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Celebrações informativas de uma morte anunciada: o falecimento de Hugo Chávez nas principais revistas semanais brasileiras
Frederico BRANDÃO TAVARES; Christa BERGER; Paulo Bernardo VAZ
Frederico BRANDÃO TAVARES; Christa BERGER; Paulo Bernardo VAZ
Celebrações informativas de uma morte anunciada: o falecimento de Hugo Chávez nas principais revistas semanais brasileiras
Informative celebrations of a proclaimed death: the death of Hugo Chávez in the main Brazilian weekly magazines
Ceremonias informativas de una muerte anunciada: el fallecimiento de Hugo Chávez en las principales revistas semanales brasileñas
Chasqui. Revista Latinoamericana de Comunicación, núm. 131, pp. 309-326, 2016
Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación para América Latina
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Resumo: O presente texto realiza uma reflexão acerca da cobertura da morte do ex-presidente venezuelano Hugo Chávez em quatro das principais revistas semanais de informação brasileiras (CartaCapital, Época, IstoÉ e Veja). Menos que julgar a cobertura realizada sobre a morte de Hugo Chávez nas revistas, pretende refletir, a partir dessas mídias e suas marcas, como tal acontecimento, presente num contexto midiático mais amplo, foi abordado por esses veículos. Observa-se o compósito construído pelas newsmagazines brasileiras sobre um grande acontecimento e, ao mesmo tempo, dizer sobre como, pelo seu fazer, tais revistas encontram-se em constante acontecer, comportando-se de maneira singular em coberturas de falecimentos de pessoas públicas.

Palavras-chave:acontecimentoacontecimento,newsmagazinenewsmagazine,Hugo ChávezHugo Chávez,obituário jornalísticoobituário jornalístico.

Abstract: This paper is a reflection on the coverage of the death of former Venezuelan President Hugo Chávez in the four major Brazilian weekly magazines devoted to news (CartaCapital, Época, IstoÉ and Veja). The study intends to think over media trends and their marks in a broader communication context, considering how such an event has been approached by the above-mentioned printed media, instead of problematizing on the coverage about the death of Hugo Chávez. The intention is to observe the composite built by Brazilian newsmagazines related to a great event and at the same time to explain how such magazines are constantly “happenning” due to their practices. Thus, they have a particular behavior when covering public people deaths.

Keywords: event, newsmagazine, Hugo Chávez, media obituary.

Resumen: Se hace una reflexión sobre la cobertura de la muerte del ex-presidente de Venezuela, Hugo Chávez, en las cuatro principales revistas semanales de información de Brasil (CartaCapital, Época, IstoÉ y Veja). El objetivo principal no es discutir la calidad de los materiales producidos, sino reflexionar, desde la naturaleza de este tipo de medio de comunicación y sus características, cómo este acontecimiento, presente en un contexto más amplio, fue abordado por estos vehículos semanales. Se intenta problematizar sobre el “compuesto informativo” construido por estas newsmagazines brasileñas para un gran acontecimiento y, al mismo tiempo, analizar cómo, por su quehacer, esas revistas están ellas mismas en un constante acontecer, comportándose de una manera particular en sus coberturas sobre las muertes de personas públicas.

Palabras clave: acontecimiento, newsmagazine, Hugo Chávez, obituario mediático.

Carátula del artículo

Ensayo

Celebrações informativas de uma morte anunciada: o falecimento de Hugo Chávez nas principais revistas semanais brasileiras

Informative celebrations of a proclaimed death: the death of Hugo Chávez in the main Brazilian weekly magazines

Ceremonias informativas de una muerte anunciada: el fallecimiento de Hugo Chávez en las principales revistas semanales brasileñas

Frederico BRANDÃO TAVARES
Christa BERGER
Paulo Bernardo VAZ
Chasqui. Revista Latinoamericana de Comunicación, núm. 131, pp. 309-326, 2016
Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación para América Latina

Recepción: 29 Mayo 2015

Aprobación: 10 Mayo 2016

1. Um acontecimento em revista

Hugo Chávez morreu. De conformidade com anúncios e prenúncios da quase unanimidade da mídia brasileira, em março de 2013, o “líder bolivariano” da política latino-americana saiu de cena. Desde a divulgação da notícia há alguns anos, da gravidade de sua doença, a maioria dos jornais, revistas, sites informativos, tele e rádio-jornais brasileiros vinham ensaiando em coro um gran finale, como se compusessem uma “missa de réquiem”1 . Sem música, mas com textos verbovisuais impactantes e condicionadores de sentidos sobre o acontecimento de sua morte.

Com a morte de Chávez já tendo sido largamente divulgada, cantada e recantada em solos de articulistas e em coros de jornalistas, a expectativa era a de que o final de semana seguinte ao acontecimento seria pródigo em matérias especiais nas revistas de informação – com destaque para as capas –, dada sua reconhecida importância no campo midiático.

Na mídia impressa semanal do Brasil, comumente celebrante do “algo mais a ser dito”, o falecimento do ex-presidente venezuelano trouxe consigo uma profusão de narrativas programadas e diagramadas, em formas e cores muito bem estudadas. A partir de 05 de março de 2013, dia do óbito, a mídia informativa brasileira em geral velou, em companhia dos rituais fúnebres oficiais, o corpo de Chávez. Cerca de uma semana depois do falecimento, em 11 de março, a revista Época chegou às bancas e às casas dos assinantes, seguida, dois dias depois, pelas outras três revistas brasileiras – Veja, IstoÉ e CartaCapital. As revistas “encerraram”, com destaque e de forma quase uníssona, uma leitura editorial, interpretativa e comparativamente díspare, do acontecimento2 . Na periodicidade que lhes é marca, acabaram por realizar uma missa dupla, de sétimo dia e de corpo-presente; e, ao fazê-lo, criaram, a partir de Hugo Chávez, uma cerimônia, também, sobre elas mesmas e suas formas de lidar com o acontecido3 .

Passados os últimos anos de uma morte anunciada, estavam ali, de uma só vez, os “santinhos”4 informativos do líder falecido. Desde as primeiras notícias do câncer de Chávez, a exibição de um atestado de saúde foi muitas vezes solicitado por jornalistas e editores, os quais insistiam na tese de que sua vida expirara, obrigando a família do moribundo a posar com documentos comprobatórios para demonstrar que ainda vivia. Para contrariedade da maioria da mídia, durante anos, Chávez sobreviveu. Tal recurso fotográfico, aliás, tem sido bastante empregado para contraditórios de notícias de mortes de líderes políticos que simbolizam resistência a oposições quase hegemônicas no mundo. Notícias divulgadas e, não comprovadas, já vistas nas caças a Osama Bin Laden, Sadam Hussein et alii. O que aconteceu com o próprio Hugo Chávez, em histórica “barriga jornalística” veiculada pelo principal jornal espanhol, El País, com fotografia no site da publicação, que indicava erroneamente, em janeiro de 2013, a morte do ex-presidente (Egypto, 2013).

É com base nesse cenário que o presente texto, menos que julgar a cobertura realizada sobre a morte de Hugo Chávez nas revistas semanais brasileiras, pretende refletir, a partir da natureza de tal mídia, sobre seus “modos de ser” (Tavares, 2011) e sua presença num contexto midiático mais amplo. Neste acontecimento ampliado, busca-se perceber traços de processos editoriais e jornalísticos específicos, do ponto de vista dos conteúdos e formas, compreendendo a “totalidade de sentidos” encerrada em determinada publicação. Sem realizar exatamente uma análise comparativa, como método exclusivo, buscar-se-á observar o compósito construído pelas newsmagazines brasileiras sobre um grande acontecimento5 e, ao mesmo tempo, dizer sobre como, pelo seu fazer, tais revistas encontram-se em constante acontecer.

A noção de compósito, em geral, corresponde a materiais que possuem dois ou mais elementos em sua composição, o que vale também para duas ou mais fases em se tratando de processos que se referem a propriedades físicas e químicas. O conjunto formado pela seleção das quatro edições das principais newsmagazines brasileiras na semana posterior à morte de Hugo Chávez, material empírico da análise realizada nesse artigo, constitui um “duplo” compósito, com sentidos e significados jornalísticos. Pode-se entender que as quatro edições reunidas: i) além de sintetizarem em conjunto uma leitura “interpretativa” sobre o acontecimento em tela – a morte de Hugo Chavez; ii) também representam um nicho específico do jornalismo brasileiro, sendo, por isso, um recorte possível – e expressivo – para se pensar a cobertura de um mesmo evento na mídia do Brasil, tanto a partir de características semelhantes dessa mesma mídia (periodicidade, formato etc.), como de suas singularidades (editoriais, ideológicas etc.).

Nesse viés, o artigo realiza uma análise que parte das capas das edições recortadas e percorre as páginas internas das revistas, num jogo de “frente-e- -verso” simbólico, explorando uma série de aspectos e conteúdos verbovisuais elaborados jornalisticamente para tratar do falecimento do ex-presidente da Venezuela. No percurso analítico, busca-se problematizar sobre textos e imagens, formas e conteúdos, a fim de compreender as especificidades e, diferenças, de um obituário semanal, que carrega traços de um jornalismo biográfico sobre uma personalidade internacional e que, ao mesmo tempo, revela traços de personalidades editoriais – as identidades das próprias revistas.

2. As revistas e a celebração fúnebre: um artefato em meio a vários outros

A personalização da morte no jornalismo cotidiano – desconsiderando sua onipresença em diversos acontecimentos e, consequentemente, uma relação direta com o anonimato – está, em geral, associada, aos chamados “obituários”. Nos jornais, onde estes se encontram por excelência, as mortes personificadas são uma espécie de “sobrevida discursiva”, na qual textualmente um perfil é construído em espaços e dimensões que irão variar de acordo com a publicação. Marocco nos lembra que

o relato da experiência vivida no obituário, a partir de outras valorizações que não a de valor-notícia, se distancia igualmente do simples anúncio fúnebre; com ela, aparece o acontecer no fluxo da cotidianidade sob forma de um quase indizível jornalístico, do qual o obituarista vai se aproximar optando entre dois procedimentos: redação final de um texto, com base nos materiais enviados ao jornal por amigos e familiares ou a investigação jornalística. (2013, p. 373)

Os obituários diante de tal dimensão discursiva poderiam ser, relembra a autora, identificados em pelo menos dois formatos: um mais cronológico e superficial e outro mais denso e autoral, marcado pela apuração jornalística, mas ambos responsáveis por formas de narrar e reordenar a vida dos obituariados. Suzuki Jr. (2008), baseado nos obituários do jornal The New York Times, famosos representantes do obituário de segundo tipo afirmado por Marocco (2013), comenta: “O bom [obituário] seria algo difícil de definir, pois [é] uma espécie de retrato instantâneo do sujeito. ‘Ele não revela tudo, ele transmite uma impressão vívida e precisa. Se o instantâneo é claro, o leitor tem uma rápida visão do sujeito, de suas conquistas, de suas fraquezas, de seu tempo’” (Suzuki Jr., 2008, p. 297).

Há, entretanto, uma dimensão a ser considerada neste contexto, que faz com que o apanhado dos muitos obituários midiáticos ganhe distinções não apenas relativas a uma narrativa ou a critérios de noticiabilidade e técnicas de apuração. Na passagem do fato ao acontecimento, a morte de alguém se torna, também, o acontecimento a ser tecido, o que traz, pelo personagem narrado, dimensões editoriais construtoras de marcas distintivas entre mídias e por mídias. Nesse sentido, a morte de Hugo Chávez, transformada em acontecimento de grande dimensão, mais que apenas tornar-se referente para uma cobertura se tornou, a exemplo de outras mortes de celebridades e pessoas públicas, dispositivo de movimentos de distinção e marcação entre os meios e suas leituras sobre o mundo. Seja por uma postura ideológica, seja por aquilo que lhes cabe enquanto mídia.

As newsmagazines brasileiras, entre a primeira e a segunda semana de março de 2013, viram-se diante de um cenário de rituais de cobertura jornalística e de celebrações fúnebres enredados por sentidos que vinham sendo construídos há meses (ou anos) e se posicionaram sobre o acontecimento e também dentro dele. Seja pelo corpo presente do ex-presidente, seja por seu “corpo significante” (Fausto Neto, 2013), tantas vezes focalizado desde a notícia de sua doença, as revistas encontravam-se em meio aos demais produtos jornalísticos e sua profusão de mensagens sobre a morte de Chávez, mas, ao mesmo tempo, na ponta impressa – interpretativa e editorial – de uma cadeia de sentidos múltiplos que “se processam na dinamização de um circuito informativo, e mediante um processo de circulação ativado por múltiplos atores e estratégias, que, a seu turno, tratam de instaurar, além desta cadeia, a complexificação da própria estrutura da mediação” (Fausto Neto, 2013, p. 42).

A “pauta de Deus”, tal como se refere Marocco (2013) jogando com critérios da produção noticiosa, coloca o obituário como, muitas vezes, local de noticiabilidade para “acontecimentos impróprios” e que não teriam “em si” valor-notícia. Inclusive na aproximação textual com o literário, tais relatos, em grande medida, tornam a morte “acessório de um acontecimento estético, cuja apreensão é concebida na relação entre o jornalista e o que se configura como um objeto de valor, em um ritmo que não é natural ao jornalismo […]” (Marocco, 2013, p. 374). Há neles uma espécie de compromisso com a memória e com o nostálgico; e não, estritamente, com o fato e seu entorno, relação reveladora do acontecimento.

Na cobertura da morte de Chávez e nos diversos obituários construídos, tal dimensão “divina” não esteve excluída. Mas cercou-se de outras características, inserida e entrecruzada que esteve por pautas de ordem política e demais ordens temáticas, além de enredos editoriais e apuros de editoração bastante específicos. No caso das revistas semanais brasileiras, publicadas alguns dias após a morte e durante os rituais fúnebres voltados ao velamento do ex-presidente venezuelano, esse jogo jornalístico entre o obituário, a “noticiação” da morte, a construção de edições voltadas a uma grande cobertura, assim como o entrecruzamento de pautas e editorias, formou um interessante compósito simbólico, que, na cadeia de sentidos formada por outros meios de comunicação e seu circuito, leva-nos a pensá-las, elas mesmas, como um acontecimento dentro desse enredo, como “corpo significante”, tal qual Chávez (Fausto Neto, 2013), ou um artefato jornalístico de devoção, não apenas pelo colecionável que marca tais edições “históricas” – todas elas –, mas pela inserção do obituariado numa leitura jornalística relacionada ao imaginário mitológico que cercava os enquadramentos em constituição naquele momento.

Tal como um santinho religioso, que apresenta um santo ao seu devoto, as quatro principais revistas semanais que apresentaram Chávez realizaram um frente-e-verso imagético-textual, oferecendo a seus leitores a celebração e anunciação, noticiosa e “revistativa” (Tavares, 2011) de sua morte e daquilo que habitava o seu contexto, tanto em sua densidade temporal quanto em seus campos problemáticos (Quéré, 2005). Como lembra Menezes sobre os santinhos de devoção católicos, a partir de um olhar antropológico:

Conjugam-se, então, nos santinhos referências não apenas a um modo de dizer, mas também a um modo de fazer, ou melhor, a um modo específico de fazer o dizer. Não basta rezar a oração, é preciso fazê-lo em situações determinadas, de formas precisas, o que aponta para uma composição de fala, gesto e contextos. O santinho contém uma mini liturgia e indica que a prece deve ser uma performance, uma combinação de regra, costume e sentimentos postos em ação. (2011, p. 57)

Nas revistas, certa conjugação informativa colocou em cena um modo de dizer o acontecimento e um modo de fazer (de fazer o dizer). Mais que noticiar o que houve, foi preciso fazê-lo de certa maneira, editorial e noticiosa, reconhecendo o contexto mais amplo do acontecimento e o contexto mesmo em que as revistas se situavam e operavam.

3. O obituário semanal-biográfico-político de Hugo Chávez

Leitores habituais ou compradores esporádicos de revistas semanais – bem como transeuntes que passam em frente às bancas de revistas –, todos costumam perpassar os olhos pelas capas das quatro newsmagazines brasileiras. Nos pontos de venda, as revistas são estrategicamente dispostas lado a lado, ou uma sobre a outra, de modo a exibi-las, tal como uma “vitrine para o deleite e a sedução do leitor”, de acordo com Marília Scalzo (2004, p. 62). Estão ofertadas, disponíveis, seja para um consumo ocular, de contemplação, seja para o consumo de posse, de compra (ou assinatura). Como objeto que será lido e, possivelmente, guardado.

Na semana posterior à morte de Hugo Chávez, a revista Época, primeira revista a circular, em 11 de março de 2013, dedicou 26 páginas a uma edição especial da seção “Tempo”, voltada para os acontecimentos no Brasil e no mundo ao longo da semana. Foi, de longe, a maior cobertura entre as quatro revistas semanais do país. Naquela semana, toda a seção “Tempo”, com versal grafada em vermelho, voltou-se para a morte do ex-presidente venezuelano. Nela, uma reportagem principal – “À sombra de um corpo embalsamado” (de cinco páginas, falando do “acontecimento” em si) – foi acompanhada de outras três reportagens repletas de infográficos e imagens, repercutindo a morte do “líder bolivariano”: “A era perdida da Venezuela” (nove páginas), “O homem que queria ser mito” (oito páginas) e “Um outro mundo é possível” (quatro páginas). Ainda destaca-se na edição a capa, com o rosto de Chávez, da qual falaremos posteriormente.

No dia 13 de março, circularam as outras três revistas. Nas capas de Veja (publicada pela Editora Abril, maior grupo de mídia-revista brasileiro), e Época, foi dado destaque ao rosto de Chávez. No interior da revista Veja, dois textos em orientação ideológica não muito distante à da revista das organizações Globo (maior grupo de mídia do Brasil) falam do acontecimento6 . O editorial sem assinatura presente na página 13, intitulado “Lágrimas para o déspota”, e uma reportagem de cinco páginas, na editoria “Internacional”, cujo título foi “A maldição da múmia”, seguida de uma retranca de página e meia, intitulada “Bom só para o PT”, na qual uma grande foto de um flagra de Chávez em conversa com o ex-presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva, sorridente, ocupa cerca de um terço do espaço noticioso. IstoÉ cedeu apenas um pequeno espaço à morte de Chávez em sua capa, com uma chamada secundária, na parte superior da página – “Hugo Chávez: para onde vai a Venezuela depois do caudilho”, preferindo destacar a morte, na mesma semana, do ex-líder da banda Charlie Brown Jr., o vocalista Chorão. É ele quem protagoniza a página frontal da revista. No entanto, em seu interior, Chávez estrela o Editorial (assinado pelo diretor Carlos José Marques), na página 20, “A construção do Chavismo” e outras oito páginas na editoria “Internacional”, com a reportagem “Por que a Venezuela chora por Chávez” (seis páginas) e um artigo de página dupla, de autoria de Paulo Moreira Leite, chamado “Encontros com Chávez”. IstoÉ, como Época e Veja, alinha-se a uma visada crítica sobre o chavismo e segue o tom de denúncia e pessimismo7.

Destoando dessa linha, CartaCapital8 traz Chávez em sua capa, porém de forma ilustrada, mais emblemática e menos realista (como veremos em seguida), acompanhada de um dizer forte e orientado a um viés positivo: “A morte de um líder”. Nela, o editorial de Mino Carta, importante jornalista que trabalhou nas criações das revistas Veja e IstoÉ, na página 18, “Notável reformador”, ressalta as objeções possíveis ao governo chavista, mas a liderança e o exemplo de Chávez. No interior da revista, na editoria “Nosso Mundo”, reportagem de quatro páginas, “Uma transição delicada”, pondera sobre as dificuldades, principalmente econômicas, que o sucessor do ex-presidente teria em seu governo. Seguido a esse texto, um artigo de duas páginas “O amor e o ódio na Venezuela”, de André Barrocal, relata a experiência do autor durante a vivência de sete meses na Venezuela chavista.

As publicações, ao enredarem o acontecimento-morte pela ótica política, tendo Chávez como protagonista – um requiém biografado, mas, ao mesmo tempo, personificando “de forma moribunda” um país e um governo –, realizam um “duplo obituário”, além de tornarem-se, no rol de produtos informativos que pulularam matérias sobre o acontecido, também um acontecimento discursivo, material, cujo todo editorial é artefato fúnebre, resultado, histórico, de uma cobertura jornalística.

3.1. Chávez nas capas e seus dizeres

Em artigo que trata da cobertura do acidente do Airbus A320 da companhia aérea brasileira TAM, em julho de 2007, Vaz (2009) levanta a hipótese de que as capas de revistas, além de vitrines, são interfaces discursivas apropriadas por seus leitores, ou por seus espectadores tout court: “O flagrante da exposição das capas em bancas permite a recomposição de conversações, diálogos e até monólogos propostos pelos veículos, empreendidos e apreendidos pelos leitores que se apropriam de sentidos” (Vaz, 2009, p.1).

Diversas são as leituras do acontecimento proporcionadas pela disposição de suas capas nas bancas9 . Quatro dessas congêneres brasileiras, expostas em diferentes posições, totalizam 24 possibilidades de apreciação. Isto é, “reconstroem” 24 textos compostos pelas principais manchetes, aos quais se somam as representações visuais, que, no caso de nosso recorte, são quatro retratos. Das 24 possibilidades de leitura das quatro capas, tomemos apenas um exemplo, fragmentadamente. Nesta ordem de apresentação Veja > Época > CartaCapital > Istoé: as manchetes das quatro revistas apresentam ao leitor o seguinte texto, em seu conjunto:




Nota-se também que os nomes das revistas se apresentam nas capas hierarquicamente no primeiro nível de leitura a ser feita por qualquer espectador. Além de se posicionarem em espaço tradicionalmente mantido com a mesma tipografia e localização – no caso de Veja, há mais de 45 anos – e como seus nomes têm um reconhecimento semântico bastante evidente (como o verbo no imperativo “veja”, o substantivo “época”, o substantivo acoplado ao adjetivo “carta capital” e a locução interjetiva “isto é”), se emendamos, portanto os nomes das revistas às suas manchetes oferecem-se-nos os seguintes textos:




As leituras das capas são notadamente verbovisuais. As capas aparecem como cartazes – ou cartazetes, por seu formato – exercendo a função de vitrines, como já foi observado acima. Das imagens exibidas nas capas dessas quatro edições, três são representações visuais de Hugo Chávez e a quarta, uma fotografia de Chorão, ex-vocalista da banda Charlie Brown Jr. Observando atentamente cada uma delas – e depois em seu conjunto – notaremos que:

  1. 1. A manchete de Veja aparece sobreposta no lado direito da capa sobre fotografia colorida, em close up, onde aparecem detalhes pequenos de sua pele, como suas verrugas e poucas rugas. Apenas o nome Chávez é vazado em vermelho, o resto da manchete, em branco. A revista utiliza o recurso de uma iluminação lateral, com o efeito do chiaro-oscuro, cujo mestre maior foi o pintor barroco Michelangelo da Caravaggio, cujas cenas pictóricas dramáticas marcaram os últimos quatro séculos de história da arte. Sobre a fotografia toda a luz incide sobre a parte direita do rosto de Chávez, deixando o lado esquerdo de seu rosto em total escuridão. Nesta área escura como se completasse a face oculta do presidente morto, é estampada a manchete como um epitáfio: “1954 – 2013: Chávez: A herança sombria”. A metade direita do rosto de Chávez é mostrada da maneira mais ampliada possível, com seu olhar voltado para o lado esquerdo da página, e não mirando direto nos olhos do leitor, como é usualmente adotado pelas publicações nas fotografias em suas capas. Veja talvez queira dizer ao seu leitor: “vejam para onde olha este homem que deixa ao mundo uma herança sombria”, portanto, conotativamente ruim, para o país por ele governado, a Venezuela.
  2. 2. Época, assim como Veja, prefere mostrar apenas o lado direito do rosto de Hugo Chávez, jogando o seu lado esquerdo para fora do quadro. Foto em preto e branco, em close up, como se desse ao leitor uma grande lente de aumento para observar a pele do morto. Como a fotografia foi deslocada para a direita da capa, todo o lado esquerdo permanece na penumbra, abrindo espaço para a manchete e para as chamadas secundárias. A manchete anuncia em grande destaque, em vermelho: “Depois de Chávez”. As quatro pequenas chamadas estão abaixo (“O homem que quis se transformar em mito”, “Por que a América Latina precisa se livrar de seu legado”, “O fracasso de seu governo na Venezuela” e “O sucesso dos países que fizeram o contrário do que ele pregava”), em branco, com pequenos triângulos vermelhos apontando como setas. O que Época anuncia para depois de Chávez são aspectos da realidade política econômica e social que a revista, como sua congênere Veja, aponta como ruins. Mas diferentemente de Veja, Época escolheu uma fotografia do morto que olha diretamente nos olhos de todos que o vêem depositado no esquife, isto é, na capa.
  3. 3. “A morte de um líder” é o grande destaque verbal vazado em branco que CartaCapital posiciona exatamente sobre o ombro direito do retrato de Hugo Chávez, mas desta vez, um desenho em três cores, trabalho de arte gráfica feito a partir de uma fotografia. Com fundo azul claro, o retrato é colorido de vermelho e amarelo. O azul celeste das costas do líder parece apontar para um clima bem mais ameno do que pode ser entendido como o “tempo venezuelano” apontado pelas outras revistas congêneres. A escolha de um desenho em alto-contraste, de duas cores quentes (vermelho e amarelo), retrata o morto de maneira mais viva, uma referência, à linguagem gráfica adotada por grafiteiros na técnica chamada de stencil10. O alto contraste apagando todas as nuanças das fotografias em close estampadas por Veja e Época deixa CartaCapital falando mais alto e “popular”, numa linguagem reconhecidamente retirada dos muros das cidades.
  4. 4. A sugestiva manchete de IstoÉ “Uma história de paixão e luxúria” é sobreposta à fotografia colorida de Chorão, ex-vocalista da banda Charlie Brown Jr., que aparece de boné, vestido com uma camisa vermelha, entrando pela esquerda da capa e deixando livre o espaço à direita para outra fotografia pequena, do rosto de sua ex-mulher, cuja fala aparece em destaque, no centro da página: “Tentei de tudo para salvar o Chorão”. A chamada secundária no alto da capa diz “Hugo Chávez: Para onde vai a Venezuela depois do caudilho”, ao lado de uma pequena fotografia de chavistas que se abraçam e choram.

Dentre as relações que o leitor pode fazer da fotografia da capa de IstoÉ com as três primeiras capas a mais evidente é a cor vermelha da camisa do cantor popular brasileiro. Chávez tinha o costume de aparecer vestido de camisa e boina vermelhas, assim sendo comumente mostrado nas telas e em jornais e revistas. Também vermelha é a cor da camiseta de um dos personagens retratados no alto, à esquerda, junto à chamada secundária sobre a morte de Chávez.

Notemos que a capa de IstoÉ trata da morte de um líder de massa. E as relações da capa de IstoÉ com as três outras revistas podem ser também estabelecidas a partir de sua manchete “Uma história de paixão e luxúria” que grita tão alto quanto as três outras manchetes. Este “tom de voz” elevado é dado pelo grande corpo da letra em caixa alta e pelo contraste branco-vazado do texto com a fotografia de fundo. Muito embora as marcações de uma mídia atualmente tida como “direitista” possam apontar para este subentendimento do texto, dado o tratamento dispensado aos acontecimentos políticos na Venezuela durante os últimos mandatos de governo chavista, a leitura daquela chamada secundária no alto da capa “Para onde vai a Venezuela depois do caudilho” parece tentar induzir o leitor a tal interpretação do texto apresentado em manchete.

Chamamos, pois, a atenção para a aleatoriedade da disposição das capas de revistas nas bancas, assim como aleatório pode ser o acesso por seus leitores em sites informativos. Neste sentido, ressaltamos a riqueza do processo de leitura. Ou melhor: de leituras, pois não há limites para que o processo se complete. Trata-se de um work in progress constantemente praticado por leitores soberanos. A cada mudança da disposição das capas – que permite uma nova ordem de leitura até que se completem as 24 diferentes – muda-se o conceito. Conceito não propriamente proposto pelos editores responsáveis por cada publicação, e sim, resultante do processo de recepção de seus leitores, ou por seus espectadores que recompõem – e propõem – novos conceitos em sua mente, local exato onde se completa o processo comunicativo. E essa mesma disposição pode ser pensada analiticamente, como recurso para a interpretação do compósito de sentidos e significados totalizados no obituário “coletivo” e editorial de Chávez, que se apreende da leitura das revistas.

Ao expor sua metodologia de análise da leitura de capas de revistas, Vaz (2009, p.4) diz de uma “escrita figural” a partir do princípio do ideograma empregado por Eisenstein em suas composições cinematográficas (citado por Campos, 1986): “Ao observar as capas das quatro revistas, quatro objetos, falamos de visualidades que correspondem a quatro hieróglifos que, justapostos, propiciam a leitura figural de um conceito só formado na mente do espectador, por meio da combinação – das quatro capas – encontrada na banca” (Vaz, 2009, p. 4).

Desta forma, as imagens em close up usadas nas três capas, uma fotografia em quadricromia, uma fotografia em preto e branco e um desenho em três cores, elaborado a partir de uma fotografia de Hugo Chávez, são a expressão de um morto-vivo apresentado em três versões para um conjunto de textos, diretamente relacionados às representações visuais.

É secundária – isto é, de menos importância – a ausência do corpo de Chávez na quarta revista. A opção de IstoÉ foi decerto a de destacar outro morto, o reconhecido Chorão dos adolescentes brasileiros, em uma grande fotografia onde aparece como bad boy de barba por fazer, junto à pequena foto de sua ex-esposa que fala bem alto, menos pelo corpo tipográfico do que pela coloração amarela em alto contraste com o fundo preto e vermelho. Contudo, ao ser feita a leitura desta quarta entre as três outras capas monotemáticas, este “não dito”, passa a “dizer” alguma coisa, dada certa “ambiguidade” dos textos lidos – e compreendidos – no conjunto com as demais revistas lançadas nas bancas no mesmo final de semana. Revistas estas, as três outras, em cujas páginas frontais o acontecimento acontece e aparece. Já IstoÉ parece dizer que acontece, mas prefere não deixar aparecer. Pelo menos em sua capa, deixando-o para o seu miolo.

3.2. Celebração da morte e anúncio (anunciação) do fim da revolução bolivariana

Olhando para além das capas, podemos traçar também os liames e diferenças editoriais presentes nas revistas pela cobertura da morte de Chávez, o que aparece de certa forma, é uma redenção do morto pelo jornalismo, mesmo que quando em vida este tenha sido criticado e ofendido. Observando as três revistas que deram maior destaque à cobertura, pode-se dizer que, no caso de Hugo Chávez, Época, IstoÉ e Veja mantiveram uma cobertura animosa, com destaque. Repassaram ou reviveram os principais fatos em que ele teve protagonismo, confirmando o dito anteriormente em outros momentos – mais pela crítica que pelo elogio –, agora na cobertura de sua morte. Movimento distinto daquele realizado por CartaCapital que, ressaltando qualidades do ex-presidente e de sua trajetória, também colocou em dúvida (não no sentido de questionamento, mas de incerteza), os rumos advindos em função de sua morte.

No interior das revistas, é possível observar três grandes movimentos de noticiação, correspondentes a seus aspectos editoriais e ao resgate feito sobre o que antes se falou acerca de Chávez. Um primeiro movimento diz respeito a como Chávez foi designado; um segundo corresponde a que sentidos suas ações de governo receberam; por fim, um terceiro, que diz sobre os prognósticos para a Venezuela11.

  1. 1. A carta ao leitor de Veja, “Lágrimas para o Déspota”, já diz como a revista conota o ex-presidente. É esse o tom que permanece na amarração sobre “quem era/foi” Chávez. Um sentido negativo, aparente no uso da palavra “múmia”, em referência ao corpo embalsamado do governante e também na adjetivação presente na entrevista com o ensaísta e historiador mexicano Enrique Krauze, que aparece como seção no interior da reportagem principal da revista. Como afirma Krauze: Chávez foi o “último caudilho”. Época nomeia Chávez como “aquele que quis se transformar em mito”, como “líder carismático, mas um “péssimo governante” e um “heroi popular”, mas “herdeiro do populismo dos caudilhos latino-americanos”. IstoÉ relata essa mesma imagem “caudilhista” e como ela se construiu associada a outros modelos políticos (a revista faz menção ao peronismo e ao getulismo) e mesmo religiosos (quando faz associação ao messianismo). Para a revista, Chávez, com seu discurso contra os Estados Unidos, atraiu as “viúvas” da velha esquerda latino-americana e ressuscitou antigos fantasmas. Palavras como “burguesia”, “revolução” e “imperialismo”, que pareciam “enterradas” no passado recente, foram reatualizadas pelo “caudilho”. Época e IstoÉ relatam sobre o programa dominical que Chávez possuía na televisão, transmitido em cadeia nacional. Deixam transparecer, sem mencionar diretamente, a lição aprendida com o “mestre” Fidel Castro12, “campeão” no uso de discursos longos e ocupação simbólica de espaços; bem como, pela exibição maciça da imagem, o aprendizado em relação a esse recurso também muito utilizado por Mao Tsé-Tung, Stálin, entre outros, que “adoravam” (estratégica e narcisicamente) espalhar fotografias de seus rostos. A designação de Chávez enredada pelas três revistas, aponta para uma leitura editorial e ideológica, mas ao mesmo tempo traz consigo uma interpretação à luz da “midiaticidade” de Chávez. Não se pode negar que o ex-governante era também bem-humorado, tinha habilidade natural para fazer tiradas rápidas, era bem quisto por muitos, o que leva a suas outras designações usuais, de “carismático” e “líder”, nomeações marcantes na leitura da revista CartaCapital. No editorial da publicação, escrito por Mino Carta, faz-se menção praticamente direta à Veja, usando de palavra presente coincidentemente no título da “Carta ao Leitor” da concorrente da Editora Abril, para questionar a leitura da grande imprensa e, consequentemente, os movimentos jornalísticos que antecedem esse episódio, em respeito a “demonização” de Chávez. Diz Carta: “Nem tudo na atuação de Chávez merece admiração, mas seus méritos estão expostos à luz do sol. Leio as diatribes ficcionais da nossa mídia, dizem que se tratou de um déspota comunista. A definição é tão imprópria quanto foi batizar de ‘terrorista’ quem lutou contra a ditadura civil-militar”, neste último caso, numa referência direta ao tratamento de Veja em relação à atual presidenta brasileira, Dilma Rousseff.
  2. 2. Época, IstoÉ e Veja, ao relatarem sobre as ações de Chávez durante seu governo, realizaram um espécie de retrospectiva de falhas e decisões pouco acertadas, qualificando o período chavista na Venezuela como uma espécie de “passado a ser esquecido”. Em certa medida, ao aventurarem-se pela interpretação política a fim de construir, também, um obituário do expresidente, rememoraram feitos do falecido presidente em tom assertivo e moralista. Nos textos de IstoÉ, lê-se que Chávez promoveu uma “onda de estatização”, dada sua “sanha revolucionária”. Em outras palavras, Chávez teria sido, segundo a revista, um desastre para as finanças do país, deslocando o dinheiro do petróleo, que parecia fácil e seguro, para a disseminação do chavismo mundo afora, sendo também desperdiçado, sobretudo, pela corrupção. Além disso, Época e Veja, principalmente, apontam para um Chávez refratário ao debate aberto, que cassou a licença de emissoras de tevê e perseguiu jornais. Entre os periódicos, Veja é o mais direto e julgador. Para a revista, Chávez passou “como um tanque” sobre as instituições, pressionando e aparelhando os tribunais superiores. Intimidou e inviabilizou o funcionamento das redes de televisão independentes, encarcerou adversários políticos e criou milícias partidárias armadas que se confundem com os bandos de criminosos comuns. Na retranca que encerra a cobertura sobre o episódio, o título da matéria, “Bom só para o PT”, alinha-se à campanha declarada da revista de combate ao Partido dos Trabalhadores e ao atual governo federal brasileiro, indicando, pelo obituário, marcas explícitas de sua linha editorial. Segundo o texto, já no seu subtítulo, “a intimidade entre o partido do governo e Hugo Chávez ajudou a financiar o PT e satisfazer sua ala mais radical. Já o Brasil só perdeu com ela”. E mais, para a publicação, Chávez fez em seu país o que o PT originalmente queria fazer no Brasil, mas não pôde, porque aqui há instituições fortes e uma “imprensa vigilante” – onde a revista, pretensamente, se incluiria13. Época, a que realiza a cobertura mais extensa, o faz em sete itens; em um balanço da gestão chavista indicado como ruim/negativo: 1) ambiente de negócios (fuga de investidores), 2) inflação (aumentou), 3) violência (aumentou), 4) saúde (piora nos indicadores), 5) democracia (corrosão do Estado de direito), 6) pobreza (apenas mitigada por programas assistencialistas, estaria ligada à escassez de investimentos e à dependência do país a um único setor, o petrolífero) e 7) analfabetismo (embora erradicado, os críticos de Chávez apontam para o componente de doutrinação política que foi incluída nas aulas). A reportagem principal de Veja, na escalada dos intertítulos, também elenca tal cenário de problemas. É curioso observá-los no encadeamento do texto, na seguinte ordem, incluindo os infográficos: “As mentiras da doença”, “A volta dos militares”, “Destruição das Instituições”, “A mentira como política”, “A equação do atraso”, “Culto à personalidade”, “Dilapidação do Patrimônio”, “Demonização da classe média”, “Intervencionismo”, “A bajulação dos tiranos” e “A utopia do bem coletivo”. IstoÉ, nesse aspecto, chega a expor uma comparação entre “Onde Chávez errou” e “onde Chávez acertou”, aproximando-se, nesse sentido, à cobertura de CartaCapital. Em sua matéria principal é possível ler: “Até os críticos mais severos reconhecem a eficiência de sua política de combate às desigualdades sociais”. CartaCapital, nesse viés opositivo, preferiu lançar mais perguntas (do que afirmações) sobre o futuro do país, sem deixar de exaltar, com relação ao passado e às ações de Chávez, uma avaliação positiva. Além do Editorial de Mino Carta, que lembrar que o ex-presidente venezuelano foi tão criticado por bater de frente com uma “minoria privilegiada”14, Chávez é lembrado como alguém que “foi popular tanto por distribuir riqueza quanto por levar a sério a construção de uma ‘Pátria Grande’ latino-americana” (p. 39).
  3. 3. É deste ponto, de valorização do passado e incerteza sobre o futuro, que as publicações se encontram, numa encruzilhada. CartaCapital lança perguntas e deixa no ar dúvidas sobre qual será o destino político e econômico da Venezuela sem a figura de Chávez. O subtítulo de sua matéria principal é enfático em dizer: “Hugo Chávez lega ao sucessor muito entusiasmo popular. E também uma situação econômica difícil de administrar sem seu carisma”. Chega a questionar todo o enredo da doença de Chávez, lembrando os episódios de dúvida sobre suas reais condições de governar desde o anúncio de sua doença em 2010. As outras três revistas, entretanto, partem dessa incerteza para afirmar sobre a (certa?) “libertação” do país e da América Latina do chavismo. IstoÉ, novamente um pouco mais alinhada a CartaCapital, traz o tom da dúvida, lembrando que o vice de Chávez, Nicolás Maduro, seria o favorito para vencer a nova eleição, mas questionava sua capacidade para realizar as reformas econômicas. O tom das revistas, Época, IstoÉ e Veja, afirma que seriam mesmo remotas as chances de a Venezuela pós-Chávez retornar ao trilho do crescimento e evitar uma ruptura social. Essa seria, em certa medida, a realidade na gestão chavista, mas ele encobria o dramático quadro com suas ações de natureza assistencialista. Veja é categórica ao afirmar que Chávez atendeu às demandas de curto prazo das massas e, “no melhor estilo populista”, “mandou a conta para as gerações futuras”. Nesse sentido, Época propõe que o desafio da Venezuela depois de Hugo Chávez será o de se livrar do espectro de um mito e de sua herança de má gestão pública e desprezo pela democracia. Em outras palavras, lidar com o legado de Chávez significa, em grande parte, livrar-se dele. Um legado que incluiu alguma melhoria nas condições sociais, mas que foi, principalmente, uma herança de autoritarismo, instituições enfraquecidas e ambiente econômico à beira de um colapso. É o que se pode afirmar pelo conjunto dos textos.

Como no verso de um “santinho” religioso, as páginas interiores das revistas semanais brasileiras, apesar das muitas imagens nelas contidas, realizam/ contêm “preces” que se constroem a partir da personificação de um episódio, a morte de uma grande figura pública, mas também por vários outros tipos de subjetivações que cercam a transversalidade do tipo de obituário que ali se realiza. Se nos versos dos santinhos predominam os textos, não é errôneo afirmar que os textos compostos pelas revistas sobre Chávez, em sua aproximação e, principalmente, diferenciação editorial, lembram, tal qual uma oração (às vezes totalmente às avessas), “o reconhecimento das capacidades do santo, o enaltecimento de suas virtudes e a marcação intensa de assimetria entre quem fará um pedido e quem o atenderá” (Menezes, 2011, p. 56). No caso dos leitores, diferentes dos devotos, mas considerando o misto entre a sacralidade do dito jornalístico, credível, e aquela que envolve o obituarizado em questão, os textos das revistas, menos que uma oração, aparece como anúncio de morte e de vida. Não de um prometido que virá, mas de outro que se foi e cujo falecimento traz uma anunciação específica e materialmente construída.

As newsmagazines brasileiras, ao se debruçarem sobre o tema, “obituarizam” de forma dupla e complexa (para não dizer contraditória) o ex-líder venezuelano: nelas, a morte de um governante fala, pela cobertura política que lhe é guiada, de “todo” um país (seus habitantes, “amigos” e “inimigos”) – que segue vivo. Fazem-no, portanto, menos de maneira “literária”, no sentido de um obituário clássico, mas de maneira editorial, porque jornalística, personalizando uma forma de dizer sobre um tipo de morte (política), sobre uma morte (de Chávez), jornalisticamente diferente (como revistas) e editorialmente singular (ideologicamente caracterizada). São elas, portanto, as revistas, artefatos de valor numa cadeia de sentidos midiática, encerrando significados a partir de uma temporalidade, de uma materialidade e de um fazer, assim, como são, também, artefatos pessoais, disponíveis para consumo e leituras, que, tornam-se ou não ex-votos em constante acontecimento, a cada nova morte, estarão sempre, a celebrar o acontecer.

Material suplementario
Referências bibliográficas
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Notas
Notas
1 Fausto Neto (2013) constrói uma espécie de percurso sobre a “circulação midiática” da enfermidade de Hugo Chávez.
2 As quatro principais revistas semanais de informação brasileiras somam juntas cerca de seis milhões de leitores por semana, segundo dados de 2014 do Instituto Verificador de Circulação (IVC), consolidados pelo Anuário Mídia Dados do Grupo de Mídia de São Paulo. A revista Veja é a de maior tiragem entre as publicações, com aproximadamente um milhão de exemplares a cada sete dias e, um total de três milhões de pessoas como público leitor. Em 2007, segundo Benetti e Hagen (2010), o conjunto das revistas possuía cerca de 7,5 milhões de leitores e um total de 1,9 milhões de exemplares de tiragem, o que correspondia a 52% do mercado leitor de revistas de tiragem semanal no Brasil.
3 Benetti e Hagen (2010) problematizam, com base na perspectiva da análise do discurso, como as principais revistas semanais brasileiras constroem uma “imagem de si”, elaborando junto aos leitores um “contrato de comunicação”. Os autores revelam, a partir de dados disponibilizados pelas revistas e por dados auditados por associações de mídia no Brasil, diferenças e marcas do perfil editorial das publicações e de seus consumidores. Segundo Benetti e Hagen “esses indicadores são relevantes, mas não permitem depreender nuances, comportamentos de grupo, posições políticas ou outros fatores importantes para saber quem é o leitor real. São indicadores que acabam norteando as escolhas temáticas, os ângulos de abordagem e o perfil dos anunciantes de cada veículo” (2010, p. 128).
4 Para Menezes “[O]s santinhos são geralmente pequenos folhetos impressos em offset, em pedaços de papel couchê, 10 cm de altura por 5 cm de largura, compostos, de um lado, pela imagem colorida de um santo ou santa, e, do outro, por um texto, ambos arranjados mais comumente de maneira vertical” (2001, p. 46). Similares a esses, encontram-se os santinhos distribuídos em Missas de 7º dia, tradicionais artefatos na celebração do luto para a tradição cristã. Neste texto, apesar de nos referirmos aqui a este segundo tipo de “santinho”, teremos a referência dos significados expostos no primeiro tipo para pensar certas composições dos “santinhos informativos”, metáfora criada para pensar a cobertura da morte de Hugo Chávez nas revistas.
5 Sobre as complexas relações entre jornalismo e acontecimento ver: Benetti & Fonseca (2010); Antunes, Leal & Vaz (2011); Marocco, Berger & Henn (2012); Vogel, Medistch & Silva (2014).
6 Tanto Época (fundada em 1998) quanto Veja (criada em 1968) pode ser associada, atualmente, a uma postura editorial de caráter mais liberal, politicamente associado a um histórico de “centro-direita”. Como afirmam Benetti e Hagen, as definições editoriais de Veja e Época estão relacionadas “ao poder econômico e político da Abril e da Globo. Essas editoras, que fazem parte de grandes grupos de comunicação, defendem o sistema capitalista, a livre iniciativa, a competitividade e o lucro. Evidentemente, esse posicionamento se manifestará na política editorial das revistas” (2010, p. 129).
7 A revista IstoÉ, publicada pela Editora Três, assumiu nos últimos anos um tom crítico ao governo brasileiro do Partido dos Trabalhadores, o que a aproxima de posições editoriais das revistas Veja e Época, principalmente com relação às coberturas políticas nacionais e internacionais. A revista circula há 40 anos, tendo sido fundada em 1976.
8 A revista CartaCapital, publicada pela Editora Confiança, foi lançada em 1994, e é considerada, entre as revistas semanais de informação brasileira, como a mais alinhada politicamente à esquerda, como já declarado em mais de uma oportunidade por seu editor-geral Mino Carta.
9 Entende-se aqui a capa de revista como texto, isto é, como uma “unidade de significação” (Kress, Leite Garcia & Van Leeuuwen, 2000) oferecida como uma forma de apreensão/compreensão do acontecimento.
10 Mesma técnica muito utilizada nos últimos anos para associar a identidade visual do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Uma ironia gráfica por parte de CartaCapital
11 A seguir, todas as citações entre aspas, referem-se a reportagens, títulos, editoriais e outros textos dos periódicos.
12 Época, em uma de suas matérias, “O homem que queria ser mito”, chega a chamar Chávez de “filho de Fidel”.
13 IstoÉ, apesar de apontar tal relação, ressalta a proximidade entre os presidentes Lula (Brasil) e Chávez (Venezuela), mas destaca que a presidenta Dilma (Brasil) manteve uma “distância respeitosa”. Já Época segue linha mais próxima à de Veja, reforçando, com uma pauta sobre países que “dão certo” na América Latina – Perú, Chile, Colômbia e México – e comparando-os com Brasil e Venezuela que, segundo os dados, estariam próximos, em desvantagem.
14 Ignacio Ramonet (2013) lembra que “Chávez era uma síntese de indígena, europeu e africano. Tricontinental. As três raízes da ‘venezuelanidade’. Neste sentido foi sempre uma exceção entre as elites, dominantemente brancas, da Venezuela. O povo compartia com ele seu rechaço a uma classe politica distante, rica e quase sempre corrupta. A organização chavista – Movimento Bolivariano Revolucionário (MBR) – foi adquirindo uma força irresistível” (p. 32).






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