Resumo: A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn, é um clássico da filosofia da ciência. Em associação com outras obras do autor, ela tem sido amplamente explorada ao longo das últimas décadas, tanto no âmbito epistemológico quanto educacional. Kuhn - físico, filósofo e historiador da ciência - traçou uma concepção de ciência que se opôs ao positivismo lógico e à historiografia tradicional. Não obstante, ele recebeu distintas e, por vezes, severas críticas ao seu entendimento de ciência. Nesse sentido, procurando compreender, sucintamente, o progresso científico por meio de revoluções na perspectiva kuhniana, este ensaio teórico explicita alguns mal-entendidos relacionados ao conceito de incomensurabilidade, a fim de discutir a sua concepção de revolução científica e perpassa pelo (suposto) relativismo da Estrutura. Além disso, pensando em implicações para o ensino e à formação de professores, propõe uma discussão acerca do problema do relativismo, tão pertinente na atualidade, sobretudo quando a ciência vive sua descrença. Com efeito, um resgate kuhniano pode colaborar para reflexões sobre a ciência, contribuindo para a formação de sujeitos mais críticos científica e epistemologicamente.
Palavras-chave: Thomas KuhnThomas Kuhn,mal-entendidosmal-entendidos,relativismorelativismo,ensino de ciênciasensino de ciências.
Abstract: Thomas Kuhn’s Structure of Scientific Revolutions is a classic in the philosophy of science. In association with other works by the author, it has been widely explored over the past decades, both in epistemological and educational terms. Kuhn, a physicist, philosopher, and historian of science, traced a conception of science that opposes logical positivism and traditional historiography. Nevertheless, he received distinct and, at times, severe criticism of his understanding of science. In this sense, seeking to succinctly understand scientific progress through revolutions in the Kuhnian perspective, this article explains some misunderstandings related to the concept of incommensurability, in order to discuss its conception of scientific revolution and how it permeates the (supposed) relativism of the structure. In addition, thinking about implications for teaching and teacher training, he proposes a discussion on the problem of relativism, which is so pertinent today, especially when science experiences its own disbelief. In effect, a Kuhnian rescue can contribute to reflections on science, contributing to the formation of more scientifically and epistemologically critical subjects.
Keywords: Thomas Kuhn, risunderstandings, relativism, science teaching.
Resumen: La Estructura de las revoluciones científicas de Thomas Kuhn es un clásico de la filosofía de la ciencia. En asociación con otros trabajos del autor, ha sido ampliamente explorado durante las últimas décadas, tanto en el ámbito epistemológico como educativo. Kuhn, físico, filósofo e historiador de la ciencia, esbozó una concepción de la ciencia que se oponía al positivismo lógico y la historiografía tradicional. Sin embargo, recibió críticas claras y, en ocasiones, severas de su comprensión de la ciencia. En este sentido, tratando de comprender, brevemente, el progreso científico a través de revoluciones en la perspectiva kuhniana, este ensaio teórico explica algunos malentendidos relacionados con el concepto de inconmensurabilidad, con el fin de discutir su concepción de revolución científica y pasa por el (supuesto) relativismo Estructura. Además, pensando en las implicaciones para la docencia y la formación docente, propone una discusión sobre el problema del relativismo, tan pertinente hoy en día, sobre todo cuando la ciencia vive su incredulidad. De hecho, un rescate kuhniano puede colaborar para reflexiones sobre la ciencia, contribuyendo a la formación de sujetos más críticos científica y epistemológicamente.
Palabras clave: Thomas Kuhn, Mal entendidos, Relativismo, Enseñanza de las ciencias.
Estudios y Debates Pedagógicos
(Re)Pensando Thomas Kuhn: reflexões sobre mal-entendidos da Estrutura e suas implicações para o ensino de ciências
(Re)Thinking Thomas Kuhn: reflections on Structure’s misunderstandings and their implications for science teaching
(Re) Pensando Thomas Kuhn: reflexiones sobre mal entendidos de la Estructura y sus implicaciones para la enseñanza de las ciências
Recepção: 26 Novembro 2020
Revised document received: 29 Janeiro 2021
Aprovação: 19 Março 2021
A Estrutura das Revoluções Científicas, publicada em 1962, é uma obra célebre e singular. Thomas Kuhn a concebeu não apenas como físico, mas como filósofo e historiador da ciência. Nela, ele busca delinear um entendimento e funcionamento da ciência em oposição ao positivismo lógico e à historiografia tradicional. Adotando a história como um instrumento analítico, apresenta limitações de uma visão cumulativa de ciência. Embora notável, ela foi, e continua sendo, escopo de inúmeras e distintas críticas - nem sempre procedentes, ao menos para Kuhn e seus adeptos.
O autor do livro, que foi traduzido para mais de vinte línguas e se tornou um bestseller acadêmico (Condé, 2013) - e porque não indispensável ou um ‘clássico’1 (Kind & Arabatzis, 2012) -, foi acusado de traçar uma imagem não racional da ciência, de não atribuir precisão ao conceito de paradigma, de defender a concomitância entre os contextos da descoberta e da justificativa, de sobrestimar a sub e intersubjetividades, de atribuir ao cientista uma postura acrítica no período de ciência normal, de ser relativista, de negligenciar o diálogo com a ideia de incomensurabilidade, de sustentar revoluções científicas, de antiprogressista, e a lista continua... Não obstante, o filósofo que é considerado um dos mais influentes do século XX, rebateu com elegância e certa objetividade as críticas recebidas, seja esclarecendo discordâncias/objeções, seja amenizando termos que podem não ter refletido, de fato e satisfatoriamente, seus ideais.
Ao elaborar um prefácio à edição especial da Estrutura comemorativa aos seus cinquenta anos, completados em 2012, Hacking (2012a) - que é um dos filósofos da ciência mais respeitados na contemporaneidade - enfatizou que, como todos os grandes livros, a obra kuhniana é, sobretudo, “um trabalho de paixão e de um desejo apaixonante de acertar as coisas” (sem página); de olhar a ciência como ela realmente parece ser.
Em Kuhn’s The Structure of Scientific Revolutions Revisited, publicado também em 2012 e organizado por Vasso Kindi e Theodore Arabatzis, encontram-se distintos artigos que reavaliam a Estrutura, em termos de seu valor, impacto e relevância na atualidade. Dividido em três partes, os trabalhos perpassam pelas origens e primeiras reações à obra, pela revisão de conceitos e metáforas como o de paradigma, ciência normal, revolução científica, incomensurabilidade, evolução e, por fim, pelas suas implicações atuais. Como os organizadores explicitam na introdução, esses artigos fazem justiça ao “poderoso e sutil relato filosófico do desenvolvimento científico” (p. 11). Kuukkanen (2012), ao tratar especificamente a relação entre os conceitos de evolução e revolução para Kuhn, enfatiza que a filosofia kuhniana, em geral, e seu conceito de evolução, em particular, são desenvoltos o suficiente para contribuir com a filosofia e a história da ciência contemporânea.
A obra Thomas Kuhn: a estrutura das revoluções científicas [50 anos] (Condé & PennaForte, 2013), a título de exemplo, de mesmo modo, evidencia a riqueza conceitual das ideias kuhnianas e suas diferentes possibilidades de abordagem. Um dos capítulos discorre sobre a aproximação desenvolvida por Kuhn entre a história e a filosofia da ciência a partir do caso clássico da Revolução Química. Como destaca Mocellin (2013), a abordagem kuhniana acerca dessa revolução torna inquieta e suscita reflexões, ainda hoje, a respeito de sua pertinência.
Conforme enfatiza Cohen (1976), no longo resgate histórico que desenvolve acerca do termo revolução, no decurso da história este vocábulo passou a ser utilizado por vários autores para descrever mudanças significativas nas esferas política e científica. Isso torna ainda mais necessária a clareza em relação ao sentido dado por Kuhn às revoluções científicas, quando se visa discutir e compreender a sua concepção de ciência. Uma das questões levantadas por críticos kuhnianos, em relação a revoluções, é a de que pode não haver uma linha clara entre mudanças revolucionárias e não revolucionárias (Tozzini, 2014). Torna-se imprescindível então compreender seu conceito de revolução não isoladamente, mas associado à sua rede de ideias que, inclusive, sofreram modificações com o passar dos anos (Hoyningen-Huene, 1993).
Por certo, nas últimas décadas, muitos estudiosos têm se interessado pela apreciação da Estrutura e, inevitavelmente, às demais obras de Kuhn. Diversos trabalhos, sejam eles livros e/ou artigos, demonstram a capacidade de sua concepção trazer à tona distintas e sempre reflexivas análises da ciência em perspectivas não apenas filosóficas, sociológicas, históricas, mas também educacionais (Arruda, Silva & Laburú, 2001; Cordeiro, 2016; Oki, 2004; Peduzzi, 2011; Raicik & Peduzzi, 2016; Raicik, 2020; Ramos & Silva, 2014; Zylbersztajn, 1991).
Loving e Cobern (2000) - em edição especial da revista Science & Education voltada especificamente a discussões acerca dos trabalhos de Kuhn - desenvolvem um levantamento bibliográfico, em periódicos de educação científica, para investigar como os escritos kuhnianos foram utilizados. Dentre os resultados encontrados, ressalta-se as inúmeras citações envolvendo a ideia de paradigma, mudança conceitual, construtivismo, incomensurabilidade, contextos sociais e filosóficos da ciência. Não obstante, como salientam os autores, muitos trabalhos não se debruçam a questionar, defender ou analisar mais especificamente noções kuhnianas. A concepção de ciência normal e revolucionária, e o conceito de incomensurabilidade, por exemplo, alvo de debates calorosos na filosofia da ciência, foram usados de forma geral e limitada entre pesquisadores do ensino de ciências. Ainda há uma carência de artigos voltados às discussões epistemológicas sobre as obras de Kuhn, sobretudo para além da Estrutura, com implicações (teóricas ou práticas) ao ensino.
Matthews (2004) sinaliza que muitos mal-entendidos acerca da filosofia kuhniana presentes e disseminados no ensino, em particular acerca do relativismo e do subjetivismo, devemse a pouca discussão crítica dos escritos de Kuhn entre pesquisadores da área de educação. O autor frisa, nesse sentido, que “a comunidade de educação científica precisa se envolver mais efetivamente com debates e análises sobre a história e a filosofia da ciência” (p. 112). Nas últimas décadas, é certo, a literatura vem defendendo a necessidade de promover discussões sobre a ciência, em distintos níveis de ensino, compatíveis com reflexões filosóficas contemporâneas (Clough, 2007; Martins, 2015; McComas, 2002; Peduzzi & Raicik, 2020). Entretanto, como enfatiza Massoni (2010), mesmo professores que tiveram uma formação mais adequada nesse sentido, parecem não estar suficientemente formados para promover reflexões filosóficas em sala de aula. O caminho não é fácil, mas resgates epistemológicos que sinalizam discussões para o ensino, ainda que teoricamente, são essenciais. É possível identificar trabalhos publicados nos últimos anos, em interlocução com as ideias de Kuhn, em sintonia com essa defesa, a exemplo daqueles de Chamizo (2014, 2017). Reflexões epistemológicas em si podem subsidiar práticas de formação de professores de ciências, com abordagens atualizadas, e nisso também reside uma qualidade dessas discussões teóricas.
O presente artigo visa, portanto, discutir a concepção de revolução kuhniana explicitando alguns mal-entendidos relacionados à sua ideia de incomensurabilidade, procurando compreender, sucintamente, como Kuhn entende o progresso científico por meio de revoluções. Além disso, traz reflexões acerca do (suposto) relativismo presente na Estrutura e a resposta de Kuhn a essa caracterização. Em uma perspectiva educacional, em particular para o ensino das ciências da natureza e à formação de professores, promove reflexões acerca do relativismo que, na atualidade, torna-se mais que necessário quando se visa a formação de sujeitos cada vez mais críticos cientificamente.
O Colóquio Internacional sobre Filosofia da Ciência que ocorreu em Londres, em 1965 e contou com um simpósio acerca da Estrutura, presidido por Karl Popper, pode ser um exemplo do grande impacto e das primeiras reações suscitadas pela obra. Um volume das atas do evento transformado no livro A crítica e o desenvolvimento do conhecimento, organizado por Imre Lakatos e Alan Musgrave, reúne manuscritos expandidos que transcendem um simples registro dos debates que ocorreram naquela ocasião. Com reflexões de John Waikins, Stephen Toulmin, Pearce Williams, Margaret Masterman, Paul Feyerabend, além de Popper e Lakatos, a obra é concluída com o texto kuhniano Reflexões sobre meus críticos. As palavras de Kuhn expressam o intuito de seu escrito: “tratarei neste ensaio fundamentalmente das questões levantadas por meus críticos atuais, embora esteja convencido de que dirigem com frequência sua atenção de modo errôneo [à obra]” (Kuhn, 1979, p. 287).
A partir de sua segunda edição a Estrutura contou com o Posfácio - 1969, em que Kuhn (2011a) visou, também, esclarecer algumas das críticas sofridas. Assim como faz no ensaio, ele discorre acerca do termo paradigma; como apontou Masterman (1979), e reconheceu Kuhn2 (1979), que teria sido utilizado com distintos significados em sua obra máxima. Introduzindo a noção de matriz disciplinar, ele enfatiza que paradigma pode ser empregado tanto em um sentido mais global como em outro mais restrito. No primeiro caso, paradigma refere-se a todo um conjunto de compromissos de pesquisa de uma comunidade científica, que engloba generalizações simbólicas, modelos, valores e exemplares. Paradigma enquanto exemplos compartilhados compete ao segundo sentido e faz menção à solução desses exemplares que se tornam modelos para trabalhos futuros. Os exemplos compartilhados são, portanto, as realizações particularmente instrutivas sobre as quais a ciência futura se baseia (Nickles, 2017).
Além de tecer considerações acerca do termo paradigma, Kuhn também traz reflexões em torno da ciência normal, incomensurabilidade, escolha teórica, irracionalidade. Em relação a este último ponto ele enfatiza, no referido ensaio, que pretende “eliminar os mal-entendidos” pelos quais seu “próprio passado retórico é, sem dúvida, parcialmente responsável” (Kuhn, 1979, p. 320). “Não vejo com otimismo esse assunto”, continua ele, “pois eu não entendia antes e não entendo agora o que meus críticos querem dizer quando empregam termos como ‘irracional’ e ‘irracionalidade’ para caracterizar meus pontos de vista” (p. 325).
Na Estrutura, e em escritos posteriores, Kuhn dirige críticas à distinção entre o contexto da descoberta e da justificativa (Raicik & Peduzzi, 2015; Reichenbach, 1938; Schiemann, 2006; Sturm & Gigerenzer, 2006). Ao passo que admite que a história não é uma disciplina puramente descritiva, mas também interpretativa e com aportes normativos e, além disso, que o contexto da justificação possui elementos sociológicos e psicológicos, por exemplo, ele advoga que os contextos são movimentos temporalmente indistintos. Para Kuhn, o processo de investigação científica e, sobretudo, o de escolha teórica, não condiz com a dicotomia imposta pela filosofia ‘tradicional’; fatores subjetivos e intersubjetivos, de diferentes naturezas, desempenham um papel na justificativa de teorias (Hoyningen-Huene, 1993). Daí surge uma das críticas de sua suposta propensão à ‘irracionalidade’. Mas ele esclarece:
Não estou menos preocupado com a reconstrução racional, na descoberta dos fundamentos, do que os filósofos da ciência. Meu objetivo também é a compreensão da ciência, das razões de sua eficácia, do status cognitivo de suas teorias. À diferença, porém, da maioria dos filósofos da ciência, comecei como um historiador da ciência, examinando atentamente os fatos da vida científica. Tendo descoberto, no decorrer do processo, que muito comportamento científico, incluindo o dos maiores cientistas, violava persistentemente cânones metodológicos aceitos (Kuhn, 1979, p. 292).
No artigo Objetividade, juízo de valor e escolha de teoria, de 1973, Kuhn (2011b) defende que é um conjunto de valores existentes na ciência, epistêmicos ou não, que fornece a base partilhada para a escolha teórica. Os papeis dos valores na atividade científica “é um dos refúgios para garantir a defesa da racionalidade científica” (Tozzini, 2014, p. 64). Com efeito, ele é um pioneiro no estudo e análise da relação entre ciência e valores e no reconhecimento dos juízos de valor para a desconstrução da suposta reconstrução racional científica (Cordeiro, 2016; Raicik & Angotti, 2019). “Aquilo que a tradição considera imperfeições elimináveis em suas regras de escolha eu considero”, diz ele, “respostas parciais à natureza essencial da ciência” (Kuhn, 2011b, p. 349). Na perspectiva kuhniana, a escolha teórica envolve fatores objetivos e subjetivos. Mas estes últimos foram negligenciados em concepções positivistas da ciência e é nesse sentido que a ênfase que atribuiu a eles em sua análise “dificultou” em suas palavras, “que meus críticos percebessem minha crença nos primeiros” (Kuhn, 2011b, p. 345).
Não obstante, a ciência normal também é um dos tópicos tratados por Kuhn e alvo de críticas. De acordo com o filósofo, ela evocou “uma das retóricas mais singulares”: a de que “não existe e é desinteressante” (Kuhn, 1979, p. 288). A existência da ciência normal, um período altamente cumulativo, acaba implicando na existência de revoluções científicas (Figura 1). Na Estrutura, ele não apenas advoga em favor de revoluções, mas acerca da estrutura que possuem (Hacking, 2012a).
A ciência para Kuhn passa por um período pré-paradigmático, no qual há escolas competindo por um conhecimento ‘consensual’. Ela progride, então, para um período de ciência normal, caracterizado pela resolução de quebra-cabeças imbuídos na confiança depositada em um paradigma estabelecido, o desencorajamento às iniciativas revolucionárias e a inexistência de competições em nível de controversas profundas. O paradigma mantém, com seu conjunto de exemplares, por exemplo, o suficiente para definir e resolver, em princípio, estes quebra-cabeças; a solução deles, com efeito, é um empreendimento cumulativo. “Abandonar o paradigma” então aceito seria, conforme Kuhn (2011a), “deixar de praticar a ciência que este define” (p. 56); mas isso pode ocorrer quando aparecem anomalias graves que enfraquecem o paradigma vigente e que levam a crises.
Quando um problema aparece e torna-se intratável (ou de difícil resolução), no âmbito do paradigma vigente, pode surgir uma nova abordagem que lide com a anomalia. Neste momento, estudiosos podem começar a perceber que algumas práticas experimentais e teóricas, por exemplo, comumente utilizadas, são inadequadas ou desnecessárias. O reconhecimento de que um problema é mais do que uma discrepância que se resolverá por si com o tempo, mas uma anomalia que deve ser explicada, é um evento histórico complexo (Hacking, 2012a).
A transição de um paradigma em crise para o novo, do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução da área de estudo a partir de novos princípios, reconstrução que [pode] altera[r] algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações (Kuhn, 2011a, p. 116).
Com efeito, como enfatiza Kuhn, uma crise envolve um período de ciência extraordinária, em que teorias e articulações concorrentes surgem para lidar com a crise, mas não somente ela. Rejeitar um paradigma envolve aceitar outro; “crise e mudança de teoria andam de mãos dadas” (Hacking, 2012a, sem página).
O processo de revolução científica pode envolver, então, mudanças e descontinuidades em distintos níveis; nas concepções da área de estudo e seus objetivos, nas metodologias utilizadas, nos valores empregados em uma ‘boa pesquisa’ etc. A ideia kuhniana central é profunda, ao passo que a mudança de uma matriz disciplinar à outra é uma modificação na constituição base de uma ciência; seu paradigma (Nickles, 2017). Não obstante, as revoluções podem ser grandes e pequenas, isto é, em alguns casos atinge uma subdivisão, uma esfera específica de um campo de estudo. Mas esse processo não é abrupto; não ocorre de forma fortuita e repentina (Oliveira, 2014).
A consciência de uma anomalia, isto é, o reconhecimento de que há um problema não condizente com as expectativas paradigmáticas pode levar, por exemplo, a descobertas científicas (Raicik & Peduzzi, 2016). Uma descoberta possui também uma estrutura; é um processo complexo que se desenrola no “tempo e no espaço”. Antes que se abandone o paradigma vigente, busca-se resolver o quebra-cabeça; muita pesquisa é ampliada no entorno dessa anomalia/descoberta. No entanto, várias dessas descobertas não poderiam ser previstas no âmbito do paradigma vigente e acabam trazendo maiores perturbações a ele, como no caso dos raios X.
Ao contrário da impressão predominante, a maioria das novas descobertas e teorias na ciência não é um mero incremento ao estoque acumulado de conhecimento científico. Para assimilá-las, o cientista comumente tem de rearranjar o equipamento intelectual e manipulativo em que confiava, descartando alguns elementos de sua crença e de sua prática anteriores e, ao mesmo tempo, encontrando novos significados e novas relações em outros. Visto que o antigo deve ser reavaliado e reordenado na assimilação do novo, a descoberta e a invenção nas ciências são, em geral, intrinsecamente revolucionárias (Kuhn, 2011b, p. 243).
Enquanto o período de ciência normal caracteriza-se por ser cumulativo, o processo de revolução não o é3. O novo paradigma não contém logicamente ou aproximadamente - em algum limite - o antigo no sentido de que subsume o anterior. Não necessariamente o corpo de conhecimento mais recente resolve todos os problemas de seu antecessor e permite, inclusive, predições diferentes. É nesse sentido que Kuhn passou a esclarecer também o termo incomensurabilidade; a ideia de que asserções não podem estritamente ser comparadas às antigas (Hacking, 2012a).
Aparentemente, a ideia introduzida na Estrutura tornava ininteligível que dois estudiosos, trabalhando sob paradigmas distintos, fossem capazes de se comunicar entre si. Não obstante, como ele esclarece no Posfácio-1969, faz-se necessário aos cientistas reconhecerem “uns aos outros como membros de diferentes comunidades de linguagem e a partir daí tornarem-se tradutores” (Kuhn, 2011a, p. 251). O processo de tradução é, conforme Kuhn, um instrumento de persuasão e conversão (Figura 2).
À medida que a tradução avança, alguns membros de cada comunidade podem começar a compreender, colocando-se no lugar do opositor, de que modo um enunciado, que anteriormente lhes parecia opaco, poderia parecer uma explicação para os membros do grupo oposto (Kuhn, 2011a, p. 252).
Mas essa tradução não pode ser entendida estrita e literalmente. Antes, deve-se pensar que esse processo propicia bilingues, e não tradutores comuns (Mendonça & Videira, 2007). Isto quer dizer que os estudiosos aprendem a nova teoria a partir de seus próprios termos; há uma modificação na linguagem.
Ademais, no período de transição o antigo e o novo paradigma competem pela preferência dos membros da comunidade científica. No artigo de 1973, anteriormente citado, Kuhn (2011b) enfatiza que a escolha entre dois paradigmas em competição se dá com a inexistência de regras ou critérios isentos de julgamento. Valores epistêmicos como precisão, consistência, simplicidade, fecundidade e abrangência, entre outros, evidenciam ‘boas’ razões para o abandono de teorias e escolha entre paradigmas (Cordeiro, 2016; Raicik & Angotti, 2019).
É importante ressaltar que o termo incomensurabilidade kuhniana funciona, portanto, metaforicamente, como o filósofo explicita em O caminho desde a Estrutura (Kuhn, 2006). Em síntese, “a incomensurabilidade inicial de Kuhn transforma-se em incompatibilidade, porque há tradução” (Peduzzi, 2011, p. 111). Em O que são revoluções científicas? - 1981 -, escrito quase vinte anos após o Posfácio-1969, Kuhn enaltece três características gerais envolvidas em uma mudança revolucionária: i) mudança holística; ii) mudança de significado e; iii) mudança de similaridade.
Admitir que as mudanças revolucionárias são, de certa forma, holísticas, envolve reconhecer que embora muitas coisas precisam ser, ainda, gradualmente completadas em uma revolução, a sua mudança central não é fragmentada. “Ao contrário”, elas - as mudanças centrais -, envolvem “uma transformação relativamente súbita”, isto é, “parte do fluxo da experiência se rearranja de maneira diferente e exibe padrões que antes não eram visíveis” (Kuhn, 2006, pp. 27-28). Em um período de ciência normal, há também momentos de mudança, mas elas ocorrem ao passo que se revisa ou acrescenta-se uma única generalização, por exemplo. Em um processo revolucionário, por sua vez, revisa-se uma mescla de generalizações que estão inter-relacionadas.
A mudança de significado é uma característica que já havia sido discutida por Kuhn, em outro nível de abstração, no processo de tradução, anteriormente comentado. Ela envolve uma modificação na linguagem; mas a própria ciência normal também explicita alterações em seus termos - e como eles se ligam à natureza. Não obstante, em um curso revolucionário essa mudança “altera não apenas os critérios pelos quais os termos se ligam a natureza, mas também, por extensão, o conjunto de objetos ou situações a que esses termos se ligam” (Kuhn, 2006, p. 42). Em outras palavras, a descrição e generalização científicas envolvem, pois, categorias taxonômicas elementares - premissas - que são modificadas e auxiliam a qualificar revoluções.
Por fim, Kuhn frisa que processos revolucionários envolvem mudanças centrais de modelo, metáfora ou analogia. Isto é, alterações nas noções de similaridades e dessemelhanças. “A característica principal das revoluções cientificas é que elas alteram o conhecimento da natureza intrínseco à própria linguagem, e que é, assim, anterior a qualquer coisa que seja em absoluto caracterizável como descrição ou generalização, científica ou cotidiana” (Kuhn, 2006, p. 44). Ele sinaliza, a título de exemplo, que o vazio ou o movimento linear infinito necessitou alterar a linguagem com que se descrevia a natureza para que relatos observacionais pudessem ser formulados. Mas, como o filósofo também salienta, a própria mudança de linguagem envolve resistências. “A violação ou distorção de uma linguagem científica anteriormente não-problemática é a pedra de toque para a mudança revolucionária” (p. 45).
Alguns filósofos e historiadores da ciência são céticos em relação às revoluções de quaisquer tipos. Cohen (1976) enfatiza que a partir do final do século XIX se começou a pensar que as revoluções poderiam ser evitadas e não eram desejáveis, sobretudo pelos desenvolvimentos políticos e sociais que traziam aspectos negativos a elas, muitos estudiosos, nesse período e depois dele - incluindo Ernest Mach, Ludwig Boltzmann e Albert Einstein - argumentaram que grandes avanços científicos faziam parte de um processo evolutivo; não revolucionário.
No que tange especificamente às alegações referentes às revoluções do tipo (em princípio) kuhniana, as críticas são as mais diversas. Como sintetiza Nickles (2017), alguns: i) aceitam revoluções kuhnianas, mas não todas; ii) não reconhecem que avanços revolucionários sejam precedidos, necessariamente, por uma crise aguda; iii) admitem que uma mudança revolucionária não precisa envolver uma descontinuidade profunda; iv) defendem que em certos casos revolucionários não se tem uma descontinuidade lógica e linguísticas etc. Não obstante, mais uma vez, torna-se relevante salientar que muitas críticas recaem sobre declarações ou interpretações que diferem daquelas que Kuhn afirmou ou buscou esclarecer. As suas ideias se entrelaçam e precisam ser vistas, portanto, dentro de sua própria rede conceitual (Hoyningen-Huene, 1993).
O filósofo da ciência alemão Hoyningen-Huene (1946) tem vários estudos4 acerca das ideias kuhnianas, e buscou esclarecer muitos confrontos com os quais Kuhn teve de se debruçar. Entre 1984 e 1985, enquanto redigia seu livro Reconstructing Scientific Revolutions: Thomas S. Kuhn Philosophy of Science, publicado originalmente apenas em 1989 e que contou com um prefácio de Kuhn, ele interagiu diretamente com o autor da Estrutura. No prefácio, Kuhn (1993) diz: “rapidamente descobri que Hoyningen conhecia meu trabalho melhor do que eu e o entendia muito bem (...). Nossas discussões frequentemente se tornaram apaixonantes” (p. xi).
Um dos conceitos que Hoyningen-Huene (1993, 2012) busca esclarecer é o de incomensurabilidade; uma das noções mais discutidas e controversas da teoria kuhniana, e fundamental para a compreensão de suas revoluções científicas. De acordo com o filósofo alemão, a concepção apresenta alguns mal-entendidos.
O primeiro deles se refere à tese de que Kuhn apresentou, na Estrutura, uma ideia de mudança radical de significado, em outras palavras, uma incomensurabilidade radical. No entanto, no próprio Posfácio - 1969 ele já busca esclarecer esse ponto com seu processo de tradução. Em Comensurabilidade, comparabilidade, comunicabilidade (Kuhn, 2006), ele restringe sua concepção inicial (ampla) e trata, especificamente, sobre sua argumentação de incomensurabilidade local: “a afirmação de que duas teorias são incomensuráveis é mais modesta do que supuseram muitos dos críticos” (p. 51). Para ele o que ocorria era uma incomensurabilidade local, no sentido de que a mudança afeta um subgrupo de termos. Isto é, em uma revolução científica, um pequeno grupo de conceitos usualmente interligados muda seu significado, diferindo da ideia comumente associada de que todos os conceitos precisam mudar em uma revolução (Hoyningen-Huene, 2012).
Deveras, incomensurabilidade não consiste em incomparabilidade, aspecto enfatizado nas reformulações kuhniana. De acordo com Kuhn, teorias incomensuráveis podem ser racionalmente comparadas. Hoyningen-Huene (1993) apresenta três níveis de complexidade que podem existir na comparação de teorias incomensuráveis. Um dos níveis diz respeito às previsões empíricas que não são afetadas pela incomensurabilidade local de conceitos (do léxico; de termos linguísticos utilizados). Isto é, algumas consequências empíricas podem ser, imediatamente, comparadas (Hoyningen-Huene, 2012). Um exemplo esclarecedor reside na mudança de significado de planeta nas teorias ptolomaica e copernicana. Ao contrário de Ptolomeu, Copérnico considerou a Terra como qualquer outro dos astros errantes e, assim, não a diferenciou dos demais planetas. Não obstante, os dados observacionais que possibilitavam o contraste entre os dois sistemas eram os mesmos e suas predições podiam ser imediatamente comparadas.
Um nível mais elevado de comparações torna-se possível quando são levadas em consideração as mudanças conceituais entre elas. Nesse caso, faz-se necessário identificar as partes dos termos linguísticos cuja estrutura mudou. Pequenos arranjos conceituais inter-relacionados do novo vocabulário precisam ser aprendidos para que se possa comparar as teorias. Mas cabe ressaltar que “aprender o novo vocabulário conceitual é diferente da habilidade de traduzir mecanicamente o antigo vocabulário” (Hoyningen-Huene, 2012, p. 82). Em outras palavras, um pequeno grupo de conceitos pode ser comparado em teorias distintas quando, por exemplo, em situações particulares, novos conceitos são identificados por meio de conceitos linguísticos antigos. A relação entre a teoria do flogisto e a química do oxigênio pode ilustrar esse tipo de comparação. Em determinadas situações, os conceitos novos de oxigênio e hidrogênio - quando ainda não entendidos em sua plenitude - podem ser identificados à luz dos termos linguísticos antigos, com ar desflogisticado e flogisto, respectivamente. Por certo, para um estudioso imerso apenas na teoria flogistica, essa comparação não será possível, mas para um estudioso que aprendeu novos arranjos conceituais que mudaram sua estrutura linguística, determinadas asserções empíricas, em situações apropriadas, podem ser comparadas. De qualquer modo, as dificuldades de entendimento não são simétricas para quem está aprendendo o novo conjunto léxico e para quem não está familiarizado com ele.
O último nível de possibilidade de comparação entre teorias incomensuráveis pode ocorrer quando se alcança um domínio pleno da nova teoria e esse processo demanda a familiarização com todo o novo léxico (os novos termos linguísticos). Tendo em vista que uma teoria é um conjunto conceitual e empiricamente articulado e integrado de leis, não se torna possível, e nem desejável, uma comparação sistemática de ponto a ponto; por conseguinte, fragmentada. A comparação não ocorre em situações particulares, mas globalmente. Como enfatiza Hoyningen-Huene (1993), qualquer justaposição das teorias deve ter um caráter holístico:
Equilibrar essa comparação pode, é claro, apresentar dificuldades substanciais, pois fraquezas em um domínio podem ser compensadas por forças em outro, onde o oposto se aplica à outra teoria. Mas o fato de que essa comparação holística é difícil e, em algumas situações no desenvolvimento da teoria, sem nenhum resultado inequívoco, certamente não implica que seja impossível (p. 221).
Caso teorias incomensuráveis não pudessem efetivamente ser comparadas, a escolha teórica não poderia ser feita ‘racionalmente’; com efeito, Kuhn foi acusado (impropriamente, pode-se dizer) de propagar uma imagem irracional de ciência. Não obstante, como mencionado na seção anterior, ele defende, ‘salvando’ a racionalidade científica, um conjunto de valores que fornecem a base para a escolha teórica; inevitavelmente permitem sua justaposição. Quer dizer, as teorias são comparadas em termos de valores epistêmicos que envolvem precisão, consistência, simplicidade, fecundidade e abrangência, entre outros. Kuhn argumenta, ainda, que a escolha teórica depende, além desses valores compartilhados, de fatores idiossincráticos que são tão importantes quanto àqueles (Raicik & Angotti, 2019).
Em síntese, as relações de similaridades e o papel dos objetos e situações problemáticas que devem ser interpretadas no processo de aprender uma teoria tornam-se de extrema relevância. Deveras, “o cerne do argumento de Kuhn consiste em tentar mostrar que a interpretação não deve ser confundida com a tradução” (Mendonça & Videira, 2007, p. 175). Assim, o sistema conceitual de ambas as teorias, sobretudo no que se refere às suas consequências empíricas, sofre perda ou mudança de significado no processo de tradução. Em outras palavras, a interpretação intermedia pontos não passíveis de uma comparação direta entre os corpos teóricos (Mendonça & Videira, 2007).
Isso leva a outro mal-entendido, não dissociado dos anteriores, explicitado por Hoyningen-Huene (1993), de que uma revolução é uma mudança abrupta e total entre duas teorias incomensuráveis. Entretanto, Kuhn afirma que algumas continuidades5, sejam teóricas ou experimentais, mantém-se após uma revolução. Como o filósofo salienta, após esse processo, muitas manipulações e medições, por exemplo, passam a ser irrelevantes ou substituídas; mas parte da linguagem e os instrumentos de laboratório continuam sendo os mesmos, embora agora possam ser utilizados com outras funções e objetivos, por certo. Isso quer dizer que “a ciência pós-revolucionária invariavelmente inclui muitas das mesmas manipulações, realizadas com os mesmos instrumentos e descritas nos mesmos termos empregados por sua predecessora pré-revolucionária” (Kuhn, 2011a, p. 168). Um dos motivos pelos quais essas continuidades perduram, conforme Hoyningen-Huene (2012), é o de que a nova teoria conserva, de sua predecessora, muito de sua habilidade em resolver problemas. Não obstante, embora atestasse para esse aspecto, Kuhn não se debruçou sobre ele com profundidade. Como uma revolução:
comportou historicamente a concepção de uma ocasião para o surgimento de algo inteiramente novo da ciência, de um completo recomeço, realizado de modo abrupto, Kuhn é visto como um descontinuísta radical para quem uma revolução corresponde também a um evento repentino e fortuito (Oliveira, 2014, p. 14).
Mas isso não retrata, como se buscou evidenciar, uma revolução em termos kuhnianos.
Além disso, críticas direcionadas especificamente à existência ou não de revoluções recaem sobre Kuhn; como o fez Toulmin (1979) ao questionar se elas realmente existem. “Perguntam-me com frequência se este ou aquele desenvolvimento foi ‘normal ou revolucionário’ e geralmente tenho de responder que não sei”, exprime Kuhn (2006, p. 181). Como ele chama a atenção, para responder a essa questão, deve-se desenvolver um estudo minucioso da história; faz-se necessário entender a natureza e a estrutura dos compromissos de pesquisas daquela disciplina antes e depois da mudança científica. Ele prossegue enfatizando a importância de se perguntar inicialmente “para quem” a mudança pode ser considerada revolucionária.
A título de exemplo, Kuhn diz que a astronomia copernicana foi uma revolução para todos, ao passo que a descoberta do oxigênio, por Lavoisier, foi uma revolução para os químicos, pois era inseparável de uma nova teoria da combustão e acidez. Neste último caso, o filósofo ainda enfatiza que para os astrônomos matemáticos o oxigênio poderia ser visto apenas como um mero acréscimo aos seus conhecimentos.
Sucintamente, “as revoluções cientificas precisam parecer revolucionárias somente para aqueles cujos paradigmas foram afetados” (Kuhn, 2011a, p. 126). Portanto, a necessidade de distinguir entre um período revolucionário e um não revolucionário, deve ser vista com cautela (Tozzini, 2014).
No livro organizado por Lakatos e Musgrave (1979) supracitado, Toulmin, a título de exemplo, confere críticas direcionadas ao conceito de revolução científica em seu ensaio É adequada a distinção entre ciência normal e ciência revolucionária?. Ele defende uma ciência evolucionária, em que, ao invés de mudarem, conceitos agregam-se em uma perspectiva gradualista de mudança conceitual (Ariza & Harres, 2002). A ideia que o incomodava era que, segundo ele, falar em revolução era oposto à defesa de evolução científica. Em Consolando o especialista, também presente nesse livro, Feyerabend (1979) confere uma crítica específica acerca da importância das revoluções. “Não vejo como”, diz ele, “a desejabilidade das revoluções pode ser estabelecida por Kuhn (...). As revoluções ocasionam uma mudança de paradigma (...)”, continua, e torna-se “impossível dizer que elas conduziram a algo melhor” (p. 251).
Como esclarece Hoyningen-Huene (2012), no entanto, a própria incomensurabilidade kuhniana não exclui a ideia de progresso científico ao longo de revoluções. Com efeito, ela evita a ideia de progresso científico cumulativo como uma aproximação à verdade6. Além de ser acusado de traçar uma imagem irracional, relativista, subjetivista da ciência, Kuhn foi apontado como um antiprogressista; não obstante, revolução não precisa ser, necessariamente, antítese de evolução.
Aliás, Kuhn (2011a) explicita que talvez a ideia comumente utilizada para progresso científico precise ser mudada. “O processo de desenvolvimento descrito nesse ensaio”, diz ele ao final da Estrutura, “é um processo de evolução a partir de um início primitivo - processo cujos estágios sucessivos caracterizam-se por uma compreensão sempre mais refinada e detalhada da natureza” (p. 215); mas não uma evolução em direção a algo. Ele ainda questiona: “será realmente útil conceber a existência de uma explicação completa, objetiva e verdadeira da natureza, julgando as realizações científicas de acordo com sua capacidade para nos aproximar daquele objetivo último?” (p. 215). Com a analogia que estabelece com a teoria darwiniana, Kuhn argumenta que se faz necessário olhar para a história das disciplinas científicas; o quanto se proliferam, se multiplicam e se especializam (Kuukkanen, 2012).
Em O caminho desde a Estrutura, ampliando sua analogia, Kuhn (2006) sugere dois paralelos entre a evolução científica e a evolução darwiniana: um diacrônico e um sincrônico. No primeiro caso, já firmado no final da Estrutura, que comporta a ideia acima, ele frisa que a história da ciência não corresponde a uma sequência que se aproxima da verdade. O paralelo sincrônico entre o desenvolvimento científico e biológico corresponde às mudanças revolucionárias que produzem divisões entre campos de conhecimento; isto é, a especiação das disciplinas (Kuhn, 2006). Isto resulta que o progresso ocorre com a proliferação de especialidades científicas e no aumento de suas articulações (Hoyningen-Huene, 2013).
O paralelo sincrônico é mais bem compreendido com a ideia de incomensurabilidade local, discutida por Kuhn. Com efeito, essa especiação significa que novos campos desenvolvem seus próprios léxicos, sociedades profissionais etc. “Depois de uma revolução, geralmente são encontradas”, enfatiza Kuhn (2006, p. 124), “mais especialidades cognitivas ou campos de conhecimento do que havia antes”. Mas isso não remete a mudança de todos os campos já existentes; eles podem continuar como de costume (Kuukkanen, 2012). Nesse processo, prossegue ele,
Ou um novo ramo separou-se do tronco original, como especialidades científicas repetidamente se separam, no passado, da filosofia e da medicina, ou então uma nova especialidade nasceu em uma área de aparente superposição entre duas especialidades preexistentes, como ocorreu, por exemplo, nos casos da físico-química e da biologia molecular (Kuhn, 2006, p. 124).
Novamente há aqui a noção de que uma revolução não é, nem precisa ser, um evento repentino e abrupto que modifica por absoluto esquemas conceituais.
Mudanças revolucionárias que permitem essa especialização contribuem, ainda mais, para a compreensão daquilo que Feyerabend questiona ser a desejabilidade de revoluções, no sentido de que levam a algo ‘melhor’. Ao que se pode ponderar, esse processo de especialização pode denotar maior foco em certos problemas da ciência e o desenvolvimento de ferramentas e linguagens mais direcionadas a eles, resultando em um maior número de problemas resolvidos. “A diversidade lexical e o limite que, obrigatoriamente, ela impõe à comunicação podem ser o mecanismo isolador necessário para o desenvolvimento do conhecimento” (Kuhn, 2006, p. 125). Além do sucesso de disciplinas individuais, que resolvem problemas anteriormente não solucionados, a ciência em sua abrangência também apresenta vantagens, uma vez que resolve quebra-cabeças que uma ciência lexicamente homogênea não poderia.
Nesse sentido, a incomensurabilidade, sobretudo local, pode ser vista como condição prévia ao progresso científico. Deveras, “um desenvolvimento que cria disciplinas incomensuráveis especializadas e separadas, que continuam a avançar e progredir em seus próprios nichos” (Kuukkanen, 2012, p. 140).
Mais uma vez, aquela ideia de revolução, comumente associada a uma leitura primeira da Estrutura, de que as mudanças paradigmáticas ocorrem abrupta e absolutamente em larga escala, não pode ser sustentada. As revoluções tornam-se especiações que, em diferentes graus, apresentam continuidades e contribuem para a evolução da ciência. Evolução ou Revolução? Ao que figura uma resposta kuhniana: evolução via revolução, eis outra questão.
Em entrevista concedida a Aristides Baltas, Kostas Gavroglu e Vassiliki Kindi, em 1995, Kuhn diz lembrar de Peter Hempel comentando que, na ocasião de um congresso em que estivera por volta da década de 1960, alguns estudiosos disseram que o “livro [Estrutura] deveria ser queimado! e toda essa conversa sobre irracionalidade! (...) em particular, irracionalidade e relativismo” (Kuhn, 2006, p. 369).
No artigo A ciência normal e seus perigos, Popper (1979) afirma que a tese relativista - e ele faz alusão ao (suposto) relativismo de Kuhn - “é o baluarte central do irracionalismo” (p. 70). Na resenha que desenvolve da Estrutura, Shapere (1964) também levanta acusações sobre o relativismo kuhniano. O filósofo enfatiza que Kuhn falha em esclarecer as (boas) razões que levam grupos científicos a escolhas teóricas e mesmo obscurece a existência dessas razões. Lakatos (1979) chega a afirmar que a crise é um “pânico contagioso” e não existem padrões racionais para escolhas interparadigmáticas; para ele, “a revolução científica [kuhniana] é irracional, uma questão de psicologia de multidões” (p. 221).
A repercussão da incomensurabilidade kuhniana pode ser epitomada na frase de Hacking (2012a): “nunca houve uma tempestade sobre mundos diferentes, mas um assunto intimamente relacionado incitou um tufão de debates” (sem página). Kuhn não nega a existência de boas razões para a escolha teórica; pelo contrário, as defende na aplicação de valores científicos partilhados, como discute, de forma específica e pormenorizada, em Objetividade, juízo de valor e escolha de teoria (Kuhn, 2011b) supracitado. A noção de valor, e não regra, permite que estudiosos possam fazer escolhas distintas quando diante de mesma situação concreta. A escolha teórica depende tanto de critérios compartilhados - que filósofos tradicionalistas qualificavam como regras objetivas -, quanto idiossincráticos - considerados subjetivos; mas essa mescla não compromete a adesão, pelos estudiosos, “aos cânones que tornam a ciência científica” (Kuhn, 2011b, p. 344). Caso os membros de uma comunidade aplicassem valores da mesma maneira, não se promoveria um processo de escolha que permitisse que sujeitos racionais discordassem entre si. À vista do risco que sempre está envolvido na introdução de algo novo na ciência, a aplicação de valores (e não regras) pode impedir que a atividade do grupo se dissipe ao distribuir os grandes riscos inerentes ao processo de tomada de decisões. Não obstante, como bem salienta Kuhn (1979), nada disso leva a uma ‘psicologia de massas ou multidões’. “À diferença da maioria das disciplinas, a responsabilidade por aplicar valores científicos partilhados”, enfatiza o filósofo, “deve ser deixada ao grupo de especialistas” (p. 324). Essa aplicação pode ainda nem se estender a todos os cientistas, mas se restringir a um grupo deles, e “muitos menos a todos os leigos cultos e, menos ainda à multidão” (p. 325). Além disso, a perspectiva kuhniana não supõe que as teorias sejam escolhidas aleatoriamente, de modo que os cientistas assumam, pura e simplesmente, qualquer uma das que estejam disponíveis; o processo é complexo.
Não há irracionalidade, mas uma tentativa de evidenciar que o entendimento de racionalidade precisa ser modificado ou abarcar novos elementos que deem (mais) conta de explicar o funcionamento da ciência; e não de uma idealização sua. Admitir que existem critérios de racionalidade que independem do entendimento desse funcionamento é, como salienta Kuhn (1979), “abrir a porta para a fantasia utópica” (p. 326). Conforme Hacking (2012a), a indicação (e crítica) de que Kuhn nega a racionalidade e é um profeta de um simples relativismo, é absurda.
Kuhn busca responder ainda mais à acusação de relativismo do qual sofre; mas o faz brevemente, em duas perspectivas. “Num sentido do termo, pode ser que eu seja um relativista; num sentido mais essencial, não o sou” (Kuhn, 2006, p. 198). Para este último caso, ele apresenta uma analogia que mostra o quanto, em essência, ele se distancia do relativismo.
Imaginemos uma árvore representando a evolução e o desenvolvimento das especialidades científicas modernas a partir de suas origens comuns, digamos, na filosofia natural primitiva e no artesanato. Uma única linha, traçada desde o tronco até a ponta de algum galho no alto, demarcaria uma sucessão de teorias relacionadas por sua descendência. Se tomássemos quaisquer dessas duas teorias, escolhendo-as em pontos não muito próximos de sua origem, deveria ser fácil organizar uma lista de critérios que permitiriam a um observador independente distinguir, em todos os casos, a teoria mais antiga da teoria mais recente. Entre os critérios mais úteis encontraríamos: a exatidão nas predições, especialmente no caso das predições quantitativas; o equilíbrio entre o objeto de estudo cotidiano e o esotérico; o número de diferentes problemas resolvidos. Valores como simplicidade, alcance e compatibilidade seriam menos úteis para tal propósito, embora também sejam determinantes importantes da vida científica (...). Se isso pode ser realizado, então o desenvolvimento científico, tal como o biológico, é um processo unidirecional e irreversível. As teorias científicas mais recentes são melhores que as mais antigas, no que toca à resolução de quebra-cabeças nos contextos frequentemente diferentes aos quais são aplicadas. Essa não é uma posição relativista e revela em que sentido sou um crente convicto do progresso científico (Kuhn, 2011a, p. 255).
A percepção de que a ciência é, metaforicamente, ‘darwiana’ e que as revoluções levam a especiações, como discutido na seção anterior, não envolve, pois, um “ponto metafísico profundo”; mas um processo científico habitual. A incompreensibilidade parcial existente entre novas disciplinas evidencia uma aplicabilidade real de incomensurabilidade e isto, com efeito, nada tem a ver com “pseudo-perguntas sobre escolha de teorias” (Hacking, 2012b).
A analogia estabelecida acima permite que Kuhn (2011a) frise, em crítica específica aos comentários de Shapere e Popper, em que sentido a ciência se diferencia de outras disciplinas, por exemplo. Ele diz que, pelo fato de defensores de teorias distintas serem como membros de comunidades de cultura e linguagem diferentes, ambos, em princípio, poderiam estar certos. Contudo, a ciência apresenta a habilidade de formular e resolver quebra-cabeças e se essa característica é tomada como um valor relevante, ele pode ser decisivo nas tomadas de decisões. Embora, ainda assim, essa não seja uma aplicação valorada inequívoca, a importância dada a essa habilidade tem mostrado o sucesso da ciência.
Sem embargo, Kuhn reconhece em que sentido existem razões (mas nem todas suficientes) para ser considerado relativista, e elas estão imbrincadas à sua noção de verdade. No que se refere ao uso da ‘verdade’ em termos intrateóricos, ele diz não haver problemas e não se sente, de forma alguma, um relativista. Para o filósofo, “os membros de determinada comunidade científica geralmente se porão de acordo sobre as consequências de uma teoria comum capazes de suportar o teste da experiência e que, portanto, são verdadeiras, sobre as que são falsas segundo a atual aplicação da teoria e sobre as quais ainda não foram testadas” (Kuhn, 1979, p. 326). Há, portanto, uma ‘verdade’ provisória.
Não dissociada da discussão acima e à luz de uma perspectiva dominante à época de progresso (mas não a dele), Kuhn (2011a) resgata que para uma teoria ser considerada superior, em relação à outra, ela precisa ser uma representação melhor do que a natureza realmente é; quer dizer, em termos tradicionalistas (mas não kuhnianos), não basta a uma teoria ser um instrumento mais adequado de descobrir e resolver quebra-cabeças, ela precisa se aproximar de uma ‘verdade’. Cabe lembrar que para Kuhn (2006), faz-se necessário “deixar de nos ver como chegando cada vez mais perto de alguma coisa, mas de nos ver, em vez disso, como movendo-nos para longe de onde estávamos” (p. 370).
Na perspectiva kuhniana, a busca pela conformidade cada vez mais perto de uma ‘verdade’ refere-se muito mais à ontologia, do que à resolução de quebra-cabeças ou a predições derivadas de uma teoria. É nesse sentido que Kuhn pode ser considerado um antirrealista (antirrealista ontológico ou nominalista revolucionário, em termos das classificações de Hacking). “Parece-me que não existe maneira de reconstruir expressões como ‘realmente aí’ sem auxílio de uma teoria; a noção de um ajuste entre a ontologia de uma teoria e sua contrapartida ‘real’ da natureza parece-me ilusória por princípio” (Kuhn, 2011a, p. 256).
Portanto, um sentido em que Kuhn se aproxima de um relativismo, conforme Hacking, relaciona-se com a noção de que não existe uma única caracterização para lidar com um aspecto da natureza. Em outras palavras, categorias como substância e força podem ser abandonadas, modificadas. “Não chegamos ao fim da linha. E, decerto, mal podemos dizer que a noção de um fim da linha, de uma ciência final, nos seja verdadeiramente clara” (Hacking, 2012b, p. 188).
Salienta-se que apesar de Kuhn ter admitido que Shapere - conforme abordado no início da presente seção - em geral, resenhou favoravelmente a Estrutura, há “fortes reservas” a questões infundadas referentes, especialmente, ao relativismo. Caso Shapere, diz Kuhn (2006, p. 369), “tivesse pensado um pouco mais seriamente sobre o que era relativismo e sobre o que eu estava dizendo, não teria dito nada parecido com aquilo”.
Em síntese, enfatiza-se que a incomensurabilidade abarca discussões tanto a respeito da racionalidade, como do relativismo científico (Hacking, 2012a). Com efeito, a Estrutura para Kuhn (2006) “não é um livro relativista” (p. 369).
Cumpre registrar que apesar do posicionamento contrário de Kuhn em relação à sua caracterização como relativista, discussões sobre isso permanecem no âmbito da filosofia da ciência, enriquecendo o debate.
Oliva (2012), por exemplo, ao reconhecer que Kuhn se contrapõe à qualificação de relativista, discute o que poderia levá-lo a essa caracterização. Para tanto, o autor investiga três modalidades de (suposto) relativismo kuhniano:
“O relativismo epistêmico: os métodos de investigação da ciência são relativos a esquemas conceituais, molduras teóricas ou paradigmas; a evidência subdetermina a escolha de teoria na medida em que qualquer teoria pode ser racionalmente retida à luz da evidência disponível ou concebível;
o relativismo ontológico: o que se toma por existente - objetos, fatos, entidades etc. - é identificado por um modelo teórico, um esquema conceitual, um paradigma etc;
o relativismo linguístico: o significado dos mesmos termos, sejam teóricos ou observacionais, varia quando os termos são usados em diferentes teorias; o esquema conceitual não tem como tornar-se inteligível na linguagem de um esquema rival” (Oliva, 2012, p. 563).
A primeira modalidade pode ser caracterizada na obra de Kuhn, de acordo com o autor, como não derivada da história da ciência. Para Oliva (2012) a compreensão de Kuhn de que a avaliação de uma teoria é promovida por critérios associados à própria teoria é defendida por argumentos majoritariamente epistemológicos que, por sua vez, seriam insuficientes na sustentação da inexistência de metacritérios, por exemplo, para decidir entre teorias científicas diferentes. Oliva (2012) descreve que a falta de distinção entre “um relativismo filosoficamente aplicado à ciência e um relativismo metacientificamente derivado da ciência leva a avaliações gerais pouco elucidativas. É fácil condenar o relativismo [...] se visto como sobreposição de uma filosofia à ciência [...]” (p. 564).
No seu exame sobre o relativismo epistêmico, Oliva (2012) conclui: “Apesar das respostas que procura assim dar às críticas [...], Kuhn continua esposando posições relativistas, pois o apoio, quando muito parcial, da história da ciência não elimina sua dependência a argumentos filosóficos” (p. 572).
Em relação aos relativismos ontológico e linguístico, Oliva (2012), também questiona as contribuições da história da ciência na obra de Kuhn para justificá-los. Sinteticamente, a tese de Oliva (2012) considera que “Kuhn passa a destacar a história da ciência como os filósofos fazem com a história da filosofia, mas sem lograr demonstrar que sua metaciência (relativista) é amplamente sustentada pela história da ciência” (p. 589).
Com efeito, a divergência de concepções em torno do relativismo kuhniano enriquece o debate e, quando alinhada à discussão específica de conceitos kuhnianos, vistos em associação e à luz das modificações que sofreram com reconsiderações de Kuhn, pode contribuir para melhor reflexão da Estrutura e de pós-escritos; embora não seja necessário se concordar com (supostas) caracterizações.
Guitarrari (2016) também retoma a discussão sobre o relativismo na obra de Kuhn a partir da tese que o relativismo cognitivo7 é autorrefutante8 e que essa não se aplica ao entendimento de Kuhn a respeito do desenvolvimento científico. Daquilo que é exposto por Guitarrari (2016), destacamos o seu argumento de que a incomensurabilidade epistemológica - paradigmas rivais possuem seus próprios problemas e padrões de solução, valores etc. - implica em relativismo cognitivo que não se refuta. O autor aponta:
A incomensurabilidade epistemológica também não se refuta, ao ser enunciada. Sua declaração é uma descrição de uma leitura da história da ciência, a saber: há mudanças, no desenvolvimento da ciência, em que os diferentes conjuntos de problemas, padrões de avaliações e valores - utilizados por cientistas para fazer suas escolhas de paradigmas em competição - são irredutíveis entre si ou em relação a um terceiro. Essa declaração não é autorrefutante, pois não pressupõe padrão cognitivo comum (imparcial e também decisivo) na descrição de (supostos) fatos históricos de que os conjuntos de padrões, problemas e valores cognitivos são distintos e irredutíveis entre si (ou a um terceiro). Ela apenas procura descrever um estado de coisas, uma diversidade peculiar de compromissos científicos, e, ao fazer isso, ela não pressupõe algo que nega (Guitarrari, 2016, p. 151).
Guitarrari (2016) questiona a própria tese da autorrefutação sem, contudo, descartar a impossibilidade de argumento que implique na rejeição de um relativismo cognitivo. Em outras palavras, é uma questão que está colocada no campo da Filosofia.
Enfim, ainda que Kuhn tenha contestado as acusações de relativismo originadas da Estrutura, reconhece-se que essa questão concernente ao relativismo permanece em análises sobre sua obra. Ressalta-se que isso configura um indicativo do potencial da Estrutura no debate sobre o relativismo e como um exemplo que reforça o exposto por Oliva (2012): “Está longe de ser fácil justificar a caracterização de uma concepção ou de um pensador como relativista”. De modo que as acusações a Kuhn como “simples relativista” merecem ser repensadas.
A Estrutura é, sem dúvida, uma obra notória; não apenas pela compreensão de ciência que proporciona, como pelas implicações que suscitou e que contribuíram para que Kuhn esclarecesse muitos de seus conceitos. Hacking (2012) denota que o livro, de fato, “mudou ‘a imagem da ciência pela qual estamos agora possuídos’. Para sempre” (sem página).
No que tange ao ensino de ciências da natureza, a concepção de Kuhn representou, e ainda representa, ser um relevante referencial para o desenvolvimento de estratégias didáticas e a própria reflexão acerca da ciência (Arruda et al., 2001; Cordeiro, 2016; Ostermann, 1996; Peduzzi, 2011; Raicik & Angotti, 2019; Raicik & Peduzzi, 2016; Raicik, Peduzzi & Angotti, 2018; Villani, 2001; Zylbersztajn, 1991).
Zylbersztajn (1991), por exemplo, apresentou as ideias centrais kuhnianas de forma introdutória e estabeleceu uma analogia do aluno como um cientista kuhniano; o aluno tanto como cientista em uma revolução quanto em um período de ciência normal. Cordeiro (2016) implementou uma unidade didática, com pós-graduandos, no qual discute a relação entre ciência e valores a partir de Kuhn, mas não somente dele. Raicik (2020) propõe uma unidade de ensino potencialmente significativa, voltada a professores em formação continuada, que visa discutir valores envolvidos na aceitação de um novo conhecimento, à luz de uma perspectiva kuhniana, a partir do término de uma controvérsia científica.
Com efeito, pesquisas têm mostrado que um dos objetivos da educação científica, em distintos níveis, nos tempos atuais, é o de promover compreensões sobre a ciência em sala de aula, como supracitado (Forato, Pietrocola & Martins, 2011). Em discussões de como o conhecimento científico é desenvolvido, enfatiza Peduzzi (2011), as ideias de Kuhn, “exercem um forte fascínio sobre o estudante, particularmente através de seu conceito de revolução” (p. 117). Atrelado a isso, está a crítica de que discussões implícitas relativas à Natureza da Ciência (NdC), ou meramente declarativas, não são suficientes para um aprendizado significativo do tema (Allchin, 2011; Clough, 2007; Martins, 2015; Peduzzi & Raicik, 2020). Torna-se cada vez mais necessário não apenas levantar concepções prévias de estudantes sobre a ciência, mas trabalhá-las estratégica e explicitamente no ensino. Um dos maiores desafios enfrentados pelos pesquisadores, portanto, é o de como incorporar discussões de NdC entre professores e alunos (Moura, 2014).
Peduzzi e Raicik (2020) apresentam um conjunto de asserções comentadas sobre a Natureza da Ciência que visam favorecer a reflexão do tema. Embora os autores as discutam com visões de distintos epistemólogos, algumas delas, como as citadas a seguir, a título de exemplo, podem ser exploradas e exemplificadas especificamente com ideias kuhnianas.
4. As teorias científicas não são definitivas e irrevogáveis, mas sim objeto de constante revisão; o pensamento científico modifica-se com o tempo (...) 5. Uma teoria não deixa de ser científica porque foi descartada; no período de sua vigência ela constituiu um corpo de conhecimento coerente, com poder explicativo e preditivo, que explicitou uma maneira de ver e compreender o mundo físico, os fenômenos naturais (...) 6. Concepções filosóficas, religiosas, culturais, éticas do investigador, assim como o contexto histórico, cultural, social em que se desenvolve a ciência, influenciam o seu trabalho desde os tempos mais remotos (...) 9. A disputa de teorias pela hegemonia do conhecimento envolve tanto aspectos de natureza interna quanto externa à ciência; podem ser bastante complexos e sutis os mecanismos envolvidos na aceitação de um novo conhecimento (...) 12. O conhecimento não parte do nada - de uma tábula rasa - como também não nasce, necessariamente, da observação; seu progresso consiste, fundamentalmente, na modificação do conhecimento precedente. O ato de conhecer se dá contra um conhecimento anterior (...) 16. A dinâmica da produção de conhecimentos na ciência mostra um processo vivo, criativo, polêmico, questionador, argumentativo. Essa realidade contrasta com a falsa imagem de uma ciência que se apresenta como um corpo árido de fatos e conclusões (...) (Peduzzi & Raicik, 2020).
Por mais que a filosofia kuhniana tenha sido amplamente objeto de estudos e de pesquisas no âmbito da educação científica e tecnológica, suas ideias continuam a ser fomento de reflexões críticas, que propiciam profícuas análises sobre a ciência no ensino. As discussões acerca do relativismo, tão pertinentes na atualidade, evidenciam igualmente isso.
Considerando o contexto brasileiro é possível identificar, por exemplo, em documentos oficiais de orientação curricular como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (Brasil, 1997), o incentivo a questionamentos acerca do papel da ciência e da tecnologia na sociedade que colocam em xeque a neutralidade delas - aspecto desejável na formação dos estudantes -, mas que podem ser, em certa medida, interpretados como constituintes de uma tese relativista, quando não se traz uma acepção a respeito da não-neutralidade (Oliveira, 2003). Como destaca Oliveira (2003): “[...] o que há de positivo nas motivações que levam algumas pessoas a adotar a tese da não-neutralidade em alguma versão relativista é esta postura crítica diante da ciência, [...]” (p. 165). Contudo, como também salienta o autor, é preciso se opor às formulações relativistas.
Se for admissível que a carência de uma definição acerca do que se constitui a não-neutralidade na ciência pode conduzir professores a uma adesão à tese relativista, também é admissível que a própria ausência de estudos sistematizados concernentes ao relativismo pode contribuir igualmente para essa adesão. Nesse sentido a apropriação docente de conhecimentos sobre o (suposto) relativismo em a Estrutura pode ser importante para a reflexão a respeito da ciência e do próprio relativismo. Por exemplo, uma das implicações do estudo de a Estrutura, considerando a classificação de Oliva (2012), qual seja, relativismo epistêmico, ontológico e linguístico, pode ser colaborar para o entendimento de que mesmo aqueles que sejam adeptos a um relativismo não obrigatoriamente cheguem a uma versão extrema desse, já que precisaria contemplar as três modalidades citadas. Em outras palavras, não é uma tarefa fácil qualificar o que significa entre professores uma aderência à tese relativista, uma vez que ela pode ser caracterizada por diferentes posições, como as sinalizadas por Oliva (2012). É a tomada de consciência entre professores dessas modalidades de relativismo que pode auxiliar esses profissionais refletir sobre uma filiação a tal posicionamento epistemológico.
Mais recentemente a proposta de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) também dá indicativos de carecer de definições em relação a certas compreensões que envolvem o conhecimento científico, de modo a não implicar em um relativismo. São considerações que extrapolam o relativismo científico, mas não são menos importantes. Por exemplo:
Cabe considerar e valorizar, também, diferentes cosmovisões - que englobam conhecimentos e saberes de povos e comunidades tradicionais -, reconhecendo que não são pautadas nos parâmetros teórico-metodológicos das ciências ocidentais, pois implicam sensibilidades outras que não separam a natureza da compreensão mais complexa da relação homem-natureza (Brasil, s/d, p. 548).
A imperativa valorização no processo educativo de conhecimentos que não são do campo da ciência, pode implicar em um relativismo que não contribuiria para questionar posturas terraplanistas - tão propaladas atualmente -, a mutilação de corpos femininos presentes em povos e comunidades tradicionais e frequentemente divulgada na mídia, o infanticídio em diferentes culturas, entre outros tantos conhecimentos. Esse enaltecimento de conhecimentos não pode significar um mero slogan, desvinculado de referenciais epistemológicos e educacionais, de modo a incorrer em um relativismo pernicioso.
Ainda no contexto brasileiro cabe citar a recente repercussão no meio acadêmico do Projeto de Lei do Senado n° 193/2016 - conhecido como Escola sem Partido. Esse remetia à valorização de uma neutralidade e de um relativismo no processo educacional. Por exemplo, o Art. 5º., inciso II, ressaltava que o professor: “II - não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas” (Brasil, 1996, p. 2). Bagdonas e Azevedo (2017) criticam essa exigência ao professor, uma vez que o impediria de aconselhar os estudantes que se mostrassem adeptos à violência de grupos como a Ku-Klux-Klan. Pode-se incluir ainda o impedimento do professor discutir posicionamentos explicitamente racistas, homofóbicos, antivacinas, favoráveis ao desmatamento, “negacionistas” em relação às mudanças climáticas etc. Ou seja, o exposto no Art 5º., inciso II, seria uma forma de “vale tudo” - invocando uma postura relativista - quando se trata de conhecimentos discentes no âmbito escolar.
O exposto na BNCC e no Projeto de Lei do Senado n° 193/2016 (Escola sem Partido) remete à discussão sobre um relativismo cultural, ainda que, obviamente, não se possa relacionar diretamente o presente nos documentos com as ideias de Kuhn. Matthews (2004), ao discutir o impacto de Kuhn no ensino de ciências, menciona que, de fato, as ideias do filósofo foram tomadas como referência para o debate multicultural na educação. Alguns enxergaram em Kuhn, um suporte intelectual para o relativismo cultural (Matthews, 2004). Contudo, como chama atenção o autor, esse foi um mal-entendido para o qual a comunidade de educação em ciências também contribuiu. Essas considerações de Matthews (2004) coadunam com a defesa de que docentes da área de ensino de ciências precisam se apropriar criticamente das ideias de Kuhn e, por conseguinte, isso reforça a importância de se considerar nesta apropriação as ideias previamente abordadas como as de Hoyningen-Huene (1993, 2012, 2013), Hacking (2012a, 2012b) e Oliva (2012) em interlocução com a obra de Kuhn.
Considerações concernentes ao relativismo, que pode se estabelecer no ensino de ciências, reforçam a necessidade de seu estudo sistematizado nos processos de formação docente. Avalia-se que a discussão preliminar exposta neste trabalho contemplando aspectos, sobretudo, da Estrutura, mas não se restringindo a ela, pode ser um indicativo da fecundidade de ideias kuhnianas para promover um estudo a respeito do relativismo, independentemente de se estar de acordo com as ideias de Kuhn. E ainda que se reconheçam possíveis limitações que os processos de formação docente podem ter para catalisar a inserção, por exemplo, de reflexões sobre a NdC no ensino de ciências, não é possível suprimir os indicativos da literatura acerca de como a prática de professores pode colaborar positivamente para essas reflexões. Nesse sentido, Staub, Gonçalves e Lindemann (2007) com base nos resultados de sua pesquisa, sugerem que a atuação docente pode influenciar em um declínio de estudantes de ensino médio a um entendimento relativista.
A discussão a respeito do relativismo na ciência e no ensino de ciência no âmbito da formação inicial de professores não precisa se restringir àquelas componentes curriculares responsáveis pelos temas/conteúdos da Didática das Ciências. Podem colaborar para isso as componentes curriculares de várias áreas do conhecimento como aquelas de História, Filosofia e Sociologia da Ciência, quando presentes na estrutura curricular dos cursos de Licenciatura. Isso evidencia a possibilidade da discussão ter um caráter mais supradisciplinar. Esse caráter supradisciplinar da temática também pode ser concebido no âmbito da educação básica. Além daquelas componentes curriculares da área de ciências da natureza (Biologia, Física e Química), outras como História, Filosofia e Sociologia podem colaborar para a discussão. Os conhecimentos de estudantes da educação básica associados à NdC, como já exposto, também se constituem como um foco de atenção da literatura. Forato, Pietrocola e Martins (2012), a título de exemplo, apresentam resultados de uma análise sobre obstáculos da transposição didática da história da ciência para a sala de aula, em nível médio. “Na tentativa de minimizar o risco de um relativismo ingênuo, o que não é compatível com os aspectos de NdC que adotamos, buscamos valorizar os processos e métodos da ciência como campo sistematizado em cada época, e a importância de experimentos e da matematização na proposição de teorias” (p. 137). Não obstante, como os autores salientam, alguns obstáculos demandam maiores desafios. A questão do que é omitido, em um resgate histórico-filosóficosociológico no nível básico, por exemplo, deve ser vista com diligência, pois a ênfase puramente em influências externas à ciência pode promover interpretações relativistas extremas. Isso perpassa, por certo, na própria formação inicial e continuada de professores. No âmbito da formação docente, conforme já destacado, um estudo acerca do que se constitui um relativismo epistêmico, ontológico e linguístico pode ser um modo de inibir essas interpretações relativistas extremas.
Tomar conhecimento sobre mal-entendidos vinculados à Estrutura, particularmente ao conceito de incomensurabilidade, pode auxiliar professores a se apropriarem das limitações de uma compreensão relativista no âmbito do ensino de ciências.
Cumpre registrar no que não se constituem as implicações descritas aqui: a) em uma tentativa de caracterizar uma unanimidade às ideias de Kuhn e à adesão a elas no ensino e na formação de professores de ciências. Pelo contrário, outros autores podem e merecem ser trazidos para o debate concernente ao relativismo na ciência e no ensino de ciências; b) a afirmação de que a discussão epistemológica acerca do relativismo e suas implicações para o ensino de ciências da natureza é suficiente. A discussão que coloca em xeque o relativismo não pode ser confundida com aquela que desrespeita os conhecimentos discentes ou de comunidades externas à ciência, especialmente no que se refere aos processos educativos. Assim, referenciais teóricos da área da educação/ensino de ciências também são essenciais na promoção do estudo sobre o relativismo.
A partir do reconhecimento de que uma das maneiras profícuas para fomentar discussões sobre a ciência no ensino das ciências da natureza é por meio da História e Filosofia da Ciência (Clough & Oslon, 2008; Forato et al., 2011; Matthews, 1995; Moura, 2014; Peduzzi, 2011; Peduzzi & Raicik, 2020), aponta-se para mais um aspecto de grande relevância no que tange a reflexões acerca do relativismo a partir do conceito kuhniano de revolução, que é aquele que envolve um resgate histórico-epistemológico da Revolução Química de Lavoisier. Esse caso histórico foi tomado como exemplo clássico de revolução paradigmática por Kuhn na Estrutura. Raicik et al. (2018) a título de exemplo, citam o caso de Lavoisier e o flogisto, sem, contudo, aprofundar este episódio histórico, como tipo de uma controvérsia resistiva plural; em que o embate ocorre entre um (ou mais) novo referencial teórico e o paradigma vigente.
Não obstante, a indagação sobre a existência ou não de uma revolução nesse caso, persiste entre historiadores e pesquisadores na ciência (Donovan, 1988; Filgueiras, 1995; Maar, 1999, 2012; Melhado, 1990; Mocelin, 2003; Perrin, 1988, 1990). O debate envolvendo os historiadores da ciência Arthur Donovan e Carl Perrin, a título de exemplo, acerca de uma revolução na ou para a química com Lavoisier permite discussões envolvendo o próprio conceito de revolução e seu significado, com claras interlocuções à visão kuhniana e às mudanças paradigmáticas; que não ocorrem, por certo, de forma abrupta e absoluta.
Donovan (1988) argumenta que a revolução é essencialmente epistemológica. O historiador sobreleva a transformação da química ocasionada por Lavoisier, sobretudo de ordem metodológica. A importância dada a relação entre teoria e experimentação - claramente oriunda de princípios da física experimental- permite a ele, com maior propriedade, defender uma revolução para a química; no sentido que a elevou ao patamar científico de outras, como a física, pela reforma metodológica.
Não obstante, Perrin (1988; 1990) defende uma revolução essencialmente conceitual e teórica. Ainda que se reconheça o emprego da metodologia experimental por Lavoisier, e outras novas teorias desenvolvidas naquele contexto, como a do estado gasoso ou acerca da acidez, a ‘derrubada’ do flogisto não pode ser ofuscada. Para o historiador, nesse sentido, a revolução ocorreu na química, no âmbito de uma mudança conceitual, e isso elevou o seu patamar ao da física, por exemplo.
Neste caso, em específico, é possível perceber que um processo evolutivo não inviabiliza uma revolução - na perspectiva de Perrin a revolução foi se cristalizando gradualmente, no próprio estudo de Lavoisier. Apesar de possuírem juízos de valor distintos, acerca da revolução lavoisieriana, o debate Perrin-Donovan permite profícuas discussões com interlocuções à conceitos kuhnianos.
Assim, um resgate histórico-epistemológico desse emblemático episódio histórico pode contribuir para uma melhor compreensão e aprofundamento do tema. Embora existam discordâncias consideráveis sobre a revolução química, sua análise por dissemelhantes lentes “continua sendo um dos assuntos mais desafiadores e gratificantes da história da ciência” (Donovan, 1988, p. 12). Diferentes olhares para o episódio podem contribuir, profícua e significativamente, para discussões e reflexões de e sobre a ciência.
No âmbito de propostas didáticas, sobretudo na formação de professores, a reflexão teórica de conceitos kuhnianos associados a casos históricos específicos, pode contribuir para que o tema e conceitos como o de revolução possam ser apropriados de modo a favorecer o distanciamento de uma visão relativista. Assis (2014) ao discutir sobre a inserção da história e filosofia da ciência no ensino de ciências destaca justamente implicações de duas tendências que podem permear essa inserção: as universalistas e as relativistas. A influência da posição relativista, em abordagens dessa natureza, está mais presente do que seria almejável. O autor lembra que o próprio Kuhn não aceitou a estigma de relativista e conclui: “O uso que será feito da história para o ensino de ciências vai depender de que postura seus usuários, ou seja, professores de ciências e instituições de ensino de ciências, têm acerca da natureza do conhecimento científico” (Assis, 2014, p. 162). Essas posturas também podem ser influenciadas por análises de ideias e conceitos kuhnianos, como as expostas preliminarmente neste artigo. São análises que possuem em si contribuição educacional, pois podem subsidiar a atuação e formação de professores.
Em suma, destaca-se aqui que estudar acerca da obra de Kuhn especialmente a Estrutura e os mal-entendidos a ela associados - portanto, considerando as críticas e o apoio às ideias desse físico, filósofo e historiador da ciência -, pode colaborar para a reflexão a respeito, entre outros aspectos, do relativismo. Apropriar-se de conhecimentos concernentes ao relativismo, como se procurou mostrar, parece ser uma exigência a professores da área de ensino de ciências que, por consequência, também podem considerar esses conhecimentos em suas práticas educativas.
No cenário atual de uma pandemia que assola a vida de todos, ganha mais evidência a importância de reflexões a respeito de um relativismo que implica em atitudes anticientíficas. Em editorial recente do reconhecido periódico Science & Education, já mencionado, Erduram (2020) questiona sugestivamente: “como a história, a filosofia e a sociologia da ciência podem contribuir à educação para entender e resolver a crise de Covid-19?” (p. 233). Nesta direção, a autora coloca a necessidade de reflexão filosófica sobre o que se constitui como ciência nesse cenário de uma pandemia. Entende-se que uma permanente reflexão sobre o relativismo associado à ciência pode colaborar para o exposto.
As discussões ocorridas na filosofia em meados do século passado com, por exemplo, Kuhn, Popper, Lakatos, Feyerabend, Toulmin, Hanson evidenciam novos olhares para a ciência. A partir delas, não se pode mais aceitar uma leitura anacrônica do passado, defender - pura e simplesmente - um sistema de crescimento cumulativo de conhecimento, ignorar os valores e seus juízos e, portanto, admitir critérios fixos e absolutos de racionalidade, dicotomizar os contextos da descoberta e da justificativa, sustentar observações desprendidas de pressupostos teóricos, etc. (Kindi & Arabatzis, 2012).
Não obstante, o ensino de ciências ainda aborda concepções limitadas acerca da ciência e sua dinâmica; quer em materiais didáticos, nos discursos de professores, nas concepções prévias de estudantes, em documentos de orientação curricular, quer em materiais de divulgação científica e na veiculação midiática da ciência, como vídeos, filmes e documentários, cada vez mais utilizados em estratégias didáticas (Clough & Olson, 2008; Fernández, Gil, Carrascosa, Cachapuz & Praia, 2002; Gil Pérez, Montoro, Alís, Cachapuz & Praia, 2001; Harres, 1999; Hodson, 1988; Lederman, 1992, 2007; Martins, 2015; Moreira & Ostermann, 1993; Silva, 2010).
Isso torna ainda mais necessário, relevante e atual, discussões sobre a ciência tanto na formação inicial e continuada de professores, quanto na de pesquisadores em formação. Promover reflexões sobre a natureza da ciência em diferentes níveis de ensino pode contribuir para uma formação mais crítica desses sujeitos (Peduzzi & Raicik, 2020). No que tange a formação de professores, Praia, Gil Perez e Vilches (2007) explicitam que, “torna-se um requisito inquestionável, modificar a imagem da natureza da ciência que os professores têm e transmitem” (p. 147).
A noção de cumulatividade - no âmbito de um período de ciência normal, em que o conhecimento se acumula no íntimo de um paradigma - e de ruptura - no qual emerge um novo paradigma - não são excludentes entre si, como evidencia a própria concepção kuhniana de ciência. Uma vigilância epistemológica se torna essencial, portanto, para uma análise fundamentada da ciência.
Para além do exposto, a atualidade de Kuhn se mostra de extrema relevância, sobretudo, quando a ciência vive sua descrença. Tão julgado por trazer uma irracionalidade à ciência, como resgatam Mendonça e Videira (2013), nele pode-se encontrar a independência da ciência frente a um controle social mais amplo. “Se somente a autoridade (e especialmente a autoridade não profissional) fosse o árbitro dos debates sobre paradigmas, daí ainda poderia resultar uma revolução, mas não uma revolução científica”, enfatiza Kuhn (2011a, p. 212). “A própria existência da ciência” continua o filósofo, “depende da delegação do poder de escolha entre paradigmas e membros de um tipo especial de comunidade (...)”. Indagando “quais são as características essenciais de tais comunidades?”, ele expressa o que parece ser, se não uma resposta, um indicativo dela: “Uma das leis mais fortes, ainda que não escrita, da vida científica é a proibição de apelar a chefes de Estado ou ao povo em geral quando está em jogo um assunto relativo à ciência (...) (p. 212).
Em tempos em que pseudociências - favoráveis ao terraplanismo, a antivacinas - e noções obsoletas - que colocam em xeque a relevância de isolamentos sociais em meio a uma pandemia, por exemplo - ganham adeptos e espaços sociais, torna-se ainda mais importante a formação de sujeitos críticos científica e tecnologicamente.
*Correspondencia: anabelraicik@gmail.com