Resumo: Este trabalho observa a relação entre os jornalismos tradicional e cidadão, representados pelo Jornal Nacional da TV Globo e a Mídia NINJA, sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação. O período de análise coincidiu com as Jornadas de Junho de 2013, manifestações de cunho social e político que aconteceram no Brasil. Por meio de análise de conteúdo descritiva da cobertura desses protestos, focamos nos episódios do Rio de Janeiro durante a Copa das Confederações de 2013, de 15 a 30 de junho. Observamos que ambas coberturas personificaram a cidade por meio dos manifestantes, atribuindo uma identidade aos acontecimentos.
Palavras-chave:ciberativismociberativismo,midialivristamidialivrista,Jornadas de JunhoJornadas de Junho,Mídia NINJAMídia NINJA,Jornal NacionalJornal Nacional.
Abstract: This article focuses on the relationship between traditional and citizen journalisms, represented by ‘Jornal Nacional’, from ‘TV Globo’, and ‘Mídia NINJA’, which means Independent Narratives, Journalism and Action (in portuguese). The period of analysis coincided with ‘June days’ of 2013, demonstrations of social and political content that happened in Brazil. By doing a descriptive content analysis of the coverings, we focused on the happenings of Rio de Janeiro during FIFA Confederations Cup, from June 15th and 30th. We observed both coverings personified the city by mean of the protesters, giving an identity to the events.
Keywords: cyberactivism, mídialivrista, June days, media NINJA, Jornal Nacional.
Resumen: Este trabajo observa la relación entre los periodismos tradicional y ciudadano, representados por el Jornal Nacional de la TV Globo y los Medios NINJA, cuyas siglas significan Narrativas Independientes, Periodismo y Acción (en portugués). El periodo de análisis coincidió con las Jornadas de Junio de 2013, manifestaciones de cuño social y político que tuvieron lugar en Brasil. Por medio de un análisis de contenido descriptivo de la cobertura de esas protestas, nos enfocamos en los episodios de Río de Janeiro durante la Copa de las Confederaciones de 2013, del 15 al 30 de junio. Observamos que ambas coberturas personificaron la ciudad por medio de los manifestantes, atribuyendo una identidad a los acontecimientos.
Palabras clave: ciberactivismo, mediolibrista, Jornadas de Junio, medios NINJA, Jornal Nacional.
Informe
A cidade em narrativas: jornalismos tradicional e cidadão durante as ‘Jornadas de Junho’ de 2013 no Brasil
The city in narratives: traditional and citizen journalisms during ‘June days’ in Brazil, 2013
La ciudad en narrativas: periodismos tradicional y ciudadano al largo de las ‘Jornadas de Junio’ de 2013 en Brasil
Recepção: 10 Outubro 2015
Aprovação: 25 Abril 2016
Na era da cultura de redes, internet e cidade formam um espaço de projeção daquilo que é construído por cidadãos que fazem das ruas um local de luta. Em 2013, o Brasil foi palco de manifestações em diversas cidades brasileiras, que ficaram conhecidas como Jornadas de Junho. Esses acontecimentos marcaram a entrada do país no ciclo de novas lutas globais, como foi visto a partir do final de 2010 e início de 2011, com o Occupy Wall Street, em Nova York, e a Primavera Árabe, no Egito, principalmente.
Houve algo de dionisíaco nos acontecimentos de 2011: uma onda de catarse política protagonizada especialmente pela nova geração, que sentiu esse processo como um despertar coletivo propagado não só pela mídia tradicional da TV ou do rádio, mas por uma difusão nova, nas redes sociais da internet, em particular o Twitter, tomando uma forma de disseminação viral, um boca a boca eletrônico com mensagens replicadas a milhares de outros emissores. (Carneiro, 2012, p. 9)
No Brasil, as Jornadas de Junho propiciaram a intensificação de um jornalismo combinado com ativismo (midiativismo) ou midialivrismo, que, segundo Antoun e Malini (2013) é onde atua o hacker das narrativas (ou midialivrista). Tal jornalismo, representado principalmente pela atuação da Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) – a abordagem deles gerou uma reflexão sobre a práxis jornalística e o modo como os cidadãos podem contribuir com sua própria versão da notícia, já que os colaboradores da Ninja raramente mostravam o rosto e tinham como tema “Ninja somos todos” – teve um papel importante ao contrapor-se, sobretudo ao jornalismo praticado pela mídia corporativa e tradicional, representada aqui pelo Jornal Nacional (JN), da Rede Globo.
Elegemos o JN porque ele é um dos telejornais mais assistidos pelos brasileiros segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia de 20141 , organizada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República do Brasil. O JN é um veículo da Rede Globo de Televisão, um canal de TV aberto, e é exibido de segunda a sábado, por volta das 20 horas da noite. Ele foi o primeiro telejornal a ser transmitido para todo o país, em 1969. Já a Mídia Ninja, representando o jornalismo cidadão, conta com uma equipe de jovens colaboradores distribuídos pelo país, os quais, geralmente cobrem eventos ao vivo por streaming com vídeos, fotos, postagens no Facebook e Twitter, entre outras inserções. A sigla NINJA significa Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação. O grupo foi criado em 2013 dentro de uma rede chamada Fora do Eixo2 , que, inicialmente, começou a investir na cena cultural de algumas cidades do país. Depois dessa iniciativa, a rede se expandiu para as áreas de comunicação e jornalismo, o que gerou a Mídia Ninja.
Mais do que ter oferecido versões que complementavam a cobertura sobre as manifestações, a Mídia NINJA, como explica Antoun e Malini, deu espaço a “narrativas de acontecimentos sociais que destoavam das visões editadas pelos jornais, canais de TV e emissoras de rádio de grandes conglomerados de comunicação” (2013, p. 23). O interessante dessa lógica comunicacional, observada no contexto das manifestações globais, é o surgimento de uma mídia multidão, onde cada pessoa pode colaborar e ser emissor e receptor em potencial ao mesmo tempo. É um sistema que funciona de acordo com o conceito “muitos- -muito” e que acaba gerando uma “visão múltipla, conflitiva, subjetiva e perspectiva sobre o acontecimento passado e sobre os desdobramentos futuros de um fato” (Antoun & Malini, 2013, p. 23).
As Jornadas de Junho foram acontecimentos de cunho social, com reivindicações que inicialmente se pautaram na insatisfação perante o aumento da passagem de ônibus em diversas cidades. No entanto, o que se observava nas ruas era uma pluralidade de pautas, desde reivindicações por melhorias no transporte, sistemas de educação e saúde até insatisfação política. Este último fator acabou ganhando um contorno ainda maior durante 2013 e nos anos subsequentes. Podemos dizer que as Jornadas despertaram diversos questionamentos em sociedade sobre os rumos da política brasileira.
Tudo isso aconteceu em anos importantes, já que o Brasil sediou dois grandes eventos esportivos (Copa das Confederações, em 2013, e Copa do Mundo, em 2014) e se encaminha para as Olímpiadas em 2016. Neste período, o índice de reprovação do governo da presidente Dilma Rousseff só cresceu – 69% em setembro de 2015, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope)3 . Este ano, grande parte da população que não votou em Dilma Rousseff nas eleições de outubro de 2014 – setores mais conservadores e de direita – foi às ruas, sendo uma das pautas de reivindicação o impeachment da presidente.
Enquanto as Jornadas de Junho tinham um cunho ideológico diferente das observadas ao longo de 2015, pode-se dizer que representantes da esquerda brasileira – cidadãos, não somente políticos – estavam, inclusive, em maior peso. Um dos destaques dessas manifestações era não serem constituídas por grandes líderes. As primeiras manifestações foram convocadas pelo Movimento Passe Livres de São Paulo (MPL-SP), coletivo que reúne pessoas em âmbito nacional em prol do projeto Tarifa Zero e dos transportes sem catraca, devido ao anúncio do governo do aumento das passagens de ônibus. Ao longo dos protestos, a pauta de reivindicação foi tomando outros rumos.
O objetivo deste trabalho é compreender as diferenças e semelhanças das narrativas elaboradas pelas duas práticas jornalísticas analisadas e, ainda mais, pela imagem de cidade e de manifestação que foram transmitidas. Esse olhar ganha outra dimensão quando os sujeitos participantes e observadores estão no contexto da cultura digital, o que lhes atribui valor de colaboração e construção em comum de significados. Eles encontram na internet uma oportunidade de expansão e liberdade, uma “autocomunicación de masas”, para usar um termo do repertório teórico de Castells:
Es comunicación de masas porque potencialmente puede llegar a una audiencia global, como cuando se cuelga um vídeo en YouTube [...]. Al mismo tiempo, es autocomunicación porque uno mismo genera el mensaje, define los posibles receptores y selecciona los mensajes concretos o los contenidos de la web y de las redes de comunicación electrónica que quiere recuperar. (2009, p. 88)
Para efeitos de comparação, conseguimos selecionar 29 vídeos noticiosos do Jornal Nacional entre 15 e 30 de junho, período escolhido porque os maiores protestos das Jornadas coincidiram com o primeiro grande evento esportivo sediado pelo Brasil, a Copa das Confederações da FIFA. Produzidos pela Mídia Ninja, 11 vídeos foram analisados. Todos os vídeos captados são referentes às coberturas realizadas na cidade do Rio de Janeiro. Na análise, tentamos trazer informações descritivas para compreender como se dava a evolução da narrativa de uma mídia para a outra. Destacamos, aqui, os momentos mais relevantes de tais coberturas.
Como explicamos, no período de 6 a 21 de junho de 2013, o Brasil adentrou o ciclo de novas lutas globais. Para Castells “as redes sociais digitais oferecem a oportunidade de deliberar sobre e coordenar as ações de forma amplamente desimpedida” (2013, p. 14). O autor também explica que as instituições que exercem poder no mundo (Estados, por exemplo) têm suas estruturas questionadas e abaladas pelo contrapoder das manifestações. Para fazer valer esse poder, os movimentos se constroem mediante uma “comunicação autônoma, livre do controle dos que detêm o poder institucional” (Castells, 2013, p. 14). As novas lutas globais se tornam um ambiente em que esses valores se fortalecem, abrindo espaço para novas práticas de jornalismo.
As ruas configuraram um espaço de representação para a indignação, reivindicação e cidadania. Antes de junho e no início do mês, alguns protestos ocorreram, mas eles não chamaram tanta atenção da mídia quanto os ocorridos a partir da segunda quinzena. No Rio, no dia 6 de junho, os cidadãos foram às ruas protestar contra o aumento de R$ 0,20 sobre a tarifa dos ônibus. Desse dia em diante, passando pelos dias 7, 11, 13, 17, 18, 20, 21 e 22, a cidade virou palco de grandes manifestações. Este estudo analisou a cobertura midiática dos protestos, representado aqui pela Mídia Ninja e pelo Jornal Nacional no período mais expressivo das Jornadas: entre os dias 15 e 30 de junho. O objetivo central da metodologia proposta é destrinchar o trabalho de ambas as mídias, alternativa e tradicional, notando pontos de convergência e divergência entre as narrativas criadas e produzidas durante esse período.
A primeira cobertura produzida pela Mídia Ninja aconteceu no Fórum Social da Tunísia, em março de 2013, e foi quando eles estabeleceram um tipo de cobertura independente. Os Ninjas, como são chamadas as pessoas que fazem as coberturas, carregam celulares, cabos USB, câmeras fotográficas, notebooks e mochilas: os equipamentos necessários para percorrer a cidade e acompanhar manifestações, relatando a milhares de internautas os acontecimentos das ruas. Para postar e/ou divulgar o material gravado, eles usam plataformas e sites como o Twitcasting, Google Hangout, Twitcam, Livestream, Ustream e outros.
Para entender as características do tipo de mídia objeto de nossa análise, consideramos o trabalho desenvolvido pelo pesquisador Mark Deuze (2003), da Universidade de Amsterdam sobre jornalismo digital. Deuze (2003) classifica quatro tipos de mídia on-line: i) sites de mídia tradicional; ii) sites de categoria e indíces (como o Google e outros repositórios); iii) sites de comentários e meta sites (como portais observatórios, que “vigiam” e comentam coberturas de diferentes veículos de comunicação) e, finalmente; iv) sites de discussão e compartilhamento (redes sociais, p. ex.). O autor oferece uma visão interessante acerca da relação entre conteúdo focado em questões editoriais e outro focado na conectividade com o público, ambos diametralmente opostos. Numa outra dimensão, ele opõe participação moderada de leitores e a não moderada. Conforme vemos na figura abaixo:
Em nossa análise, observamos que o modo de cobertura e de relacionamento com o público feito pela Mídia Ninja se encaixa na terceira e quarta elipses, por se tratar de uma cobertura voltada exclusivamente para ambientes digitais. Se considerássemos apenas o site do Jornal Nacional, veríamos que ele se encontra na primeira elipse, mas não podemos enquadrar seu jornalismo digital nessa classificação porque seu conteúdo é, originalmente, pensado para a TV. Ainda assim, já vemos uma diferença entre ambos, já que cada um ocupa – ou ocuparia, no caso do JN – um extremo desse diagrama. Vimos com a análise dos vídeos que essa leitura sobre a Mídia Ninja se confirma por meio da cobertura que ela emprega.
O tempo das matérias no Jornal Nacional variou bastante, tendo vídeos que duraram de 30 segundos a outros com mais de quatro minutos – o mais longo teve quatro minutos e oito segundos. Desde os primeiros materiais produzidos, é possível notar que a cobertura se polarizou bastante entre atos de manifestantes “pacíficos” e de “minorias radicais”. Estes eram retratados no vídeo como os que desencadeavam confrontos com a polícia e que incitavam um grau de desordem no protesto. As expressões “pacífica” e “minorias radicais” foram amplamente usadas pelos jornalistas do Jornal Nacional.
No dia 17 de junho, diversas capitais do país registraram grandes manifestações. Na edição do telejornal desse dia, 21 matérias foram veiculadas na TV, sendo 15 apenas sobre os protestos que aconteciam em todo o país (três delas sobre o Rio de Janeiro). Durante os protestos, os jornalistas foram duramente criticados – principalmente pelos manifestantes – sendo que muitos utilizavam expressões como “manipuladora” para definir o trabalho de cobertura das manifestações promovido pela Rede Globo. Um dos aspectos que motivavam essa qualificação foi o foco desproporcional dado aos atores institucionais (governo e polícia, por exemplo) em contraponto aos abusos cometidos contra os manifestantes, por exemplo, por parte da polícia nos confrontos ou na versão da “minoria radical”. A TV Globo era a mais criticada e muito da crítica se dirigia ao passado da emissora, por ela ter sido uma emissora que apoiou a ditadura no Brasil, entre os anos de 1964 e 1985. Esse histórico contribuiu para diversas críticas, e os jornalistas da emissora foram, sem lugar à dúvidas, os profissionais mais “hostilizados” pelos manifestantes, sofrendo expulsões e tendo suas coberturas interrompidas constantemente por meio de gritos, xingamentos e outras atitudes.
Como resposta às críticas crescentes, o Jornal Nacional apresentou um editorial narrado pela então âncora do telejornal, a jornalista Patrícia Poeta no dia 17 de junho. O texto destacava a boa conduta do JN frente à cobertura das manifestações, dizendo que eles estavam cobrindo os protestos desde o início, sem esconder os fatos: nem os abusos da polícia e nem os detalhes de cada manifestação. Eles também mencionaram que se manifestar pacificamente era um direito dos cidadãos. No mesmo dia, uma das repórteres do noticiário, Bette Lucchese, exibiu ao vivo, de um helicóptero, os acontecimentos da manifestação. Segundo o JN, a visão do helicóptero dava uma visão geral do que acontecia na rua, “privilegiada”, mas também sugeria que a segurança da jornalista era mais importante do que estar lá embaixo, na rua, em contato com a multidão. A jornalista deu informações sobre a maior manifestação que ocorreu no Rio de Janeiro e que reuniu mais de 100 mil pessoas no centro da cidade, na Avenida Rio Branco. Ao fim da cobertura, Bette diz que após quatro horas de protesto pacífico, um pequeno grupo de cerca de 300 pessoas transformou a rua numa praça de guerra e jogou coquetéis Molotov no prédio da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), onde 80 policiais estariam presos, sob ameaça de manifestantes. As fontes ouvidas ao longo do vídeo, manifestantes, não são identificadas e apenas dizem que estão ali para um protesto pacífico em prol de pautas como saúde, transporte e educação.
No dia 18 de junho, de um total de 30 notícias, 26 diziam respeito às manifestações no país. É importante assinalar a relevância de tal fato, uma vez que ocorria no país a Copa das Confederações da FIFA, e, em contraste com os protestos não recebeu semelhante cobertura. Em todos os vídeos que analisamos, palavras como “vândalos” e “vandalismo” eram usadas para descrever atos da “minoria radical”. Nesse mesmo dia, um vídeo apresentou uma visão mais positiva sobre o grande protesto do dia 17, mas outros dois focaram no aspecto negativo do desfecho, na ALERJ, onde aconteceu um embate entre manifestantes e polícia. Outros dois vídeos também merecem destaque por anunciarem a redução das passagens em quatro capitais brasileiras (Porto Alegre/Rio Grande do Sul; Cuiabá/Mato Grosso; João Pessoa/Paraíba e; Recife/Pernambuco).
Também no dia 18 de junho de 2013, o prefeito da cidade, Eduardo Paes, anunciou a redução das tarifas de ônibus no Rio. Nesse dia, há um vídeo sobre a decisão da prefeitura, enquanto outros cinco vídeos narram uma manifestação que acontecia na cidade de Niterói, área metropolitana do Rio de Janeiro. Em 20 de junho, outra grande manifestação aconteceu no centro da cidade, na Avenida Presidente Vargas. O objetivo dessa manifestação era tanto a celebração da redução das tarifas quanto a apresentação de novas pautas de reivindicação. Após a conquista referente às tarifas, os manifestantes mantiveram uma pauta de mobilizações com outras demandas. Nos cartazes, palavras de ordem com temas sobre saúde, educação e insatisfações políticas, falta de concordância sobre o Brasil sediar grandes eventos esportivos – Copa das Confederações, em 2013, Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas, em 2016 –, entre outros.
Nós observamos que, a partir do dia 20 de junho, as notícias passaram a trazer, com cada vez mais frequência, os termos “vândalos” e “vandalismo”. No dia 21 de junho, o JN produziu e apresentou o vídeo mais longo presente em nossa amostra, com quatro minutos e oito segundos. Para uma emissora de TV, esse tempo é significativo, principalmente porque os minutos são muito disputados dentro da programação. O fator surpresa veio com o fato de que ele não foi mediado por um jornalista, ou seja, não há a participação e imagem direta de um desses profissionais durante todo o vídeo. Ele é composto apenas por imagens de grupos que “arruinaram” o protesto do dia 20 de junho, quebrando espaços públicos. Esse vídeo, em específico, tem um tom negativo e uma associação direta entre protestos e depredação. No mesmo dia, o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, aparece em vídeo declarando que tomará providências contra atos de destruição e depredação de patrimônio público para assegurar segurança à sociedade. O prefeito e o governador à época, Sérgio Cabral, também aparecem para dizer que não aceitarão atos de depredação e violência.
Os vídeos sobre as manifestações no Rio de Janeiro, a partir de então serão paulatinamente reduzidos e refletem o que, de fato, estava acontecendo às manifestações: protestos menores, tanto em tamanho quanto em número. Finalmente, no dia 21 de junho, a presidente do Brasil Dilma Rousseff faz um pronunciamento sobre as manifestações e, no dia 24, o JN apresenta a repercussão da fala em rede nacional, quando ela propôs um pacto nacional de cinco etapas para lidar com a insatisfação política da população, sendo a reforma política uma das propostas. O último vídeo que analisamos foi do dia 1 de julho – o dia 30 de junho foi um domingo, quando o telejornal não é veiculado –, edição na qual o JN deu grande espaço à vitória do time brasileiro de futebol sobre o time espanhol, na partida final da Copa das Confederações. O único vídeo sobre as jornadas nesse dia foi sobre um protesto iniciado próximo ao Maracanã, zona norte do Rio de Janeiro. A jornalista, do topo de um prédio, enfatizou o fato de que o protesto terminou em confusão e confronto entre polícia e manifestantes.
Por meio de contato com a Mídia NINJA pelo e-mail midianinja@gmail.com, descobrimos que a conta online onde eles colocavam todos os vídeos em streaming, uma que continha diversos vídeos do Rio de Janeiro, foi hackeada. Como os vídeos não foram salvos, foi possível analisar apenas 11 vídeos, todos de um mesmo canal de streaming do Twitcasting, o /midianinja. Neste canal, os vídeos do Rio de Janeiro foram postados a partir do dia 27 de junho. Há muitos vídeos nessa conta, mas apenas aqueles que contêm a palavra “gravada” dentro do frame são os que podem ser acessados.
A duração dos vídeos varia entre três segundos e baixa visualização e outros com números altos de visualização e tempos maiores: 34,8 mil visualizações, com 1h e 9 segundos de duração, e outro com mais de 27 mil visualizações, de aproximadamente 20 minutos. Mesmo com uma estrutura técnica que não se compara a muitos canais de televisão, os ninjas conseguiram atingir um pico de audiência de mais de 120 mil espectadores em dias importantes de streaming – muitas emissoras não conseguem atingir essa marca de ibope. Além disso, os vídeos eram conduzidos por um único ninja, que cobria e acompanhava os ocorridos com um iPhone conectado ao plano de dados (3g ou 4g), ao mesmo tempo em que interagia com os usuários do vídeo, lendo comentários e respondendo- -os ao vivo. Por meio desses comentários, os ninjas conseguiam trocar informações com os internautas e saber o que estava acontecendo em outros pontos da cidade (ver Figura 2). A maioria dos vídeos que encontramos no canal dizia respeito à manifestação do dia 30 de junho, quando o Brasil ganhou a Copa das Confederações. Em todos eles, um ninja chamado Filipe acompanha os manifestantes, entrevistando-os, tentando falar com fontes diferentes, desde policiais, advogados, agentes de segurança e representantes do governo a manifestantes.
O ninja informa que a agenda de motivos de reivindicação varia bastante, desde críticas a investimentos públicos em grandes eventos; a falta de investimento em saúde e educação; a corrupção e as remoções abusivas, por parte do governo, de moradores que ficavam em terrenos de interesse para empresas da construção civil, entre outros. Durante a cobertura, a Mídia Ninja identificava todos os entrevistados, ao contrário do Jornal Nacional, que apenas dava nome às fontes consideradas oficiais (governo, polícia etc.). Outro ponto interessante é a proximidade: os ninjas cobriam os fatos do “chão”, no calor dos acontecimentos de rua, lado a lado com os manifestantes. É notável também a parcialidade explícita das narrativas da Mídia Ninja, como um de seus repórteres diz em vídeo: eles estavam deliberadamente mostrando o lado que não estava sendo apresentado pela mídia tradicional, especialmente os abusos da polícia. Os jornalistas da Ninja eram, ao mesmo tempo, a mídia e participantes do protesto. Eles retratavam o que viam, mas eles estavam do lado dos manifestantes, a favor dos protestos.
Em um vídeo que tem 18 minutos, um ninja entrevista um black bloc, os “vândalos” retratados nas matérias do Jornal Nacional, ou seja, um integrante da “minoria radical” do protesto. O ninja apenas identifica o primeiro nome do rapaz e pergunta a ele qual sua opinião sobre o vandalismo, ao que ele responde: “Se você não gosta de vandalismo, é melhor você ficar em casa. Vandalismo é quando você morre num hospital público e quando você não pode contar com uma educação de qualidade. Nós temos que encarar, não tem outro jeito”. No mesmo vídeo, o integrante também tenta entrevistar um policial que estava tentando prender um black bloc, mas o agente não lhe dá atenção.
Quando o repórter chega perto do Maracanã, em um dos vídeos finais da transmissão do dia 30 de junho, ele informa que muitas emissoras de TV estavam no local fazendo a cobertura, mas apenas a Mídia NINJA estava fazendo uma transmissão ao vivo. Nesse ponto da cobertura, os vídeos são curtos e é possível perceber que a rede de internet estava falhando e que, como o próprio ninja avisa, a bateria do celular estava ficando fraca. Isso mostra, mais uma vez, que em termos de infraestrutura, a Mídia Ninja tinha limitações técnicas. Ainda assim, isso não impede que seus integrantes arranjem uma forma de continuar a gravação, seja carregando o celular rapidamente ou pedindo ajuda a outros manifestantes. No último vídeo, Filipe avisa que vai encerrar a transmissão daquele dia, dizendo que a Mídia Ninja é uma atitude de mídia livre e que qualquer pessoa que queira somar pode enviar um e-mail para o grupo, com sugestões e comentários. Ele ainda comenta que, depois de ter visto atitudes hostis de policiais naquela noite, é paradoxal pensar que possam existir táticas de intervenção policial sem o uso da violência e repressão.
Com este trabalho, observamos que o jornalismo se reinventa e que há um número grande de pessoas que apoia novas formas de cobertura, dado validado pelas visualizações que a Mídia NINJA atingiu. Cabe ressaltar que o jornalismo, de uma maneira geral, está passando por dificuldades financeiras e por reestruturações. As revoluções que aconteceram em diferentes países potencializam um novo rumo para a profissão. Com redações de jornais cada vez mais enxutas e equipes inteiras sendo demitidas, o momento abre novas portas, mas também muitos questionamentos, porque, afinal, é preciso mapear novas formas de financiamento para a profissão.
O jornalismo feito por conglomerados de grandes empresas vem sofrendo com a falta de credibilidade. Um jornal é uma empresa como outra qualquer, que vive de lucros, mas a missão social precisa vir em primeiro lugar. Iniciativas como a Mídia Ninja oxigenam e jogam luz sobre essas questões. É também inegável que a relação entre rua e internet está cada dia mais entrelaçada. O cotidiano das grandes cidades respira novas mídias e pessoas conectadas o tempo inteiro.
Em tempos de protestos contra dispositivos de poder, exercer a cidadania requer presença. O geógrafo britânico David Harvey afirma: “[...] fazemos nossa cidade através de ações diárias e de nossos engajamentos políticos, intelectuais e econômicos. Todos somos, de um jeito ou de outro, arquitetos de nosso futuro urbano” (2013, p. 31).
Essa cidadania e vontade de expressão pública acabam tecendo novos fios na rede de interação propiciada pela internet. Antoun e Malini (2013) discorrem sobre o 15M, na Espanha (Movimento dos Indignados), e explicam que o “poder de comunicação não reside somente naqueles que têm mais audiência e conexões na internet, mas, sobretudo, naqueles que acumulam mais interações na rede. Naqueles que, portanto, mais atuam dentro dela”. O dispositivo nas mãos das pessoas é apenas um meio para se atingir conexões de comunicação maiores e mais polifônicas.
As análises mostraram pontos de vista distintos. Enquanto o Jornal Nacional, com seus vídeos editados, escolhe o que mostrar e informar ao seu público, a Mídia Ninja também escolhe evidenciar aquilo que a mídia tradicional não mostra. O Jornal Nacional parece tornar as manifestações uma esfera bipolar: basta observar as expressões utilizadas para diferenciar quem protestava pacificamente de quem tinha uma atitude mais questionável: “pacífico” vs. “vandalismo”, “minoria radical com atos de violência”, “agressivos”, “mais radicais”, “vândalos”, “arruaceiros” e “baderneiros”.
Enquanto isso, os vídeos da Mídia Ninja não “condenam” as pessoas que estão na linha de frente com a polícia. Deve-se dizer que o repórter da Ninja, até respeitosamente, entrevista um dos black blocs, o questiona sobre suas atitudes, mas sem julgá-lo. A entrevista percorre sem nenhuma agressão verbal por parte dos dois. O Jornal Nacional dá preferência a fontes mais oficiais – as quais sempre são identificadas, em detrimento de pessoas entrevistadas durante os protestos –, enquanto, em um único dia, a Mídia Ninja acompanha um protesto com participação intensa dos manifestantes no vídeo. Se no JN observa-se pouco debate e argumentação com quem vive as manifestações, na Ninja há o oposto: vários entrevistados, mediação com o público na internet e tentativa de transmitir uma visão plural do que está acontecendo.
No dia 25 de julho de 2013, acontece uma reviravolta: o Jornal Nacional usa imagens da Mídia Ninja4 para pautar algumas informações numa reportagem sobre alegações da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Eles usaram um trecho de uma entrevista concedida à Ninja por um manifestante que estava sendo acusado injustamente de uma conduta criminosa durante os protestos. É um acontecimento que mostra que a Ninja foi usada pelo jornal tradicional como fonte segura de informação, um processo de validação, mesmo que ambas adotem abordagens diferentes na hora de cobrir um fato. Em um breve momento, houve um diálogo entre a cultura do coletivo e da construção coletiva de histórias e a mídia corporativa.
O jornalismo pode ser um mediador desses acontecimentos, estimulando um ambiente plural, livre e colaborativo, iluminando novas condutas de cobertura. Segundo Castells (2009), “a batalha de imagens e marcos mentais, origem da luta por mentes e almas, é resolvida nas redes da comunicação multimídia”. A informação que funciona na lógica de contrainformação pode atuar no fortalecimento das novas lutas globais, e a cultura de redes oferece o ambiente para que as ideias circulem, ganhem mais corpo e atraiam mais pessoas para um objetivo em comum. De toda maneira, ressalta-se que as manifestações vão muito além da discussão nas redes sociais, assim como seus resultados informados e analisados. É nas praças públicas, no coração das cidades, que a revolução contra dispositivos de poder institucionalizados se dá.