre o duplo propósito de formação e mobilização. Como resultado da visibilidade conquistada pelo movimento no ambiente virtual, tem-se a construção de novos padrões de auto-representação a partir da expressão de identidades de resistência, e o ativismo político que acontece nos formatos on-line (ciberativismo) e off-line (movimentos de rua). (Woitowicz, 2014, p. 94-95)
Tratam-se de práticas e manifestações culturais próprias de grupos e minorias sociais que transitam entre o reforço a determinados estereótipos e a afirmação da diferença, caracterizando um tipo de pertencimento coletivo. O sentido de disputa nas relações de poder se expressa, nos movimentos mencionados, em conteúdos que contestam as normas e padrões ligados à heteronormatividade, em um processo de reconhecimento das lutas contra as hierarquias de gênero.
É neste sentido que as expressões comunicacionais de contestação baseadas nas relações de gênero –identificadas nos estudos mencionados e apontadas por Beltrão em sua descrição dos grupos culturalmente marginalizados– repercutem no tecido social, tensionando valores, comportamentos e práticas que historicamente serviram para justificar discriminações e desigualdades.
Ao longo do presente artigo, foram recuperados os argumentos centrais apresentados por Luiz Beltrão em sua abordagem sobre os grupos marginalizados, destacando sua compreensão, no contexto dos anos 1970, dos chamados grupos erótico-pornográficos. Ao perpassar os marcos teóricos dos estudos de gênero e da teoria queer, tais construções relacionadas à sexualidade são apresentadas, com o propósito de lançar luz sob os modos de abordar as identidades, no contexto das disputas em torno das questões de gênero e da diversidade sexual.
Entende-se que é justamente para contrapor as diferenças que os grupos buscam maneiras de expressar sua identidade, muitas vezes transmitindo pelas margens, de maneira informal, os elementos de sua cultura. É neste sentido que, em meio ao processo de configuração do cenário cultural, marcado pela diversidade nas relações de gênero, as expressões folkcomunicacionais podem ser entendidas como espaços de fortalecimento e constituição de identidades dos grupos sociais, em contraposição aos padrões de uma cultura hegemônica, sexista e homofóbica.
De acordo com Raquel Paiva (2011), a luta contra-hegemônica realizada pelas minorias sociais24 envolve a visibilidade social e midiática, o que exige a utilização de certos recursos pelos ativistas para ganhar espaço na cena pública.
[...] os recursos das lutas dos ativistas também deveriam ser midiáticos. Sendo assim, não bastariam apenas existir com seus propósitos. Seria necessário também aparecerem, ainda que para isto devessem lançar mão de todo o aparato disponível para chamar a atenção e invadir a cena. (Paiva, 2011, p. 38)
Tais manifestações indicam a existência de um processo comunicativo que se dá por meio do corpo, da performance, da presença no ciberespaço e de outras formas de expressão que, em sua informalidade e força simbólica, constituem as práticas dos grupos marginalizados de ontem e de hoje, conforme se buscou demonstrar ao longo deste texto.
O debate proposto, ao acionar campos teóricos distintos, e ciente dos limites de tal abordagem, possibilita refletir sobre a permanente (re)construção das relações de gênero como marca da cultura, em um tempo e momento determinados. Afinal, se minoria “é uma recusa de consentimento, é uma voz de dissenso em busca de uma abertura contra-hegemônica no círculo fechado das determinações societárias” (Sodré, 2005, p. 14), as práticas de comunicação que acionam as questões de gênero e reconfiguram as sexualidades assumem o propósito de fazer ecoar mensagens contestatórias, em meio aos discursos sociais que silenciam as diferenças e negam a subversão das identidades de gênero.