Primeiros Passos

Recepção: 28 Fevereiro 2018
Aprovação: 05 Junho 2018
DOI: https://doi.org/10.5433/1984-3356.2018v11n21p429
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar os discursos em torno da identidade cultural através das manifestações da música popular em Florianópolis, Santa Catarina, a partir de entrevistas com músicos e participantes das comunidades do samba, enfatizando, principalmente, a questão das formas musicais e melódicas que compunham em meados do século XX. Pautadas na valorização dos antigos instrumentos, na forma como eram confeccionados, nos formatos dos conjuntos, grupos e nos gêneros musicais, estas memórias nos conduzem e nos auxiliam para uma reflexão historiográfica sobre experiências musicais enquanto formas de lazer, de afirmação e representação cultural, aqui se entendendo como linguagens e representações de mundo, tal como esta se configura nos pressupostos teóricos da Historia do Tempo Presente. A música, nesse sentido, se torna um dos agentes formadores dos discursos em torno da identidade cultural das populações que compõe as regiões periféricas urbanas.
Palavras-chave: História do tempo presente, Memória, Música popular, Identidade cultural.
Abstract: This paper aims to analyze the discourse about cultural identity through the manifestations of popular music in Florianópolis, Santa Catarina, from interviews with musicians and community participants samba, emphasizing mainly the issue of musical forms and melodic is composed in the mid-twentieth century. Rooted on the valuation of antique instruments, the way they were made, in either of the sets, groups and musical genres, these memories help us and lead us to an historical analysis of musical experiences as ways of pleasure, affirmation and cultural representation to understanding how languages and representantions, as it takes shape in the theoretical assumptions of History of the Present Time. The music in this sense becomes one forming agents discourse around the cultural identity of the people that belong to the outskirts of towns.
Keywords: History of the present time, Memory, Popular music, Cultural identity.
Introdução
Com objetivo de compreender o lugar do samba entre as comunidades musicais em Florianópolis, bem como sua constituição identitária, no âmbito das manifestações culturais de matriz africana, este trabalho parte de uma breve contextualização da cultura popular no Brasil ao longo do século XX, bem como do lugar do samba enquanto representante de uma cultura nacional, neste mesmo período, a partir de pesquisas de referência e suas reflexões.
Em seguida, o artigo segue com algumas informações acerca das percepções sobre a constituição do samba em Florianópolis, realizada principalmente a partir da metodologia da história oral. Como critério de seleção de entrevistados, a pesquisa foi elaborada com pessoas ligadas às comunidades do samba, principalmente músicos e compositores de samba, com faixa etária diversificada - entre 40 e 80 anos de idade. Também foram utilizadas fontes impressas e pesquisas de referência respectivamente focadas na constituição urbana e na presença das manifestações do samba em Florianópolis, além de publicação em livro das memórias de um dos fundadores mais conhecidos, de uma das escolas de samba da cidade.
Assim, podemos discorrer sobre algumas reflexões acerca das formas como se configuraram uma das mais expressivas manifestações culturais de matriz africana no Brasil, que tem na musicalidade o mais expressivo repertório da oralidade afro-brasileira.
Breves considerações sobre a cultura popular no Brasil
Como já salientado, propomos inicialmente de perceber o tema da cultura popular e suas implicações na constituição de uma identidade nacional. Este tema, de forma mais ampla, já tem se fundamentado em diversas pesquisas e obras de inegável valor social, pois tem embasado e instigado novos debates, apontamentos e desdobramentos acerca das particularidades que cercam os mitos fundadores da identidade brasileira.
As percepções históricas e sociológicas das manifestações da cultura popular brasileira também atuam de forma a compreender como esse processo de construção de uma identidade nacional vem sendo pensado por intelectuais e pesquisadores, sobretudo destes últimos dois séculos.
Renato Ortiz (1994) aprofunda essas discussões, apontando como alguns médicos, sanitaristas, escritores e tantos outros membros da elite política nacional se preocuparam com as questões culturais e constituição de um legítimo ‘povo brasileiro’ através de suas teorias e obras literárias.
Dentre eles, Ortiz destaca Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Aluísio Azevedo, que no final do século XIX procuram evocar na figura do mestiço e nas teorias do “embranquecimento” da população uma “solução” para um Brasil de características próprias, particulares e não menos nobres ressaltando, para isso, o que cada ‘raça’ constituinte da população brasileira, tem de melhor.
Trata-se de teorias analisadas criticamente por intelectuais como o sociólogo Guerreiro Ramos (1954), que ainda em meados do século XX1 criticou perspectivas adotadas por algumas correntes sociológicas acerca da presença dos negros no Brasil. Ao criticar as posturas sociológicas de Nina Rodrigues e Silvio Romero, entre outros, Guerreiro Ramos propunha olhar para a questão do negro no Brasil a partir das circunstâncias sociais brasileiras – ou seja, não orientados pelos ideais racistas disseminados por parte considerável de intelectuais europeus.
Os reflexos do pensamento racialista brasileiro propagado por intelectuais como Nina Rodrigues e Silvio Romero são vistas em várias instâncias da produção cultural no Brasil. No campo da literatura, por exemplo, a obra O Cortiço, de Aluísio Azevedo, torna-se um exemplo deste discurso que se fundamenta, através de estereótipos afixados em seus personagens2. E assim se estabelece o mito fundador das três raças, conforme aponta o autor. Nessa linha, Ortiz segue apontando outros intelectuais que, ao longo do século XX, procuram reorganizar as discussões em torno da identidade brasileira. Entre eles, Gilberto Freyre e sua já consagrada Casa Grande & Senzala, de 1933, que, em linhas gerais, trata-se de uma reinterpretação das discussões lançadas por Silvio Romero e Nina Rodrigues, por exemplo. Aqui, já há uma troca do termo “raça”, por termo “cultura”.
Mesmo havendo críticas à suas colocações, a obra de Freyre é fundamental pra compreendermos como se pensavam as questões ligadas à definição de povo brasileiro, através da diversidade cultural e suas ambiguidades. A obra de Freyre se consagra num momento que as políticas nacionalistas propõem novas ideologias para o trabalho, da urbanização, do progresso e modernização do país.
A obra de Ortiz é das referências principalmente nos debates e problemáticas denotadas no processo de constituição de uma identidade nacional. Não será possível aprofundar, neste trabalho, as discussões e possíveis contradições que possam ser encontradas neste ou outros autores e obras que apontam a questão da cultura e identidade nacional.
Porém, é fundamental citar esta discussão para se compreender o porquê da elaboração deste trabalho, principalmente por causa de seus reflexos na produção cultural e discursos em torno da identidade nacional em diversas regiões do Brasil, nos quais se destacam, neste artigo, as produções musicais populares, sobretudo do samba, em Florianópolis, nos últimos anos.
O lugar do samba na cultura musical popular brasileira do século XX
Um dos maiores embates provocados pelas políticas nacionalistas dos anos 30 foi, certamente, a questão da ideologia do brasileiro trabalhador e as estratégias de ação nacionalista, sobretudo na política do Estado Novo implantado por Getúlio Vargas, para implementação dessa ideologia.
Este é um momento de grande efervescência nas estruturas cotidianas da população. Inovações tecnológicas proporcionando novos meios de subsistência, o êxodo rural e o consequente crescimento urbano, aliado às políticas sanitaristas e de urbanização, tanto na então capital nacional – Rio de Janeiro, quanto nas principais cidades brasileiras.
No meio artístico e de lazer, encontramos, por exemplo, a crescente popularização da radiodifusão e toda a reestruturação na carreira de artistas, produtores e mediadores culturais, assim como a própria produção musical e artística, em geral.
Eis um dos caminhos que levaram ao estabelecimento de uma massificação das culturas, que já em meados da década de 20 surge com, por exemplo, a consagração do teatro de revista, e mais tarde, com uma geração de músicos populares que, através de mediadores culturais e suplantados pelas políticas da elite governante, elevam o samba à categoria de música nacional por excelência (GOMES, 2004).
Pesquisadores como Carlos Sandroni (2001), por exemplo, apontam as questões ligadas ao surgimento do samba tal como é concebido hoje. Como etnomusicólogo, Sandroni recorre à musicologia histórica para explicar como se deram as transformações musicais do samba, nas suas formas rítmicas e melódicas encontradas em seu acompanhamento. Já Wander Nunes Frota (2003), preocupa-se em desmistificar alguns argumentos que a chamada história semioficial da música popular brasileira estabeleceu como forma de consagrar alguns aspectos da cultura popular.
Ainda com relação aos processos que levaram o samba o status de gênero musical representante de uma cultura brasileira, destacam-se as contribuições teóricas de Hermano Vianna (1995) e Muniz Sodré (1998)3. Vianna busca solucionar o “mistério do samba” a partir da análise do contexto social que elevou o samba à categoria simbólica da identidade nacional, graças aos “mediadores culturais” – intelectuais em contato com sambistas, compositores e artistas, ocorridos de forma não isolada, mas com destaque às atividades culturais na região sudeste, principalmente na cidade do Rio de Janeiro.
No caso de Muniz Sodré, o sociólogo parte de conceitos mais voltados para os princípios cosmológicos das comunidades de matriz africana para pensar as relações do samba com a identidade do povo brasileiro, a partir de uma perspectiva musical: a síncope, que é o deslocamento do tempo, no âmbito da teoria musical constituídos por tempos fortes e fracos, denotando uma rítmica singular que se tornou característica das musicas da diáspora negra.
Sodré também aborda as relações do samba com o corpo, a partir dos conceitos de Exu e da dinamicidade das trocas simbólicas e da comunicação, como o axé – a energia vital creditada às filosofias religiosas de matriz afro-diaspórica, que é engendrada a partir das interações sociais de suas comunidades, tanto interna como externamente. Ou seja, o axé é gerado pelas relações entre os próprios participantes das comunidades afro-diaspóricas, no âmbito das suas formas ritualísticas e artísticas, como as do samba e das religiões de matriz africana, quanto pelo que o sociólogo chama de “sociedade global” e a indústria cultural, no qual o samba se adaptou, se reinventou e acabou se tornando um dos principais produtos culturais difundidos dentro e fora do país.
A partir das reflexões teóricas desses autores4, pode-se pensar na questão da consagração do samba em território catarinense, como parte das pesquisas levantadas para elaboração de minha dissertação de mestrado, que procurou focar nos aspectos da música popular em Florianópolis, nas décadas de 30 e 40 do século XX, período que foi relevante para o estabelecimento de uma tradição musical popular e de uma identidade através da cultura nacional, tal como se pensa e se afirma entre o senso comum, hoje.
Os resultados obtidos com a dissertação foram fundamentais para pensar nas formas ver o mundo, de se comportar e de estabelecer sociabilidades, entre as comunidades afro-diaspóricas, seja no âmbito das manifestações do samba e das religiosidades. Estas se consolidam como lugares de valorização a resistência cultural de matriz africana, a partir das expressões da oralidade, sobretudo do corpo e da musicalidade, que hoje é tema da tese de doutorado em andamento.
Sendo assim, este artigo procura, portanto, compreender o desenvolvimento e a valorização do que chamaríamos de “samba catarinense”, através de algumas entrevistas de pessoas ligadas às comunidades do samba na cidade de Florianópolis e tendo como referências, os diálogos com as práticas do samba e suas vertentes, bem como outras manifestações culturais afro-brasileiras, consolidadas em locais como Rio de Janeiro e Bahia.
O historiador Marcos Napolitano, quando discute a questão das tradições na música popular brasileira, aponta que
Entre 1916 e 1933, o samba deixou de ser uma música étnica, para integrar um modo de ser ancorado na modernidade e na centralidade urbana, sinônimo de um jeito carioca de ser. Dada a influência cultural e comercial da capital do país, o samba deixou de ser apenar carioca, para se tornar “brasileiro”, ‘nossa parte na sinfonia mundial (FENERICK apud NAPOLITANO, 2007, p. 31).
Dessa forma, compreende-se que as demais cidades acabavam absorvendo a cultura da (então) capital nacional. Na cidade de Florianópolis, não foi diferente. Como veremos a seguir, através das memórias de pessoas ligadas às comunidades do samba em Florianópolis, percebemos, por exemplo, que a formação das escolas de samba em Florianópolis, se configurou através de uma espécie de intercâmbio, não institucionalizado, entre cariocas e florianopolitanos, que experimentaram a fundação de entidades carnavalescas, como as escolas de samba Protegidos da Princesa e Embaixada Copa Lord, entre final da década de 40 e meados da década de 50.
Memórias de um samba “catarina”
Na dissertação de mestrado da pesquisadora e professora Cristiana Tramonte, o surgimento do samba, enquanto gênero musical de ritmo e formas como é conhecido hoje, se inicia na ocasião da fundação, em Florianópolis, do:
[...] 5º Distrito Naval, o que fez com que marinheiros do Rio de Janeiro e do norte do país viessem servir na ilha. Estes passaram a aglomerar-se nas imediações de Canudinhos, atual Rua Major Costa, junto ao bar do Tazo e aquela área se transformou em reduto do samba. Como a distância do Rio de Janeiro era grande e o transporte difícil, feito através de navios, o que acarretava muitos dias de viagem, os marinheiros, saudosos de sua “cultura carnavalesca” aproveitavam a experiência para fomentar e incentivar a criação de escolas de samba em Florianópolis a partir do contato com os habitantes dos morros (TRAMONTE, 1996, p. 86).
Essa informação também está presente nas memórias de Abelardo Henrique Blumenberg, conhecido pelas comunidades do samba de Florianópolis como Avez-Vous5. Já nas primeiras páginas encontramos as referências de sua dedicação ao samba, delegada primeiramente, às suas babás. Segundo Avez-Vous:
Costume da época, em que os lares florianopolitanos se serviam de pretas-velhas para cuidar das crianças. Assim, tive a ventura de escutá-las cantando sambas e marchinhas de carnaval, que eram trazidas para a ilha pela marujada que aqui aportava (BLUMENBERG, 2005, p. 15).
Ainda que esse contato com a música carioca presentes na memória dos músicos e pesquisadores catarinenses seja vista como relevante para a formação musical das comunidades do samba catarinense, em algum momento da historia da musica popular deste Estado, não houve consenso sobre, por exemplo, a “invasão” das músicas cariocas no carnaval Florianopolitano. Ainda que pareça estar mais atrelado a argumentações em torno da divulgação de concurso de sambas e marchinhas carnavalescas, o jornal a Gazeta, no verão de 1940, empreendeu, através de notas jornalísticas, uma verdadeira campanha de valorização dos músicos e canções de compositores catarinenses.
Na edição do dia 18 de janeiro de 1940, há uma pequena nota que solicita aos leitores atenção ao: “Apelo a todas as sociedades. Blocos, cordões, conjuntos [...] que façam das músicas nossas, do concurso, as músicas prediletas do presente carnaval” (JORNAL A GAZETA, 1940a).
Ao finalizar a nota, o colunista – não identificado, ainda salienta que “temos certeza que teremos mais alegria e melhor música do que sapatear ao som das músicas salada de fruta (sic) do Rio.” (JORNAL A GAZETA, 1940a). Na edição seguinte, do dia 19 de janeiro do mesmo ano, a chamada de uma nota sobre o concurso de marchinhas apelava novamente: “Sejamos sinceros! Cantemos as músicas catarinenses” (JORNAL A GAZETA, 1940b).
Na memória dos sambistas em Florianópolis, esse intercâmbio é muito presente. As influências do samba carioca são percebidas, mas salientando algumas particularidades nas formas de “fazer samba” na região sul do país.
O senhor Josué Costa6 se recorda que no carnaval de Florianópolis do século XX sempre houve mais valorização das marchinhas, pois samba “era muito pouco”. Também reclamou que o carnaval florianopolitano não é mais o mesmo, já que foi muito descaracterizado por causa do monopólio do carnaval carioca, que acaba servindo de modelo para manifestações carnavalescas de outras regiões do país. Já o senhor Vicente Marinheiro7, compositor de sambas, principalmente carnavalescos, salienta que as formas de brincar o carnaval e de fazer o samba em Florianópolis se dão muito pela formação étnica e constituição cultural da localidade.
Nós somos um país muito diversificado [...] temos o sangue alemão, o italiano né [...]. E sobra um pouquinho pra gente [população negra]. Então, Santa Catarina é essa mescla. Mas essa é a diferença... é que no Rio não é tão mesclado... o Rio é mais negro, é mais samba, então é por isso que tem uma diferença, no Rio quando termina o carnaval em março, quando é em março ou fevereiro quando é fevereiro, né, você já tá pensando no próximo carnaval.
Nas memórias de Avez-Vous, “o carioca cultiva mais o samba. Nós (catarinenses) somos sambeiros. Só fazemos samba no verão” (RAMOS, 1997, p. 48).
Não somente a chegada dos marinheiros cariocas proporcionou aos florianopolitanos o contato com a música popular e a cultura do samba e do carnaval do Rio de Janeiro. Percebe-se que um movimento contrário também acontecia, ainda que de forma mais particular, mas não menos importante para percebermos a troca de conhecimentos e aspectos da cultura popular entre diferentes regiões do Brasil. Músicos se deslocavam à capital, não especificamente em busca de inspirações para compor e fundamentar suas manifestações musicais e culturais como um todo, pois as causas e as necessidades eram outras.
Mas o contato com o ambiente cultural do Rio de Janeiro acabou tendo influência na percepção destas pessoas, quanto à reformulação das músicas populares e manifestações culturais dos florianopolitanos.
Como exemplo disso, temos a história do senhor Vidomar Leopoldo Carlos, 82 anos, funcionário público aposentado e ex-integrante de dois grupos musicais, já extintos, da comunidade do Monte Serrat8. Através de entrevista concedida a esta pesquisadora9, o músico contou um pouco da história dos grupos musicais que participava.
Vidomar participou da fundação da escola de samba Embaixada Copa Lord, e, fora do ambiente e do período do carnaval, participava de outros grupos musicais, cujo repertório constituía-se de música popular em geral, mas com ênfase no samba canção e seresta. Ainda na juventude, integrou a Marinha do Brasil como fuzileiro naval, indo para o Rio de Janeiro. Perguntado sobre a composição dos sambas pelos grupos musicais que participava, Vidomar responde:
A maior parte era tudo feita aqui por nós. Era o Zininho que fazia, era o compositor né [...]. E algumas [músicas] que vinham, veio aqui com as Escolas de Samba... Então era... Rio de Janeiro, porque nós somos muito parecidos, nós éramos na época, muito parecido com o carioca. E o catarina é muito gozador, leva tudo na base da brincadeira, igual o carioca, carioca muito gozador, muito brincalhão... [...] eu servi no Rio em... [pausa] saí daqui em 47, daqui de Florianópolis, servi em 48, dei baixa em 49, né, como soldado.
Essa proximidade com os cariocas, apontada por Vidomar, parece ir além das aparentes coincidências, além do comportamento e do “estado de espírito” de cariocas e florianopolitanos. A formação geográfica e a forma como se constituiu o perímetro urbano em Florianópolis também propiciou essa familiaridade com as comunidades cariocas. Assim como no Rio de Janeiro, o crescimento da área central de Florianópolis, aliado a significativas transformações em prol da urbanização e da sanitização do município, propiciou a realocação e reajustamento das camadas populares, sobretudo as populações de origem africana que sobreviviam às custas do trabalho informal e perseguidas pelo estigma da escravidão, e migrantes do interior do estado.
Hermetes Araújo explicita bem como se deu esse processo em Florianópolis, analisando desde a inauguração de avenidas, demolição de casas e a desapropriação dessas populações (que tiveram que recorrer a outras localidades como os morros, ao continente e interior da ilha), até a “vigilância pública da moral” (ARAÚJO, 1989, p. 176) que se configurava nos espaços de sociabilidade e de lazer das elites, que condenava, por exemplo, a dança do maxixe, que invadia os salões da alta sociedade no Rio de Janeiro e, como de praxe, seguia como tendência nas artes e lazer em outras cidades, para infortúnio e vergonha do conservadorismo local.
Questionado, porém, pelas possíveis semelhanças e diferenças nas composições dos sambas locais, com o samba carioca10, o interlocutor aponta que o samba composto e executado por eles:
Era aquele samba antigo, samba batucado, samba canção, o samba... Não existia nem samba enredo aqui em Florianópolis, não existia samba enredo [...]. Então o samba era muito diferente de hoje, aquele samba mais batido, não tinha aquela correria como tem hoje, né, o samba tinha mais vida [grifo da autora]. E hoje, a maior parte do samba de hoje não tem vida, né, são samba feito à vontade, com ritmo muito corrido [...]. O nosso aqui era samba canção, pra eles (os cariocas) era diferente, era samba corrido, nós já tínhamos mais o samba batucado, né.
Aqui percebemos que, apesar das semelhanças com os cariocas e os contatos que permitiram, entre outras coisas, a fundação das escolas de samba e a formatação de uma maneira de participar do carnaval semelhante àquelas configuradas no Rio de Janeiro, são apontadas diferenças principalmente com relação à rítmica do acompanhamento musical que permeia as composições locais.
Muito dessa diferenciação que o interlocutor aponta, com relação ao samba carioca e, principalmente, ao samba executado hoje, é a confecção dos instrumentos. De acordo com Vidomar, os instrumentos eram confeccionados de forma caseira, com objetos que se tinha nas residências, utilizando até mesmo couro de alguns animais:
A cuíca era feito com... (pausa) era um instrumento que era feito compridinho, na frente, como era feito a timba hoje, atrás mais larga, e ali era posto um couro de boi, e esse couro de boi tinha uma vareta introduzida, essa vareta tinha que molhar o pano, e esquentar ela pra ela poder dar o som. Era onde ela dava aquele som. Hoje não, as cuícas são tudo né, atarraxada, o couro não é mais couro de boi, né.
Ainda com relação à confecção de instrumentos, as memórias de Avez-Vous também remetem ao improviso e modo caseiro de montagem e manutenção:
O instrumental era tosco. O modo rude de confeccioná-lo levava seus artífices a horas de árduo labor. A par disso, instrumentos de couro, com pandeiros e surdos, eram submetidas várias vezes ao aquecimento, através da queima de jornais, carregados por um simpatizante que operava no cordão de isolamento (BLUMENBERG, 2005, p. 19).
Ainda com relação à confecção de instrumentos musicais, o antropólogo e músico Marcelo Silva11 salienta que era comum nas comunidades negras em Florianópolis, sobretudo do Morro do Mocotó, onde viveu parte de sua vida, a confecção de instrumentos musicais percussivos que seriam utilizados nas diversas manifestações culturais afro-brasileiras, dentre elas, as liturgias religiosas como umbanda, e as rodas de samba:
Eles faziam o boi de mamão. Não... Eles faziam a umbanda… Não lembro bem a ordem. Mas era umbanda, boi de mamão e depois o samba. Tudo na mesma noite. Terminava com o samba, mas… acho que a umbanda era mais cedo, depois tinha o boi de mamão, e com a mesma instrumentagem (sic) lá do boi eles já faziam o samba. Então isso, imagina lá nos terreiros de umbanda, era tudo comum, eles faziam os instrumentos né, o tamborim, era tudo feito com couro de cabrito, diz a lenda que os tamborins eram com couro de gato, mas o surdinho era feito com couro de cabrito, com a barrica, aquelas barricas… sabe esses tambores antigos, essas tumbadoras antigas, com aquela madeirinha encaixadinha? Então. Porque aqui tinha muito aquelas barricas, assim, aquelas barricas que fica um pé em cima e outro aqui, madeirinha ela é assim né… colocava o couro do tamborim, ali eles faziam o surdo e faziam a própria cuíca, com aquela barrica ali.
Mesmo se tratando de memórias individuais, cujas opiniões e comportamentos são subjetivos e particulares do contexto e universo do interlocutor, levamos em consideração as colocações de Maurice Halbwachs (2004) sobre a memória individual e suas confrontações com a memória coletiva. Halbwachs afirma que mesmo em testemunhos onde o interlocutor encontra-se só, suas lembranças são coletivas, pois nossas experiências sempre estão atreladas às experiências de outros, ainda que cada testemunho traga suas particularidades, suas visões de mundo e, ainda, as influências do presente, da ressignificação que o evento narrado adquire quando se traz à memória, as histórias vividas.
Dessa forma, percebemos nas memórias de Vidomar, por exemplo, que há uma preocupação em diferenciar a forma como eram executadas as músicas populares em seu grupo musical, não só diferenciando da música carioca, como também a sua alteração ao longo do tempo. Ele expressa, assim, uma reprovação à forma como tem sido alterada a execução e a rítmica dos sambas, que tem influência dos sambas executados pelas escolas de samba cariocas.
Mesmo se tratando de uma opinião bastante subjetiva quando afirma, por exemplo, que “o samba tinha mais vida”, esta reflexão nos faz perceber como há uma tendência em se valorizar um tempo passado e tudo o que o contextualizava. Percebemos que é frequente essa colocação, sobretudo por pessoas mais idosas, que veem nas muitas transformações no comportamento e nas formas de ser e estar no mundo, como algo muito diferente e distante de sua formação intelectual e de seu comportamento.
Mas, particularmente para quem trabalha, hoje, com memórias de pessoas idosas, sobretudo as que têm uma percepção de que vivenciaram “rápidas transformações do mundo moderno”, há algo que os historiadores e pesquisadores que utilizam a metodologia oral para suas pesquisas, precisam estar atentos: trata-se da expansão da cultura de massas e a penetração da cultura popular nos processos de rememoração provocados pelas entrevistas.
Se a memória, ainda que individual, é fruto das experiências sociais de cada indivíduo, com aponta Halbwachs, e por isso deve ser devidamente percebida e analisada pelo investigador, então o cuidado deve ser redobrado quando estes testemunhos estão permeados por todo um contexto que se faz pela cada vez mais rápida acessibilidade de informações, pelo acesso às mídias, meios de comunicação e nas mobilidades, nos deslocamentos e trocas de experiências.
Dessa forma, a percepção do indivíduo ao longo dos anos, seus contatos com as culturas de massa e seus canais de informação, como a mídia, o cinema, a música a artes em geral, influenciam suas visões de mundo, de tal modo que pode mudar completamente seu discurso e suas experiências rememoradas12.
Como exemplo dessa colocação, destacamos, na entrevista com Vidomar, o fato de referir-se ao samba praticado por seu grupo musical, como “samba batucado”, como sendo diferente do “samba corrido”, que são os sambas-enredo, sambas carnavalescos de origem carioca. Questionado sobre como seria a rítmica deste tipo de samba batucado, Vidomar deixou evidente que se trata de uma rítmica e cadência mais lenta, delegada ao samba canção, por exemplo. Tem-se a impressão que essa é uma expressão que é particular à comunidade musical que o músico entrevistado estava inserido, talvez até mesmo diferente do samba canção13.
Algumas referências a esta expressão, porém, são em alguns artigos apontados aleatoriamente em sites de busca na internet14. Encontramos, por exemplo, em um site que reúne letras musicais (BIOGRAFIA..., 2017), que o samba batucado é o samba proveniente da Escola de Samba Deixa Falar, que foi fundada na comunidade do Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. Parece se tratar, então, do samba que Sandroni explicita em seu trabalho. Dessa forma, compreendemos que, quando Vidomar fala do samba batucado, como sendo diferente do samba corrido, não se trata de um samba de rítmica diferente daquele praticado pelos cariocas, e, ainda mais, o samba baiano, no mesmo período em que o músico interlocutor começa a ter suas experiências musicais em terras catarinenses.
É possível que, mesmo indiretamente, as formas de samba citadas por Vidomar tenha referências a tipos de samba historicamente encontrados no recôncavo baiano, que até hoje tem utilizado os termos “samba batucado” e “samba corrido” para especificar formas rítmicas e melódicas do samba de roda praticados na Bahia. Este fato não exclui a influência carioca, até mesmo por causa da notória influência dos sambistas baianos, principalmente aqueles incentivados pelas “tias baianas”, no início do século XX, que contribuíram para a configuração e difusão do samba tal como é conhecido hoje (MOURA, 1983).
Esta colocação pode ser exemplificada pela própria fala do interlocutor, quando ele, ao ser questionado sobre seus conhecimentos e lembranças musicais no período imediatamente anterior ao seu nascimento e à sua infância, afirma que:
As músicas na época dos meus pais, pai e mãe né [...] era o maxixe, a valsa, a marcha era diferente, o samba era diferente, e tinha a mazurca, e o tal de xote, eu não posso dizer... Explicar como era, mas era tudo diferente, era tudo maneirado, não era como [pausa]... Era muito mais lento, tinha muito mais ritmo, mais aquele compasso... Aí depois, é que foi surgindo o samba batucado, que no futuro era o samba que veio do Rio, mas que nós já fazíamos aqui também.
Nesse caso o músico reconhece que havia aqui um tipo de samba que seria muito semelhante ao samba carioca, ao (então) novo tipo de samba elaborado pelos fundadores da primeira escola de samba no Rio de Janeiro. Se o samba batucado praticado pelos músicos catarinenses tem alguma influência do samba carioca, ou se se trata apenas de uma feliz coincidência, o interlocutor não explicou, e não foram encontradas referências a esse assunto em outros trabalhos ou fontes.
Porém, ao que parece, a diferenciação na rítmica, salientada pelo interlocutor, é muito mais pela questão das transformações que o samba sofreu ao longo do tempo15, do que, necessariamente, por uma possível música popular de origem e característica estritamente catarinense.
Considerações finais
Pela amplitude do tema e dadas tantas outras obras e pesquisas de referência na área da música popular, acreditamos que este artigo dialoga com outros aspectos teóricos já abordados por autores diversos, colaborando assim para amplitude de sua discussão. É uma temática que deve ser analisada com maior afinco e detalhamento, seja para debates interdisciplinares ou estratégias de ação cultural presente nas políticas culturais evidentes e necessárias em nosso tempo presente, seja também para contribuir com a elaboração de futuros trabalhos acadêmicos,. Nas entrevistas, encontramos informações que nos levam a conhecer as manifestações artísticas e, mais especificamente, produções musicais de populações histórica e socialmente marginalizadas, de forma a contribuir para sua valorização e permanência a partir de ações passíveis de ser desenvolvidas nas diversas instâncias das organizações políticas e sociais.
Já no âmbito acadêmico, através dos testemunhos, no campo historiográfico acabamos dialogando com outras fontes e também com pressupostos teóricos necessários para a articulação e a fundamentação da pesquisa em meio científico. Assim, podemos contribuir para preencher algumas lacunas existentes na produção de uma historiografia musical popular da região de Florianópolis, sobretudo aquelas produzidas por comunidades com notória influência cultural de matrizes africanas.
Ao conhecer os espaços de sociabilidades e estratégias de resistência cultural, como forma de legitimação identitária de um povo é possível entender a pluralidade refletida nas mais diferentes experiências das comunidades afro-diaspóricas, que ao mesmo tempo, se convergem a partir das memórias coletivas que as unem ideologicamente, reforçando, dessa forma, alguns paradigmas que as definem dentro do contexto dos discursos sobre identidades regionais e nacionais.
Suas expressões culturais, assim, acabam soando como estratégias de resistência e de legitimação de espaços frente às manifestações culturais atribuídas a grupos étnicos que, mesmo com algumas transformações em questões teóricas e práticas que tratam de minimizar as desigualdades sociais, ainda acabam sendo mais valorizados pelas produções historiográficas locais.
Referências
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Notas