Dossiê

Recepção: 31 Janeiro 2018
Aprovação: 24 Maio 2018
DOI: https://doi.org/10.5433/1984-3356.2018v11n21p132
Resumo: Neste artigo, apresentamos uma análise preliminar do Libro de cirugía, de 1725, um manuscrito anônimo de medicina e farmácia, que se encontra na Biblioteca do convento da ordem franciscana de Catamarca, Argentina, e se mantém inédito até hoje. Sua transcrição e análise contribuem significativamente para a reconstituição da cultura científica vigente na América platina do Setecentos, principalmente, no que concerne aos saberes e às práticas medicinais que circulavam na região e eram empregados nas reduções jesuíticas. Além de discutirmos o título dado ao manuscrito e as hipóteses levantadas pelos historiadores Felix Garzón Maceda (1916) e Guillermo Furlong (1947) sobre sua procedência e autoria, nos detemos, também, nas evidências de intertextualidade que o texto nos oferece e compartilhamos algumas breves análises dos conteúdos dos capítulos que compõem o Libro.
Palavras-chave: Libro de cirugía, Manuscrito de medicina e farmácia, Reduções jesuíticas, América platina, Século XVIII.
Abstract: In this article, we present a preliminar analysis of the Libro de cirugía, dated 1725, an anonymous medicine and pharmacy manuscript, which is extant in the convent of the Franciscan Order of Catamarca, Argentina, and is still unpublished. Its transcription and analysis will contribute significantly to reconstruct the scientific culture achieved in La Plata-region) in the 18th century concerning the medicinal knowledge and practices in the region especially in the Jesuitic reductions. Besides discussing the title given to the manuscript and the hypotheses raised by historians Felix Garzón Maceda (1916) and Guillermo Furlong (1947) about its provenance and authorship, we dedicate ourselves to the issue of intertextuality in the manuscript and will impart a brief content analysis of selected chapters in it.
Keywords: Libro de Cirugía, Manuscript of medicine and pharmacy, Jesuitic reductions, Platin America, 18th century.
Considerações Iniciais
Apesar da significativa produção dos jesuítas sobre a natureza e os costumes das gentes do Novo Mundo, poucos foram os historiadores que se dedicaram a analisá-los levando em conta o papel que desempenharam na história intelectual do Renascimento e dos inícios do período moderno. Historiadores como Di Liscia (2002), Millones Figueroa e Ledezma (2005), Del Valle (2009) e Asúa (2014, 2010) se inscrevem em uma vertente historiográfica recente de reavaliação da atuação dos jesuítas na construção da chamada ciência moderna, destacando o papel que desempenharam na criação de redes de conhecimento e na formação de uma epistemologia particular no século XVIII1. Em seus trabalhos enfatizam, sobretudo, a importância dos colégios da Companhia de Jesus instalados nas várias regiões em que seus membros atuaram, para a circulação de saberes e a prática de experimentalismos, dos quais resultou tanto a validação, quanto a contestação de práticas e saberes consagrados na Europa2.
Alguns membros da Companhia, a despeito de uma assimilação seletiva de ideias caras à Ilustração, produziram notável conhecimento científico baseado na observação e na experiência e fundamentado no produtivo diálogo que mantiveram com a ciência e a filosofia modernas3. Esta singular posição se traduziu no expressivo número de obras escritas por integrantes da ordem, tais como as Histórias Naturais e as Matérias Médicas, cuja análise permite a reconstituição do conhecimento científico por ela apropriado, difundido e produzido ao longo do século XVII e na primeira metade do século XVIII4. Para além desta peculiar condição da Companhia de Jesus, e dadas as condições em que se deu o avanço colonial sobre as terras americanas, somadas à personalidade e aos talentos de cada missionário e ao isolamento a que muitos deles estiveram sujeitos, é preciso, também, considerar que muitos destes registros sofreram inegáveis influências das experiências vividas e das trocas interculturais que estes padres e irmãos vivenciaram5.
Esta dupla constatação parece justificar a proposição de estudos sobre o destino dado aos manuscritos de medicina, botânica e cirurgia – sobretudo daqueles que ainda se mantém inéditos – redigidos por padres e irmãos da ordem, nos séculos XVII e XVIII, e aos acervos das bibliotecas jesuíticas logo após a expulsão da Companhia de Jesus da América hispânica, em 1767. Uma análise dos inventários dos bens da ordem, por exemplo, nos revela a presença de livros, medicamentos, utensílios e instrumentos nos colégios e reduções da Companhia de Jesus na América platina, demonstrando que eles foram, por excelência, espaços de circulação de ideias – mediante a formação de redes de conhecimento – e de experimentalismos, que promoveram tanto a criação, quanto a validação de práticas e saberes (AMANTINO; FLECK; ENGEMANN, 2015). Estes dados evidenciam que em muitos desses colégios e reduções da ordem, encontraremos pensadores – como proposto pelo historiador equatoriano Cañizares Esguerra (2007) – que, apesar de habitarem regiões marginais no cenário intelectual do período – áreas consideradas apenas e tradicionalmente como receptoras de conhecimentos produzidos em outras partes do mundo –, foram decisivos na construção de determinados conhecimentos.
Neste artigo, apresentamos uma análise preliminar do Libro de cirugía, de 1725, um manuscrito anônimo de medicina e farmácia6, que se mantém inédito até hoje7. O primeiro historiador a mencioná-lo e a descrevê-lo foi Félix Garzón Maceda8, que, em sua obra La Medicina en Córdoba: apuntes para su Historia, de 1916, traz extratos facsímiles de algumas poucas páginas do manuscrito original, que se encontra na Biblioteca do convento franciscano de Catamarca, na Argentina9. Já a descrição detalhada realizada por Guillermo Furlong, que parece não ter tido contato com o manuscrito original, é inteiramente tributária daquela feita por Garzón Maceda. Foi, contudo, o historiador jesuíta quem, pela primeira vez, atribuiu ao irmão jesuíta Pedro de Montenegro a autoria do manuscrito10, questão que será discutida ao longo do artigo.
A transcrição e análise deste manuscrito11 contribuem significativamente para a reconstituição da cultura científica vigente na América platina do Setecentos, principalmente, no que concerne aos saberes e às práticas medicinais empregadas nas reduções jesuíticas (ASÚA, 2010). Além de nos debruçarmos sobre o título dado ao manuscrito, discutiremos as hipóteses levantadas por Garzón Maceda e por Guillermo Furlong quanto à procedência e à autoria do manuscrito12, bem como as evidências de intertextualidade13 que o texto nos oferece, compartilhando, ainda, algumas breves análises dos conteúdos dos capítulos que compõem o Libro.
Sobre o título e a procedência do manuscrito
O Libro de Cirugía, como denominamos – de forma abreviada – o manuscrito anônimo que analisamos, foi recentemente localizado na Biblioteca da ordem franciscana de Catamarca, na Argentina14. Quanto à apresentação geral de seu exterior, observa-se que a encadernação é de couro marrom curtido, sem uso de cartaz para proteger as folhas, tendo sido feita, muito provavelmente, ainda à época jesuítica ou logo depois15.
A página original do título encontra-se muito deteriorada, como pode-se também observar na foto que se encontra na obra de Felix Garzón Maceda, de 1916, e, posteriormente, reproduzida por Guillermo Furlong, em livro de 1947. Assim como Furlong, outros autores também mantêm o título dado ao manuscrito por Garzón Maceda, dentre os quais destacamos José Penna16, Ramón Pardal e Juan Aníbal Domínguez17. Abaixo, apresentamos uma tentativa de reconstituição da página na qual consta o título e que tem sua leitura prejudicada pela falta de pedaços de papel e pela corrosão provocada pela tinta empregada.
LIBRO DE [na página 54518, encontra-se menção a um texto de “Medicina, Cirugía y farmasia”, por isso propomos que a continuação seja: MEDI-]
C[INA]
CIRUGIA, [BOTI-]
CA
[Trecho em letra cursiva/acrescentado posteriormente] Aplicado a la libreria del convento de Catamarca, [marca que indica que o manuscrito integrava a biblioteca franciscana]
Trasladado de au[tores]
Graves y [doctos]
Para alivio de los Enfermos
Escrito en estas Doctrinas19
De la Compañia de Jesus
Año de 1725
Aplicado [muito provavelmente uma repetição da nota anterior com menção ao Convento de Catamarca] [ilegível]
A letra “c” da segunda linha ainda se encontra legível, o que nos leva a propor que a palavra completa seja “Medicina”. Concordando com o proposto por Garzón Maceda, defendemos que “Botica” seja a palavra que consta na terceira linha. É possível, contudo, que o termo também fosse “Botanica”, mas acreditamos que ele não exprima as propriedades medicinais atribuídas às plantas descritas no texto.
Outra controvertida questão é a datação do manuscrito. Para Garzón Maceda, há uma “segunda parte” do texto com datações internas que não permitem dizer que a data do frontispício se refira ao texto inteiro20. Pode-se supor que esta parte tenha sido inserida, posteriormente, como anexos atualizados e encadernados junto com a primeira ou, então, que se constitua em um segundo texto, talvez de outro autor, como parece sugerir a menção feita à data de 1736, na p. 55 da segunda parte do manuscrito, em uma grafia que parece ser um pouco mais livre do que a empregada na primeira parte do manuscrito.
Como observado em muitos manuscritos jesuíticos rioplatenses do período colonial, também este não tem registrado o nome de seu autor ou do compilador. O Prólogo, que conta com apenas três páginas, também não foi assinado. Assim, não sabemos ao certo quem o escreveu e tampouco se seu autor é também o autor do texto inteiro ou apenas da primeira parte21. O texto encontra-se bastante danificado, razão pela qual conseguimos reconstituir apenas uma parte dele, na qual encontramos explicitada a razão para a escrita deste manuscrito: “Moviome a escrivir […] do hallar en Libro a […] preciso … nan continuamente po…antes no po…. do llevar muchos Libros,... allaba falto … otras veces de aquellos que tr[ataban] la mane[ra…] del caso particular que se ofrecia” (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 9).
O que se pode deduzir dessa passagem fragmentada é que o autor-compilador do manuscrito pretendeu reunir textos de referência de Medicina e de Cirurgia para consulta imediata durante as viagens que realizava para o atendimento de doentes. O trecho deixa claro também a finalidade prática que o texto teria: “para mejor intelligencia y asiento en la administracion de los remedios, que se deben aplicar” (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 13).
A ausência de menções a outros jesuítas no prefácio, bem como de uma simbologia jesuítica no frontispício do manuscrito causou grande estranheza em Garzón Maceda, mas a análise de outros textos rioplatenses da época tem mostrado que poucos têm capas ou frontispícios com símbolos jesuíticos, o que se observa até mesmo em manuscritos de sermões que seguramente tiveram autores jesuítas. Pode-se, no entanto, aventar, acompanhando Garzón Maceda, que o texto tenha sido uma cópia para uso pessoal de um original jesuítico. Segundo este autor (GARZÓN MACEDA, 1916, p. 475-496), o manuscrito teria sido usado pelo “celebre Padre Pacheco, Franciscano”. Para discutir esta possibilidade por ele aventada, apresentamos algumas informações sobre o frei Pedro Luis Pacheco.
Este frei franciscano, que nasceu em Buenos Aires, em 1762, e morreu em 1823, é conhecido pela viagem que fez a Roma, em 1810, com o propósito de denunciar o estado de desleixo em que se encontrava o clero rioplatense. Em sua obra, Garzón Maceda (1916, p. 118-161) informa que o frei foi professor de Cânones na Universidad de Córdoba, e que praticou medicina sem ser médico, tanto em Córdoba, quanto em La Rioja e Catamarca, o que poderia tê-lo levado a ter consigo uma cópia do manuscrito que analisamos. Não sabemos se frei Pedro Luis Pacheco teve atuação destacada no convento de Catamarca durante o período em que atuou na cidade e a documentação encontrada no Arquivo da ordem não parece justificar a hipótese levantada por Garzón Maceda.
Pode-se, em razão disso, aventar a possibilidade de tratar-se de outro “celebre Padre Pacheco”, que não o frei franciscano. Este padre seria o dominicano José Joaquín Pacheco, personagem importante na história eclesiástica de Tucumán, que atuou como provincial e fundou o convento dominicano de Tucumán, em 178522. Esta possibilidade merece ser considerada, uma vez que após a expulsão dos jesuítas, os dominicanos ficaram encarregados da administração de Yapeyú, San Borja, San Miguel, San Nicolás, Mártires, San Carlos, San Ignacio Miní, Trinidad, San Cosme e Nuestra Señora de la Fe, sendo que outras missões foram entregues aos franciscanos e aos mercedários (AMENTA, 2003).
Os dominicanos foram encarregados do cuidado espiritual das atuais províncias de Tucumán e Catamarca. Mas se instalaram na região somente em 1781, muito tempo depois de outras ordens. Em 1784, uma Real Cédula cedeu aos dominicanos a igreja e o colégio jesuíta de San Miguel de Tucuman, hoje San Francisco, que seriam dados um ano depois, em 1785, aos franciscanos. Por Real Cédula de Carlos III, de 1786, foi concedido aos padres dominicanos o convento que ainda hoje possuem em San Miguel. Frei Pacheco foi também o fundador do colégio de San José de Lules, em 1781 (hoje San Isidoro de Lules), no lugar em que anteriormente havia funcionado uma redução jesuítica.
Desde 1787, os capítulos provinciais dominicanos nomearam missionários para as regiões da sua jurisdição, sendo que alguns foram também párocos ou administradores de paróquias em zonas rurais. Sabemos que frei José Joaquín Pacheco, por razões de saúde, passou os seus últimos anos no convento de Buenos Aires. Teria ele entregue seus manuscritos à biblioteca de outra ordem antes de retornar a Tucumán? E, caso o tenha feito, por que não os doou a uma biblioteca de sua própria ordem? Que outros manuscritos do convento dominicano podem ter sido destinados ao convento franciscano de Catamarca?
Para responder a estes questionamentos, partimos da suposição de que frei José Joaquín Pacheco, ao fundar o convento dominicano de Tucumán, tenha, certamente, pensado em nele instalar uma biblioteca. É correto também aventar que o frei soubesse que alguns livros provenientes de bibliotecas jesuíticas, em especial, da de Córdoba, que haviam sido confiscados após o decreto de expulsão da ordem, eram vendidos por arrematadores particulares. Sobre a biblioteca de Córdoba, existe um catálogo (1757), organizado por Alfredo E. Fraschini (2003), e muitos estudos (FERREIRA; PAGE, 2000), sendo que tanto Luis Martínez Villada (1919), quanto Silvano Benito Moya (2012) confirmam que frei Pacheco comprou livros da biblioteca jesuítica de Córdoba.
La entrega de la biblioteca a la Universidad no encerraba para las temporalidades un deseo de "piedad regia", como se gustaba invocar frecuentemente, sino que los libros se habían puesto a la venta [...]. Desde Buenos Aires se autorizó, por ejemplo, en 1805, que se le vendiera al franciscano Fr. José Joaquín Pacheco los libros que quisiera al precio de tasación para el convento de Tucumán (VILLADA, 1919, p. 185).
Em relação à passagem acima, cabe destacar que o autor refere que frei José Joaquim Pacheco era franciscano, o que é incorreto, pois era dominicano. Pode-se, no entanto, supor que Martínez Villada tenha se confundido em relação ao verdadeiro nome do frei franciscano, sobre quem já discorremos, o que poderia reforçar a hipótese de que o manuscrito tenha sido comprado, de fato, por franciscanos que o agregaram ao acervo do convento de Catamarca. Isto, no entanto, não elimina a possibilidade de o manuscrito que analisamos – o Libro de Cirugía – tenha sido encontrado diretamente em uma redução jesuítica assumida pelos franciscanos após a expulsão da ordem.
Pode-se, ainda, cogitar a possibilidade de que um clérigo secular tenha legado sua cópia do manuscrito original à uma biblioteca da ordem franciscana ou dominicana, durante o período de sua atuação junto às doutrinas da região de Tucumán e Catamarca. No momento, no entanto, não temos como apresentar, em caráter definitivo, uma conclusão quanto à procedência e, em especial, em relação à autoria do manuscrito, aspecto que abordaremos na continuidade23.
Sobre a autoria do manuscrito e as evidências da apropriação e circulação de saberes
O historiador argentino Guillermo Furlong (1947, p. 62-81) atribuiu a autoria do manuscrito ao irmão jesuíta e “exímio médico” Pedro de Montenegro24, autor da Matéria Médica Misionera25, negando enfaticamente que o texto possa ter sido escrito por outro irmão jesuíta, Marcos Villodas, o suposto autor de Pojhã Ñana, manuscrito que versa sobre o uso medicinal de plantas e que está integralmente escrito em guarani26. Infelizmente, Furlong não se deteve na descrição ou análise dos elementos que comprovem a autoria do Libro.
A circulação de manuscritos de ciência nas reduções era usual na época, conciliando o saber acadêmico de médicos e boticários e as experiências realizadas por religiosos como o irmão jesuíta Montenegro27. Estes manuscritos eram copiados e compilados, obedecendo a interesses práticos daqueles que os possuíam, e muitos deles provêm, seguramente, da Matéria Médica de Montenegro, como já apontado por Miguel de Asúa (2014, p. 119-123). A importância deste irmão jesuíta para a farmácia e a medicina rioplatense não deve ser, no entanto, tomada como razão inquestionável para atribuir a ele a autoria do Libro de Cirugía. No manuscrito que estamos analisando não encontramos, até o presente momento, qualquer referência explícita à pessoa dele ou mesmo à Matéria Médica.
No caso do Pojhã Ñana, a referência feita ao irmão Marcos Villodas na segunda parte do manuscrito também não confirma que ele seja o autor, uma vez que são feitas apenas menções a receitas que compõem o manuscrito a ele atribuído (OTAZÚ MELGAREJO, 2014). No manuscrito em análise, encontramos referências a certas plantas medicinais cujas virtudes também se encontram descritas na Matéria Médica, mas isto, evidentemente, pode decorrer do fato de que estas plantas eram bastante conhecidas e tinham uso geralizado em algumas receitas empregadas na região platina. Dentre as referidas, destacamos o célebre bálsamo de “Aguaribay”, mencionado nas páginas 145, 243, 259 e 261 e 290 do manuscrito digitalizado, com destaque para as suas diferentes aplicações, sendo que em uma das passagens, à p. 125, o autor-compilador refere, explicitamente, sua experiência com a utilização desse bálsamo. Já na p. 260, encontramos a menção ao “Caayci”, um remédio tradicional das reduções, também referido como "Calsi" na p. 332 do manuscrito. Sobre sua utilização, nos informa o padre Guevara: “El Caayci lo vsan en lugar de incienso y hacen de el balsamo contra heridas y llagas” (GUEVARA, 1908, p. 93). Essas passagens parecem comprovar que os saberes e práticas de cura rioplatenses, e que, efetivamente, circulavam na região, estão presentes no manuscrito, mas isto não significa, necessariamente, que tenham sido transmitidos pelo irmão jesuíta Montenegro ou por intermédio da obra que escreveu.
A importância do Libro de Cirugía não se reduz às virtudes e às receitas de plantas medicinais nativas da América platina, podendo ser também observada nos autores referidos pelo autor-compilador ao longo dos capítulos do manuscrito. Garzón Maceda também chegou a indagar-se sobre a influência que os autores citados teriam exercido sobre o autor-compilador do manuscrito, sem, no entanto, realizar uma análise mais aprofundada em torno da apropriação e circulação de saberes na América platina na primeira metade do século XVIII. Em um exame preliminar, localizamos mais de cinquenta autores médicos citados ao longo dos capítulos do Libro.
As primeiras evidências de intertextualidade se encontram no Prólogo, no qual o autor-compilador do manuscrito faz referência às obras que consultou28:
[...] todo lo contenido lo he sacado de autores clásicos y doctos que son para la medicina de las obras del doctor Gordino [sic]29, del Libro de la peste del doctor Luis Mercado30, del Compendio de don Juan de la Torre31, del médico caritativo, por el licenciado Félix Borbón32, de “La llave de oro” del doctor Trapiella33, del “Tesoro” de Juan Viguier34, y del libro del doctor P. Fray Agustín Farfán35, y de los experimentos del doctor Gerónimo Soriano36. Para lo pertinente a cirurgia me he valido de la obra del licenciado Dionisio Daza37 y la del Doctor Juan Calvo38, de la cirurgia de Antonio de la Cruz39, de la del doctor Antonio de Robledo40, de la del licenciado Porres41 y del Cirurgiano Caritativo. La botica é sacada de [...] (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 9).
Dentre as obras com maior número de referências, estão Medico caritativo, de Felipe Borbón42, que aparece, às vezes, na forma abreviada “M.C.”; uma obra de Jean Vigier, que o autor-compliador cita como “Vig.”, e a obra de Trapiella y Montemayor. Algumas das receitas referidas no manuscrito são extraídas diretamente das obras destes médicos ou de referências feitas a eles em outros textos. Temos, também, menções a observações e experiências realizadas por outros irmãos jesuítas, sendo que o autor-compilador deixa claro que estas lhe foram transmitidas oralmente ou através de cartas, sem que, contudo, especifique as reduções às quais os religosos se encontravam vinculados. Em uma tentativa de reconstituição da procedência das informações, constatamos que, em sua maioria, se referem à zona chiquitana de Mojos, o que parece apontar para possíveis contatos do nosso autor-compilador com religiosos da ordem que atuavam nesta região e, até mesmo, com aqueles que circulavam pelos caminhos que levavam à Santa Cruz de la Sierra.
Apesar das poucas menções feitas a médicos de outras regiões da América Latina, elas nos permitem demonstrar a amplitude de contatos que o autor tinha e quais os saberes e práticas de cura que, segundo ele, mereciam ser registrados. Infelizmente, não encontramos informações sobre frei Onofre Médico, associado a uma receita de Mechoacan, que consta na p. 85 da versão digitalizada do manuscrito; sobre Juliano Ortiz, de Lima, mencionado na p. 617, e sobre Dr. Domingo García43, referido à p. 628, que, acreditamos, podem ter transmitido oralmente suas receitas e experiências com plantas medicinais nativas44.
Para além das reflexões suscitadas pelas recorrentes menções a certos autores, procuramos, também, verificar se as obras mencionadas no Prólogo se encontravam referidas no acervo da maior biblioteca jesuítica da época, a do Colégio de Córdoba. No já citado catálogo deste colégio (FRASCHINI, 2003), encontramos Espejo de la Philosophia, de Torre y Barcarzel; Cirugia, de Felipe de Borbón, sob o nome latinizado Philippus de Borbon; Chirurgia universalis, de Calvo, ou Ioannes Calvo, e Ratione cognoscendi infirmitates, de Alphonsus Daza45. Os demais autores citados no Prólogo não se encontram relacionados no Catálogo do Colégio de Córdoba ou no Inventario do Colégio de Assunção, o que parece sugerir que o autor-compliador pode tê-los consultado em outros acervos que não os da Companhia de Jesus. Esta constatação nos permite indagar: teria o autor consultado alguma biblioteca privada e pacientemente se dedicado a copiar os trechos que lhe interessavam? Esta é uma especulação que, se confirmada, poderia nos levar a, mais uma vez, questionar o afirmado por Furlong, para quem o autor do manuscrito é o irmão jesuíta Montenegro.
O fato é que somente um maior investimento nas evidências de intertextualidade, nas caligrafias e nos estilos de escrita empregados nas duas partes do manuscrito, e, em especial, uma análise comparativa entre o Tratado de Cirurgia e a Matéria Médica, de Pedro de Montenegro, e o Pojhã Ñana, atribuído a Marcos Villodas, poderá determinar tanto a autoria, quanto a data – ou período provável – em que o texto ou partes do manuscrito foram escritos.
Compartilhando breves análises dos capítulos do manuscrito
Neste tópico, compartilhamos os primeiros exercícios de análise dos sete capítulos já transcritos, a saber, Tratado Brebe del Modo de Sangrar (3º capítulo), Enfermedades de la cabeza (4º capítulo) Enfermedades del Pecho (5º capítulo); Enfermedades de la Cavidad Abdominal (6º capítulo) Enfermedades de las mujeres (7º capítulo), Tratado de las fiebres (8º capítulo) e Capítulo del pulso, orina y crisis (9º capítulo).
No terceiro capítulo da obra, Tratado brebe del modo de sangrar, encontramos uma descrição detalhada sobre como realizar uma sangria. Esse tratamento era empregado no tratamento de algumas doenças e consistia na retirada de sangue do enfermo, por meio de cortes feitos estrategicamente ou do uso de sanguessugas colocadas em locais definidos a partir dos sintomas da enfermidade. O procedimento muda para cada caso, assim como o membro do corpo a ser cortado, o instrumento a ser utilizado e as indicações que acompanham o processo. Há, segundo o autor-compilador, uma sangria específica para cada enfermidade.
Como sangra la vena cefalica, ò vena de la cabeza? Poniendo al enfemo sobre el lado contrario, recogiendole la camisa hasta el hombro, de manera que no se caiga sobre la ligadura, y le pondrè la cinta tres dedos más arriva de donde se hia de picar, con una cinta de media seda de un dedo de ancho, y romperè la vena longitudinamente (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 167).
Nele, encontramos, também, algumas ilustrações de veias e de instrumentos cirúrgicos, utilizados no procedimento, tais como o sajador, utilizado pelos sajadores, que faziam as sangrias, bem como dietas indicadas para antes ou depois da sangria, sendo que as mais frequentes prevêem a ingestão de vinho tinto diluído em água antes do procedimento. Alguns alimentos, no entanto, não deveriam ser ingeridos por certos enfermos, como no caso da sangria realizada em uma mulher grávida:
Y si fuese muger, y estuviese preñada, podrase sangrar de la vena del arca? No la sangre sino de la vena comun de todo el cuerpo, y le pondré en el ombligo antes de hacerse la sangria un poco de carne a medio asar, õ una tortilla de huevos, õ una tostada de pan mojado en vino, y polvoroado en canela (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 173).
No capítulo De las enfermedades de la cabeza, encontramos receitas cujos ingredientes eram unhas de mamíferos, tais como veados, cães e antas, estas últimas referidas como “la gran bestia”, que, segundo o autor-compilador, auxiliavam no tratamento de epilepsia. Outras delas previam a ingestão de partes de sapos e caranguejos, como evidenciado nesta passagem: “Dicen que el Brazo derecho del sapo, si lotra en los inos los libra delos accidentes epilépticos” (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 196). Constatou-se, ainda, que, neste capítulo, apesar de o autor recorrer com frequência à obra Médico Caritativo, de Felipe Borbón, e a outras autoridades científicas, ele o faz com menos frequência do que em outros, o que poderia apontar para uma narrativa mais autoral. No entanto, como nos demais capítulos, existem algumas diferenças na caligrafia, que nos levam a duvidar de que foi escrito ou copiado por apenas uma pessoa. Nas laterais das páginas deste capítulo encontramos anotações com letra diferente daquela empregada no texto, o que, no entanto, não exclui a possibilidade de que elas tenham sido posteriormente acrescentadas por um leitor ou revisor na versão do manuscrito que estamos analisando.
No 5º capítulo, que trata das enfermidades do peito e da voz, o autor-compilador refere um caso de convulsão: “[...] Muchas veces, se experimenta alguna cosa de convulsion, en este caso no usaremos de medicamentos volatiles sin mescla de laudano, u opio; mejor es mitigar los accidentes con medicamentos templados, como el ambar de cuentas preparado, las mirra en polvo, y el Incienso macho [...]" (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 249).
Os quadros convulsivos remetem à epilepsia, doença citada na Tabla de las cosas notables, na qual são listadas outras enfermidades. As crises epilépticas, vale ressaltar, foram compreendidas historicamente sob um viés sobrenatural, e, por provocarem movimentos desordenados do corpo humano, chegaram a ser descritas como um fenômeno ocasionado pela ação de forças demoníacas. No caso do Libro de Cirugía (1725), no entanto, o autor-compilador não faz menção a elementos mágico-religiosos para descrever suas causas ou para tratá-la, o que parece apontar para uma forma distinta, isto é, científica, de tratar convulsões e epilepsias, reforçando a possibilidade de que o autor-compilador não tenha sido um religioso.
O sexto capítulo do manuscrito se refere às enfermidades da cavidade abdominal e contempla terapêuticas indicadas para conter as dores de estômago, tratar a disenteria e a prisão-de-ventre, as diarreias, as verminoses – muito comuns entre os indígenas nas reduções jesuíticas –, as hemorroidas e, ainda, as enfermidades do baço e do fígado. No subcapítulo sobre vômitos, encontramos registrada a atuação do autor-compilador na cura de uma grave enfermidade que acometia um indígena da redução de São Miguel, a quem foram administrados os santossacramentos e a “medicina siguiente”:
[...] Estando yo en s.n mig. Me avisaran de la enfermedad de un Indio. q.e hera colica flatuosa, àla q.l llaman ellos Yabirù. Tenia el vientre inchado como un tambor, y ya conados los stos Sacramentos: dispuselè la medicina siguiente. De medula de Patas de Vaca liquida quatro onz, junto con quatro onz. de vino, y una cucharada de sal, de hise levantar un heruor al fuego, y caliente de lo hise veuer de una vez; el efecto q.e hiso fuè, que por dos oras estubo el enfermo quieto, despues se dispertò, y purgò cantidad de humores crasos, flematicos por mas de seis oras continuas hasta que del todo selè vajo la inchason y quedò sano al q.e yà estava a punto de morir. En falta de aseite puse el tuetano, y añadi la sal p.a haser el remedio [...] (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 248).
Como se pode constatar, os procedimentos e os medicamentos indicados visavam à purga de humores para o pleno restabelecimento do enfermo, apontando para a adoção de princípios da teoria hipocrático-galênica46. A menção de que, na falta do azeite usualmente empregado, o autor-compilador recorreu à gordura de tutano aponta para a realidade na qual viviam os missionários nas reduções e para a necessidade de adaptações e intervenções ágeis diante de certas enfermidades e ou da incidência de epidemias. Passagens como a que destacamos acima nos auxiliam, portanto, no entendimento das razões para a escrita e circulação de livros-síntese, tais como o Libro de Cirugía, que podiam ser transportados com facilidade, adequando-se à realidade que viviam tanto os religiosos, quanto os laicos encarregados do atendimento de doentes47.
Neste capítulo, encontramos também informações sobre os medicamentos empregados para conter a “peste”: "[...] por duas rasones son de grande eficasia en la peste, fiebres malignas, achaques [...] q.e la masa dela sangre nò este afecto de pequenos orumos, y. q.e nò hasa embaraso en los pulmones [...]" (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 246). Não há, contudo, ao longo de suas páginas, qualquer menção ao uso de relíquias ou a orações para curar ou proteger os enfermos face à alta incidência de epidemias, e nem mesmo a uma possível punição divina aos indígenas reduzidos, o que parece se configurar em elemento que reforçaria, mais uma vez, a hipótese de que o autor-compliador do manuscrito não seja um religioso.
Ao referir-se aos tumores en geral, em um subcapítulo intitulado Del zaratán, palavra de origem árabe usada para descrever o tipo específico de câncer que se desenvolve nos seios das mulheres, encontramos a seguinte passagem:
[...] Cuando el cancro fuere en los Pechos, y nò se pudicien curar con remedio alguno, se estirparà cortandolo con navaja, sacando todo el tumor con sus raises, ò abriendo en cruz se descamarà, y con las manos se esprimirà para que salga toda la sangre melancolica q.e estibieri cangregada en la circunferencia, luego se cauterisarà con sucebidad no produsca escara gruesa, y se aplicaran los polbos siguientes [...] (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 394).
Considerando que a assepsia surgiria somente no século XIX, há que se reconhecer que as intervenções cirúrgicas no século XVIII, além de arriscadas para os pacientes, estavam sujeitas à incidência de infecções. Acreditamos que, no caso relatado, a cauterização tenha sido empregada para atenuar os efeitos colaterais que se seguiam a este tipo de intervenção realizada no século XVIII. No entanto, o que chama a atenção no excerto é a informação de que o corte foi feito em formato de cruz, o que parece sugerir a invocação do auxílio divino para assegurar o êxito da operação. Já a indicação de espremer e de eliminar o sangue melancólico está em consonância com o pensamento hipocrático-galênico, evidenciando a apropriação das teorias médicas vigentes nas intervenções cirúrgicas realizadas nas reduções no Setecentos48.
No nono capítulo, intitulado Del Pulso, Orina y Crisis, o autor-compilador aborda as causas de baixa pressão arterial. A pulsação enfraquecida teria, segundo ele, relação com “[...] La demasiada evacuasion [...] el calor intenso, y aserrimo, la vigilia, la abstinencia de comida; el dolor grande; el temor, la tristesa, el movimiento demasiado del cuerpo, y el mucho coyto [...]“ (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 354). Esta passagem parece apontar para uma associação entre os problemas de pressão arterial e um comportamento moral [excesso de intercurso sexual], alvo de reiterada condenação dos missionários que atuavam nas reduções da região platina. Cabe, no entanto, ressaltar que a vinculação entre enfermidades e desaprovadas condutas morais não era estabelecida exclusivamente por religiosos, constituindo-se em aspecto destacado também por autores médicos laicos, tais como os referidos no Prólogo do Libro.
Neste capítulo, são também abordadas as crisis, percebidas como situações ápices de determinadas enfermidades, que encaminhariam o paciente para a melhora ou para a piora de seu quadro. De acordo com o Libro de Cirugía, existiam as “boas crises”, nas quais o corpo sairia vencedor, e as “más crises”, que consistiam no sucesso das enfermidades. Uma má crise poderia levar, até mesmo, ao óbito. Para que as crises fossem superadas, o manuscrito traz a indicação de seis condições – em consonância com a teoria humoralista – que deveriam considerar a enfermidade e a idade do enfermo, “e, assim os morbos agudos por excreções de vômitos, fezes, suor se terminam aos largos [...], fazem terminar a febre ardente no jovem pelo fluxo de sangue, e no velho termina, no mais das vezes, pelo fluxo do ventre” (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 380).
A menção feita ao azeite extraído do “tapiti” pelos indígenas (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p.318), dentre outras indicações, indicam a familiaridade do autor-compilador com certos saberes nativos adotados no tratamento de determinadas enfermidades. Sob esta perspectiva, as menções às experiências feitas para confirmar as propriedades curativas de plantas e animais, bem como o emprego de termos indígenas nos receituários parecem apontar para a síntese científica presente no Libro de Cirugía (1725)49. Chamou-nos a atenção, também, uma passagem do Libro que sugere a incorporação da farmacopeia nativa no tratamento de doenças na Europa: "[...] La triaca aplicada se observó en la Peste de Mantua año de 1629, q.e matava [El carbunco], más combeniente son los medicamentos suabes q.e los acres [...]" (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 393).
Já no sétimo capítulo da obra, Enfermedad de las mugeres, percebemos que as terapêuticas indicadas estão relacionadas com o mal de madre50 e visavam combater cólicas e dores pós-parto ou, então, fazer descer ou parar a menstruação. Para tanto, são indicadas diversas plantas e infusões, dentre as quais se encontram a canela, a matricaria (camomila), o asafran (açafrão), o ynojo (funcho) e o perejil (salsa)51. Estes ingredientes são mencionados em várias passagens do Libro, como neste preparado indicado para fazer descer a menstruação: “Es tambien buen remedio tomar cada mañana una dragma de preparado mesclado con un poco de miel, veuiendo inmediatamente media tasa de vino blanco, ó cosimiento de Artemisa” (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 298)52. Para deter o fluxo de sangue após o parto, o autor-compilador do Libro recomenda o uso de Balsamo de Aguaraybay, uma planta nativa da América do Sul, que cresce no norte da Argentina, na região próxima de Córdoba, e possui propriedades purgantes53. Sendo assim, o manuscrito nos oferece evidências tanto da circulação de plantas nativas da região platina entre colégios e reduções, quanto de sua utilização em receitas.
No Libro de Cirugía o autor não apresenta explicações detalhadas sobre a anatomia do corpo feminino, se detendo, principalmente, nas terapêuticas indicadas no tratamento de enfermidades próprias das mulheres. Entretanto, em algumas passagens ficam claros alguns conhecimentos sobre anatomia e sobre o funcionamento do corpo feminino54, como no trecho em que o autor descreve as fases da vida fértil da mulher:
Empiesa a vajar los mestruos à las mugeres de y fin del los 14, y les dura hasta los 40, ó 50. Seguen las complesiones, por que a unas les empiesa a bajar desde los 13 años, y a unas de 15, y lo mismo en el sesar, que a unas ya no les baja à los años, y a unas despues de los 50 los tienen. [...] los mestruos seguen los tiempos de la luna; a las muchachas les corre en el primer quarto, a las mosas en el 2º, y a las de más edad en el 3º, y alas viejas en el ultimo quarto de la luna [...] Y se há de saber que àlas mugeres quando les corre vir los mestruos, segun la costumbre que dura 3 días, mas ó menos, entonses viven sanas, castas, y son fecundas (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 299).
Também encontramos menção a cesáreas, procedimento cirúrgico descrito detalhamente, mas não recomendado pelo autor, que se limita a afirmar que “rara ves tiene buen efecto” (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 302), devendo ser empregadas somente quando fosse constatado que a mãe estava morta e que a criança ainda estivesse viva, a fim de que pudesse ser salva. Para controlar o sangramento após o parto, são indicados remédios e alimentos que não “derriten demasiado la sangre” (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 306) e debilitassem ainda mais as forças da mulher, evidenciando a apropriação da medicina hipocrático-galênica pelo autor-compilador.
Como se pode observar este capítulo trata da menstruação, do parto e de doenças femininas de forma bastante detalhada para a época. Deve-se, no entanto, ressaltar que estes tratamentos, apesar de poderem ser do conhecimento dos jesuítas, não eram por eles executados, por razões fundadas na própria religião e moral do período, cabendo às mulheres indígenas o atendimento das parturientes e mesmo daquelas com males da madre. Considerando que o manuscrito, como anunciado no Prólogo, destinava-se ao pronto atendimento de enfermos, em especial, daqueles que viviam nas reduções da Companhia de Jesus, pode-se questionar as razões de as enfermidades femininas terem sido consideradas e incluídas em um suposto texto de autoria jesuítica. O detalhamento que caracteriza este capítulo parece reforçar a possibilidade que aventamos de que o manuscrito, ou, então, partes dele, como esta que se detém, especificamente, nas doenças próprias das mulheres, não tenha sido escrita por um religioso.
O capítulo De las Fiebres, y de su Diferencia trata sobre os diferentes tipos de febres, não descuidando de definir fiebre, que corresponderia, segundo o autor-compilador, a:
[...] calor no natural mudado en fuego [...] a diferencia del natural, que es el conservador de la vida, y el preternatural el destruidor de ella; mudado en fuego se dice a distincion de otro calor no natural, que no es bastante activo para producir fiebre, como es la ira, el exercisio &, que produciendo calor preternatural no llega a ser febril (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 317).
Existiriam, especificamente, três espécies de febres: as Eticas, as Putridas e as Efimeras. As Febres Eticas atingiam os membros sólidos e dividiam-se em três tipos, não mencionados especificamente pelo autor. As Putridas, que atingiam os humores, e as Efimeras, os espíritos, são tratadas mais a fundo e mereceram maior atenção quanto às suas variações e subespécies. As Putridas dividem-se em “colericas”, “biliosas”, “cotidianas”, “flematicas”, “melancolicas” e “sanguineas”; e, as Efimeras, em “causon”, “tercianas”, “quartanas” e “malignas”.
Ao longo do capítulo, em consonância com as teorias médicas vigentes no Setecentos, diferentes terapias dietéticas são indicadas para cada tipo de febre. As Eticas, febres cujo principal efeito era o ressecamento de artérias e do coração – configurando-se em uma doença seca –, deveriam ser combatidas com tratamentos e alimentos úmidos, como “carnes de cangrejos”, “caracoles”, “tortugas” e “leche de baca”, e, também, leite. As Pútridas, por sua vez, deveriam ser combatidas com uma dieta alimentar constituída por “seuada”, “asucar”, “caldos de pollo”, “carne de carnero” ou “gallinas”, e “lechugas”. Também são indicadas plantas como “salvia”, “romaza”, “sem”, “orosus”, “esparrago” e “ybiamirri”, empregadas tanto na alimentação como na composição de sudoríficos e vomitórios. Por fim, as dietas indicadas para as febres Efimeras são as mesmas empregadas no tratamento das febres Putridas, adicionando-se, apenas, a recomendação da ingestão de limões e laranjas.
Como pode-se observar, alguns alimentos são recomendados para o consumo, enquanto outros integram receitas indicadas no tratamento de enfermos febris. Dentre eles, destacamos o já mencionado leite. Seu consumo é fortemente recomendado para os enfermos que sofriam de febres Eticas, e é tido, inclusive, como “alimento, y remedio universal” (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 349). Alguns alimentos também são empregados no combate das febres Efimeras, podendo ser utilizados para fazer compressas na cabeça dos enfermos. Este é o caso das cebolas, que podiam ser tanto ingeridas como aplicadas na pele dos Efimeros que apresentassem erupções em decorrência da subespécie mais letal das Efimeras, as Malignas. Enquanto certos tratamentos para as febres incluíam a ingestão de esterco, urina e animais vivos, como sapos, outros previam exclusivamente a ingestão de leite, desde que observadas algumas condições, como nesta indicação para o tratamento das febres Eticas: “Y el mejor tiempo de usarla será por las mañanas [...] hagan traer una baca mansa, gorda, negra, y nó vieja, ni mui joven [...] y ordeñen la leche en un baso que este metido dentro de otro baso lleno de agua bien caliente, para que assi con el calor que sale la beba el Enfermo (LIBRO DE CIRUGÍA, 1725, p. 349).
Também neste capítulo, como nos demais, encontramos evidências da familiaridade do autor-compilador com os princípios da teoria dos humores e de sua aplicação, como nas passagens nas quais ele destaca que as febres resultantes dos humores frios eram mais demoradas do que aquelas que decorriam do calor; que as febres coléricas eram mais breves e menos agudas, e que as causadas pelo sangue eram menos agudas e breves em seus sintomas, embora demorassem mais para passar. O consumo e a utilização de certos alimentos e animais em receitas, por outro lado, parece apontar para uma combinação – ou adaptação – das receitas já consagradas e adotadas pela medicina caseira europeia com a flora e a fauna disponíveis nas regiões de atuação do autor-compilador ou de seus informantes religiosos ou laicos.
Considerações Finais
Considerando-se o estágio atual da investigação, não podemos afirmar que o manuscrito tenha tido um autor ou compilador jesuíta ou laico, o que, no entanto, não diminui sua relevância para a reconstituição dos saberes médicos da primeira metade do século XVIII na região platina. Apesar de o frontispício informar que o manuscrito foi redigido no ano de 1725, acreditamos que sua primeira e segunda partes possam ter sido copiadas e reunidas em um período posterior, muito provavelmente, entre 1730 e 1740, portanto, nas duas décadas que antecederam a expulsão da Companhia dos domínios ibéricos.
A anotação “Aplicado a la libreria del convento de Catamarca”, feita em grafia e formato típicos do século XVIII, nos leva a acreditar que o manuscrito, proveniente de outra biblioteca religiosa – muito provavelmente, jesuítica – ou, então, de doação feita por um médico laico, tenha integrado o acervo deste convento ainda no Setecentos. Mas, somente um exame mais apurado da história da biblioteca do convento de Catamarca, de seu acervo e da utilização que franciscanos e dominicanos fizeram do manuscrito possibilitará a confirmação ou refutação das hipóteses de Garzón Maceda, levantadas, muito provavelmente, a partir de informantes que forneceram tradições orais dos membros de ambas as ordens.
Trabalhos recentes têm apontado tanto para a premissa de que irmãos e padres da Companhia atuaram decisivamente na implantação de uma cultura científica nas terras de missão americanas, quanto para aquela que destaca a indiscutível contribuição dos indígenas para os conhecimentos que viriam a ser difundidos através da eficiente “rede de agentes da Companhia” encarregada de promover sua circulação entre os colégios jesuíticos da América e os da Europa (MILLONES FIGUEROA; LEDEZMA, 2005, p. 28).
Os capítulos do Libro de Cirugía, que analisamos neste artigo, parecem, efetivamente, apontar para a existência de uma rede de circulação de conhecimentos de medicina, cirurgia e botânica entre a América Platina e a Europa, fomentada, em grande medida, pela Companhia de Jesus, e que se evidencia tanto nos livros que integraram as bibliotecas de seus colégios, quanto nas obras de Matéria Médica que foram escritas por seus irmãos e padres durante o período de atuação como missionários na América. As muitas informações sobre plantas nativas e as referências diretas ou alusões a padres e irmãos jesuítas e a regiões de atuação da Companhia de Jesus (como a Chiquitania, por exemplo) que encontramos no Libro constituem-se em fortes indícios de sua circulação e utilização por boticários, enfermeiros e missionários da ordem.
A finalização da transcrição e da análise dos capítulos que compõem o Libro de Cirugía, e, em especial, do levantamento e da discussão das evidências de apropriações feitas de textos clássicos de Medicina e Farmácia, tanto dos europeus, quanto dos rio-platenses escritos no Setecentos, bem como das práticas terapêuticas e saberes nativos, possibilitará que lancemos novas hipóteses e compartilhemos novas informações sobre a procedência e a autoria deste manuscrito que se mantém anônimo e inédito até o momento.
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