Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
Deus e o diabo nas terras do Sul
João BATISTA DE ABREU
João BATISTA DE ABREU
Deus e o diabo nas terras do Sul
God and the devil in the South
Dios y el diablo en las tierras del Sur
Chasqui. Revista Latinoamericana de Comunicación, núm. 131, pp. 199-219, 2016
Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación para América Latina
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: O artigo aborda a reflexão crítica sobre as estratégias de linguagem utilizadas pelos jesuítas no trabalho de catequese dos povos indígenas na América, a partir do século XVI, e os processos de comunicação empregados pelos Estados Unidos e suas agências para buscar aproximação cultural com as populações sul-americanas durante a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, tomando como parâmetros o rádio e o imaginário social, assim como a relação entre educação e comunicação em dois períodos da História no continente americano. O elo entre os dois momentos pode ser compreendido na relação dominador-dominado, colonizador-colonizado que perpassa os dois relatos.

Palavras-chave:linguagemlinguagem,comunicaçãocomunicação,rádiorádio,jesuítasjesuítas,catequesecatequese.

Abstract: The article addresses a critical reflection on the language strategies employed by the Jesuits in their catechetical work with indigenous peoples of America, since the 16th century, and the communication processes used by the United States and its agencies to seek a cultural approach to South American populations during World War II and the Cold War, taking the radio and the social imaginary as parameters, as well as the relationship between education and communication in two periods in the history of the Americas. The link between the two moments can be understood in the dominator-dominated and colonizer-colonized relationships, which runs through both stories.

Keywords: language, communication, radio, Jesuits, catechesis.

Resumen: El artículo aborda la reflexión crítica sobre las estrategias de lenguaje empleadas por los jesuitas en el trabajo de catequesis de los pueblos indígenas de América, desde el siglo XVI, y los procesos de comunicación empleados por Estados Unidos y sus organismos para buscar un acercamiento cultural a las poblaciones sudamericanas durante la Segunda Guerra Mundial y la Guerra Fría, teniendo como parámetros la radio y el imaginario social, bien como la relación entre educación y comunicación en dos períodos de la Historia en el continente americano. El vínculo entre los dos momentos puede ser comprendido en la relación dominador-dominado, colonizador-colonizado, la cual discurre a través de ambos relatos.

Palabras clave: lenguaje, comunicación, radio, jesuitas, catequesis.

Carátula del artículo

Monográfico

Deus e o diabo nas terras do Sul

God and the devil in the South

Dios y el diablo en las tierras del Sur

João BATISTA DE ABREU
Chasqui. Revista Latinoamericana de Comunicación, núm. 131, pp. 199-219, 2016
Centro Internacional de Estudios Superiores de Comunicación para América Latina

Recepção: 03 Março 2016

Aprovação: 26 Julho 2016

1. Introdução

Quem tem por ofício a pregação e a conversão dos gentios há de ter livro em uma mão e a espada na outra: o livro pra os doutrinar, a espada para os defender.

Antônio Vieira

Aprendi a gostar de rock em Campina Grande, nos idos dos anos 50. Rádio ligado o dia todo, evoluí escutando rock e cantador de viola, jazz e forró. Tudo junto, tudo ao mesmo tempo, tudo ligado.

Clotilde Tavares

No conturbado mundo ocidental do século XVI, em que a milenar religião católica sofria ameaças de todas as partes – internas, por parte de protestantes dissidentes, e externas, por parte de muçulmanos e judeus – surge uma congregação inspirada em modelos hierárquicos militares, com o objetivo de expandir a doutrina cristã para novas fronteiras. Os jesuítas logo percebem que, para alcançar tal objetivo, seria preciso conhecer e compreender as estruturas e relações sociais, os mitos e costumes das comunidades a serem evangelizadas. Tempo de desafios e das grandes descobertas. Assim foi sacramentada a missão de evangelizar os gentios da América. Era necessário adotar uma estratégia de assimilação de valores culturais que tornasse eficaz o trabalho de catequese.

Quatro séculos depois, num Ocidente não menos conturbado, repleto de ameaças expressas pelo nazi-fascismo e pelo socialismo soviético e o expansionismo japonês, representantes do governo norte-americano concluem que, para neutralizar esta expansão, também era preciso realizar um trabalho de catequese política. Para isso, recorre à indústria cultural e a modernas técnicas de comunicação, a fim de traçar uma estratégia de formação de mentalidades no mundo ocidental.

Aquele pedaço de terra selvagem ao sul da linha do Equador que, desde a Doutrina Monroe era visto como um espaço de domínio dos Estados Unidos passava a sofrer investidas das ideologias nazifascistas, que poderiam colocar em cheque aos interesses ingleses e estadunidenses. Os rebeldes, os gentios de então, precisavam ser atraídos por uma política de boa vizinhança, que valorizasse os costumes e símbolos culturais.

Este artigo pretende mostrar alguns paralelos entre a catequese jesuítica, que incorporava valores indígenas para divulgar a doutrina da fé, e a estratégia estadunidense de exploração da indústria cultural (cinema, desenho animado, cartoon, rádio), para aproximar-se das populações sul-americanas. O recorte escolhido expressa dois momentos, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria e, um lugar, a América do Sul.

Um primeiro ponto em comum parece evidente: a questão da oralidade, presente no relato das lendas e mitos indígenas, e na transmissão de conceitos e sonhos de consumo do rádio comercial brasileiro. O púlpito, as interpretações teatrais de Anchieta e o rádio compõem o mesmo universo pedagógico, o da palavra falada. A outra semelhança consiste na busca da hegemonía política e econômica. No caso dos jesuítas, podemos entender como hegemonia econômica a garantia de conquistar novos fiéis para a Igreja Católica e, num segundo momento, a intenção de cobrar o dízimo dos indígenas catequizados e reuni-los em missões voltadas para a produção, um modelo que mais tarde acabará incomodando a Coroa e as cortes espanhola e portuguesa.

Ambos ‘modelos’ também utilizam os conceitos de modernidade como representantes do ‘novo’ e, interessados em romper as estruturas carcomidas da sociedade dominante. No caso dos jesuítas, consideram necessário tirar os índios da barbárie e do isolamento em relação a Deus, dentro dos princípios da Nova Igreja, que renasce na Idade Moderna como reação ao crescimento da reforma protestante. Sem Deus não haveria salvação e, portanto, vida eterna. No caso dos Estados Unidos, sem a indústria cultural e o capitalismo, as populações não ingressariam no sedutor mercado de consumo, o qual supostamente oferece produtos que facilita a vida do homem e da mulher, reservando mais tempo livre e, espaço ao lazer.

2. Os jesuitas

A Companhia de Jesus foi criada em 1540 por Inácio de Loyola e referendada pela bula papal Regimini militantis ecclesiae, de Paulo III (Alessandro Farnesi, 1534-1549), como linha de frente da contrarreforma ou reforma católica, como preferem alguns estudiosos. O objetivo era expandir a doutrina da Igreja para fazer frente ao crescimento do protestantismo. A estrutura da ordem religiosa observava preceitos militares, com sólida hierarquia e um elevado grau de sacrifício entre seus membros. Entre 1528 e 1536, inspirados por Inácio de Loyola, nove companheiros perceberam a coincidência de ideias e decidiram associar-se em Paris, naquilo que se tornaria mais tarde a Companhia de Jesus1 .

Iñigo Lopez de Oñaz y Loyola nasceu em 1491 – um ano antes da descoberta da América por Cristóvão Colombo – no povoado basco de Azpeitia, a 30 quilômetros de Donostia (San Sebastian em castelhano), na província de Guipúzcoa. Seu nome basco é Eneko, trocado mais tarde para Inácio de Loyola. Mais novo de uma prole de 13 filhos, Iñigo era um soldado que se converteu ao catolicismo aos 30 anos, depois de se ferir em combate. Estudou com Martinho Lutero, mas os estudiosos jesuítas fazem questão de negar a influência protestante sobre o fundador da Companhia de Jesus. Aos 43 anos, recebe em Paris o diploma de bacharel em Artes. Morre em Roma, em 1556.

Em 25 anos, os jesuítas se espalharam pela Península Ibérica, Itália, França, Alemanha, Índias, Japão e pelo novo continente, com a missão peregrina de ampliar os horizontes do catolicismo para recuperar as perdas decorrentes da cisão protestante. Incluíam em suas pregações prostitutas e prisioneiros, lecionaram em universidades, fundaram colégios, escreveram peças teatrais, apoiaram inquisições e envolveram-se em polêmicas com protestantes e correntes católicas que não aprovavam este espírito empreendedor e os acusavam de demoníacos, impostores e mentirosos (O’Malley, 1993, p.18).

Com o apoio do papa, conquistaram poder na hierarquia da Igreja e angariaram antipatias. Tornaram-se a primeira ordem religiosa católica a se dedicar ao ensino formal. A primeira experiência foi em 1543 num seminário em Goa, colônia portuguesa encravada na Índia, quando um pequeno grupo de jesuítas ensinava português e catecismo para jovens entre 10 anos e 20 anos. Com o passar do tempo, chegaram a administrar 800 seminários, universidades e colégios, muitos deles nascidos em pequenas vilas, como a de São Paulo, fundada em 1554. Dedicaram-se à pesquisa científica, mantendo observatórios astronômicos.

A maioria dos primeiros jesuítas provinha de segmentos abastados da sociedade europeia, o que lhes garantia prestígio e respeito, uma vez que a preocupação com o outro, sobretudo com o outro diferente social e culturalmente, recuperava os princípios pregados por Jesus de Nazaré. A origem social de Inácio de Loyola e Francisco Xavier – dois jesuítas canonizados da primeira geração – e o desapego pelos bens materiais inspiravam certa admiração por parte dos reis católicos e aglutinavam novos adeptos entre a nobreza: “A elite predominante defendia a ordem e a estabilidade, e os jesuítas vinham de origens sociais que tornavam fácil a identificação com esses valores. Ademais, as Constituições ensinavam que o maior bem era alcançado ao influenciar aqueles em posição de exercer influência sobre outros” (O’Malley, 1993, p. 116).

A origem social dos primeiros jesuítas, o despojamento pelos bens materiais, o perfil empreendedor e a bênção do papa compunham o quadro ideal para cativar os jovens da nobreza que combinavam vocação sacerdotal e espírito aventureiro. Outro elemento motivador era o fato de os jesuítas se haverem transformado em grandes proprietários, apesar do voto de pobreza. Os imensos terrenos, ocupados por colégios, residências, igrejas, teatros e observatórios astronômicos, brindavam solidez ao empreendimento religioso.

Dois séculos depois, em 1759, o Marquês de Pombal – responsável por modernizar e laicizar a Coroa portuguesa – determina a expulsão dos jesuítas e o confisco das propriedades em Portugal e nas colônias, sob o pretexto de envolvimento de padres na tentativa frustrada de assassinato do rei D. José. Em consequência, mais de 300 religiosos são banidos do Brasil no ano seguinte. O objetivo é anular a influência política da congregação e impor a educação laica na metrópole. Em 21 de julho de 1773, por pressão dos reis absolutistas católicos, a Companhia de Jesus é desativada pelo papa Clemente XIV (Giovanni Vincenzo Ganganelli), por meio do breve Dominus Ac Redemptor, mas sua pedagogia já se havia espalhado pelo Ocidente.

Em sua estratégia para conquistar os indígenas, os jesuítas utilizavam técnicas pedagógicas revolucionárias para a época, respeitando alguns valores indígenas. Para isso, tiveram que estudar estas comunidades, suas crenças e mitos. Edgard Leite cita os cinco eixos nos quais os jesuítas apoiavam a comparação entre os conceitos da religião cristã e das religiões das comunidades indígenas que habitavam o litoral da América portuguesa.

Primeiro o tema da existência e ação de entidades superiores aos homens e o papel do ser diante delas. Segundo, o tema da ação e dinâmica dos atos e movimentos transformadores e criadores no mundo natural; incluindo aqui o tema das origens e do tempo. Terceiro, o tema da natureza e estrutura do ser. Quarto, o tema da morte, ou, do ponto de vista religioso, da continuidade da vida, e o das concepções sobre a estrutura do Além e do universo. Por fim, em quinto lugar, o tema da dinâmica da inserção das concepções religiosas na organização das estruturas sociais. (Leite, 1997, p. 27)

O quinto tema, o das estruturas sociais, apoia-se em representações, o que pressupõe o uso de linguagens. Daí o esforço dos jesuítas para compreender as línguas indígenas e buscar formas de comunicação e expressão que viabilizassem a catequese. A tentativa de estabelecer uma gramática tupi-guarani faz parte deste contexto. No entanto, conceitos judaico-cristãos que não faziam parte do universo indígena, como o pecado, foram incorporados ao idioma, sem qualquer cerimônia: “Anchieta introduziu a palavra pecado no meio de um discurso em tupi, sem se preocupar em traduzi-la, como em Ojepé tiruã pecado ndaromanõ!, isto é, “nem mesmo com um só pecado eu morri” (Leite, 1997, p. 84).

Os guardiões da fé necessitam conhecer outros idiomas para efetuar a pregação e assim livrar-se da confusão da Torre de Babel. Nesse sentido, era indispensável dominar as línguas indígenas em sua pluralidade linguística, com troncos que iam do jê ao tupi-guarani. Também era essencial compreender a estrutura lógica das nominações. Muitas vezes os indígenas qualificavam tribos adversárias pelo nome genérico que indicava ‘inimigo’. Assim, muitas tribos poderiam ter o mesmo nome aos olhos de uma comunidade indígena que lhes era hostil. Os jesuítas demoraram a entender esta lógica linguística.

Se saltarmos três séculos e nos determos nos anos 50, perceberemos que as emissoras católicas envolvidas em projetos de educação básica na América Latina também adotaram a postura de mesclar ensino e catequese, mantendo assim os verbos ensinar e converter no mesmo campo semântico. Associando, a uma só vez, o acúmulo de conhecimento prático – o saber fazer – à melhoria das condições de vida e conquista de cidadania – o saber viver. Ao invés de índios, camponeses. No lugar do livro sagrado, cartilhas que mantinham a aparência de oralidade, personificada nos cantadores de cordel, e o espírito da conversão, antes que os comunistas se ocupassem também da disputa pelas mentes puras do homem do campo2.

3. Entre a virtude e o pecado

O relacionamento entre jesuítas e índios na América portuguesa exigiu um esforço mútuo de compreensão, embora por vezes estes esforços descambassem para interpretações duvidosas. As narrativas sobre as qualidades do homem branco visavam angariar mais respeito e admiração do que propriamente estabelecer vínculos fraternos. Algo que a Sociologia talvez chamasse hoje de manipulação social. Edgard Leite observa que, sabedores de que os índios entendiam como atributo maior de um líder a imortalidade, os jesuítas chegaram a passar a ideia de que os reis de Portugal eram seres gigantes e dotados de poderes transformadores. Diversos cronistas dão conta de que os índios acreditavam na imortalidade do chefe branco, o que ajudava a exaltar a figura máxima da realeza.

Em História Geral das Índias, Gomara narra uma passagem segundo a qual, em San Juan, na Ilha Boriquem, no Caribe, os nativos chegaram a supor inicialmente que os espanhóis fossem imortais. Descartaram a hipótese depois que, pragmaticamente, decidiram afogar um europeu para testar seus pseudodotes. O mito afundou-se. Episódios como este ajudaram a disseminar o medo entre o homem branco recém-chegado ao continente. Um dos temores era ser devorado pelos gentios. Em carta a companheiros da congregação Irmãos de Coimbra, em Portugal, em 1553, o padre Azpilcueta Navarro prometia: “Para o ano, se não nos comerem os negros (os índios), vos escreverei mais largamente de tudo, se Deus for servido” (Mello e Souza, 1986, p. 60).

Também o conceito burguês de preguiça impregna a visão que o homem europeu faz do nativo. “A mais preguiçosa gente que se pode achar, porque desde pela manhã até a noite, e toda a vida, não tem ocupação alguma: tudo é buscar de comer, estarem deitados nas redes... (gente) afeminada, fora de todo o gênero de trabalho... gente indolente, que não se importa com nada, deitando o dia todo, preguiçosamente, nas suas moradias, e nunca saindo para outras regiões, exceto para procurar víveres” (Knivet citado por Mello e Souza, 1986).

Estas impressões ocorrem em pleno apogeu da nobreza, no século XVI, quando o trabalho é considerado tarefa reservada aos baixos escalões da sociedade. O princípio de inferioridade atribuído aos indígenas se manifesta na ideia de que eles sequer se prestam ao trabalho, logo são seres desprezíveis, logo não merecem tornarem-se cristãos.

Por sua vez, a dicotomia entre o bem e o mal aparece na reificação do conceito de demônio. Havia que demonizar o indígena, classificá-lo como um ser longe de Deus, para mostrar que o homem europeu católico, este sim, estava perto da salvação e da vida eterna, e também para justificar a tentativa de submeter os gentios da América. O demônio prestará assim um grande serviço aos colonizadores. Quatro séculos mais tarde, estigma semelhante recairá sobre os adeptos da doutrina socialista, apresentados muitas vezes pelos meios de comunicação dos países hegemônicos como mensageiros do demônio por assumirem abertamente a negação da fé cristã e de qualquer fé.

A historiadora Laura Mello e Souza lembra que a existência do demônio, em oposição a Deus, floresce na Baixa Idade Média, ganha força com as lutas religiosas e atinge o auge justamente no século XVI. Os sermões tornam-se repletos de menções à figura do Diabo, às vezes em número superior às referências a Deus. Instaura-se o medo para afirmar a fé. Estão postas as pré-condições para a volta dos tribunais do Santo Ofício. A professora da USP conta que o temor ao Diabo encontrou em Pindorama as condições ideais de proliferação, uma vez que os índios já manifestavam medo de espíritos em suas religiões.

Os índios apavoravam-se tanto com a ideia do Diabo que chegavam a morrer de puro medo do inferno. Ou então, como os índios de que fala a carta dos meninos do Colégio da Bahia, em 1552, ficavam cheios de medo e de espanto ante a possibilidade de morrerem os maus e irem ‘para o inferno a arder com os diabos’ (in Serafim Leite). Temerosos dos maus espíritos, eles os inseriam, entretanto num corpo de crenças em que tinham sentido específico, sendo possível contornar suas virtualidades negativas e conviver com elas. Os jesuítas e sua concepção europeia altamente demonizada fizeram com que a ideia do mal se tornasse insuportável. Para eles, a alteridade da cultura indígena era demoníaca [...] sendo a colônia a terra em que evoluíam as hostes dos servidores de Satanás. Em consequência, sempre consideraram as religiões de indígenas e africanos como ‘aberrações satânicas’. (Mello e Souza, 1986, p. 140)

No México, a falta de parâmetros entre as culturas indígena e europeia também provocou estranhamento. Um bom exemplo é a forma como a figura do demônio é assimilada. Os índios identificam os religiosos como os tzitzimime, criaturas que prenunciavam o apocalipse. Os evangelizadores veem nos deuses adorados pelos indígenas a personificação do Diabo. Para a Igreja, os costumes indígenas que não tivessem analogia com o mundo cristão eram vistos como desvios de conduta, ameaça ou manifestações do demônio (Gruzinski, 2003, p. 273)3.

Era preciso fazer com que os índios conhecessem os conceitos e critérios que organizavam a realidade definida pela Igreja. O catecismo e a pregação foram os principais canais do apostolado dos missionários, que continuamente se chocavam com os limites da palavra. Como fazer entender e ver seres, figuras divinas e planos do além, sem nenhum equivalente nas línguas indígenas ou nas representações locais, senão por aproximações que deturpavam seu sentido e sua forma? (2003, p. 273)

Na Guatemala, a religião politeísta dos maias cultuava a serpente, como forma de reconhecer o valor sagrado da terra, de onde eles retiravam o alimento. O céu não possuía o poder divino que os cristãos lhe emprestavam. Apesar dos esforços dos evangelizadores, discrepâncias como esta mostram o grau de dificuldade enfrentado para buscar adaptações eficazes, que conseguissem simultaneamente respeitar valores indígenas e introduzir conceitos da doutrina católica.

Um comportamento que dificultava sobremaneira a assimilação da mensagem cristã era a resistência evidenciada nas manifestações de dissimulação dos indígenas para driblar o discurso e o padrão estético do colonizador. Em Cuzco, no altiplano peruano, o Museu de Santa Catalina, abriga o acervo de uma importante escola de pintura característica dos séculos XVII e XVIII, que revela a resistência cultural pacífica dos povos indígenas. Nos quadros do Barroco cusquenho, a figura de Jesus aparece de dorso largo e pernas curtas, semelhante ao inca. Os escravos são representados amarrados pelo pescoço, como faziam os colonizadores espanhóis.

A escravização, primeiro dos indígenas e depois dos negros, poderia gerar contradição para o cristianismo pela violência contra o semelhante, numa época em que a filosofia humanista começava a ganhar força. Existiria, portanto, uma aparente contradição entre o humanismo pregado pelo Renascimento e o processo de acumulação primitiva do capital, no qual as colônias americanas desempenhavam papel fundamental. Para acomodar os interesses do Estado burguês empreendedor e o espírito cristão, a Igreja irá formular a justificativa teológica para o sistema colonial.

O jesuíta (Vieira) comparava a África ao inferno, onde o negro era escravo de corpo e de alma, o Brasil ao purgatório, onde o negro era liberto na alma pelo batismo, e a morte à entrada no céu. O Brasil seria uma espécie de transição entre a terra da escravidão e do pecado (a África) e o céu, lugar da libertação definitiva: para o escravo, a saída para o céu era a solução, a escravidão sendo interpretada por Vieira como pedagogia. (Hoornaert citado por Mello e Souza, 1986, p. 79)

Vieira elabora uma explicação “natural” para justificar o predomínio do homem branco sobre o negro. De acordo com o raciocínio do jesuíta, os brancos representariam o dia e os negros, a noite.

Apesar de dias e noites serem iguais – os primeiros brancos, as segundas, pretas – em duração temporal, o espaço de vinte e quatro horas foi, desde Deus, chamado de ‘dia’. Daí a meticulosa [...] lógica de Vieira o leva à comprovação de uma igualdade menor, dos pretos, pares da noite. Os pardos [mulatos] são, portanto, ‘expulsos’ da fraternidade humana por Vieira em nome de uma fraternidade de brancos e pretos. No sermão, a autoria da expulsão se altera e se lança mão do sentido duplo da palavra irmandade (de todos os homens, do Rosário): “Excluídos assim, porque se quiseram excluir, os pardos, ficam só os brancos e pretos, cujas cores, ainda que extremas, se poderão muito bem unir na mesma irmandade. (Baeta Neves, 1997, p. 236)

Ao excluir os pardos, Antônio Vieira está na verdade negando a hipótese de miscigenação, de mescla racial, que caracteriza justamente o processo de colonização do continente. De acordo com a visão do jesuíta, o mulato americano nasceria impuro, com uma espécie de pecado original suplementar; um ser que não pertence nem à noite, nem ao dia. Mas com o tempo a tolerância com a vida mundana fará os mulatos serem invejados pelo moralismo clerical. Laura Mello e Souza cita a explicação do jesuíta Antonil, no século XVIII, para este quadro de evidente desigualdade cristã. “O Brasil é o inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas” (1986). A imagem do purgatório como lugar da expiação e do sacrifício se enquadra na visão jesuítica dos obstáculos e riscos que a catequese impunha.

4. Ritos e oralidade

A reação do indígena à crença transmitida pelos europeus estabelece o patamar das relações entre os dois grupos. O branco é visto ora como herói e detentor de uma nova civilização, ora como mensageiro de espíritos, ora como transmissor de doenças. No entanto, o que parecia inevitável era a exposição ao contato com os caraíbas e assim à pregação cristã.

Tudo aquilo que os cristãos diziam e faziam certamente merecia e exigia alguma consideração e resposta em suas especulações religiosas. Buscar compartilhar das fontes do poder cristão, isto é, controlá-las, passava certamente pelo ato de conviver com os europeus e apreender exatamente quais as forças que estes punham em movimento e como eventualmente manipulá-las em benefício próprio (Leite, 1997).

Dentro da melhor tradição antropofágica, o índio aproveitava os ensinamentos europeus para adaptá-los à sua realidade. O batismo tornou-se um dos primeiros rituais católicos a serem incorporados, não se sabe se por conversão ou mera imitação, embora algumas nações indígenas recusassem este sacramento sob o argumento de que imergir a cabeça na água retiraria a força do indivíduo e o deixaria em desvantagem diante do inimigo.

Um dos maiores obstáculos à catequese consistia na multiplicidade de idiomas falados entre as centenas de comunidades indígenas na América do Sul. Era difícil encontrar um elo de comunicação entre nativo e europeu, sobretudo porque a conversão pressupunha o domínio de um simbolismo que, muitas vezes, a língua indígena não comportava. O tupi-guarani soava tão estranho que o jesuíta Manuel de Nóbrega chegou certa vez a comparar o som dos vocábulos ao basco e concluir que esta seria a razão do êxito do padre basco Azpilcueta Navarro no contato com os índios.

No Brasil, o idioma tupi-guarani, falado no litoral pautou os missionários. Em terras andinas, desde o norte da Argentina ao Equador, predominava o quéchua. Esta constatação levou grupos de missionários a propor a adoção dos dois idiomas (guarani e quéchua) como os eleitos para as pregações, pela abrangência territorial dos falantes e pela riqueza de sistematização.

5. Simulacro de oralidade

A proposta de cristianização das línguas indígenas pressupõe um mergulho no sistema de valores e crenças das comunidades. Nesse sentido, Vieira exalta a atuação de José de Anchieta na tentativa de sistematizar uma gramática do tupi. Mais do que a escrita, a gramática tupi-guarani pavimenta o caminho da aparente oralidade da catequese, expressa nas representações teatrais de Anchieta. O teatro visa a costurar um vínculo entre ator e público, assim como o ritual da missa, que simboliza uma montagem teatral com textos decorados, cenografia (a cruz é o maior símbolo cenográfico) e vestuário (as vestes do celebrante), além de algum espaço para improviso, nos sermões. A pregação prova sua eficácia na capacidade de mirar no olho do espectador e fazê-lo compreender a mensagem. Uma espécie de catarse discursiva, que está presente na religião, nas artes ou na política.

Mais recentemente, o meio radiofônico tem-se prestado a pregações religiosas, no entanto, as marcas desta natureza de discurso possuem características que aqui não são analisadas, tais como a necessidade de um discurso religioso que prometa a “salvação” ainda na vida terrena, e não após a morte. Paul Zumthor atribui o poder de envolver a plateia à performance dos trovadores medievais.

Quando um poeta ou seu intérprete canta ou recita (seja o texto improvisado, seja memorizado) sua voz, por si só, lhe confere autoridade. O prestígio da tradição, certamente, contribui para valorizá-lo; mas o que o integra nessa tradição é a ação da voz. Se o poeta ou intérprete, ao contrário, lê num livro o que os ouvintes escutam, a autoridade provém do livro como tal, objeto visualmente percebido no centro do espetáculo performático: a escritura, com os valores que ela significa e mantém, pertence explicitamente à performance. (Zumthor, 1987, p. 19)

A observação a respeito dos trovadores medievais pode ser transplantada para a rádio. O texto lido pelo locutor noticiarista tem características diferentes da fala do repórter, mesmo que nos dois casos o objetivo seja o mesmo: transmitir informação. A autoridade vem do intérprete que memoriza ou improvisa sua fala. Há uma identidade entre quem ouve e quem fala. Os dois sintonizam o mesmo registro. No segundo caso, quando o intérprete lê um texto, a leitura funciona como elemento de intermediação entre quem fala e quem ouve. Denuncia-se a aparente ideia de informalidade do veículo rádio. O ouvinte percebe que as condições de produção do discurso (ou talvez do enunciado) remetem a estruturas diferentes da fala. Em suma, a oralidade (ou a simulação desta oralidade) aproxima emissor e receptor, líder e liderado, pregador e fiel.

Zumthor (1987) distingue três tipos de oralidade: i) a primária, própria das sociedades que não têm contato com símbolos gráficos; ii) a oralidade mista, que sofre influência apenas parcial da escrita e; iii) a oralidade segunda, que se caracteriza pelo uso da voz com base num imaginário marcado pela escrita. Entre os séculos VI e XVI predominaram na Europa as oralidades de tipo mista ou segunda, conforme o período, a região e a classe social. Com base nas distinções apontadas pelo autor suíço, poderíamos afirmar que na América précolombiana a oralidade entre as comunidades indígenas seria do tipo primário. A chegada dos colonizadores europeus permitiu a introdução dos outros dois níveis de oralidade, com os jesuítas desempenhando importante papel neste aspecto.

Este mergulho na estrutura religiosa das comunidades indígenas, mesmo esbarrando em preconceitos e adaptações sem escopo na realidade cultural estudada, revela um despojamento dos jesuítas para com a figura do outro, um princípio longe de ser respeitado pelos intelectuais europeus que pretenderam analisar, 200 anos depois, a realidade política e social na África negra. Amadou Mahtar M’Bow, diretor-geral da Unesco entre 1974 e 1987, lembra que o homem branco ignorou a tradição oral dos povos africanos.

Embora a Ilíada e a Odisseia tenham sido consideradas, com razão, fontes essenciais da história da Grécia Antiga, negava-se valor à tradição oral africana, memória dos povos que fornece a trama de tantos acontecimentos que marcaram suas vidas. Para escrever a história de grande parte da África, recorria-se somente a fontes exteriores ao continente, e o resultado era uma visão não do que poderia ter sido o percurso dos povos africanos, mas do que se pensava que ele deveria ter sido. Sendo a Idade Média europeia frequentemente tomada como ponto de referência, os modos de produção, as relações sociais e as instituições políticas eram analisados somente em relação ao passado europeu. (M’Bow, 2010, p. 13)

M’Bow cita como estigmas, de inspiração determinista, a negação do continente africano como entidade histórica, por parte do europeu, e a visão do deserto do Saara como obstáculo intransponível ao intercâmbio comercial e cultural e para a miscigenação entre os grupos étnicos. Estuda-se a África a partir do tráfico negreiro e sua herança colonial, mas paradoxalmente nega-se a influência dos povos africanos na América. No prefácio de ‘História Geral da África: a África sob dominação colonial’, M’Bow critica a postura intelectual dos não- africanos.

Durante muito tempo, as manifestações de criatividade dos descendentes de africanos nas Américas foram isoladas por certos historiadores num agregado heteróclito de africanismos. Desnecessário dizer que tal não é a atitude dos autores desta obra. Aqui a resistência dos escravos deportados para a América, a ‘clandestinidade’ política e cultural, a participação constante e maciça dos descendentes de africanos nas primeiras lutas pela independência das Américas, assim como nos movimentos de libertação nacional, são entendidas em sua real significação: foram vigorosas afirmações de identidade que contribuíram, para forjar o conceito universal de Humanidade. (M’Bow, 2010, p. 17)

Apesar dos esforços de alguns historiadores, os “bárbaros” da África ainda sofrem com o distanciamento cultural do homem ocidental. E os meios de comunicação dos países hegemônicos têm responsabilidade neste olhar exótico sobre a África, seja pela omissão de fatos e processos históricos, seja pela visão etnocêntrica que está subjacente à narrativa jornalística na maioria das matérias das agências internacionais de notícias.

Quatro séculos depois do surgimento da Companhia de Jesus e da incorporação de suas estratégicas de assimilação cultural às modernas técnicas de formação de mentalidades, algumas questões permanecem sem resposta. Por que os jesuítas no Brasil, após o esfacelamento das missões no sul do País, no século XVIII, optaram por se dedicar ao ensino formal, criando colégios e universidades católicas? Teriam mudado seu público-alvo ao voltar-se para a formação intelectual de integrantes das camadas médias ou teriam mantido a missão original de evangelização? E, por último, por que, especificamente no Brasil, os sucessores de Anchieta, ao contrário de outras congregações obedientes ao Vaticano, exploraram pouco a radiodifusão para divulgar a doutrina da fé?

6. American way ou American why?

O processo de neocolonização da América encontra momento marcante tanto durante a Segunda Guerra Mundial quanto na Guerra Fria.Trata-se de um movimento dialético, que encontra duas forças exponenciais digladiando-se nos campos político, econômico e cultural. De um lado o governo estadunidense defendendo os interesses do capital e buscando perpetuar o território sul-americano como fornecedor de matéria-prima. Do outro, a União Soviética, que a pretexto de universalizar o comunismo, desejava expandir seu raio de ação. Após a vitória na Segunda Guerra, ambas as potências – cada qual a seu modo – buscaram conquistar corações e mentes. Algo parecido a que os jesuítas se propuseram no tempo das descobertas.

Os programas musicais integravam a estratégia de conquista de Washington. Em documento de julho de 1944, o Escritório de Coordenação de Negócios Interamericanos (OCIAA), do Departamento de Estado, explica o objetivo do projeto Music in American Life, em cooperação com a Divisão de Relações Culturais do Departamento de Estado. A série, de 52 horas, dividia-se em sete categorias: música popular, regional, concerto, ópera, marcha militar, música de teatro e de atividades especiais. Os textos eram traduzidos do espanhol para o português.

O documento do OCIAA recomenda aos narradores que associem os arranjos de cada tema musical apresentado a características comuns às duas culturas, a do Brasil e a dos Estados Unidos. E prossegue:

[...] os programas musicais são reconhecidos como um dos grandes fatores de influência das massas populares, o que faz prever que a série será eficaz tanto no Brasil como em outras repúblicas americanas. O propósito do projeto é inteirar o povo do Brasil com nossa cultura e tradições, através de nossa música, e oferecer uma variedade de programas musicais que tenham apelo para o ‘grande público.4

Para a classe média emergente, ser jovem e moderno era substituir os hábitos franceses do início do século pelos padrões de consumo norte-americanos, que esbanjavam praticidade. A França representava o velho e, com a ocupação nazista, passara a depender da eficiência militar e logística dos EUA. A mulher era um alvo perfeito desta supercampanha de marketing comportamental. Eletrodomésticos, como a máquina de lavar roupas, a batedeira e o liquidificador, reservavam mais tempo para o lazer (mais tempo para ouvir rádio) e a possibilidade de ingresso no mercado de trabalho, seja para substituir os homens que lutavam na Itália, seja para a retomada do crescimento econômico no pós-guerra.

Fica ainda mais fácil entender este momento de transição da influência cultural francesa para a norte-americana entre os membros das camadas médias urbanas quando se tem acesso à lista das empresas que mais investiam em propaganda no pós-guerra. Excluindo Nestlé (Suíça), Shell (Bélgica) e Souza Cruz (Reino Unido), a maioria tinha a matriz nos Estados Unidos. Em 1947, as agências de publicidade destinaram 750 milhões de cruzeiros aos meios de comunicação.

Cinco anos depois, em 1952, as cifras alcançaram 3,5 bilhões de cruzeiros, ou seja, um aumento de 360% 5. Desse montante, quase 25% atendiam às emissoras de rádio 6 .




O estudo ‘O negócio da publicidade no Brasil’ demonstra a influência das agências de publicidade estrangeiras nos meios de comunicação. Controlando as contas das grandes companhias, as agências canalizavam para jornais, revistas, emissoras de rádio e de televisão enormes quantias, que financiavam jornais, revistas, emissoras de rádio e de televisão.

As empresas industriais e comerciais que despendiam a quase totalidade da importância de 3,5 bilhões de cruzeiros, e as empresas de publicidade que serviam de intermediárias, eram, na quase totalidade, estrangeiras; finalmente, as empresas que assim manipulavam, e continuam a manipular, a opinião, jornais, revistas, emissoras de rádio e de televisão, acabavam por ser financiadas, mantidas, sustentadas, orientadas por aquelas e, por refletir e defender os seus interesses, que não eram, enão são, os nacionais. A inocuidade do dispositivo constitucional que reservava a brasileiros a exploração da imprensa fica comprovada. (Werneck Sodré, 1966, p. 466)

O jornalista e pesquisador peruano Juan Gargurevich (1981) observa que a propaganda estadunidense durante a Guerra Fria lançava mão dos mais variados organismos, oficiais e privados, como as agências internacionais de notícias, agências de publicidade, institutos internacionais de opinião pública e mercado, corporações comerciais transnacionais, exportadores de equipamentos de tecnologia de comunicação, companhias internacionais de telecomunicação e produtores de programas sonoros e audiovisuais. Gargurevich cita a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), que congrega os proprietários de jornais, como aliada importante dos interesses dos EUA. Outra aliada eram as emissoras de rádio. A RCA (Radio Corporation of America) nasceu em 1919, fruto de uma associação entre três grandes corporações norte-americanas: American Telephone & Telegraph, a General Eletric e a Westinghouse.

As três adquiriram as patentes de Marconi para a fabricação de equipamentos de rádio. A RCA pôs-se a operar as estações, enquanto a GE construía os equipamentos. Começaram, igualmente, a fabricar fonógrafos, receptores de rádio e tubos. Cerca de 2.000 patentes foram adquiridas. Em 1923, a RCA adquiriu o controle da emissora WJZ, de Newark, depois da WJZ, de Nova Iorque, e da WRC, de Washington. Em 1926, a AT&T desligar-se-ia para concentrar-se nos serviços de telefonia. Em setembro de 1926, a RCA, finalmente, consolidaria a National Broadcasting Company, a NBC, sua rede de emissoras que no Brasil teria a réplica com a rede Ipiranga de Chateau. Em 1927 já possuía três redes com 58 emissoras que uniam o país de costa a costa. Em 1932, a Westinghouse deixaria o conglomerado, entregando a NBC nas mãos da RCA. A partir de 1931, começariam as experiências com televisão. No ano seguinte, a RCA transformaria um estúdio de rádio para acomodar a primeira estação experimental, a 2xBS, enquanto expandia sua rede de emissoras de rádio, que em 1933 chegara a 88 estações. Em 1934, tinham 127 afiliadas. Em 1935, a RCA anuncia um programa milionário para o desenvolvimento da televisão. Em 1938, faria a primeira transmissão externa ao vivo cobrindo um incêndio. A nova mídia seria exposta, em 1939, na Feira Internacional de Nova Iorque. (Wainberg, 2003, p. 137)

A Feira Internacional de Nova Iorque foi planejada por empresários norte-americanos, que buscavam forjar uma imagem otimista do futuro, abrindo novas perspectivas para o progresso tecnológico e a expansão da indústria eletroeletrônica e de eletrodomésticos. Quem visitava o pavilhão Futurama, da General Motors, por exemplo, podia realizar um vôo simulado sobre o que, se imaginava, seriam os Estados Unidos em 1960. Dois anos antes da entrada na guerra dos soldados estadunidenses, o slogan da feira esbanjava otimismo: The world of tomorrow. No livro ‘O imperialismo sedutor’, o historiador Antônio Pedro Tota conta que os brasileiros que visitavam a feira saíam de lá deslumbrados com este mundo do amanhã.

Ficavam atônitos diante de aparelhos de barbear, máquinas de lavar roupas, primitivos aparelhos de televisão e robôs. Enfim, os gadgets exerceram tamanho fascínio que, de volta ao Brasil, esses visitantes trouxeram na bagagem a ideia de que a modernização brasileira deveria seguir o modelo americano, Mas, no caminho de duas mãos desse intercâmbio, os americanos tiveram também maior conhecimento sobre seu grande vizinho do subcontinente. (Tota, 2000, p. 95)

Outro pavilhão que fascinava a mulher de classe média era o da Westinghouse, a empresa que participara dos tempos pioneiros da rádio nos Estados Unidos e no Brasil 7.

Fantásticas máquinas de lavar pratos prometiam às donas de casa o fim dos desgastantes trabalhos domésticos. Um robô, chamado Eletro, prenunciava a extinção da própria dona de casa. A inauguração oficial da feira, em 30 de abril de 1939, foi televisionada pela RCA-NBC Television Service, mostrando Roosevelt em visita ao pavilhão da Westinghouse. Os visitantes do pavilhão puderam presenciar esse milagre. A voz do presidente já era bem conhecida pelo rádio, mas esta era a primeira vez que se usava a palavra telegênico em referência à simpatia de Roosevelt. A feira era o lugar ‘onde o sonho se torna realidade’ (where dreams come true), como disse, num programa de rádio, Groven Whalen, presidente do evento. (Tota, 2000, p. 95)

As inovações tecnológicas impulsionaram as indústrias eletrônica e eletrodoméstica no continente, ampliando o mercado consumidor e, consequentemente, os lucros. Mais do que isso, estabeleceram um novo padrão de consumo, que contagiaria as camadas médias urbanas. Muitos destes eletrodomésticos eram apresentados como libertadores da mulher. Vendia-se a ideia de que aparelhos de utilidades, como liquidificador e batedeira, trabalhariam em seu lugar, ampliando o tempo livre da dona de casa. Numa visão conservadora, ela teria mais tempo para se dedicar ao marido. Numa visão mais progressista, tempo para o lazer e o aprimoramento cultural. Ou, numa vertente capitalista, tempo para ingressar no mercado de trabalho.

Antes da consolidação das Organizações Globo, na década de 1970, o maior império de comunicação no Brasil até então, levando-se em conta o número de jornais, revistas e emissoras de rádio e TV, fora construído pelo paraibano Assis Chateaubriand. Os Diários e Emissoras Associadas mantinham veículos em praticamente todos os estados; não emissoras afiliadas e sim pertencentes ao próprio Chateaubriand, que lançava mão dos mais variados expedientes para sustentar seu poder e prestígio junto ao empresariado e ao governo. A base principal apoiava-se no eixo Rio-São Paulo, com as rádios e TV Tupi (inaugurada em 1950, em São Paulo, e em 1951, no Rio de Janeiro), o jornal e revista O Cruzeiro, além da agência de notícias Meridional. Num segundo plano vinham Rio Grande do Sul, Pernambuco, Ceará e Bahia8. Tais unidades da federação constituirão laços de afinidade e solidariedade política com lideranças emergentes entre os futuros comunheiros, especialmente João Calmon, o encarregado de pôr em prática a expansão, transformando-se em comprador de emissoras de rádio, TV e jornais por todo o país e, Edmundo Monteiro, que, aos poucos, forma, ele próprio, seu nicho de poder em torno de São Paulo (Wainberg, 2003, p. 128-129).

Wainberg (2003) afirma que a expansão da rádio se dá entre 1935 e 1950 e a da televisão, entre 1950 e 1960, garantindo sempre o maior quinhão das verbas publicitárias, numa época em que a economia ostenta franco crescimento. Nos Estados Unidos, Randolph Hearst, o inspirador de Cidadão Kane, consolidara seu império de comunicação no final da década de 20. Em 1934 possuía 127 emissoras de rádio afiliadas entre as costas do Atlântico e do Pacífico. Cada um a sua maneira, Hearst e Chateaubriand seguiram trajetórias ascendentes semelhantes.

O desembarque de tropas em Natal, no Rio Grande do Norte, em 1943, intensificou esta assimilação de costumes no Nordeste brasileiro. A base de Parnamirim, nos arredores da cidade, tornou-se ponto de atração para as moças locais. Na bagagem daqueles soldados altos, de olhos claros, que quando não vestiam uniformes andavam de camisa de mangas curtas, veio o jeans, o isqueiro, o chiclete, a Coca-Cola. Não que os brasileiros desconhecessem estas maravilhas do consumo, mas o convívio com aqueles jovens que estavam ali para “lutar pela paz mundial” e evitar que mais navios mercantes fossem afundados nas costas brasileiras, estimulou novos padrões de conduta. Antes um gesto obsceno, o sinal de OK feito com o polegar e o dedo indicador substituiu o ato singelo de tocar a ponta da orelha, para indicar sem palavras que estava tudo certo.

A cidade mais espantada ainda, a conhecer novidades como fósforo que acendia na sola do sapato e isqueiro que não fazia chama: era só encostar o cigarro, pressionar embaixo que acendia; a descobrir que chiclete se chamava ‘chewing gum’, e ao invés de pastilhas vinha em tabletes; a ver homem de pulseira (as chapinhas de identificação); a fumar cigarros fraquinhos e aromáticos: Camel, Lucky Strike, Old Gold, Chesterfield e tantos outros, que logo substituíram o Lulu nº 3, o Selma, Elmo, Jockey Club, etc.; a aprender expressões novas: chance money, drink beer, give me a cigarrette. Ocorriam confusões: a pronúncia ‘bitch’ servia para praia e prostituta. (Pinto, s/d, p. 16-17)

Muito antes da globalização, pesquisada por Stuart Hall (1990), é possível analisar as consequências das transformações trazidas pela modernidade às sociedades tradicionais. O embevecimento pela novidade e a reação silenciosa às mudanças mais profundas nas relações de poder fazem parte do mesmo universo temporal. No caso em questão, os modismos e objetos de consumo não contribuíam em nada para alterar a estrutura das relações sociais e culturais em Natal, no Rio Grande do Norte, mas apontavam mudanças naquilo que o autor jamaicano denominou “modernidade tardia”. A citação de Hall a Anthony Giddens se encaixa simultaneamente na intromissão jesuíta nas culturais indígenas e na absorção da população de Natal dos hábitos dos soldados norte-americanos.

Nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas socais recorrentes. (Giddens citado por Hall, 1990, p. 37-38)

As mudanças que estão por vir na sociedade do Rio Grande do Norte não se restringem à presença dos militares norte-americanos durante a Segunda Guerra, mas aos processos de transformação da sociedade brasileira como um todo, na relação dialética entre colonizador e colonizado.

7. Conclusão

Quatro séculos separam os dois momentos retratados neste artigo. O que estas duas experiências têm em comum em períodos históricos tão distintos? O elo entre os dois momentos pode ser compreendido na relação dominador-dominado, colonizador-colonizado que perpassa os dois relatos. Ao contrário dos folhetins que inspiram as radionovelas e telenovelas, não há certo ou errado, bem ou mal. São estratégias de aproximação no campo da ideologia e da economia.

A catequese dos jesuítas visava conquistar novos adeptos ao catolicismo, mas as missões administradas por eles no Uruguai e no sul do Brasil estabeleceram um modo de produção autônomo que se revelou à margem do capitalismo incipiente no continente americano e, por isso, foram dizimadas pela metrópole.

Já o objetivo do governo estadunidense – ponta de lança das indústrias de bens de consumo – foi intensificar o vínculo com a América do Sul, tanto do ponto de vista ideológico quanto econômico. Apesar das resistências da corrente cepalina, que defendia o fortalecimento da indústria nacional, sobretudo a de bens de capital, os colonizadores viam no Brasil e seus vizinhos muito mais que uma possibilidade de consumo de bens duráveis.

A estratégia de assimilação de mentalidades exige predisposição para aceitar os novos padrões de pensar, viver e consumir. Sem estas pré-condições, perde eficácia porque os paradigmas são outros. Daí a importância de adaptar hábitos culturais do dominado e devolvê-los ao consumo, dando a impressão de troca. A associação do conceito de jovem à ideia de transformação da sociedade foi, e ainda é, amplamente utilizada pela indústria de bens culturais. “Jovem” significa estar predisposto a assumir novos padrões de comportamento e de consumo. O conceito foi aproveitado por todos os lados envolvidos na guerra psicológica, tanto pelo nazismo como pelos aliados, ambos inseridos no capitalismo. Na Guerra Fria, o novo também estava representado pela juventude socialista, assim como na rebeldia do rock norte-americano.

O conceito mercadológico da “nova mulher” apresentava diferenças entre os nazistas e aliados. Enquanto a doutrina nacional-socialista reservava à mulher o lugar de procriadora e geradora de uma nova família em busca da eugenia, a propaganda aliada fazia a apologia da mulher liberada. Não sexualmente, o que só viria a se insinuar mais tarde com o advento da pílula anticoncepcional, mas livre das tarefas domésticas, por meio da avalanche de eletrodomésticos despejados no mercado. A rádio oferecia-se como veículo de divulgação da modernidade e se apresentava simultaneamente como a modernidade em si, pelos padrões de conduta que seus produtores injetavam na sociedade.

A educação representa outra pré-condição, porque significava mudança e, na maioria das vezes, para melhor. Os jesuítas, primeira ordem católica a se dedicar ao ensino formal, realizaram esta experiência durante a catequese e desenvolveram uma pedagogia própria. Trabalharam com a formação de lideranças, que têm efeito multiplicador. A rádio, nos anos 40, veículo de comunicação popular, também exercia o papel de formadora de lideranças. As camadas médias urbanas se informavam por meio dela, absorviam novos padrões de consumo e disseminavam essa forma de viver. O desenvolvimento econômico tornava o país mais urbano e a rádio surgia como personagem fundamental desta transformação. Neste sentido, o veículo desempenhou papel preponderante na transformação de um Brasil rural, apoiado na monocultura, e um Brasil urbano, impulsionado por uma indústria florescente. Os programas radiofônicos irradiavam o novo, a mudança para melhor, vendendo o sonho da ascensão social para as camadas de baixa renda.

Os meios de comunicação hegemônicos prestaram grande serviço a esta “catequese” do século XX. No entanto, assim como as missões jesuíticas, a rádio e a TV também podem agir – e agem algumas vezes – de forma contra hegemônica, dando voz ao colonizado. Esta dialética do imaginário mantém-se em constante efervescência.

O limiar do século XXI assiste à consagração do cardeal argentino Jorge Bergoglio como primeiro papa nascido na América e primeiro jesuíta a comandar o Vaticano. Quase 500 anos depois, um membro da Companhia de Jesus alcança o posto mais alto da Igreja católica. Não um europeu e sim um homem nascidonas terras alvo da colonização. Francisco representa simultaneamente o colonizador e o colonizado. Seu discurso alterna mensagens de pregação conservadora e tolerância religiosa, de crítica ao consumo no melhor estilo franciscano e de abertura aos “infiéis”. A postura de Francisco como alguém simpático a mudanças surpreende, num momento em que o papa torna-se cada vez mais uma figura midiática, plena de simbolismos, maiores do que Inácio de Loyola, José de Anchieta e Antônio Vieira poderiam imaginar.

Material suplementar
Referências bibliográficas
Ferrari, A. (1968). Igreja e desenvolvimento. O Movimento de Natal. Natal: Fundação José Augusto.
Gargurevich, J. (1981). A golpe de titular. CIA y periodismo en América Latina. Praga: Videopress.
Gruzinski, S. (2004). A colonização do imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras.
Hall, S. (1998). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.
Kaplun, M. (1978). Producción de programas de radio. El guión y la realización. Quito: Ciespal.
Lacouture, J. (1994). Os jesuítas: os conquistadores. Porto Alegre: L&PM.
Leite, E. (1997). Homens vindos do céu: contatos religiosos no litoral da América portuguesa. Séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Papéis e Cópias.
M’Bow, M.A. (2010). Prefácio. En: BOAHEN, A.A. (Ed.). História geral da África. VI: África sob dominação colonial, 1880-1935. Brasília: UNESCO, pp. 18-24.
Baeta Neves, L.F. (1978). O combate dos soldados de Cristo na Terra dos Papagaios: colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro, Forense Universitária.
Baeta Neves, L.F. (1997). Vieira e a imaginação social jesuítica: Maranhão e Grão- -Pará no século XVII. Rio de Janeiro: Topbooks.
O’Malley, J.W. (2004). Os primeiros jesuítas. São Leopoldo: Editora Unisinos.
Sodré, N.W. (1966). A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Tota, A.P. (2000). O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras.
Souza, L.M. (1986). O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras.
Wainberg, J. (2003). Império de palavras. Porto Alegre: EdiPUCRS.
Zumthor, P. (1993). A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras.
Notas
Notas
1 Os 10 fundadores são Inácio de Loyola, Francisco Xavier, Diego Laínez, Pedro Favre, Alfonso Salmerón, Simão Rodriguez, Nicolau Bobadilla, Cláudio Jay, Padchase Broët e João Codure.
2 Há diferença entre a oralidade da catequese jesuíta e a aparente oralidade da rádio educativa. Enquanto no primeiro caso a matriz consiste na narrativa oral, transmitida por gerações, a rádio constrói uma nova oralidade a partir da escrita, expressa na cartilha e nos scripts dos programas. Trata-se, portanto de uma oralidade construída com base num enunciado produzido anteriormente, que obedece às regrais da gramática. Mesmo a conversa do radialista com o ouvinte, no formato conhecido como charla, segue técnicas de comunicação calcadas no discurso audiovisual. Neste caso, há um simulacro de oralidade.
3 O livro de Serge Gruzinski trata da atuação das diversas ordens religiosas católicas no México, e não especificamente dos jesuítas.
4 Documento do Office of the Coordinator Inter-american Affairs (OCIAA), de 24 de julho de 1944, que explica o projeto Music in American Life, em cooperação com a Divisão de Relações Culturais do Departamento de Estado dos EUA. A série, de 52 horas, dividia-se em sete categorias, a saber: música popular (1); regional (2); concerto (3); ópera (4); marcha militar (5); música de teatro (6) e atividades especiais (7). Cópia do documento, pertencente ao acervo do Congresso norte-americano, foi cedido pelo historiador e professor da PUC-SP Antonio Pedro Tota, autor do livro “O imperialismo sedutor - a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra Mundial”, São Paulo, Companhia das Letras, 2000
5 Melo Lima, O negócio de publicidade no Brasil, publicado na revista O Observador Econômico e Financeiro, Rio de Janeiro, nº 221, julho de 1954, in História da Imprensa no Brasil, Nelson Werneck Sodré, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, 1ª edição (p. 465-466).
6 Nos últimos anos, a fatia ocupada pela rádio no bolo publicitário mantém share de 4,5%.
7 O transmissor utilizado na primeira audição de rádio no Brasil, em 07 de setembro de 1922, foi emprestado pela Westinghouse. Conta-se que jamais teria sido devolvido.
8 No início dos anos 50, Assis Chateaubriand possuía, em seu nome, 12 emissoras de onda média e nove frequências de ondas curtas no Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador, Natal, Fortaleza, Manaus e Goiânia. Detinha ainda 25 jornais, quatro revistas, entre elas O Cruzeiro – a de maior circulação no país – e, uma agência de notícias.



Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc