RESUMO: O presente artigo propõe uma discussão sobre cinco Exposições Internacionais norte-americanas e suas relações com as cidades sede. O recorte temporal corresponde ao período de apogeu desses eventos no país: Centennial Exposition, em Filadélfia, 1876; World's Columbian, em Chicago, 1893; Pan American Exposition, em Buffalo, 1901; Louisiana Purchase Exposition, em St. Louis, 1904; e Panama-Pacific Internt'l Expo, em San Francisco, 1915. A fonte principal de informações é o banco de dados Chronicling America, o qual disponibiliza aproximadamente 2 mil jornais online. O objetivo do artigo é discutir como esses eventos foram compreendidos pelas suas sociedades contemporâneas e eventuais distinções ou convergências com compreensões sobre aqueles de nossa atualidade. Suas conclusões atentam – distintamente do observado na atualidade – para uma intrigante e generalizada apologia aos eventos e para a dormência de eventuais polêmicas que eles possam gerar: a hipótese de que a atual crítica a esses eventos seria similar em conteúdo, forma e volume ao período analisado (1876-1915) não se confirmou. O referencial teórico permeia o texto e prioriza as distinções entre a percepção à época das cinco exposições analisadas e aquela mais comum atualmente a respeito de grandes eventos urbanos.
Palavras-chave: Grandes exposições internacionaisGrandes exposições internacionais,city marketingcity marketing,epistemologia dos estudos urbanosepistemologia dos estudos urbanos.
ABSTRACT: This paper discusses the understanding revealed by the media about five World Fairs held in the United States: Centennial Exposition, Philadelphia, 1876; World's Columbian, Chicago, 1893; Pan American Exposition, Buffalo, 1901; Louisiana Purchase Exposition, St. Louis, 1904; and Panama-Pacific International Expo, San Francisco, 1915. The main source of data for the case study is the Chronicling America Project, with two thousand newspapers online. The objective of this article is to compare reactions to these events in their contemporary societies and identify possible distinctions and convergences when compared to ours. Its conclusions reveal an intriguing and ubiquitous apology for these events and the dormancy of controversies they may have generated: The hypothesis that current criticism would be similar in content, form and volume to the analyzed period (1876-1915) was thus not confirmed. The theoretical reference permeates the text and prioritizes distinctions between the perception of the five selected fairs at the time they were held and those more commonly found nowadays concerning large urban events.
Keywords: Great exhibitions, city marketing, epistemology of urban studies.
Artigo
Cidades e Exposições Internacionais: da “Stone in a Pond” ao “Meteorite from Another World”
Cities and World Fairs: From “A Stone in a Pond” to “A Meteorite from Another World”
Recepção: 20 Setembro 2017
Aprovação: 26 Abril 2018
Exposições Internacionais são recorrentemente entendidas como catalisadoras para se discutir questões sociais e urbanas do país ou da cidade onde são realizadas. Esse atributo instigador tem sido crescentemente exercido, ampliando para o nível globalizado, conforme já anunciado na criação desses eventos, os quais conclamavam “todas as nações” para aí se apresentarem. O avanço dos debates e o acirramento de posições hoje colocam em dúvida a própria validade das Exposições. Manifestações em relação à Expo Milano (2015) revelaram, a um tempo, a intrínseca característica que incentiva debates sobre o contexto em que são realizadas e sobre suas próprias pertinências. Nas manifestações de rua, dizia-se: “Você nos esfolou, hoje você paga” (The Guardian, 2015, tradução livre).
Posicionamentos como esse, frequentes em grandes eventos internacionais, revelam uma importância que lhes é atribuída, ironicamente, pelos seus próprios detratores: ainda que discordando dos seus objetivos ou da própria realização desses eventos, não deixam de dar sinais da relevância que lhes emprestam. Com o desejo explícito, de determinados grupos políticos ou econômicos, de promover ou criar um ambiente de “modernidade” onde “tudo está resolvido”, tem-se um cenário propício para o debate sobre questões diversas, aí incluindo, por exemplo, aquelas referentes a conflitos de interesse social e prioridades no uso do recurso público.
A despeito de abrangerem inúmeros formatos e nomes, parece haver concordância na literatura internacional de que a primeira grande exposição teria sido a de 1851 – Grande Exposição dos Trabalhos da Indústria de todas as Nações –, em Londres. A partir de então, segue-se uma longa lista com cidades buscando, tal qual na atualidade, uma distinção na rede urbana internacional ou, minimamente, um destaque para o país que as promove. Em 1928, é criado o Bureau International des Expositions (BIE), o qual determinaria a seleção da cidade sede, a temática expositiva, modos de organização e desenho financeiro. Com isso, estabelece-se uma tipologia das exposições: aquelas realizadas anteriormente à criação do BIE, denominadas de Históricas, as independentes, as quais não seguem as determinações do BIE, e as Universais, Internacionais ou World Fairs, as quais obrigatoriamente se submetem às regras deste Bureau. A despeito do marco histórico identificado para a Exposição de 1851, Luckhurst, em seu trabalho sobre a história das Exposições Internacionais, remete sua origem para as feiras europeias da Idade Média. O mesmo autor, para exemplificar a anterioridade das Exposições, cita Daniel Defoe [1660-1731], o qual registra a existência pretérita de tais eventos, destacando a Cambridge Fair, de 1723, como “[…] n ão é maior de todo o país, mas do mundo” (Defoe inLuckhurst, 1951, p. 12, tradução livre)
A preocupação com a categorização desses eventos igualmente não se limita ao estabelecido pelo BIE. Lewis Mumford, ao fazer a crítica arquitetônica dos grandes projetos presentes nas Exposições Internacionais que visitou, limita seu entendimento àquilo comum a seu tempo, a partir de uma síntese dos principais atributos, combinando mercado, triunfo nacional e espetáculo urbano. Para Mumford, especificamente em relação ao papel da arquitetura, essa deveria garantir a lucratividade, a diversão e o valor museográfico do evento: “Todos que foram para Chicago disseram que foram os visitantes que realmente tornaram o espetáculo interessante” (Mumford in The New York Times, 1937, p. 130, tradução livre).
A despeito dessa origem referencial mais distante no tempo, a Exposição Universal de Londres de 1851 torna-se exemplo para as que lhe seguiriam, parecendo sempre reinventar-se e inaugurando um longo período de replicabilidades. Essa tem sido a reprodução de um modelo que se acreditou funcionar, seja para demonstrar os “avanços” de um país, seja para (re)inserir a cidade sede em nova posição hierárquica no cenário internacional, seja ainda para atender a interesses de uma demanda de mercado e do grupo privado que participa de sua urbanização.
Temos exposições de quase todas as coisas possíveis e impossíveis sob o sol – exposições de porcos, de pinturas, de performances de pulgas, de papagaios, […] de máquinas a vapor e de bebês. Temos encontros nacionais e internacionais, shows locais, vocais e rurais. A lista parece tudo menos completa; no entanto, como não há nada mais fértil do que a imaginação de exibir a humanidade, novos acréscimos entram todos os dias (Hoffenberg, 2001, p. xiii, tradução livre).
O perfil expositivo que se inicia com a Exposição de 1851 está certamente inserido no seu tempo e é, assim, comumente entendido na literatura como grandes “laboratórios exibicionistas” (Santos, 2013), demonstrações imperialistas de países que avançavam com suas industrializações e a construção de suas burguesias nacionais. Hobsbawm, qualificando o recorte temporal de análise aqui adotado como de grande desenvolvimento econômico e de um mundo de impérios, vai além e qualifica as Exposições como tentativas de afirmação da superioridade racial europeia e norte-americana:
[…] é impossível negar que a superioridade em relação a um mundo de peles escuras situado em lugares remotos e sua dominação era autenticamente popular, beneficiando assim a política do imperialismo. Em suas grandes exposições, a civilização burguesa sempre se orgulhará do triunfo triplo da ciência, da tecnologia e das manufaturas (Hobsbawm, 2002, p. 52, tradução livre).
Do mesmo modo que para os demais chamados grandes eventos, como os Jogos Olímpicos, Copas do Mundo de Futebol ou os Grandes Projetos Urbanos que os abrigam, a literatura que se produz sobre as grandes exposições é construída de modo não conciliatório: de um lado, a leitura que valoriza os impactos de sua implantação, uso e legado; de outro, aquela fundamentada em análises anteriores com ostensivas comprovações de problemas diversos em termos de prioridade social e uso do recurso público (Ultramari e Zaitter, 2010). Ultramari e Ciffoni (2014), ao debaterem as obras do Barão de Haussmann – grandes projetos com impactos tipologicamente semelhantes ao das estruturas urbanas e arquitetônicas para eventos como as Exposições –, igualmente observam uma constante polarização entre o júbilo que caracteriza seus defensores mais distantes da realidade parisiense e a crítica comumente expressada pelos seus habitantes locais. A inauguração da Grande Exposição de 1851, em Londres, parece iniciar esse modo de exacerbada celebração, de debate sobre os riscos de sua execução e críticas diversas quanto ao uso de recursos públicos. As citações a seguir exemplificam esses extremos de análise sobre um mesmo evento. Em 2 de maio de 1851, o jornal The Times – à época, explicitamente vinculado à elite e à ideia da nação inglesas –, em tom apologético, publica: “Ela [Grande Exposição] dificilmente parecia ser montada por designers ou ser o trabalho de artífices humanos” (tradução livre). Do mesmo modo, Luckhurst cita a Rainha Vitória [1819-1901], presente na inauguração, a qual anota, em apoteose, no seu diário:
Aplausos tremendos, a alegria expressa em cada rosto, a imensidão do edifício, a mistura de palmeiras, flores, árvores, estátuas, fontes, o órgão […] e o meu amado esposo, o autor deste Festival da Paz, que uniu as indústrias de todas as nações da terra; tudo isso foi comovente, e foi e será um dia para viver para sempre. Deus abençoe meu querido Albert, Deus abençoe meu querido país, que se mostrou tão grandioso hoje (Rainha Vitória in Luckhurst, 1951, p. 112, tradução livre).
A partir da Exposição de Londres de 1851, tais eventos ganham ainda mais evidência e vê-se então um forte e generalizado esforço em reproduzi-la, mesmo em países não centrais, como o Brasil, com sua Exposição do Centenário da Independência, em 1922, no Rio de Janeiro. Ao modo das suas similares, estavam aí presentes as mesmas intenções: demonstração de progresso, propaganda e venda de produtos, internalização de divisas, turistas, impacto sobre o espaço urbano, difusão de valores e de padrões de conduta, e prestígio nacional (Motta, 1992).
Se tais eram as intenções sempre presentes, variava o nível de sucesso em termos de número de visitantes, do grau de ineditismo dos produtos expostos, da construção de referências arquitetônicas, entre outros; ou mesmo uma própria distinção entre exposições realizadas e exposições propostas, projetadas, porém não concretizadas. Findling (1990) contabilizava, em 1988, 19 eventos que contavam com a oficialidade do BIE e com recursos investidos, revelando a complexidade do processo e disputas sobre a validade de tais Exposições serem realizadas.
Hoffenberg, ao analisar o impacto das Exposições Internacionais no espaço do império inglês e com referências mais detalhadas para a de 1851, compila outros estudos e, conciliatoriamente, conclui que elas produzem efeitos não apenas momentâneos, mas também legados de longa duração, seja no nível pessoal, seja no coletivo. Para este autor, enquanto partes do evento eram efêmeras, outras afetavam permanentemente “[…] as formas pelas quais a cultura material foi organizada e estudada, bem como as relações sociais e políticas” (Hoffenberg, 2001, p. 12, tradução livre).
De fato, não apenas a realização das Exposições provoca debates sobre a sociedade em geral, mas também sobre suas características muito específicas: seu conteúdo, sua arquitetura, seu design e organização, aglutinando um diálogo que ultrapassa os limites da monodisciplinaridade. Garn, por exemplo, faz um contraponto ao relato da Rainha Vitória sobre a Exposição de 1851 como um Festival da Paz que ironicamente punha na vitrine o poderio bélico das nações: “[…] parte do Símbolo da Paz em 1851 foi a primeira apresentação dos Canhões Krupp” (Garn, 2007, p. 13, tradução livre). Do mesmo modo, com o apoio de seus governos nacionais, aí expunham seus produtos de guerra empresas francesas e norte-americanas.
Na literatura nacional, as Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016, assim como a Copa do Mundo de Futebol de 2014, geraram não apenas uma grande densidade em termos de debate na grande mídia, mas igualmente de trabalhos acadêmicos. Tal volume de interesse pelo tema é confirmado pelo número de teses de doutorado depositadas no Banco da Capes: no restrito recorte entre 2011 e 2012 (dados disponíveis), encontram-se 28 pesquisas que debatem as Olimpíadas do Rio de Janeiro e 64 a Copa do Mundo de Futebol (Capes, 2016). Tal interesse e postura crítica já vinham sendo anunciados entre nós quando dos Grandes Projetos Urbanos que deram concretude e suporte para a realização dos referidos eventos e de uma gestão voltada para a espetacularização, turismo e capital privado (Arantes et al., 2002; Harvey, 2000, 2001).
No outro extremo de análise – aquele vinculado diretamente ao propósito dos eventos e, portanto, explicitamente favorável –, as produções rareiam; porém, exceções são encontradas, sobretudo na literatura estrangeira. Wang e Sun exemplificam essa exceção, caracterizando as Olimpíadas, a Copa e as Exposições Internacionais como os poucos eventos que ainda exercem atração global, sendo as primeiras as únicas que justificam uma visita: “[…] ao contrário dos outros, a Expo não é um evento de mídia. Em vez disso, é melhor experimentado pessoalmente; consequentemente, não muito diferente de visitar um parque temático ou uma feira regional” (Wang e Sun, 2012, p. 5, tradução livre).
Para aquilo que interessa mais de perto neste artigo, reconhece-se, pois, a existência de um juízo de valor sempre exercido: seja o da crítica negativa, seja o daqueles que valorizam positivamente os grandes eventos. É também possível reconhecer que esse debate ou enfoques opostos e independentes ocorrem de modo mais comum para o caso de algumas áreas específicas: prioridade social, relação governo e setor privado, arte, arquitetura, urbanismo, design, sustentabilidade, city marketing. Este artigo procura demonstrar que esta é uma lista que se diversifica e se amplia ao longo do tempo, assim como a temática que cada uma das Exposições adota para atrair visitantes e se viabilizar financeiramente.
Para a análise do transcorrer deste tempo, de 1851 aos dias de hoje, o pressuposto que adotamos, para além da existência de juízos de valor recorrentes e de temas de debate mais comuns, é o de que há uma distinção entre o cenário avaliativo e crítico nos momentos mais pretéritos e no mais atual. Para o primeiro caso, a constância de posicionamentos é a da apologia; para a atualidade, tem-se a crítica generalizada ou minimamente sempre caracterizada pelo forte questionamento. Lewis Mumford, em sua coluna Sky Line, no jornal The New Yorker, fez várias menções à importância das Exposições Internacionais, de sua arquitetura e do papel que os arquitetos aí possam ter. Todavia, sugere cautela para que essa mesma arquitetura não intencione suplantar sua própria função ou aquilo que abriga. Neste sentido, Mumford antecipa uma das críticas que atualmente esses eventos comumente recebem: o desejo de se justificarem por si só – a arquitetura pela arquitetura, como uma intenção parnasiana –, a despeito de seus custos: “[…] a melhor sugestão que posso apresentar para tornar a próxima exposição um sucesso arquitetônico [é] eliminar a arquitetura em si, tanto quanto possível, do cenário” (Mumford, 1937, tradução livre). Ainda assim, concordava com uma possível popularização da crítica arquitetônica junto a um público mais geral quando da realização desses eventos: “Exposições dramatizam a arquitetura para o público em geral” (Mumford, 1937, in The New York Times, tradução livre). Relativamente às mudanças na perspectiva com que tais eventos foram e são entendidos em seu período mais pretérito e no da atualidade, Mumford (1937) determina um divisor histórico quando analisa o resultado de Exposições passadas e de outras, de sua atualidade. Se, para Mumford, a Exposição de 1889, em Paris, se justifica pelo ineditismo da Torre Eiffel, e a de 1893, em Chicago, pela inauguração do Movimento City Beautiful, as de sua contemporaneidade resultam em pequenos impactos, advindos de obras pontuais. Para ele, se as primeiras significaram sempre uma referência na arquitetura que lhes seguiu, as demais limitaram-se a gerar sutis provocações. Sua constatação a respeito da redução simbólico-arquitetônica das Exposições ganharia ainda mais significado nos períodos que lhe seguiram. Para Mumford, as Exposições que seguiram a de Londres, em 1851, timidamente “[…] agiam como uma pedra em um lago, às vezes causando uma onda, às vezes uma onda de realização arquitetônica no estilo da feira em si” (in The New York Times, 08/05/1937, tradução livre). Assim, a Exposição de 1883, em Paris, a qual “[…] deu ao mundo a Torre Eiffel”, sugeriu o arranha-céu e o Movimento Art Nouveau; a de Chicago, em 1893, implicou uma enorme reprodução de um estilo arquitetônico adotado em seus centros cívicos de costa a costa nos Estados Unidos. A partir de então, ainda segundo Mumford, nada mais que pequenos impactos, “[…] um modesto meteorito vindo de outro mundo” (in The New York Times, tradução livre).
Este artigo contextualiza o debate acima descrito por meio de levantamento primário junto a mídias norte-americanas selecionadas, no limite daquilo que elas possam ou sugerem revelar. A partir da compreensão trazida por Mumford, o artigo tem como pressuposto a perda progressiva da atenção recebida pelas Exposições Internacionais e dos impactos que elas geram nas cidades sede. Ao mesmo tempo, reconhece a permanência da capacidade delas em aglutinar polêmicas sobre realidades urbanas.
A leitura do processo histórico das cidades e de seus elementos obriga a juízos de valor contemporâneo para realidades e prioridades pretéritas, sugerindo erros ao julgarmos o passado pela ótica do presente. Há, de fato, uma preocupação recorrente na literatura sobre o risco de equívocos ao se interpretar fatos do passado a partir de critérios do tempo atual. Mais que isso, o presentismo que parece ser hegemônico nas avaliações contemporâneas (Hartog, 2014) distingue-se grandemente daquele do período aqui estudado das Exposições, no qual o futurismo explicava decisões societárias e muito daquilo que formalmente se desejou para os espaços urbanos de então. De fato, o olhar contemporâneo reflete um regime de historicidade ora de permanentes mudanças ora da permanência da própria transitoriedade, sem jamais permitir vislumbrar um futuro. Ironicamente, analisar as Exposições Internacionais no período 1876-1915 significa olhar para um momento em que o futuro é inegável, fazendo parte de seu próprio presente.
Para além das limitações de um olhar contemporâneo ou de um estudo diacrônico, conforme adotado por Saussure (1995), deve-se reconhecer também a sujeição às próprias experiências pessoais e às circunstâncias. Bachelard (2002 [1938]) dedicou muito de seus trabalhos a essa sujeição científica a perspectivas e interesses individuais. Do mesmo modo, as inserções em um ou outro campo epistêmico (Bourdieu, 1998) reforçam, explicam ou moldam as sínteses sobre um mesmo tema que exige posicionamentos distintos.
A restrição da análise não diz respeito apenas ao olhar do pesquisador, mas igualmente à fonte selecionada. O aparente consenso a respeito do objeto analisado neste artigo – a apologia da mídia selecionada em relação às Exposições – poderia revelar dissensos se buscadas fontes complementares caso se pudesse considerar minimamente o viés de setores da sociedade sem acesso a uma imprensa apologética ou mesmo com dificuldade de se expressar publicamente. O que não se pode negar é que a síntese aqui relatada revela um entendimento de um determinado grupo, num determinado tempo e por meio de uma determinada forma de expressão.
A pesquisa que aqui se apresenta tem como fonte principal a coleção de periódicos norte-americanos disponibilizada on-line e sem restrições de acesso pela Biblioteca do Congresso dos EUA, por meio do projeto Chronicling America. Este é um projeto de digitalização dos jornais impressos dos Estados Unidos, com uso gratuito, com constante adição de fontes e organizado segundo bancos de dados construídos em níveis estaduais. No momento desta pesquisa, o volume disponível de fontes era de quase dois mil jornais do país, totalizando 10 milhões de páginas; sua pretensão é a de acervar a totalidade dos jornais impressos no país no período 1836-1922, com a prioridade de inserção no banco de informações digitais segundo a relevância do jornal à época de sua circulação (Library of Congress, 2015).
A despeito de este banco de informações ser considerado um dos mais completos dos Estados Unidos, ele não traduz a totalidade de jornais publicados nem a totalidade de suas edições. No caso do estado da Califórnia, por exemplo, esta fonte demonstrou inconsistências na cobertura das informações. Por esse motivo, para o caso da Panama-Pacific International Exposition, de 1915, em San Francisco, contou-se com a fonte complementar da California Digital Newspaper Collection, da Universidade da Califórnia. Na seleção de jornais e matérias procurou-se garantir diversidade de fontes, opiniões e eventuais pontos de vista distintos sobre um mesmo evento. Quando da observação de recorrência ou de singularidade de posicionamentos, essas foram ressaltadas na discussão do artigo, distinguindo aquilo que pode ser generalizado daquilo específico ou casual. A distinção entre inserção de matérias nas páginas interiores ou na primeira foi considerada reveladora da maior ou menor importância dada a elas. A investigação inicia com o uso de palavras chave – nome dos eventos –, o que permite reduzir o grande volume de material disponível.
A eventual consideração de que a mídia em questão represente apenas os interesses de uma elite econômica e cultural norte-americana é revista por Emery (1984), o qual estabelece 1833 como o ano em que surgem os chamados penny papers, dirigidos ao common man. Muitos dos jornais utilizados nesta pesquisa podem ser classificados nesta categoria: acessíveis ao leitor de menor renda. Emery ainda reduz uma possível crítica ao sensacionalismo ou mesmo leitura fácil que os jornais desse período possam conter ou priorizar: “Passada uma década do surgimento do primeiro jornal, a imprensa popular incluía publicações respeitáveis que ofereciam informações e liderança significativas” (Emery, 1984, p. 119, tradução livre).
A relação das Exposições Internacionais norte-americanas (World's Fairs) e a imprensa no período analisado foi bastante próxima: ora pelo interesse que o tema despertava junto aos leitores, ora por interesses específicos como o lançamento de produtos e máquinas que pudessem ser do próprio interesse da empresa editorial (Baldasty, 1992).
Com o uso dessas fontes, não há, evidentemente, a pretensão de tomá-las como expressão da verdade; ao contrário, há a consciência das limitações impostas por um meio de comunicação que está sujeito a variadas pressões e influências, entre as quais as econômicas e as culturais, como alerta Bourdieu (1998). No entanto, isto não diminui a importância dos jornais como fonte, uma vez que, em sua ligeireza e, por vezes, superficialidade, eles expressam (contra ou a favor) muito do pensamento dominante, daquilo que é considerado relevante ou significativo pelos que têm poder para impor suas visões de mundo, e que acaba sendo incorporado (conscientemente ou não) como uma forma de pensamento médio, de senso comum, por largas parcelas da sociedade.
Consultar artigos publicados em jornais de outros tempos sobre cidades, seu planejamento e seu cotidiano distintos dos atuais, apresenta limitações: “A leitura da mídia nunca é fácil. A natureza da mídia consiste justamente em, muitas vezes, parecer inocente, benigna, mas, ainda assim ser incrivelmente complexa e muitas vezes insidiosa” (Steinberg, 2007, p. xiii, tradução livre). O fato, por exemplo, de os assuntos publicados pelos jornais pesquisados revelarem uma intrigante homogeneidade em termos de condescendência em relação a elementos e usos da cidade até o princípio do século XX leva inclusive a questionar o tipo de mídia que é utilizado como referência principal de pesquisa. Steinberg (2007), entretanto, ajuda a relativizar essa preocupação, ao, antes de se discutir a mídia, propor uma tipificação dos seus possíveis leitores: aqueles que a tomam do modo ligeiro (“media consumers”), aqueles que a consomem e a vivem (“media sponge”), aqueles que a negam e não acreditam na sua influência sobre o cotidiano, e aqueles que são céticos a respeito de tudo que nela leem. Com a lembrança dos obstáculos epistemológicos de Bachelard (2002) para explicar os limites da observação independente, e das ideias de Kuhn (2006 [1962]) sobre as parcialidades impostas pelos contextos presente e passado, compreende-se a maneira pela qual as notícias são apresentadas como um sentimento sincero em relação às cidades do seu tempo. Nessa pesquisa, permanece, então, a dificuldade de avaliar quanto de inocência e benignidade pode justificar a superficialidade encontrada no material selecionado. Resta ainda a ser mais discutido o quanto dessa superficialidade se justifica pela imposição de novidades, pela nova escala dos objetos em questão e pelas limitações de uma ciência urbana nascente.
A visualização e o espetáculo são constantemente reconhecidos pela literatura como atributos das Exposições Internacionais para a difusão de uma lógica burguesa. Pesavento, por exemplo, fala em “palcos de exibição do mundo burguês” (Pesavento, 1997, p. 55), e Barbuy considera a Exposição de 1889, em Paris, e certamente referência para suas congêneres nos EUA, como dirigida “às massas e por meio de formas determinadas de representação materializada que veicula conceitos e valores” (Barbuy, 1999, p. 49). Para essa autora, tais eventos são “manifestações especialmente ricas da sociedade do espetáculo, […] de uma realidade forjada” (Barbuy, 1999, p. 50).
Imagem, competitividade e modernidade urbanas estariam sempre presentes na decisão de competir para sediar um evento como o das World's Fairs ou então na forte conjunção de esforços para realizá-lo de fato. Everdell (2000), em seu conhecido estudo da história cultural norte-americana, situaria a cidade de Saint Louis, quando sediou a Louisiana Purchase Exposition, em 1904, como o momento em que o “modernismo chega ao Meio-Oeste norte-americano”. Para Everdell (2000), estaria aí presente neste momento uma conjunção social, econômica e política capaz de unir-se em um propósito dito “cívico” que não se restringia ao evento, apenas, mas abrangia uma conjunção maior que explica o próprio título de capítulo Meet me in Saint Louis: o Modernismo chega ao Meio-Oeste norte-americano. Para Everdell (2000), as forças econômicas e sociais que se postulavam como representantes hegemônicos de Saint Louis jamais aceitariam uma exposição urbana. Foi precisamente essa inadmissibilidade cívica que teria “[…] induzido seus líderes a concorrer contra Chicago pela Columbian Exposition de 1893 e a conquistar a próxima Feira Mundial para si próprios” (Everdell, 2000, p. 207, tradução livre).
De fato, apologia, receio e crítica estão sempre presentes no debate desses eventos, não apenas devido aos recursos logísticos e construtivos que exigem, mas sobretudo devido ao discurso que articulam e à realidade que desejam encenar. Rydell, na introdução de sua obra na qual revisita as Exposições realizadas nos Estados Unidos precisamente no período 1876-1916, anuncia-as da seguinte maneira:
Entre 1876 e 1916, quase cem milhões visitaram as exposições internacionais […]. Os promotores dessas extravagâncias tentaram impulsionar o desenvolvimento econômico das cidades e regiões sede […]. Eles mostravam a força econômica e os recursos artísticos da nação, destacando novas formas arquitetônicas e oferecendo modelos para o planejamento urbano. […] a partir de uma perspectiva de classe particular (Rydell et al., 2000, p. 2, tradução livre).
A sequência das Exposições iniciadas em 1851 demonstra uma clara migração temática de um determinado modelo de desenvolvimento fundamentado na indústria e na ideia de uma grande nação construída por grandes feitos para um modelo internacional que se propõe a pensar questões humanas, sociais e ambientais. Do modelo de pujanças nacionais, como a “Industry of all Nations” que exibira a hegemonia britânica no mundo, em 1851, migra-se para temas globais como “Feeding the Planet”, na Expo Milão 2015. No percurso do nacional para o internacional, permanece a intenção da universalidade, sempre uma representação que se quer única e fidedigna de uma realidade, ironicamente, cada vez mais diversa.
Para a presente pesquisa selecionou-se a primeira página dos jornais disponíveis no período com início no ano anterior ao da inauguração da Exposição e término no ano subsequente. A palavra-chave utilizada foi o nome oficial de cada uma das cinco Exposições realizadas nos Estados Unidos entre 1876, com a primeira Exposição Universal neste país, em Filadélfia, e 1915, com a Exposição de San Francisco. Todos os resultados foram lidos e sumarizados conforme os quadros elaborados. A opção por se trabalhar exclusivamente com cidades norte-americanas é justificada pela disponibilidade, de modo sistemático, da informação necessária. A decisão de se trabalhar com as Exposições chamadas Históricas objetiva garantir uma homogeneidade nos objetos analisados (Exposições de 1851 a 1933 são consideradas Históricas; a partir de 1935, em Bruxelas, são organizadas segundo as regras do BIE).
O resultado para cada uma das cinco Exposições selecionadas para a discussão em termos de primeiras páginas encontradas é apresentada no Quadro 1.
O material encontrado está resumido nos Quadros 2, 3, 4, 5 e 6. Há um número crescente de referências ao longo dos anos, assim como um proporcional incremento no próprio número de jornais publicados e disponíveis na fonte utilizada. Por esse motivo, optou-se aqui por trazer os resultados integrais referentes à Centennial Exposition of Philadelphia (1876) e a World's Columbian, em Chicago (1893). No caso da Louisiana Purchase Exposition, em St. Louis (1901), e da Panama-Pacific International Exposition, em San Francisco (1915), a despeito de havermos realizado o levantamento integral, para adequação ao formato deste artigo optou-se pela transcrição apenas daquilo que lhes era particular.
A primeira constatação que se tem ao analisar os quadros apresentados é a da abundante referência feita pelos jornais da época às Exposições Internacionais, destacando atributos hoje dificilmente considerados de interesse do leitor contemporâneo. Chama a atenção o fato de questões hoje consideradas de menor importância – como o preço do pacote de pipoca ou questões trabalhistas com um funcionário – receberem destaque nas primeiras páginas de jornais: na insistência do detalhe, têm-se as Exposições como eventos intrínsecos de cidades que se querem competitivas, sem jamais escrutinizar suas razões ou o interesse de seus organizadores. Desse modo, resta indiscutível a capacidade de as Exposições catalisarem um interesse generalizado e desprovido de crítica junto à população. Generaliza-se um pretenso acordo entre classes sociais e que também permeia distintas faixas etárias. Relato policial no jornal The Sun (26/06/1901) destaca o crescente número de meninos que fogem da casa dos pais para visitar a feira: “Tantos garotos fogem de casa em direção à Exposição Pan-Americana […] que a polícia de Albany os envia de volta por barco em grupos […] alguns dos fugitivos têm 10 ou 11 anos de idade” (tradução livre).
A presença de dignitários estrangeiros nos eventos sugere que, ainda que em menor escala, havia uma atenção de um público estrangeiro aos programas desses eventos, aos produtos expostos e sobretudo às estruturas arquitetônicas que davam suporte às suas realizações. Com a presença estrangeira, a intenção tácita de se impor um grande consenso societário ultrapassa os limites do país sede e avança para o nível internacional avalista do mesmo propósito. Reforça-se, assim, a ideia das Exposições como um grande palco para um grande projeto que se quer indiscutível, pretensamente capaz de promover o consenso por meio de posturas transformadoras e difusoras de “um novo mundo”. O atributo das Exposições como grandes vitrines para o mundo do projeto daqueles que a organizam é também instrumental para aqueles que o criticam. No palco das Exposições, o simbolismo do atentado seguido da morte do presidente norte-americano William McKinley, na Pan American Exposition, em Buffalo, 1901, assim como o destaque recebido pelo fato na imprensa da época, ilustram essa conclusão. A escolha da abertura de uma Exposição para esse ato pode revelar a expectativa de repercussão nacional e mundial; oportunidade singular pela perspectiva do grande público e da cobertura da imprensa.
As descrições de edifícios, a despeito de em nenhum momento trazerem visões que pudessem questionar a insistente reprodução de estilos europeus e sempre com referenciais clássicos, foram oportunidades para uma determinada popularização de questões mais específicas do campo arquitetônico. A constante reprodução, com destaque, dos projetos, obras e usos dos edifícios utilizados para as Exposições de certo modo provocou um conhecimento entre os leitores dificilmente oportunizado em outros momentos. Todavia, essa mesma abundância de descrições encontradas no material selecionado silenciava uma importante disputa no campo arquitetônico norte-americano e internacional no período adotado da pesquisa. Irônico ou esclarecedor, o avanço de uma arquitetura futurista, anti-histórica ou modernista está ausente das Exposições selecionadas neste estudo; do mesmo modo, está ausente da mídia pesquisada o anúncio de uma nova arquitetura que se impunha. A atenção dada aos novos produtos e novos materiais trazidos pelas indústrias em ambiente de competição pelo ineditismo e pela qualidade não é dirigida à arquitetura, a qual já indicava um ostensivo desejo de mudança. A despeito da grande deferência dada à arquitetura nas Exposições, reconhecendo o valor imagético ou iconográfico dela, persistia a valorização do clássico, atributo ainda necessário para a confirmação de uma nação que desejava parecer “desenvolvida” e merecedora de mérito junto às demais. Deste modo, previsivelmente, nenhuma menção foi observada em termos de técnicas construtivas ou componentes das obras na mídia selecionada; o novo era então anunciado pelo envelhecido.
Da mesma maneira que uma arquitetura emergente ganhou pouco ou nenhum destaque nas Exposições do período analisado, questões relevantes, e polêmicas, de um mundo que se urbanizava restavam silenciadas. De modo geral, a imprensa selecionada reduzia disputas entre os diversos agentes sociais urbanos a meros encaminhamentos administrativos. Questões fundiárias tais como valorização de terras, desapropriações, impactos sobre o crescimento das cidades sede são relegadas em nome de outros objetivos, seja o da explícita imposição de uma nova imagem urbana, sejam os dos não revelados interesses de grupos imobiliários.
O Comitê Executivo da Louisiana Purchase Company […] está dando atenção não apenas ao terreno que ocupará, mas está trabalhando para manter as terras ao redor da grande feira livres de estruturas que as desconfigurem ou que sejam ocupadas indesejadamente (The St. Louis Republic, 16/06/1901, tradução livre).
Tal qual se observa ainda hoje quando da realização de grandes eventos ou da implantação de grandes projetos urbanos (vide Gotham, 2011, para a Louisiana World Exposition, de 1984 e Olds, 2010, para a Expo'86, em Vancouver), a implantação das cinco Exposições selecionadas acima impõe uma política de redução de eventuais conflitos com seus interesses, seja no uso direto dos terrenos escolhidos, seja até mesmo na eliminação de estruturas civis, usos e apropriações que possam “desfigurar” a nova imagem oficial da cidade que se pretende criar.
A euforia que pareceu sempre estar presente nestes momentos das chamadas Exposições Históricas certamente não permitiu questionar a celebração dos avanços de um século que simulava ou construía um novo significado de modernização, agora por meio dos avanços industriais. De fato, no material analisado não se observou qualquer crítica nesse sentido. No grande volume de fontes utilizadas para verificar como as Exposições selecionadas foram entendidas por ou apresentadas a seus contemporâneos, não se observou qualquer debate a respeito de seus temas intrínsecos; ou seja, o grande tema jamais se sujeitou a visões antagônicas. Ao contrário, no lugar de uma possível polêmica, tal qual observado atualmente, houve sempre uma apologia generalizada. Ainda que reconhecendo o fato de que jornais não constituem, em geral, um meio propício para grandes questionamentos do senso comum, tendendo a veicular posições medianas, chama a atenção, em meio ao grande volume de fontes analisadas e à diversidade de jornais selecionados, a ausência de qualquer crítica à sociedade urbana da época. O retrato que Edith Wharton, em The Age of Innocence (2004 [1920]), elaborou deste período da história norte-americana e sobretudo dos hábitos sociais em Nova York é seminal. Havia, neste período, uma sociedade que “temia mais o escândalo do que a doença, que colocava a decência acima da coragem” (Wharton, 2004 [1920], p. 97, tradução livre). Esta é uma postura que, ampliada para a leitura técnica e acadêmica da cidade, persistiria por muito tempo. Ainda em 1975, por exemplo, artigo de David Donnison criticaria planejadores e pesquisadores por sua fé absoluta nas questões físicas da cidade, destacando-se o seu zoneamento de uso e ocupação do solo, em detrimento de questões verdadeiramente sociais ou políticas: “A idade de inocência passou. […] Pesquisadores devem […] tentar entender os processos que determinam o acesso às oportunidades […]” (Donnison, 1975, p. 270, tradução livre).
Para o recorte temporal e fontes analisadas, a pretensa inocência observada pelos autores acima parece aqui ser mais evidente, não revelando sequer críticas ou polêmicas isoladas sobre o uso e apropriação das cidades. Entretanto, o grande volume de recursos aplicados, a temática adotada ou as prioridades de governo que se evidenciam na proposta e organização das Exposições Internacionais, antes de indicarem um grande e impossível consenso, sugerem a dormência de conflitos de interesse a buscar outros canais de expressão ou de legitimação. A partir das matérias encontradas na mídia selecionada é, pois, possível visualizar um cenário de suspensão, onde toda a vida urbana parece gravitar ao redor da programação das Exposições e de suas questões operacionais, mesmo que de menor importância. Este seria um fenômeno característico de uma “indústria da informação”, na qual se constroem pautas voltadas para atender a interesses variados: de forças econômicas socialmente dominantes a preferências individuais de jornalistas e editores. Como os jornais em seu conjunto constituem um campo relativamente autônomo, cria-se um círculo de interesses que se reforçam ou se contrapõem, porém envoltos na lógica da concorrência pelo interesse do público e dos anunciantes. Há sempre um conjunto de temas de interesse, que se repete de maneira mais ou menos uniforme em todos os jornais analisados, guardando em comum o júbilo patriótico e cívico, e excluindo todo o restante de uma realidade feita fugidia e impalpável.
O apelo que tais eventos exerciam sobre a população de modo geral – as massas – foi também observado entre intelectuais. A Louisiana Purchase Exposition, por exemplo, contou com a visita e palestra de Max Weber e Henri Poincaré (Lin, 2011). No caso de Max Weber, bastante discutido pela sociologia internacional, sua fala, todavia, reiterou entendimento sobre o fim da distinção entre o urbano e o rural e, portanto, sobre a inexequibilidade do paraíso agrário defendido por Thomas Jefferson (Mehrhoff, 2011). Ao ser convidado para proferir palestra sobre o mundo rural na Exposição, Weber teria afirmado haver um engano no tema sugerido: “A sociedade rural, separada da comunidade social urbana, não existe na atualidade em grande parte do mundo civilizado” (Weber, inMehrhoff, 2011, p. 44, tradução livre). Ainda que isoladamente, tal afirmação pode sugerir um enfrentamento ao “grande projeto”, porém não foi reproduzido como tal na mídia da época. Outros intelectuais foram igualmente céticos ou críticos quando de suas visitas ou comentários sobre as Exposições do período analisado; entretanto, suas falas não são reproduzidas na mídia selecionada. Walter Benjamin referiu-se às grandes exposições do século XIX como “[…] locais de peregrinação ao fetiche da mercadoria” (inRitzer et al., 2001, p. 422, tradução livre); Leon Tolstói teria se referido à World's Columbian Exposition, de Chicago, em 1893, como exemplo de imprudência, hipocrisia e desejo de lucro (Rydell, 1993); Rowe cita Simmel, referindo-se à Berlin Trade Exhibition, de 1896, que falaria de um “tipo fundamental de sociação humana” para o consumo de produtos (Rowe, 1995, p. 257, tradução livre).
A leitura dos jornais selecionados em ordem cronológica, e não em termos de relevância (volume de citações ao evento por edição ou na primeira página), permitida pela fonte utilizada, sugeriu a realização da análise em três momentos: o anterior, o concomitante e o posterior à realização de cada uma das cinco Exposições. A hipótese que se tinha era a de um incremento no volume de críticas quando do término dos eventos, conforme observado relativamente aos da atualidade. Tal exercício, no entanto, não revelou nenhuma alteração em termos de críticas na fonte analisada; ao contrário, ao se aproximar o encerramento de cada uma das Exposições, o conteúdo das matérias revela o pesar por um entretenimento que acabava e uma curiosidade por aquele que o seguiria. O término das Exposições analisadas parece, pois, deixar mais “saudades” de um entretenimento que dificilmente retornará à cidade ou região do que propriamente um momento de reflexão sobre os reais resultados e impactos.
A Louisiana Purchase Exposition fechará à meia-noite de quinta-feira, 01 de dezembro de 1904. Embora passe a ser uma das maravilhas do passado, muitas pessoas desta e de nações estrangeiras nos próximos anos estarão imbuídas de lembranças agradáveis e benefícios dela decorrentes (The St. Louis Republic, 29/11/1904, primeira página, tradução livre).
Por último, também consideradas no nível dos não-ditos, as fontes selecionadas não discutem criticamente a fonte e a prioridade dos recursos para a realização das Exposições. Tais eventos, a despeito de serem propostos, implementados e geridos por entidades privadas, sempre contaram com uma participação efetiva, em termos políticos e financeiros, dos governos municipal, estadual e, sobretudo, federal. No caso da Louisiana Purchase Exposition (1904), cujo nome referencia um fato nacional – a compra da Luisiana pelos Estados Unidos –, quando de sua prestação de contas, esclarece:
Valor despendido pela Empresa Expositora: U$ 22.000.000; valor gasto pelos Estados: U$ 9.000.000; valor gasto por países estrangeiros: U$ 8.500,00; valor gasto por concessões: U$ 5.000.000; valor total: U$ 45.000,00. […] Os ingressos, cerca de U$ 18.700.000 […] Livre de dívidas (The St. Louis Republic, 02/12/1904, tradução livre).
De fato, a leitura das fontes selecionadas conforme quadros acima permite uma análise pelo que trazem de mais explícito, mas também por aquilo que não é discutido, pela oportunidade que se perde em não haver discussão sobre questões de interesse maior da sociedade, tais como as fontes dos recursos e os ganhos, diretos ou indiretos, que advêm destes empreendimentos em grande escala. Em se tratando de eventos nos Estados Unidos, é importante considerar a maneira como tradicionalmente aí se encaram as relações entre os investimentos públicos e os privados, e, em geral, a privatização dos lucros obtidos destas relações. A história da evolução urbana de Nova York (Howard, 2007), por exemplo, mostra o quanto estas relações podem ser complexas, e, ao mesmo tempo, a grande aceitação pública (ao menos oficialmente) do fato de investidores imobiliários se apropriarem dos espaços públicos e lucrarem com isso. De modo similar, Speck (2013) demonstraria o quanto esta característica permanece inalterada nos investimentos contemporâneos nas cidades norte-americanas. Tal fato, se válido para o período referente às cinco Exposições estudadas, acrescentaria um fator explicativo, ainda que parcial, à ausência de debate sobre questões relativas ao uso do recurso público, às desapropriações, à implantação de infraestruturas públicas e às valorizações do solo urbano.
Com o pressuposto adotado neste artigo de que eventos como os das Exposições são catalisadores de questões diversas, ao menos no campo da gestão urbana, a não explicitação delas nas fontes analisadas é intrigante. Por um lado, reitera-se a ideia de que os temas na mídia analisada são estabelecidos por viés e interesse específicos, os quais intentam construir uma visão de mundo e de suas relações sociais de modo estrategicamente parcial; nesta complexa relação, aquilo que “o público quer” e o que as parcelas socialmente dominantes querem se torna propositadamente indistinguível. Por outro lado, em vários momentos da análise, fomos tentados a acreditar que o júbilo revelado e inquestionado continha de fato algo de verdadeiro e, por isso, não se outorgava qualquer espaço para outras questões. A despeito da abrangência das fontes utilizadas, potencialmente de diferentes matizes ideológicas e políticas, concluímos pelo reconhecido interesse subliminar daquilo que é divulgado pela imprensa. Ainda resta, para a confirmação mais precisa de uma posição ou de outra, a consideração das especificidades de cada uma das cinco cidades sede das Exposições. A circunstância do local e das forças sociais que atuavam no momento preciso da organização, realização e observação de eventuais legados de cada uma das cinco Exposições reduziria os riscos de conclusões mais gerais.
A análise dos temas que caracterizam cada uma das Exposições aqui selecionadas sugere que houve sempre um forte desejo de se constituírem em vitrine das “grandezas” do país e da cidade sede. Para o caso das exposições contemporâneas, para além do interesse da imagem do país ou cidade sede e da realização de negócios com o capital local, há agora o interesse em constituir uma plataforma de debate para questões de interesse mundial, como o urbanismo na Expo Shangai de 2010 ou alimentação saudável na Expo Milão 2015. Na explicação dessa mudança estariam a globalização do capital nacional e a permanência da busca por enfoques com menor instigação à polêmica. O referencial teórico utilizado para este artigo revela que o intento da não polêmica está enfraquecido; os estudos da academia atual também reforçam essa crítica, indo além, questionando o próprio sentido da realização de tais eventos; estudos específicos sobre a veiculação do tema pela grande mídia contemporânea revelariam algo sobre o impacto deles: se reiterados de uma falsa idade da inocência, se capazes de produzirem ondas transformadoras relativamente à arquitetura e urbanismo, ou se meros reflexos passageiros.
Há uma concordância generalizada a respeito do tema das cinco Exposições Históricas pesquisadas que se busca replicar nas atuais; o que muda é a fonte de onde se expressam os desejos (antes as nações centrais, hoje, um mundo globalizado) e o foco dos interesses (antes um interesse industrial como motriz de um determinado desenvolvimento buscado, hoje um interesse social, pretensamente conciliatório). Em ambos os momentos, no entanto, permanece aquilo que pode ser absorvido pelas massas e servir de sinônimo para uma modernidade dita progressista, otimista e triunfante.
Rydell, em seu estudo sobre as exposições realizadas nos Estados Unidos no mesmo recorte temporal deste artigo (1876-1916), anuncia o júbilo generalizado em relação a esses eventos, tal qual aqui constatado. Mais que isso, reconhecia a intenção dos seus organizadores em “para impulsionar o desenvolvimento econômico das cidades e regiões em que eles foram realizados, bem como para impulsionar o crescimento material do país em geral” (Rydell, 1993, p. 2, tradução livre). Todavia, do mesmo modo que a análise das fontes selecionadas sugere, Rydell também reconhece as intenções estratégicas, tácitas ou não, das exposições em encapsularem uma realidade mais complexa e com compreensões dissidentes sobre si mesma.
Se uma das funções das exposições era tornar o mundo social compreensível, a direção das feiras tentava organizar a direção da sociedade a partir de uma perspectiva particular de classe. Estes eventos foram triunfos de hegemonia bem como edifícios simbólicos (Rydell, 1993, p. 2, tradução livre).
O presente artigo também teve como pressuposto encontrar uma crítica generalizada às Exposições na mídia selecionada, ao modo daquela observada no referencial teórico das suas congêneres contemporâneas. Em vários momentos da realização do artigo, o cenário que se tinha para esses eventos da segunda metade do século XIX ao primeiro quartel do XX sugeria, enganosamente, um grande consenso a respeito de um projeto de cidade e mesmo de país; o referencial teórico, mais que os documentos da mídia, alertou para um cenário potencialmente distinto.
Outro pressuposto que se tinha ao iniciar o artigo era de que o impacto e o interesse observados em relação às Exposições mais remotas no tempo não se reproduzem nas suas similares contemporâneas. Se tal pressuposto está correto, confirma-se o entendimento já anteriormente anunciado por Lewis Mumford. Iniciou-se uma história em que cada evento e sua arquitetura, de um modo ou de outro, deixaram marcas, tal qual “a stone in a pond” [uma pedra no lago]. Tais marcas se firmaram seja como grandes e únicas referências, seja pela sucessão de reproduções que geraram: “sometimes causing a ripple, sometimes a wave of architectural achievement” [às vezes causando uma marola, às vezes uma onda de realização arquitetônica]. Essa mesma história, já com sinais de envelhecimento, terminaria, parafraseando-se Mumford, como “a modest meteorite from another world” [um modesto meteorito de outro mundo].